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Projeto

PERGUNTE
E
RESPONDEREMOS
ON-LINE

Apostolado Veritatis Spiendor


com autorizacáo de
Dom Estéváo Tavares Bettencourt, osb
(in memoriam)
APRESENTAQÁO
DA EDigÁO ON-LINE
Diz Sao Pedro que devemos
estar preparados para dar a razáo da
nossa esperanca a todo aquele que no-la
pedir {1 Pedro 3,15).

Esta necessidade de darmos


conta da nossa esperanca e da nossa fé
hoje é mais premente do que outrora,
visto que somos bombardeados por
numerosas correntes filosóficas e
religiosas contrarias á fé católica. Somos
assim incitados a procurar consolidar
nossa crenca católica mediante um
aprofundamento do nosso estudo.

Eis o que neste site Pergunte e


Responderemos propoe aos seus leitores:
aborda questóes da atualidade
controvertidas, elucidando-as do ponto de
vista cristáo a fim de que as dúvidas se
dissipem e a vivencia católica se fortalega
no Brasil e no mundo. Queira Deus
abencoar este trabal no assim como a
equipe de Veritatis Splendor que se
encarrega do respectivo site.

Rio de Janeiro, 30 de julho de 2003.

Pe. Esteváo Bettencourt, OSB

NOTA DO APOSTOLADO VERITATIS SPLENDOR

Celebramos convenio com d. Esteváo Bettencourt e


passamos a disponibilizar nesta área, o excelente e sempre atual
conteúdo da revista teológico - filosófica "Pergunte e
Responderemos", que conta com mais de 40 anos de publicacao.

A d. Esteváo Bettencourt agradecemos a confiaca


depositada em nosso trabalho, bem como pela generosidade e
zelo pastoral assim demonstrados.
índice
pág.

AMOR A VERDADE 141

O Egllo em foco :
CRISTAOS E MUCULMANOS NO EGITO 143

Tema cándenle:
"A IGREJA E O RECONHECIMENTO DOS DIREITOS HUMANOS NA
HISTORIA", por Hubert Lepargneur 150

Ñas Mlssas dilas "comunitarias" :


UMA SÓ MISSA E MUITAS DOAQOES ? 164

O menino sabio:
UM CASO DE REENCARNAQAO ? 174

Valioso depolmenlci:
FALA WERNER VON BRAUN 177

O V ENCONTRÓ NACIONAL DA ABESC 179

CRISTIANISMO E FILOSOFÍA NA AMÉRICA LATINA HOJE 182

LIVROS EM ESTANTE 184

COM APROVACAO ECLESIÁSTICA

NO PRÓXIMO NÚMERO :

«Jesús de Nazeré» de Franco Zeffirelli. — Duas cartas provenientes


da U.R.S.S. — Os coloquios vespertinos do Pe. Dmitrij Dudko. —
«Eu fui testemunha de Jeová», por Günther Pape.
X

«PERGUNTE E RESPONDEREMOS»

Assinatura anual Cr$ 100,00

Número avulso de qualquer mes Cr$ 10,00

REDAgAO DE PR ADMINISTRAQAO
_ , _ . , „ „-- Llvrarla Missionária Editora
Caixs Postal 2.666 Rua Méxlco> 168.B (Castelo)
ZC-00 20.000 Rio do Janeiro (RJ)
20.000 Rio de Janeiro (RJ) Tel.: 224-0059
AMOR Á YERDADE p/e

Narra o Evangelho que certa vez Jesús, tend


trado um cegó de nascenga, lhe deu a vista. Pouco depois,
esse homem, vendo Jesús, teve a coragem de reconhecé-lo
como Messias. Ao presenciaren! esses fatos, os fariseus pro-
curaram furtar-se ao seu significado, e acabaram expulsando
da sinagoga o que fora curado; Jesús entáo lhes disse:

"Para julgamento é que vim a este mundo: para que os


que nao véem, vejam, e os que véem se tornem cegos... Se
vos, fariseus, fosseis cegos, nao teríeis culpa; mas, pois que
dizeis 'Nos vemos', o vosso pecado permanece" (cf. Jo 9,1-41).

Descreyendo tais acontecimentos, o evangelista alude a


dois planos da realidade: o das coisas visíveis e o dos valores
invisiveis. O cegó obteve a vista física e desta passou para
a visáo da fé. Ao contrario, os fariseus, que já tinham a
visáo física, cairam na cegueira da incredulidade... A razáo
por que os homens assim se diferenciavam, é que o cegó
tinha um coragáo reto; nenhum obstáculo moral o impedia
de discernir a transparencia ou a presenga do próprio Deus
através dos tragos humanos de Jesús. Ao invés, os fariseus
tinham o coracáo entravado por paixóes; por isto eram cegos
para o significado da realidade física que eles percebiam;
diante da evidencia da verdade, recorreram a subterfugios e
sofismas. Foi, portante, com muita razáo que disse O Senhor:
«Bem-aventurados os que tém o coragáo puro, porque veráo
a Deus» (Mt 5,8).

Estes dados do Evangelho sugerem algumas reflexóes:

1) Grande é a responsabilidade dos que tém olhos físi


cos sadios. Véem, sim, mas — pergunta-se — entendem o
que véem? Váo até o ámago dos sinais cuja periferia perce-
bem com os olhos? S. Agostinho nos diz que a realidade que
nos cerca, é comparável a enorme letreiro: o analfabeto, ao
vé-lo, pode admirar a elegancia dos caracteres bem tragados,
mas nao saberá ler ou nao entenderá o que eles significam.
Somente quem sabe ler, poderá perceber todo o alcance das
linhas que tem ante os olhos. Ora diante dos acontecimentos
de cada dia, que sao sempre sinais de Deus, o homem pode
comportar-se como um analfabeto; assiste, acompanha, co
menta os dados dos jomáis e das crónicas, mas nao sabe ler*
nao sabe ligar os fatos (as letras) entre si, de modo a
apreender as palavras e a mensagem que o Senhor Deus de
tal modo quer transmitir aos homens. Para superar tal tipo

— 141 —
de analfabetismo e para ler a realidade, principalmente para
ler os sinais de Deus, é preciso que o homem tenha olhos
plenamente abertos, o que supóe Uberdade interior e dispo-
nibilidade para a verdade; é mister ter um coragáo desvin
culado para que possa ser interpelado e convertido pela ver
dade. Os fariseus, de olhos abertos, nao tiveram a coragem
de ver o que Jesús significava. Ao contrario, o cegó, que
nao tinha olhos, mas tinha o coragáo livre, viu a face humana
de Jesús e compreendeu o seu misterio.

2) Jesús resumiu a sua missáo nos seguintes termos:

"Nasci e vim ao mundo para dar testemunho da verdade.


Quem é da verdade, escuta a minha voz" (Jo 19, 37).

Cristo enfatiza grandemente a verdade... Ele veio tra-


zé-la ao mundo. Isto, porque no inicio da historia o homem
foi vítima da mentira do tentador e, em conseqüéncia, incor-
reu na morte. Cf. Jo 8,44.

Sendo assim, este tempo de Páscoa (que é o da Vitoria


da vida sobreí a morte ou da verdade de Cristo sobre a men
tira de Satanás) nos incita a conceber, de maneira mais
consciente ainda, o amor á verdade.

Amor á verdade... A expressáo parece pálida, quando


se pensa em outras expressóes mais usuais: amor a um ente
querido, amor ao dinheiro, amor ao prestigio, amor á car-
reira... Apesar disto, o amor á verdade é fundamental para
um cristáo; este há de amar a verdade em todas as suas
acepgóes:

— a verdade no plano das realidades humanas, no da


historia, no da linguagem, no da vida de cada dia... Isto
equivale a horror a falsidades, ambigüidades, meias-atitudes,
semi-verdades, camuflagens covardes...;

— a verdade no" plano da Revelagáo ou no plano da


fé..., verdade como fidelidade á Palavra de Deus transmi
tida auténticamente pelo magisterio da Igreja..., verdade a
ser estudada e aprofundada em Circuios Bíblicos e em cursos
de formagáo crista para os diversos niveis do povo de Deus.

«Para conhecer, é preciso amar», dizia sabiamente Blaise


Pascal (tl662). E, para amar..., amar a verdade, é pre
ciso ter um coragáo livre, isento de paixóes e outros obstá
culos.

Que Ele, o Senhor, a todos conceda esta premissa como


fruto da sua santa Páscoa!
E.B.
— 142 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS»
Ano XIX — N* 220 — Abril de 1978

O Egito em foco:

(listaos e muculmanos no egito


Em sfntese: A populado do Egito conla aproximadamente 33 mi-
Ihdes de muculmanos e seis niilhóes de coptas cristaos monoflsltas, que
professam quase a mesma fé que a Igreja Católica. Os cristaos coptas
tém estado sujeltos a lels e prátlcas de dlscrlmlnacBo religiosa que os
cercelam em seus direitos clvls. Eis, porém, que o presidente Anwar
Sadat no ano de 1977 se mostrou mais e mais favorável a urna revisSo
de tal estatuto, dando testemunhos públicos de benevolencia aos coptas.
Esta atitude, em grande parte, deve-se á lealdade de que os coptas tém
dado provas em relacáo ao Governo, delendendo-o contra Invectivas comu
nistas; acresce o fato de que a luta contra Israel tem contribuido para
avivar em todos os cidadáos egipcios a consclencia da necessária unidade
nacional. A política de simpatia de Sadat em relacSo aos cristaos culmi-
nou por ocasiáo da visita do presidente egipcio a Jerusalém aos 20/11/77.
Nessa ocasiáo disse o presidente ao Parlamento Israelense (Knessel):
"Nos, cristaos e muculmanos..." O fato, embora nSo tenha tldo o
almejado efeito de um Tratado de Paz entre Israel e o Egito, é altamente
significativo, dada a nota religiosa que Sadat quls dar á sua demanda
de paz.

Comentario: Os jomáis vém falando insistentemente do


Egito e de seu presidente Anwar Sadat, que recentemente
surpreendeu o mundo pela sua magnanimidade ou seu desejo
de paz e vida nova. As atitudes de Sadat tém sido diversa
mente comentadas pelos observadores; nao raro sao avaliadas
táo somente segundo criterios políticos. Ora o Governo de
Sadat tem-se caracterizado, outrossim, por certa tolerancia
religiosa, que revela no presidente do Egito um senso místico
apurado e digno de nota. Dado que os pronunciamentos e
gestos de Sadat sobressairam no contexto da atual política
internacional, vamos abaixo relatar sumariamente as ocorrén-
cias mais notáveis da política religiosa de Anwar Sadat e
tecer-lhe alguns comentarios.

— 143 —
4 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS* 220/1978 __

1. Egito e cren$as religio&as

A populagáo egipcia consta de 33 milhóes de mugulma-


nos, mais de seis milhóes de cristáos e de crescente número
de judeus. Estes sao um grupo de mil pessoas aproximada
mente (antes do Governo de Abd-el Nasser eram 80.000).

Os cristáos egipcios sao chamados copias. Esta palavra


se deriva do grego Aigyptos; as consoantes do radical respec
tivo — g (ou k), p e t — deram, com outras vogais, o nome
kopta. Os coptas sao os descendentes da antiga populagáo
do país, que, na época dos Faraós e dos reis Ptolomeus Lagi-
das, criou grandes obras de arte. Abragaram a fé crista,
quando esta lhes foi anunciada a partir do século I. Todavía
no século V separaram-se da comunháo da Igreja por recusa-
rem o Concilio de Calcedonia (451) e aderirem ao monofi-
sismo *, que o Patriarca ÉJutiques de Alexandria havia pro-
posto e defendido... A Igreja do Egito teve seus grandes
santos e doutores como Dionisio de Alexandria, S. Atanásio
de Alexandria, S. Cirilo de Alexandria, Didimo o Cegó... No
século VII os árabes invadiram o Egito e tornaram o país
até hoje predominantemente mugulmano.

Hoje em día o islamismo é a religiáo oficial da Repú


blica Árabe do Egito, constituida em 1971 por Sadat; a sua
fonte jurídica é o Direito sagrado dos Sunitas (mugulmanos).
As outras crengas religiosas sao ai toleradas, mas nao gozam
de igualdade de direitos; nao lhes é permitido, por exemplo,
construir novas igrejas, nem seus membros tém fácil acesso
as fungóes públicas; qualquer agáo missionária é severamente
punida; o mugulmano que apostatasse da sua fé, estava, até
pouco tempo atrás, sujeito a pena de morte. Aos cristáos
nao é licito constituir Partidos políticos ou organizagóes para
defender os seus legítimos interesses (alias, o mesmo tam-
bém é proibido aos mulgumanos como tais, com a diferenga
de que os mugulmanos já constituem a maioria em todas as
instituigóes da vida egipcia).

10 monofislsmo afirmava só haver urna pessoa (divina) e urna natu-


reza (divina) em Cristo, á diferenga do Concilio de Calcedonia (451), que
professava uma pessoa (divina) e duas naturezas (a divina e a humana)
em Cristo. Hoje em dia os coptas, embora ainda se digam monofisltas,
reconhecem, como a Igreja Universal, haver em Cristo, além da natureza
divina, a natureza humana, que foi pregada á cruz e glorificada pela
ressurrelcfio. Por consegulnte, o que os separa de Roma, é relativamente
Insignificante; tem-se dado crescente aproximado entre o Patriarca copta
e a Santa Se.

— 144 —
CRISTAOS E MUCULMANOS NO EGITO

2. A recente historia religiosa

O presidente Gamal Abd-el Nasser era de origem copta;


embora professasse a fé islámica, nao deixou de mostrar sim
patía pelos coptas em certos casos. O escritor copta Ramsés
Stino, autor da obra «Filosofía da Encarnagáo», tornou-se o
grande mentor de Nasser e do socialismo árabe concebido
por este. Em 1964, o presidente Nasser langou a pedra fun
damental da imponente igreja patriarcal copta do Cairo, e
em 1968 assistiu á consagragáo da mesma. Todavía manteve
os coptas excluidos das maís altas posigóes do exército e da
administragáo pública.

A situagáo piorou após a morte de Nasser em 1970,


quando o poder foi assumido por Anwar Sadat, que era
expoente do islamismo radical e tinha ligagóes com as faná
ticas Fraternidades Derwisch. Em 1971, tendo falecido o
Patriarca copta Cirilo VI, o Governo impediu a eleicáo, a
Patriarca, do bispo Amba Samuil, tido como ayancado, e
favoreceu a de Amba Chenuda, conservador, bem relacionado
com o entáo Ministro do Exército, General Sadek. Che-
nuda III, ainda hoje Patriarca de Alexandria e de toda a
África, conheceu, pouco depois de eleito, dura fase de perse-
guigáo aos cristáos: grupos de mugulmanos fanáticos puse-
ram-se a incendiar igrejas com a conivéncia das autoridades
governamentais. Apenas urna mulher, Aischa Rateb, entáo
Ministro de Estado, ousou protestar em favor dos cristáos
oprimidos; em conseqüéncia, numa assembléia reunida na
Universidade musulmana Al-Azhar, foi declarada atéia (o
que equivalía a excomunháo), resultando-lhe dai a perda de
suas funcóes públicas.

Eis, porém, que a situacáo evoluiu para melhor. Durante


a guerra de 1973 contra os judeus, o Governo declarou a
unidad© nacional de todos os egipcios. Isto, porém, nao sig-
nificava abrandamento das leis religiosas vigentes ou das res-
trigóes feitas a liberdade de culto dos cristáos.

Em Janeiro de 1977, verificaram-se no Egito motins de


origem comunista...; o presidente Sadat perdía a sua popu-
laridade... Todavía os coptas se lhe mostraram fiéis. Esta
atitude de lealdade dos cristáos parece ter aberto os olhos
do presidente para o significado da minoria copta, que ele
até entáo menosprezara. Em julho de 1977 os extremistas
da seita musulmana Takfir-wa-Higra raptaram e mataram o

_ 145 _
6 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 220/1978

ex-Ministro dos Cultos e conclamaram os seus concidadáos


para constituir urna teocracia confiada a fanáticos. Essa
revolta só pode ser debelada mediante a participacáo volun
taria de tropas de policiais cristáos do Alto Egito. Tal gesto
de fidelidade reforcou a atitude simpática do presidente para
com os coptas. Em outubro do mesmo ano de 1977, novo
levante comunista foi descoberto. Ora a sucessáo dos aconte-
cimentos motivou Sadat a tomar atitudes publicamente favo-
ráveis aos cristáos. Na mesma época o presidente compa-
receu á inauguracáo do Hospital copta do Cairo dedicado a
S. Marcos Evangelista, e doou do próprio bolso elevada quan-
tia para o bom funcionamento dessa instituigáo crista. Mais:
presente á solenidade inaugural da Casa de Saúde, Sadat
proferiu palavras que equivaliam á proclamagáo de nova polí
tica do seu governo islámico em relagáo aos cristáos:

"Muculmanos e cristáos sao hoje urna só carne e um só sangue.


Nunca entregaremos ao materialismo esta térra dos profetas, das reve
lares divinas, do humanismo, do amor e da fél"

Em sete anos de Governo, Sadat nunca se mostrara táo


conciliador quanto naquele momento.

O presidente permitiu entáo que se organizassem no


Cairo e em outras cidades Fraternidades Cristas, de vida
comunitaria, destinadas á agáo social e ecuménica. Ésses gru
pos suscitaram renovagáo da vida eclesial copta, que quase
só podia contar até entáo com os focos de espiritualidade
situados nos mosteiros e ñas colonias de eremitas.

Corre outrossim urna versáo dos fatos segundo a qual,


no mes de agosto de 1977, o Patriarca Chenuda III apresen-
tou ao Primeiro Ministro e ao Ministro do Interior do Egito
um relatório que expunha as inquietudes dos coptas derivadas
da discriminagáo religiosa praticada no país. Dizia textual
mente:

"Pedimos urna revisáo da sltuacao, de manelra que os cristáos sejam


representados no Parlamento e nos órgSos de Governo locáis segundo
proporcSo correspondente ás estatlstfcas reais... Pedimos aos respon-
sávels intervenham enérgicamente para suprimir as correntes extremistas
e asslm salvaguardar a unldade nacional".

A entrevista de Chenuda com o Ministro do Interior


Mamdouh Salem, provocada por tal relatório, nada obteve,
pois, a quanto parece, Salem deu a entender ao Patriarca que

— 146 —
CRISTAOS E MUCULMANOS NO EGITO

o Governo tinha preocupares mais importantes do que as


apreensóes dos coptas...

Todavía aos 21 de setembro de 1977 o presidente Sadat


convidou o Patriarca e trinta e sete bispos coptas para urna
audiencia no seu palacio de El-Kanater no Cairo, estando
presente também o Primeiro Ministro. O encontró, que durou
mais de quatro horas, íoi amistoso; após a leitura do rela-
tório por parte de Chenuda, cada um dos bispos citou casos
concretos de injustigas infligidas aos coptas. Ao ouvir os rela
tos, o presidente terá perguntado repetidamente ao Primeiro
Ministro: «Mamdouth, por que nao fui informado a respeito?»
Na verdade, Sadat parece nao ter sido notificado dos inci
dentes provocados pelos extremistas mugulmanos. A audiencia
era foco moveu-o a declaragóes posteriores em favor da paz
nacional, como, por exemplo, a que foi publicada aos 12 de
outubro pelo jornal «El Ahram»:

"O Egito eteno jamáis será a térra da díscriminagáo e da divisáo".

Tais fatos justificam certo otimismo da parte dos cris-


táos egipcios no tocante á sua liberdade de culto e de expres-
sáo, embora fiquem nuvens no horizonte derivadas da posicáo
de faccóes fanáticas.

Passemos agora aos memoráveis fatos de novembro 1977.

3. Novembro 77 : Sadat em Jerusalém

A evolucáo das atitudes de Sadat se traduziu finalmente


em novembro pp. num gesto que nao foi somente de alcance
político, mas ao qual o próprio presidente quis dar um signi
ficado religioso.

Havia mais de trinta anos, Israel e o Egito viviam em


estado de guerra, que quatro vezes redundou em serios con-
flitos armados, nutridos por odio implacável, profundamente
arraigado na populagáo árabe e na israelense. Ora, após pre
vias negociacóes, de 19 a 21 de novembro de 1977, Anwar
Sadat, num gesto de grande coragem, quis estar em Jerusa
lém a fim de iniciar ?.s tratativas de paz. Aos 20/11/77 foi
recebido no aeroporto de rel-Aviv pelo presidente Katzir, pelo
Primeiro Ministro Menahen Begin e a mor parte dos Minis-

— 147 —
S «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 220/1978

tros de Estado, assim como por multidáo jubilosa de israe-


lenses e árabes, que agitavam bandeiras dos dois países e
cantavam hinos evocadores da paz. Cantos populares, acla-
macóes, recitagáo de versículos da Biblia e do Coráo acompa-
nharam o cortejo presidencial á saída do aeroporto e á che-
gada em Jerusalém.

Sadat falou na Knesset (Parlamento de Israel) em Jeru


salém, propondo a paz no Oriente Próximo. Todo o seu dis
curso foi caloroso e penetrante. Dele extraímos urna das
passagens mais significativas:

"Paz a todos aqueles que se encontram na térra árabe, em Israel


e em qualquer parte deste vasto mundo, atormentado por contlitos cruen
tos, chelo de agudas contradlcóes, ameacado periódicamente pelas guerras
devastadoras que o homem empreende para destruir os seus semelhantes.
Ao flm de tais lulas, em meio ás rufnas do que fora construido, e entre
os residuos das vitimas humanas, nao pode haver nem vencedores nem
vencidos. O eterno derrotado é o homem, a suprema criatura de Deus,
o ser humano que Deus criou, como disse Gandhi, o apostólo da paz,
'para camlnhar com as suas própria3 pernas, construir a sua vida e
adorar a Deus1.

Hoje vlm até vos caminhando firmemente com as minhas pernas, a


flm de que possamos construir urna vida nova, a (im de que possamos
eslabelecer/ a paz para todos nos nesta térra, a térra de Deus — nos
todos, muculmanos, crislSos e hebreus, do mesmo modo —, e a fim de
que possamos adorar a Deus, um Deus cujos ensinamentos e preceitos
sáó o amor, a retidlo, a pureza e a paz".

No mesmo discurso, Sadat pronunciou cerca de vinte


vezes o nome de Deus. Aludindo diretamente aos valores reli
giosos, acrescentou:

"O destino quis que a minha viagem (missáo de paz) coincidisse


com a festa musulmana de Al Adha, a testa do sacrificio pelo qual Abraáo
— o Patriarca dos árabes e dos judeus — obedeceu á ordem de Deus
e se entregou ao Altfssimo, nao por fraqueza, mas por forca espiritual,
e, usando de total liberdade, aceltou sacrificar seu filho, com fé inaba-
lável, estabelecendo assim para nos ideáis que dio á vida urna profunda
significacSo".

Em coeréncia com as suas palavras, Sadat foi orar na


grande mesquita de El Aksa, visitou o santo Sepulcro de
Cristo e o monumento judeu «Yad Vachem», erguido em
memoria das vitimas do nacional-socialismo. Comovido pelas
imagens que lembravam a crueldade dos campos de concen-
tragáo nazistas, Sadat escreveu no livro de ouro do monu-

— 148 —
CRISTAOS E MUCULMANOS NO EGITO 9

mentó judeu, em inglés e em árabe, palavras que significan!


todo um programa político:

"Possa o Senhor guiar os nossos passos pelo camlnho da paz, a.


fim de que cessem para sempre os sofrimentos de toda a humanldadel"

O gesto de Sadat, embora tenha encontrado contraditores


tanto entre os intelectuais do Egito quanto no estrangeiro,
suscitou os aplausos e a alegria do povo egipcio.

A imprensa internacional, entre outros tópicos, realgou a


atitude religiosa do presidente egipcio. Assim, por exemplo,
o jornalista francés Maurice Druon escreveu no «Le Figaro»:

"De todo modo, o que é Importante e fica adquirido, é que, no


encontró de Jerusalém, Deus fol mencionado como sendo Aquele que
de ve ditar as atitudes dos povos, inspirar os atos dos governantes e
suscitar a aproxlmacáo dos dois campos. Há quanto tempo, há quantos
séculos nSo se dera semelhante acontectmento?" (citacao colhida em
"Informatlons Cathollques Internationales" n? 521, 15/12/77, p. 13).

A visita de Anwar Sadat a Jerusalém nao surtiu os efei-


tos désejados, pois as negociagóes de paz subseqüentes se
defrontaram com impasses que o Egito e Israel julgaram inso-
lúveis. Todavía a Providencia Divina acompanha a historia
e, através dos acontecimientos desta, vai realizando seus sabios
designios. Se a aproximagáo do Egito e de Israel nao atingiu
aínda o almejado Tratado de Paz, ao menos deixou marcas
na historia deste fim de século XX, caracterizado por onda
de indiferentismo e ateísmo oficiáis entre os povos.

Possam os gestos religiosos de Sadat produzir frutos


duradouros nao so em favor da populacáo do Egito, mas
também no plano da política internacional!

Bibliografía:

Helnz Gstrein, "Aegypten: Christen und Muslime Im relfglosen


Aufbruch", em "Orientlerung" n« 22, 419 ano, Zürlch, 30/11/1977, pp. 240s.

J.-P. M, "Sadate á Jerusalém: J'en appelle á Dleul", em "Informatlons


Catholiques Internationales", n? 521, 15/12/1977, pp. 11-14.

— 149 —
Tema candente:

"a igreja e o reconhecimento dos


direitos humanos na historia"
por Hubert Lepargneur

Em sfntese: O artigo considera o Nvro ácima proposto, tentando


realcar que

1) os falos históricos passados hio de ser considerados dentro da


sua moldura cultural respectiva. Por conseguinte, a Inquisicáo deve ser
colocada em seu contexto medieval, renascentista ou ibérico próprio. So
assim se poderá compreender que o fato da Inquisicáo, embora choque
o homem moderno, nao perturbava os santos de outrora, mas, antes, Ihes
parecía, via-de-regra, expressao de fidelidade a Cristo e de zelo pela
causa da verdade e do bem;

2) a Igreja, além de ser o povo de Deus, ó também o sacramento


da unldade dos homens entre si e com Deus. Por conseguinte, a sua
realidade nño se esgota na sua face visfvel. Esta encobre e manlfesta a
presenca de Deus, que se comunica através da face visfvel da Igreja.
Em conseqüéncla, nSo se pode julgar a Igreja com olhos meramente
humanos ou a partir de criterios meramente naturais.

Comentario: O Pe. Hubert Lepargneur, teólogo de renome


internacional, publicou em 1977 o livro de titulo ácima, que,
como se compreende, se reveste de grande atualidade. Divide
o seu estudo em tres partes: 1) Balizas cronológicas; 2) Bali
zas temáticas; 3) Igreja e Direitos humanos na atualidade.
Na primeira, analisa o comportamento da Igreja frente á
questáo dos direitos humanos desde a origem do Cristianismo
até a época contemporánea. Na segunda, considera as gran
des nocóes da Filosofía e da Teología que fundamentam os
direitos humanos, entrando também na reflexáo sobre fatos
históricos atinentes ao assunto. Na terceira parte, o autor
1 Editora Cortez e Moraes Ltda., Sao Paulo 1977, 140 x 210 mm,
139 pp.

— 150 —
IGREJA E DIREITOS HUMANOS 11

se volta para a situacáo contemporánea, expondo como a


Igreja se comporta nos diversos países do mundo (marxistas
e nao marxistas) no tocante aos direitos humanos. — O livro
traz as pp. 7 e 8 urna Apresentacáo assinada pelo Emo. Sr.
Cardeal-arcebispo D. Paulo Evaristo Arns.

A obra, sem dúvida, desperta o grande interesse dos


estudiosos. É rica em citagóes de fatos e textos que ilustram
bem a historia e a problemática dos direitos humanos. Toda
vía duas serias restrigóes se opóem ao escrito de Lepargneur:
1) a primeira se refere ao dimensionamento histórico; 2) a
outra é pertinente ao conceito de Igreja. Vamos explaná-las
sucessivamente.

1. O dimenstonamento histórico

O livro é perpassado de pessimismo e de críticas a Igreja.


Ora observa-se que as pessoas demasiado ciosas de denun
ciar o que julgam ser injustigas do passado, se arriscam, por
sua vez, a cometer injustigas. Nao há dúvida de que os
homens da Igreja, em séculos idos, cometeram o que nos
hoje conceituamos como violagáo dos direitos humanos: houve,
por exemplo, as faganhas da Inquisigáo, que sao freqüente-
mente citadas nao só por Lepargneur, mas também por outros
críticos, como testemunho de injusta atitude da Igreja. Quem
lé as objegóes proferidas por Lepargneur (que as vezes se
baseia em bibliografía anticatólica), nao pode deixar de que
rer dialogar com o autor para lhe propor as seguintes ponde-
ragóes:

a) Reconhegamos sinceramente a verdade em toda a


sua amplidáo (sem a encobrir, mas também sem a aumentar
indevidamente). A Igreja nao pretende ser constituida ape
nas de santos, mas, como disse o Senhor no Evangelho, Ela
compreende trigo e joio (cf. Mt 13, 24-40. 36-43). Por isto,
se houve falhas, e graves falhas, por parte de membros da
Igreja no passado ou nos tempos atuais, sejam confessadas
com lealdade. A causa de Cristo só se pode beneficiar pelo
reconhecimento sincero e humilde da verdade comprovada.

b) É necessário, porém, que o estudioso nao ceda á


tentagáo de querer julgar episodios do passado com lentes do

— 151 —
12 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 220/1978

século XX... Como nao se julga urna crianga a partir das


categorías que se aplicariam a um adulto. Os feitos que hoje
sao tidos como objetiva e • subjetivamente imorais, outrora
podiam ser encarados em outra perspectiva e segundo crite
rios diferentes, devidos á cultura da época respectiva. Assim
o mal objetivo e real pode ter sido praticado por pessoas de
consciéncia tranquila.

A luz destes principios, examinemos de modo detido a


Inquisicáo, tida como o espécimen mais flagrante de violagáo
dos direitos humanos por parte da Igreja.

1.1. Poder civil e autoridade eclesiástica

Nao se pode falar da Inquisicáo como se fosse um em-


preendimento monolíticamente imputável á Igreja. Antes dis
tingamos a Inquisieáo Medieval (séc. XI — séc. XV), a Inqui-
sigáo Romana (séc. XVI-XVII e a Inquisigáo Espanhola
(séc. XV-XIX).

a) A Inquisicáo Medieval comecou como movimento de


repressáo aos cataros ou albigensss, que em hordas fanáticas
percorriam o territorio da Franca, o Norte da Italia, a Flán-
dria.... pilhando e devastando propriedades alheias, movidos
por sua mentalidade dualista (ou maniquéia).

O combate aos cataros foi iniciado pelos nobres e reis,


que se opunham á desordem pública causada pelos agitadores
fanáticos. Entrementes as autoridades eclesiásticas recusavam
recorrer á repressáo violenta, pois pretendiam debelar os
cataros pelo poder da persuasáo. «Sejam os herejes conquis
tados nao pelas armas, mas pelos argumentos», admoestava
S. Bernardo, t 1153 («In Cant.» serm. 64).

Nao sao casos ¡solados os seguintes: em 1144 na cidade


de Liáo o povo quis punir violentamente um grupo de inova-
dores que ai se introduzira; o clero, porétn, os salvou, dese-
jando a sua conversáo e nao a sua morte. Em 1077, um hereje
professou seus erros diante do bispo de Cambraia; a multidáo
de populares langou-se entáo sobre ele, sem esperar o julga-
mento; encerraram-no nutna cabana, á qual atearam fogo!

Contudo em meados do século XII a aparente indiferenga


do clero se tornou insustentável: os magistrados e o povo

— 152 —
IGREJA E DIREITOS HUMANOS 13

exigiam colaboragáo mais direta na repressáo aos cataros,


pois estes provocavam tumultos, saques e agressáo aos direitos
públicos civis. Muito significativo, por exemplo, é o episodio
seguinte: o Papa Alexandre ni, em 1162, escreveu ao arcebispo
de Reims e ao Conde da Flándria, em cujo territorio os
cataros disseminavam desordens:

"Mais vale absolver culpados do que, por excesslva severidade,


atacar a vida de Inocentes... A mansldáo mais convém aos homans da
Igreja do que a dureza".

Informado desta admoestagáo pontificia, o rei Luís VII


da Franga, irmáo do referido arcebispo, enviou ao Papa um
documento em que o descontentamento e o respeito se
traduziam simultáneamente:

"Que Vossa prudencia dé atencSo toda particular a essa parte


(a heresla) e a suprima antes que possa crescer. Supllco-Vos para o
bem da fó crista: concede! todos os poderes neste setor ao arcebispo
(de Reims); ele destruirá os que asslm se Insurgem contra Deus: sua
justa severidade será louvada por todos aqueles que nesta térra sfio
animados de verdadeira piedade. Se procederdes doutro modo, as quelxas
nao se acalmaráo fácilmente e desencadearels contra a Igreja Romana as
violentas recrlminagSes da oplnlño pública" (Marténe, "Amplissima Col-
lectio" II 683s).

As conseqüéncias deste intercambio epistolar nao se


fizeram esperar: o Concilio regional de Tours em 1163, tomando
Barbarroxa medidas repressivas á heresia, mandava inquirir
(procurar) os seus agrupamentos secretos. Por fim, a assem-
bléia de Verona (Italia), á qual comparecerán! o Papa Lu
cio m, o Imperador Frederico Barbarroxa, numerosos bispos,
prelados e principes, baixou em 1184 um decreto de grande
importancia: o poder eclesiástico e o civil, até que entáo
haviam agido independentemente um do outro (aquele im
pondo penas espirituais, este recorrendo á forca física), deve-
riam combinar seus esforcos em vista de mais eficientes resul
tados: os herejes seriam doravantq nao somente punidos, mas
também procurados (inquiridos); cada bispo inspecionaria,
por si ou por pessoas de confianga, urna ou duas vezes por
ano, as paróquias suspeitas; os condes, baróes' e as demais
autoridades civis os deveriam ajudar sob pena de perder seus
cargos ou ver o interdito lancado sobre as suas térras; os
herejes depreendidos ou abjuririam seus erros ou seriam entre
gues ao brago secular, que lhes imporia a sancgáo devida.

— 153 —
M «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 220/1978

Assim a Inquisigáo se constituiu como tribunal misto


integrado por civis e eclesiásticos, que se dispunham a por
termo as invectivas dos cataros e de outros herejes.

A Inquisigáo, portante, nunca foi um tribunal meramente


eclesiástico. Até o fim do séc. XIII, o poder civil e o eclesiás
tico compartilhavam as responsabilidades, cabendo, como se
compreende, á autoridade eclesiástica julgar se o acusado era
ou nao réu de heresia. Esse julgamento, porém, se fazia muitas
vezes sob pressáo da populagáo local, que participava tanto
quanto podía (e passionalmente) dos processos da Inquisigáo.

A partir do século XIV, os reis se foram tornando abso


lutistas (tenham-se em vista Filipe IV o Belo da Franga,
1285-1314, e Luís IV da Baviera, 1327-1347). Em conseqüén-
cia, difícilmente toleravam que houvesse, ao lado do poder
judiciário do reí, outro poder judiciário, independente do
mesmo. Isto fez que a Inquisigáo fosse cada vez mais manipu
lada pelos reis e seus agentes, que, mediante o aparato da
Inquisigáo, procuravam favorecer interesses políticos ou
eliminar pessoas «nao gratas». Tal situagáo explica o processo
e a condenagáo de Joana d'Arc por parte de um tribunal da
Inquisigáo, presidido pelo bispo Cauchon de Ruáo em 1431.
Este prelado fraquejou, prestando-se a servir aos interesses
dos ingleses que, havendo capturado a guerreira francesa,
pressionaram a Inquisigáo para que condenasse a jovem sob o
pretexto de ser bruxa, feiticeira, possessa do demonio, etc.

Caso análogo foi o da Ordem Militar dos Cavaleiros


Templarios... O rei Filipe o Belo, cobigando os bens destes
Religiosos, fez levantar contra os mesmos as mais vis acusagóes
de imoralidade e heresia... A pressáo exercida pelo rei sobre
a Inquisigáo e o próprio Papa Clemente V terminou obtendo
do Pontífice o decreto de extingáo da Ordem dos Templarios
em 1312. O monarca de Franga colheu de fato enormes
beneficios financeiros, pois pode assim por a máo sobre as
propriedades dos Cavaleiros.

b) Quanto a Inquisieao Romana (séc. XVI-XVH), assu-


miu caráter mais eclesiástico, pois tinha por fim a repressáo
da onde protestante e de idéias novas que punham em perigo
a fé católica.

c) Já nao se poderia dizer o mesmo da Inquisicao


Espanhola (séc. XV-XIX). Esta foi fortemente influenciada

_ 154 —
IGREJA E DIREITOS HUMANOS 15

pelos monarcas de León e Castela, que, desejosos de estabe-


lecer a unidade cultural e política nos territorios hispánicos,
viam na Inquisigáo oportuno instrumento para eliminar mu-
culmanos e judeus. Mais de urna vez os Pontífices admoes-
taram os monarcas a mudar o seu comportamento; todavía
pouco resultado obtiveram. Eis alguns fatos que atestam a
atitude dos Papas no caso:

Estabelecida a Inquisigáo Espanhola no ano de 1480, em


breve fizeram-se ouvir em Roma queixas diversas contra a
severidade dos Inquisidores. Sixto IV (1471-1484) entáo
escreveu sucessivas cartas aos monarcas da Éspanha,
mostrando-lhes profundo descontentamente por quanto acon-
tecia em seu reino e baixando instrugóes de moderagáo para
os juizes tanto civis como eclesiásticos. Merece especial des
taque neste particular o Breve de 2 de agosto de 1482, que
o Papa, depois de promulgar certas regras coibitivas do poder
dos Inquisidores, concluía com as seguintes palavras:

"Visto que somente a carldade nos torna semelhantes a Deus...,


rogamos e exortamos o Re! e a Rainha, pelo amor de Nosso Senhor
Jesús Cristo, a llm de que Imltem Aquele de quem ó característico ter
sempre compaixSo e perdflo. Quelram, portante mostrar-se Indulgentes
para com os seus súditos da cidade e da diocese de Sevilha que con-
lessam o erro e Imploram a misericordia!"

Em meados do séc. XVT, tornou-se famoso o processo que


os Inquisidores moveram contra o arcebispo primaz da Espa-
nha, Bartolomeu Carranza de Toledo. Sem descer aos porme
nores do acontecimento, notaremos apenas que durante dezoito
anos continuos a Inquisigáo Espanhola perseguiu o venerável
prelado, opondo-se a legados papáis, ao Concilio ecuménico
de Trento e ao próprio Papaí

Repetidamente a Santa Sé decretou medidas que visayam


a defender os acusados frente á dureza do processo regio e
do povo. A Igreja em tais casos distanciava-se nítidamente da
Inquisigáo Espanhola, embora esta contínuasse a ser tída como
tribunal eclesiástico.

Assim, aos 2 de dezembro de 1530, Clemente VII conferiu


aos Inquisidores a faculdade de absolver sacramentalmente os
delitos de heresia e apostasia; assim o sacerdote poderia
tentar subtrair do processo público e da infamia da Inquisigáo
qualquer acusado que estivesse animado de sinceras disposigóes
para o bem. Aos 15 de junho de 1531, o mesmo Papa Clemente

— 155 —
16 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 220/1978

VII mandava aos Inquisidores tomassem a defesa dos mouris-


cos que, acabrunhados de impostas pelos respectivos senhores
e patróes, poderiam conceber odio contra o Cristianismo. Aos
2 de agosto de 1546, Paulo ni declarava os mouriscos de
Granada aptos para todos os cargos civis e todas as dignidades
eclesiásticas. Aos 18 de Janeiro de 1556, Paulo IV autorizava
os sacerdotes a absolver em confissáo sacramental os mouris
cos.

Contudo, apesar das freqüentes admoestagóes pontificias,


a Inquisigáo Espanhola ia-se tornando mais e mais um orgáo
poderoso de influencia e atividade do monarca nacional. Para
comprovar isto, basta lembrar o seguinte: a Inquisigáo, no
territorio espanhol, ficou sendo instituto permanente, durante
tres sáculos a fio. Nisto diferia bem da Inquisigáo Medieval, a
qual foi sempre intermitente, tendo em vista determinados
erros oriundos em tal e tal localidade. A manutengáo perma
nente de um tribunal inquisitorio impunha avultadas despesas,
que somente o Estado podia tomar a seu cargo; foi o que se
deu na Espanha: os reis atribuiam a si todas as rendas mate-
riais da Inquisigáo (impostos, multas, bens confiscados) e
pagavam as respectivas despesas; conseqüentemente, alguns
historiadores, referindo-se á Inquisigáo Espanhola, denomina-
ram-na «Inquisigáo Regia»!

Estes poucos dados já manifestam suficientemente que


nao se pode atribuir táo somente á Igreja as diversas faganhas
da Inquisigáo.

1.2. Espirito metafísico e espirito psicológico

Nao há dúvida de que os medievais eram acentuadamente


dados ao cultivo da metafísica e da lógica; todavia pouco
abertos para a psicología. Hoje em dia verifica-se o contrario:
os homens sao extremamente interessados pela psicología e a
penetragáo dentro do psiquismo humano, ao passo que menos
estimam a metafísica.

Em outros termos: os medievais professavam firmemente


a existencia do espirito e dos valores espirituais, que eles
apreciavam muito mais do que os valores materiais (ao menos
em teoría). Conseqüentemente qualquer lesáo infligida aos
valores espirituais (como, por exemplo, a doutrina da reta

— 156 —
IGREJA E DIREITOS HUMANOS 17

fé) era tida como crime de maior gravidade do que o daño


infligido a bens materiais. Por conseguinte, se a pena de
morte na Idade Media era imposta a quem falsificasse a moeda
corrente (pondo em perigo a vida material dos seus conci-
dadáos), a mesma pena deveria ser decretada para aqueles
que falsificassem a doutrina da fé (pondo em perigo a vida
da alma). É o que se le na Suma Teológica de S. Tomás de
Aquino:

"É muito mais grave corromper a fé, que ó a vida da alma, do que
falsificar a moeda, que é um meio de prover á vida temporal. Se, pois,
os falsificadores de moedas e outros malfeitores sao, a bom direito, con
denados á morte pelos príncipes seculares, com muito mais razáo os
herejes, desde quo sejam comprovados tais, podem nSo somante ser
excomungados, mas lambém em toda justiga ser condenados á morte"
(S. Teol. 11/II 11, 3c).

Como se vé, a argumentado de S. Tomás procede do


principio de que a vida da alma mais vale do que a do corpo;
se, pois, alguém pela heresia ameaga a vida espiritual do
próximo, comete maior mal do que quem assalta a vida
corporal; o bem comuni exige entáo a remogáo do grave
perigo (veja-se também S. Teol. II/II 11, 4c).

O homem moderno concebe dificuldade para entender táo


rígido procedimento por dois motivos: 1) os valores espirituais
já nada significam pax"a muitos dos nossos contemporáneos; 2)
a psicología das profundidades explica que muitos dos com-
portamentos objetivamente erróneos nem sempre o sao do
ponto de vista subjetivo. Nem todo réu de graves delitos
(civis ou religiosos) merece ser punido com severidade, pois
pode ter agido com sua responsabilidade atenuada em virtude
de paixóes obsessivas, pressóes fisiológicas ou psicológicas,
taras, etc. Os medievais nao tinham a respeito destes fatores
nosáo suficiente para os levar em conta. É o que explica a
defasagem entre o modo de julgar medieval e o contempo
ráneo: os medievais se empenhavam grandemente pelos valores
do espirito, ao passo que os homens contemporáneos tendem a
se interessar muito mais pelos bens materiais.

1.3. Os Santos e a lnquis¡;áo

Chama a atencáo o fato de que durante todos os sáculos


da Inquisicáo viveram grandes santos, ardentes de amor a

— 157 —
18 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 220/1978

Deus e ao próximo; todavía nao se encontra, da parte de


qualquer deles, algum protesto contra a Inquisigáo. No século
XIII, quando a Inquisicáo medieval foi estruturada, viveram
S. Francisco de Assis, S. Clara, S. Boaventura, S. Tomás de
Aquino e outros notáveis vultos que, por seus escritos e sua
acáo, enriquecerem o patrimonio da humanidade. Isto bem
mostra quanto a consciéncia do homem medieval estava tran
quila diante dos procedimentos da Inquisigáo. Esta, em suas
linhas gerais, nada tinha de chocante para as populagóes da
Idade Media, nem mesmo para os mais lúcidos genios da
época. Antes parecía a todos obra de coeréncia, de servigo ao
bem e 'á sociedade; nao praticar a Inquisigáo ou permitir a
difusáo de idéias e práticas tidas como heréticas é que seria,
para os medievais, pecado ou grave omissáo. Assim se desfaz
a impressáo, aceita por alguns estudiosos, de que o homem
medieval era egoísta, odiento, sanguinolento, etc. Entre os
espéciens mais significativos do espirito dos medievais e, em
especial, dos mentores da Inquisigáo, acha-se o «Manual do
Inquisidor», da autoría do Inquisidor Bernardo de Gui (séc.
XIV). Este traca o retrato do Inquisidor em termos que
talvez surpreendam pela magnanimidade e a candura que os
inspiram. Eis um dos respectivos trechos típicos:

"O inquisidor devo ser diligente e fervoroso no seu zelo pela ver-
dade religiosa, pela salvacáo das almas e pela extirpacio das hereslas.
Em meio as dlficuldades permanecerá calmo, nunca cederá á cólera nem
á indignacáo... Nos casos duvídosos, seja circunspecto, nao dé fácil
crédito ao que parece provável e multas vezes nSo é verdade; também
nao rejelte obstinadamente a opinifio contraria, pois o que parece impro-
vávol freqüentemente acaba por ser comprovado como verdade... O amor
da verdade e a pledade, que devem residir no coracáo de um juiz,
brilhem nos seus olhos, a (im de que as suas decisóes jamáis possam
parecer ditadas pela cupidez e a crueldade" ("Practica" VI p... ed.
Douls 232s).

Já que mais de urna vez se encontram instrugóes tais


nos arquivos da Inquisigáo, nao se poderia crer que o apre-
goado ideal do juiz inquisidor, ao mesmo tempo equitativo e
bom, se realizou com mais freqüéncia do que comumente se
pensa? Nao se deve esquecer, porém, que as categorías pelas
quais se afirmava a justica na Idade Media, nao eram exata-
mente as da época moderna... Além disto, levar-se-á em
conta que o papel do juiz, sempre difícil, era particularmente
arduo nos casos da Inquisigáo: o povo e as autoridades civis
estavam profundamente interessados no desfecho dos proces-
sos; pelo que, nao raro exerciam pressáo para obter a sentenga
mais favorável a caprichos ou a interesses temporais; ás

— 158 —
IGREJA E DIRECTOS HUMANOS 19

vezes, a populacáo obcecada aguardava ansiosamente o dia em.


que o «veredictum» do juiz entregaría ao brago secular os
herejes comprovados. Em tais circunstancias, nao era fácil
aos juízes manter a serenidade desejável.

Dentre as táticas adotadas pelos inquisitores, merecem


particular atengáo a tortura e a entrega ao poder secular
(pena de morte).

1.4. Tortura e pena de morte

A tortora estava em uso entre os gregos e romanos pré-


-cristáos que quisessem obrigar um escrávo a confessar seu
delitos. Certos povos germánicos também a praticavam. Em
866, porém, dirigindo-se aos búlgaros, o Papa Nicolau I a
condenou formalmente.

Nao obstante, a tortura foi de novo adotada pelos tribu-


nais civis da Idade Media nos inicios do sáculo XII, dado o
renascimento do Direito Romano. Nos processos inquisitoriais,
o Papa Inocencio IV acabou por introduzi-la em 1252, com a
cláusula: «Nao haja mutilacáo de membro nem perigo de
morte» para o réu. O Pontífice, permitindo tal praxe, dizia
conformar-se aos costumes vigentes em seu tempo («Bullarum
amplissima collectio» n 326).

Os Papas subseqüentes, assim como os Manuais dos Inqui


sidores, procuraram restringuir a aplicacáo da tortura: só
seria lícita depois de esgotados os outros recursos para inves
tigar a culpa e apenas nos casos em que já houvesse meia-
-prova de delito ou, como dizia a linguagem técnica, «dois
índices veementes» deste, a saber: o depoimento de testemu-
nhas fidedignas, de um lado, e, de outro lado, a má fama, os
maus costumes ou tentativas de fuga do réu. O Concilio de
Viena (Franca) em 1311 mandou outrossim que os inquisido
res só recorressem á tortura depois que urna comissáo julga-
dora e o bispo diocesano a houvessem aprovado para cada
caso em particular. — Apesar de tudo o que a tortura apre-
senta de horroroso, ela tem sido conciliada com a mentalidade
do mundo moderno...!

2. Quanto á pena de morte, reconhecida pelo antigo


Direito Romano, estava em vigor na jurisdicáo civil da Idade

— 159 —
20 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 220/1978

Media. Sabe-se, porém, que as autoridades eclesiásticas eram


contrarias á sua aplicagáo em casos de lesa-religiáo. Contudo,
após o surto do catarismo (séc. XII), alguns canonistas come-
caram a julgá-la oportuna, apelando para o exemplo do
Imperador Justiniano, que no sáculo VI a infligirá aos mani-
queus. Em 1199 o Papa Inocencio III dirigia-se aos magistrados
de Viterbo nos seguintes termos: '

"Conforme a lei civil, os réus de lesa-majeslade sao punidos com


a pena capital e os seus bens sao confiscados... Com muito mais
razao, portanto, aqueles que, desertando a fó, ofendem a Jesús, o Filho
do Senhor Deus, devem ser separados da comunháo crista e despojados
de seus bens, pois mullo mais grave é ofender a Majestade Divina do
que tesar a majestade humana" (eplst. 2, 1).

Como se vé, o Sumo Pontífice com essas palavras desejava


apenas justificar a excomunháo e a confiscado de bens dos
herejes; estabelecia, porém, urna comparacáo que daría ocasiáo
a nova praxe... O Imperador Frederico II soube deduzir-lhe
as últimas conseqüéncias: tendo lembrado numa Constituigáo
de 1220 a frase final de Inocencio III, o monarca, em 1224,
decretava francamente para a Lombardia a pena de morte
contra os herejes e, já que o Direito antigo assinalava o fogo
em tais casos, o Imperador os condenava a ser queimados
vivos. Em 1230 o dominicano Guala, tendo subido k cátedra
episcopal de Brescia (Italia), fez aplicagáo da lei imperial na
sua diocese. Por fim, o Papa Gregorio IX, que tinha inter
cambio freqüente com Guala, adotou o modo de ver deste bispo:
transcreveu em 1230 ou 1231 a Constituicáo imperial de 1224
para o Registro das cartas pontificias, e em breve editou urna
lei pela qual mandava que os herejes reconhecidos pela Inqui-
sigáo fossem abandonados ao poder civil, para receber o devido
castigo, castigo que, segundo a legislagáo de Frederico II,
seria a morte pelo fogo.

Os teólogos e canonistas da época se empenharam por


justificar a nova praxe, como mostra o texto de S. Tomás de
Aquino transcrito á p. 157.

Contudo as execucóes capitais nao foram táo numerosas


quanto se poderia crer. Infelizmente faltam-nos estatisticas
completas sobre o assunto; consta, porém, que o tribunal de
Pamiers, de 1318 a 1324, pronunciou 75 sentoncas condenato
rias, das quais apenas cinco mandaram entregar o réu ao
poder civil (o que equivalia á morte); o Inquisidor Bernardo
de Gui em Tolosa, de 1308 a 1323, proferiu 930 sentemos, das

— 160 —
IGREJA E DIREITOS HUMANOS 21

quais 42 eram capitais; no primeiro caso, a proporgáo é de


1/15; no segundo caso, de 1/22.

Nao se poderia negar, porém, que houve injustigas e


abusos da autoridade por parte dos juizes inquisitoriais. Tais
males se devem á conduta de pessoas que, em virtude da
fraqueza humana, nao foram sempre fiéis cumpridores da
sua missáo. Os inquisidores trabalhavam a distancias mais
ou menos consideráveis de Roma, numa época em que, dada a
precariédade de correios e comunicagóes, nao podiam ser
assiduamente controlados pela suprema autoridade da Igreja.
Esta, porém, nao deixava de censurá-los devidamente, quando
recebia noticia de algum desmando verificado em tal ou tal
regiáo.

Famoso, por exemplo, é o caso de Roberto o Bugro,


Inquisidor-Mor de Franca no séc. xm. O Papa Gregorio IX
a principio muito o felicitava por seu zelo. Roberto, porém,
tendo aderido outrora á heresia, mostrava-se excessivamente
violento na repressáo da mesma. Informado dos desmandos
praticados pelo Inquisidor, o Papa o destituiu de suas fungóes
e mandou encarcerar. — Inocencio IV, o mesmo Pontífice
que permitiu a tortura nos processos da Inquisigáo, e Alexan-
dre IV, respectivamente em 1246 e 1256, mandaram aos Padres
Provinciais e Gerais dos Dominicanos e Franciscanos, depuses-
sem os Inquisidores de sua Ordem que se lhes tornassem
notorios por sua crueldade.

O Papa Bonifacio VIH (1294-1303), famoso pela tenaci-


dade e intransigencia de suas atitudes, foi um dos que mais
reprimiram os excessos dos Inquisidores, mandando examinar,
ou simplesmente anulando, sentengas proferidas por estes.

O Concilio regional de Narbona (Franga) em 1243 promul-


gou 29 artigos que visavam a impedir abusos do poder. Entre
outras normas, prescrevia aos Inquisidores só proferissem
sentenga condenatoria nos casos em que, com seguranga,
tivessem apurado alguma falta, «pois mais vale deixar um
culpado impune do que condenar um inocente» (can 23).

Dirigindo-se ao Imperador Frederico n, pioneiro dos


métodos inquisitoriais, o Papa Gregorio IX aos 15 de julho de
1223 lhe lembrava que «a arma manejada pelo Imperador nao
devia servir para satisfazer aos seus rancores pessoais, com
grande escándalo das populagóes, com detrimento da verdade
e da dignidade imperial» (epist saec. Xm 538. 550).

— 161 —
22 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 220/1978

2. A Igreja, povo de Deus e Sacramento

Lepargneur denuncia desrespeito aos direitos humanos


dentro da própria Igreja: tais seriam a censura de escritos
(p. 28), o processo movido contra Iva Ulich (p. 72), certas
formas de imposicáo de leis ou teses, etc.

A propósito notemos:

Nao ha dúvida de que a Igreja é o povo de Deus em


marcha. Como tal, ela consta de clérigos e leigos, sendo que
estes sao cada vez mais chamados a tomar parte na vida e
ñas deliberacóes da Igreja... Isto tem sido altamente benéfico
para o Reino de Cristo, que nao pode dispensar a colaborado
de todos os seus membros.

Todavía nao se pode esquecer que a Igreja é também «o


sacramento da unidade dos homens com Deus e entre si»
(Const. «Lumen Gentium» n* 1). A palavra «sacramento»
quer dizer que a realidade da Igreja nao se esgota na sua
face visível; esta encobre e manifesta urna realidade transcen
dental, divina, que se quer comunicar através da face humana
da Igreja. Em outras palavras: nao se pode julgar a Igreja
com olhos meramente humanos ou a partir de criterios mera
mente naturais; a visáo de fé leva a aceitar a realidade sacra
mental ou divino-humana da Igreja. A fé e os ensinamentos
da fé háo de ser sempre levados em conta para se poder avaliar
o misterio da Igreja.

Entre outras coisas, estas verdades implicam o seguinte:

1) A autoridade, na Igreja, nao repousa sobre o povo


de Deus, de modo a ser delegada por este aos seus legítimos
representantes escolhidos por eleigáo. Tal conceito — que é
o de democracia simplesmente dita — nao corresponde á
instituicáo neotestamentária. Esta apresenta a autoridade como
oriunda de Deus Pai e comunicada aos homens por meio de
Jesús Cristo. Com efeito, diz o Senhor:

"Quem vos ouve, a mim ouve; quem vos despreza, a mim despreza.
E quem me despreza, despreza aquele que me enviou" (Le 10,16).

"Como tu, Pal, me enviaste ao mundo, também eu os enviei ao


mundo" (Jo 17,18).

— 162 —
IGREJA E DIREITOS HUMANOS 23

2) Existe um patrimonio de verdades de fé que a Igreja


recebeu de Jesús Cristo e que deve guardar e transmitir
incólume. Nao é, pois, simplesmente o acume da inteligencia
nem a riqueza da erudigáo dos teólogos que define a orienta-
gáo doutrinária da Igreja, mas, sim, a fidelidade (fidelidade
douta e esclarecida, sem dúvida) á mensagem de Cristo
confiada á Igreja. Esta, alias, sabe que Cristo prometeu eos
Apostólos e aos scus sucessores a sua assisténcia infalivel, de
tal modo que, quando a Igreja ensina oficialmente verdades
relativas á fé e á moral como sendo reveladas, Ela se bene
ficia de especial assisténcia divina que a preserva de erro.

Estas observagóes relativas á autoridade e ao magisterio


da Igreja nao significam nao haja erros por parte dos
pastores da Igreja. Seria ilusorio pretendé-lo, visto que tudo
o que é humano é falivel. Os erros ocorrentes podem ser
corrigidos pelo diálogo entre os membros da Igreja. Princi
palmente após o Concilio do Vaticano n as autoridades da
Igreja se dispóem á revisáo de vida e ao ouvir, cientes das
suas limitagóes. Todavia o diálogo deve levar em conta os
parámetros que nscessariamente o conceito de «Igreja-sacra-
mento» impóe; nao se pode crer que na Igreja sempre deva
prevalecer o partido mais numeroso ou a tese mais erudita
mente apresentada. Em alguns casos, os criterios do número
e da erudicáo poderáo ser decisivos; mas nem sempre o seráo.

Sao estas algumas ponderagóes que nos ocorrem após a


leitura do livro de H. Lepargneur. Muitas outras observagóes,
versando sobre pontos particulares abordados pelo autor,
poderiam ser acrescentadas. Todavia o que interessa, é realgar
que os fatos históricos háo de ser considerados dentro da
moldura do seu contexto cultural próprio e que a Igreja nao
pode ser encarada como qualquer sociedade humana sujeita
simplesmente aos louvores e ás críticas que os homens, seus
membros, lhe meregam.

163
I

Ñas Missas ditas "comunitarias" :

urna só missa e muitas doacoes ?

Em sfntese: A praxe das espórtulas de Missa comeca na antigül-


dade crlstfi, quando os fiéis ofereciam no altar a materia do sacrificio
(pió e vlnho) asslm como outras dádivas, que serviam ao sustento do
culto divino e da comunldade. Esse costume se fol diversificando, pas-
sando a- oferta a ser feita em dlnhelro e, por último, mesmo fora da
da Missa. Tal é a praxe que hoja se chama "a praxe das espórtulas".
Estas sSo justificadas, pols o dlnhelro oferecldo nao é o prego dos bens
espirituais que a Igreja entrega aos fiéis, mas é a expressSo da fe e da
partlcipacáo dos cristaos na celebracáo da Eucaristía; participando mais
intensamente nesta, os fiéis se credenclam também a receber mais copio
sos frutos da mesma para si e para as suas IntencSes.

Todavía a Igreja sancionou urna leglslacáo severa que visa a impedir


abusos na prátlca das espórtulas. E, por exemplo, o bispo diocesano
quem determina as taxas do culto divino. Mais: a Igreja exige que se
celebrem tantas Missas quantas sejam as espórtulas oferecidas pelos
fiéis...

Eis, porém, que novo costume se val dlfundlndo: o celebrante aplica


urna só Missa pelas muitas intencdes que os fiéis formulem ao mesmo
tempo que oferecem sua esmola (nao a espórtula diocesana). Este cos
tume, pelo fato de nSo significar celebracSo de urna só Missa em corres
pondencia a multas espórtulas, nfio pode ser dito Ilegitimo. Todavía é
preciso todo o cuidado para que nao redunde em solapamento do espi
rito da leglslacao da Igreja. Se, mediante tal praxe, o sacerdote arrecada
mais do que a taxa estipulada pelo blspo diocesano como espórtula de
Missa, abra mSo da quantia excedente em favor da paróqula ou da dio-
cese, lsentando-se asslm de qualquer especie de especulacáo comercial.

Comentario: Últimamente tem-se colocado um problema


relativo as chamadas «intengóes de Missa», problema que se
pode assim formular:

O clássico costume da Igreja manda que cada bispo


diocesano estipule urna espórtula ' de intencáo de Missa, ficando
o sacerdote obligado a aplicar a S. Eucaristía pela intengáo
indicada pelo doador; nao se pode aceitar mais de urna espór
tula por urna Missa.

1A palavra "espórtula" vem do latlm "sportula", que significa


"gratiíicasSo", n8o, porém, "salarlo"' ou "prego". Os franceses usam, no
caso, a palavra "honoraire", que indica "testemunho de honra ou reve
rencia" — o que mais se afasta do concelto de "salario" ou "proco".

— 164 —
UMA SÓ MISSA E MUITAS DOACOES? 25

Eis, porém, que recentemente em algumas igrejas o


celebrante nao se atém á espórtula, mas aplica a S. Missa
pelas intencóes de todos quantos queiram contribuir com
alguma esmola (por menor que seja); há quem chame «comu
nitarias» tais Missas. Esse costume, porém, deixa muitas
pessoas perplexas, como se pode compreender. Eis por que
ñas páginas subseqüentes voltaremos nossa atencáo para a
questáo que assim se póe.

1. Ortgem das esportillas do culto

A atual praxe das esportillas tem seus precedentes, que


nao poderiamos deixar de levar em conta.

A Religiáo, desde que se afirmou em suas formas princi


páis na antigüidade, professou, como norma, que os fiéis
devem contribuir materialmente para a celebracáo do culto
sagrado. Entre os romanos, por exemplo, estava em vigor o
principio seguinte, enunciado pelo Direito público: os servicos
prestados pelas profissóes liberáis (medicina, advocada, ma
gisterio, etc.) nao podiam ser objeto de salario propriamente
dito; mas quem os recebia era convidado a reconhecer o bene
ficio ou munus, remunerando o benfeitor (o médico, o advo-
gado, o mestre, etc.); a remuneracáo era feita pela entrega
de um henos ou honorarium (testemunho da honra devida
ou de reverencia); este a principio era espontaneo, depois
tornou-se obrigatório (dever de justica). Ora o culto reli
gioso era pelos romanos aproximado das artes liberáis; me
rece atencáo, por exemplo, o fato de que Ulpiano (t 228
d.C.) enumerava as artes liberáis entre as coisas sagradas
(res religiosae; cf. Dig. 1. IV, tít. XIV, lex 1, 4, 5).

No povo de Israel, o Código de Moisés sancionou a praxe


vigente entre as nagóes orientáis: introduziu a lei do dizimo
em favor do culto e dos indigentes (cf. Lv 27,30-33; Nm 18,
21-32; Dt 14,22-29). O costume estava em vigor ainda nos
tempos de Jesús (cf. Mt 23, 2s).

No Novo Testamento, Cristo corroborou o costume segundo


o qual os fiéis sustentávam o servico religioso; lembrava, por
exemplo, que «o operario merece o seu salario»; por isto os
pregadores do Evangelho poderiam entrar ñas casas dos fiéis
e comer o que lhes fosse oferecido (cf. Le 10,7; Mt 10,10).
Sao Paulo repetiu o mesmo principio em ICor 9,13.

— 165 —
J26 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 220/1978

Na historia do Cristianismo variou o modo de se observar


tal norma. Nos primeiros tempos, as ofertas geralmente nao
eram taxadas nem impostas por lei positiva da autoridade
eclesiástica; os documentos, porém, dos sáculos IE-IV, ao
mesmo tempo que as recomendavam, atestavam a generosidade
dos fiéis.

Aos poucos, os bispos e concilios, seguindo o exemplo da


legislagáo do Antigo Tetamento, resolveram estabelecer como
quota obrigatória o dizimo ou a décima parte dos rendimentos
naturais dos fiéis; no fim do sáculo VI parece que tal lei já
era vigente na Gália; tornou-se geral em todos os países
cristáos. O poder civil, a partir do sáculo VIII, na Franca
corroborou a injungáo eclesiástica, a qual ficou em vigor entre
os franceses até a Revolucáo de 1789; por esta ocasiáo foi
oficialmente ab-rogada na maioria das nagóes católicas, per-
manecendo contudo em uso em algumas regióes.

No decorrer dos tempos, implantara-se entre os cristáos


outra praxe mediante a qual atendiam as necessidades do
culto e das respectivas paróquias; nos primeiro sáculos, os
fiéis, por ocasiáo da Liturgia eucarística, levavam ao altar
oferendas de dons naturais (pao, vinho, leite, mel, azeite,
frutas...), dos quais urna parte de pao e vinho era destinada
a ser consagrada na S. Missa, devendo o resto reverter em
beneficio do culto, do clero e dos irmáos pobres. Aconteceu,
porém, que o rito de celebragáo da S. Missa, por razóes
diversas, foi sendo simplificado; entre os meios de simplifi-
cagáo, estava certamente a substituigáo das dádivas naturais
por dinheiro; sendo assim, já no sáculo V levava-se ao altar
dinheiro (junto com outras dádivas ou sem estas) por oca
siáo do ofertorio da Missa (é o que S. Agostinho atesta na
epístola 22, 1, 6). Esta praxe, porém, nao se sustentou diante
da necessidade de simplificar mais ainda a Liturgia eucarística;
em conseqüéncia, o dinheiro, expressáo de urna entrega inte
rior e do desejo do doador de participar mais intimamente
dos frutos da Missa, comegou a ser entregue ao sacerdote
fora da Missa e fora da igreja, como hoje ainda se faz,
chamando-se tal dinheiro «esportilla» ou «honoraire» (em
francés).

A partir do sáculo VIH é que se tornou geral o costume


de se oferecer dinheiro fora do ato litúrgico, em vista da
celebragáo da S. Missa por determinada intengáo.

— 166 —
UMA SO MISSA E MUITAS DOACOES? 27

Já S. Beda, por volta de 679, narra que os fiéis, fora da


Missa, davam aos sacerdotes dinheiro para que celebrassem a
S. Missa por alguma intengáo dos doadores («Historia
Anglorum» IV 22). No século XI o costume já estava muito
propagado, pois até as crianzas o praticavam; Sao Pedro
Damiáo, por exemplo, quando crianga, encontrou urna moeda
que ele se apressou por levar a um sacerdote a fim de que
oferecesse a S. Missa pelo repouso da alma de seu falecido
pai («Vita», ed. Migne lat. 144, 117).

2. As razóes teológicas

1. A Missa é o sacrificio mesmo do Calvario tornado


presente sobre os altares para que dele participem os fiéis.
Com mitras palavras: a Missa é a própria imolagáo de Cristo
(outrora oferecida cruentamente na Cruz), que é tornada
presente de maneira incruenta sobre os altares, sem que se
multiplique tal imolagáo, mas também sem que por isto se
perca algo da sua plena realidade. A mesma oblagáo de
Cristo, numéricamente a mesma, realizada no passado, deixa
de pertencer ao fassado e se faz presente. «Misterio da fé»,
diz-se logo após a consagragáo eucaristica. Jesús Cristo quis
instituir tal rito em vista de seus fiéis, ou seja, a fim de
associar ao sacrificio da Cruz a sua Igreja. Com efeito, outrora
no Calvario Jesús, como Sacerdote, se ofereceu ao Pai qual
Vítima pelos pecados do mundo. Atualmente na S. Missa
Jesús oferece com a Igreja, que participa do sacerdocio de
Cristo; e oferece-se com a Igreja, que participa da qualidade
de Cristo Hostia.

Ora a Igreja nao é apenas o clero, mas é o Corpo Místico


de Cristo, Corpo Místico do qual todo cristáo é um membro
ou urna célula viva. É, pois, em cada fiel batizado que a
Igreja repousa, vive e age.

• 2. Deste fato decorre importante conseqüéncia referente


aos frutos da S. Missa.

Sendo a Missa o próprio sacrificio da Cruz celebrado de


maneira incruenta, compreende-se que cada S. Missa tem em
si valor infinito; com efeito, qualquer dos atos de Cristo
possui tal valor, já que procede de urna Pessoa Divina. Por
conseguinte, urna só Missa por si seria suficiente para dar a
Deus todo o louvor que as criaturas lhe devem, suficiente
também para pagar as culpas de todos os homens, perdoar

— 167 —
28 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 220/1978

todas as penas satisfatórias, obter todas as gragas, espiri-


tuais e temporais, necessárias á salvagáo, etc.

Na realidade, porém, o valor infinito da Missa nao é


aplicado aos homens em grau infinito; os frutos da S. Missa,
para as criaturas, sao sempre limitados.

Por qué?

— Porque a Missa nao é somente oferecida por Cristo.


Enquanto, sim, é oferecida por Cristo, toda Missa indubita-
velmente produz frutos para o género humano. Na medida,
porém, em que os membros do Cristo, os cristáos, sao asso-
ciados ao oferecimento, esses frutos sao restritos. Com efeito,
o Corpo Místico, com o qual Jesús compartilha o seu ato de
oblagáo, consta de urna multidáo de homens portadores das
conseqüéncias do pecado, por isto coibidos em seu espirito de
imolagáo e de entrega total ao Pai. A parte de devotamente
próprio que cada cristáo associa á oblacáo de Cristo, está
sujeita as restrigóes que o egoísmo e a covardia ocasionam.
Estes empecilhos, como se compreende, tornam os fiéis menos
aptos a usufruir os beneficios da Redengáo e, conseqüentemente,
limitam a aplicagáo dos frutos da S. Missa.

Em termos positivos, poder-se-ia dizer com as palavras da


Primeira Oragáo Eucarística: é a fé e o devotamento (espi
rito de entrega e de amor) dos cristáos, em uns mais intensa,
em outros menos vivida, que os torna capazes de impetrar,
em seu favor e em favor de outrem, as gragas decorrentes do
sacrificio eucarístico. Ainda em poucas palavras: cada fiel
participa dos frutos da S. Missa na medida em que se identi
fica com Cristo... com Cristo Sacerdote e com Cristo Vítima.

É de crer que tal identificacáo ou a fé e o devotamento


dos fiéis se exprimam por sinais concretos. Entre estes, devem
ser mencionadas as doagóes que os fiéis, desde remota época,
costumavam fazer, e ainda fazem, para participar mais inti
mamente da celebracáo da Missa: o pao e o vinho antigamente,
o dinheiro (ou as espórtulas) posteriormente, no contexto da
S. Missa sao símbolos de atitudes interiores dos fiéis, atitudes
que justificam tais símbolos e que vém a ser condigóes de
frutuosa participacáo da S. Missa. Deve-se reconhecer que
talvez poucos sejam os fiéis que tém consciéncia clara de
tal significado; muitos dos que oferecem a espórtula da Missa,
fazem-no rotineiramente ou despreparadamente, confundindo
talvez a espórtula com formalidades necessárias á aquisigáo

— 168 —
UMA SÓ MISSA E MUITAS DOAQ3ES? 29

de algum bem. Acontece mesmo que nao poucas pessoas enco-


mendam a S. Missa, mas a ela nao assistem, julgando já ter
cumprido o seu dever ao oferecer a esportilla respectiva.

Voltemos agora ao percurso histórico interrompido ao


finí do subtítulo 1 deste artigo.

3. Do sáculo XVI aos nossos días

No século XVI, por ocasiáo da Reforma protestante, a


Igreja reviu a sua disciplina e houve por bem reconhecer
definitivamente a legitimidade da praxe das esportillas.
Todavia, a partir do Concilio de Trente (1545-1563), foi
necessário fixar com precisáo certos aspectos da referida
praxe para evitar abusos. Eis, pois, alguns dos tópicos que
caracterizam a legislagáo respectiva do Concilio de Trento até
o Código de Direito Canónico (1917) ainda vigente:

a) A espórtula é lícita, pois nao implica simonía. Com


outras palavras: a espórtula nao é o prego do sagrado (cele
bragáo eucarística ou outro beneficio espiritual), mas é táo
somente urna contribuigáo oferecida ao ministro do culto em
vista do servigo prestado, a fim de que este possa, de algum
modo, sustentar a si ou as obras da Igreja. Depois que os
dizimos cairam em desuso, as esportillas, dadas por ocasiáo
do servigo religioso, constituem urna fonte comum de sustento
do culto, dos sacerdotes e das obras pastorais da Igreja. Diz
explícitamente o canon 824 § 1:

"De acordó com o costume comum, usual e aprovado pela Igreja,


todo sacerdote que celebra e aplica a Missa, pode receber urna esmola
ou espórtula".

b) Compete á autoridade diocesana (o bispo, o prelado


ordinario ou, se possivel, o Sínodo Diocesano) estipular o teor
das esportillas de Missa. Antigamente se estabelecia urna tabela
de taxas, que variavam segundo as circunstancias de celebragáo
da Missa: hora marcada ou nao, Missa cantada ou nao, altar
determinado ou nao... Hoje em dia estas distingues estáo
caindo em desuso. Os bispos e sacerdotes, em muitos lugares,
tém procurado evitar tudo que possa parecer discriminagáo
de pessoas ou grupos.

Está claro que a espórtula da Missa nao pode nem deve


ser tal que garanta a subsistencia do celebrante, pois a cele
bragáo da S. Eucaristía nao ocupa senáo um espago de tempo
relativamente breve da jornada do sacerdote.

— 169 —
30 cPERGUNTE E RESPONDEREMOS» 220/1978

Também se entende que nada se op5e a que o sacerdote


celebre, sem espórtula, pelas intengóes de quem lho pede, ou
celebre recebendo mais do que a quota estipulada, desde que
os interessados lho queiram dar espontáneamente. Há, sim,
casos em que especial esforgo da parte do celebrante (distancia
a percorrer, hora pouco oportuna, condicóes de saúde...) pode
sugerir a oferta do que se chama um «pro labore» particular.

c) Ao sacerdote nao é licito receber duas ou mais espor


tillas por urna S. Missa, como reza o canon 825 § 3. Alias, o
Papa Alexandre VII, aos 24/09/1665 condenou a proposicáo
n' 10 de autores laxistas que admitiam a celebrafiáo de urna só
Missa em correspondencia a diversas espórtulas (cf. Denzinger-
-Schonmetzer, Enquirídio n' 2030 [1110]). Tal proibigáo se
justifica pelo desejo que a Igreja tem de evitar especulagóes e
comercio a propósito dos atos do culto. O Direito Canónico é
muito rígido a respeito, defendendo assim, com plena razáo, a
pureza e a dignidade do ministerio sacerdotal.

. Há, pois, obrigagüo, para o sacerdote, de celebrar tantas


Missas quantas sejam as espórtulas recebidas em vista da
celebragáo da Eucaristía.

d) Mais de urna vez a Igreja rejeitou a tese segundo a


qual a praxe das espórtulas seria simoniaca.

Assim, por exemplo, no Concilio de Constanga (1418) o


Papa Martinho V condenou a proposigáo de Wiclef, que dizia:

"S3o slmonlacos todos aqueles que se obrlgam a orar pelos outros


em troca de beneficios materiais" ("Fontes luris Canonicl" n? 43).

No sáculo XVIII, o Concilio jansenista de Pistoia (1786)


formulou a seguinte proposigáo:

"Está difundida entre o povo a falsa opIniSo de que aqueles que


dáo esmola a um sacerdote sob a condlc§o de que este celebre urna
Missa, sSo especialmente beneficiados por essa cetebracSo".

Ora o Papa Pió VI em 1794 condenou tal proposicáo


(cf. Denzinger-Schonmetzer, Enquirídio n* 2630 [1530]).

Como foi dito, as espórtulas nao sao, em absoluto, con


sideradas como a paga da graga sacramental e dos beneficios
espirituais decorrentes das celebragóes litúrgicas. Nem consti-
tuem condicáo para que os sacramentos sejam administrados;
a Igreja nao os denega a quem nao possa contribuir. Positiva
mente a praxe das espórtulas nao é senáo a modalidade segundo

— 170 —
UMA Só MISSA E MUITAS DOACOES? 31

a qual hoje em dia se pratica um costume tradicional no povo


de Deus; sim, desde o inicio da historia do Cristianismo os
fiéis se interessaram pela oferta de dons materiais sobre o
altar do Senhor em sinal de sua fé e participagáo na oferta
que Cristo e a Igreja perpetuam sacramentalmente na Euca
ristía. Os pastores da Igreja sempre aceitaram essas doagóes,
porque, além de ser símbolo válido e muito expressivo, contri-
buem para o sustento do culto divino e dos seus ministros.
Apenas trataram de regulamentar o costume das oferendas, a
fim de evitar abusos e deturpagáo da inspiracáo originaria.
Lamenta-se que tal inspiracáo hoje em dia tenha caído no
esquecimento de grande parte do povo de Deus, que conse-
qüentemente se arrisca a ver nessa praxe táo somente o seu
lado formal ou jurídico.

Muitos outros principios da teología católica e da legis-


lagáo canónica atinente ás espórtulas de Míssas poderiam ser
aínda aduzidos. Todavía os que atrás foram propostos, sao
suficientes para ilustrar a queetáo que encabega o artigo
presente.

4. E a nova pratica ?
1. O costume das espórtulas continua vigente em nume
rosas dioceses e paróquias. Os bispos vigiam para que sejam
observadas as cautelas que o Direito Canónico impóe em vista
da preservagáo da dignidade de tal praxe. As tentativas de
abolir as esportillas e substitui-las por outro sistema que
signifique a participagáo dos fiéis na vida da Igreja, nem
sempre tém sido felizes. Há, porém, dioceses ou, ao menos,
paróquias, em que o sistema de dízimos funciona satisfato-
riamente, de modo que ai já nao se estipulam espórtulas; os
atos do culto divino e as contribuigóes financeiras dos fiéis já
nao estáo associados entre si — o que de antemáo dissipa os
possiveis mal-entendidos que a praxe das espórtulas poderia
suscitar.

2. Eis, porém, que em certas paróquias se vem regis


trando o seguinte:

Os sacerdotes nao propóem o pagamento de espórtulas de


Missa. Mas, por ocasiáo de cada celebragáo eucarística (muitas
yezes, no Ofertorio), pedem aos fiéis que formulem as suas
intengóes e déem urna esmola (de qualquer valor monetario)...
A Missa entáo é celebrada em favor das intengóes que sao
assim apresentadas; as respectivas esmolas, por mais modestas

— 171 —
32 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 220/1978

que sejam isoladamente, perfazem nao raro van total elevado...


muito mais elevado do que a taxa oficialmente estabelecida na
respectiva diocese. A justificativa de tal praxe é a afirmacáo
(verídica, sem dúvida) de que a Missa tem valor infinito;
por conseguirte, a sua frutuosidade pode beneficiar a quantos
se abram á mesma pela fé e o devotamente.

3. Que dizer a propósito?

a) Na verdade, deve-se afirmar que a frutuosidade de


urna S. Missa pode beneficiar mais de urna intengáo. Nem se
creia que a multiplicagáo das intengóes diminua o fluxo de
grasas destinadas a cada urna das mesmas intengóes. O que
condiciona a frutuosidade da Missa (diminuindo-a, por vezes),
nao é o número de participantes e de intengóes apresentadas,
mas, sim, sao as disposigóes íntimas desses participantes e a
sua capacidade (maior ou menor) de se identificarem com
Cristo Sacerdote e Hostia.l

b) O fato de que o sacerdote nao exige, nos casos citados,


a taxa da espórtula diocesana, mas deixa a criterio dos fiéis
contribuirem como queiram, isenta o sacerdote da suspeita
de estar celebrando urna só Missa em correspondencia a varias
espórtulas — o que seria infragáo do Direito Canónico. A
rigor, pode acontecer que a soma total das esmolas nao
equivalha á cota da espórtula de Missa estipulada pelo bispo
diocesano.

c) Acontece, porém, que em nao poucos caos o sacerdote,


aplicando o novo sistema, arrecada mais do que a taxa estipu
lada para a celebragáo da S. Missa na diocese respectiva. Neste
caso, nao lhe é licito guardar a quantia que ultrapasse tal
taxa, pois, se a conservasse para si, estaría contradizendo ao
espirito da legislagáo da Igreja, que visa precisamente a evitar

1 Diz o apostólo Sao Paulo: "Irmáos, tende em vos o mesmo sentl-


mento de Cristo Jesús: Ele tinha a condicio divina, mas nao considerou
o ser Igual a Deus como algo a que se apegar ciosamente. Antes, esva-
ziou-se a si mesmo,... humilhou-se e fo! obediente até a morte, e morte
de cruz!" (Fl 2,5-8).

Ora pergunta-se: até que ponto tais sentlmentos do Cristo Jesús,


implicando autodespojamento e entrega ao Pal, sio também os do sacer
dote celebrante e os da assembléia presente á celebracáo? Até que
ponto o Intimo de Cristo Jesús — Sacerdote e Hostia — se prolonga no
Intimo daqueles que representam a Igreja universal em cada celebracSo
eucarlstlca? É justamente a possibllldade de haver maior ou menor iden-
tiflcacáo do sacerdote e dos fiéis com Cristo que condiciona a frutuosi
dade de cada S. Missa.

— 172 —
UMA S6 MISSA E MUITAS DOACOES? 33

especulagáo comercial em torno da S. Missa. Em algumas


dioceses, o bispo determina que a cota excedente (ácima da
taxa diocesana) reverta em beneficio das obras da paróquia
(e nao da pessoa do sacerdote) ou em prol do Seminario
diocesano; tais intervengóes do pastor diocesano sao sabias. É
necessário que o bispo se interesse por tais casos e defina o
que fazer com a quantia «extra* arrecadada pelo celebrante,
contribuindo para evitar qualquer desvirtuamento das aspira-
góes da Igreja á pureza e á santidade do culto divino.

Sao estas as ponderagóes que parecem oportunas diante


da questáo proposta no cabegalho deste artigo. A nova praxe,
a rigor, nao pode ser tida como ilícita, pois evita ser cobranga
de esportilla... Todavia de maneira sutil poderia solapar o
espirito da legislagáo da Igreja, introduzindo por via nova o
que esta quer banir: especulagáo e comercio em torno do
sagrado.

Caso algum sacerdote julgue conveniente seguir o novo


oostume (por parecer fomentar o espirito comunitario), tomará
as cautelas para profligar o desvirtuamento da sua praxe.
Caso arrecade mais do que a espórtula fixada pelo bispo dioce
sano, aplique o dinheiro excedente aos interesses da paróquia
e da diocese, com absoluta isengáo de seus interesses parti
culares ou meramente pessoais. Além disto, exponha lucida
mente aos fiéis os principios teológicos que justificam as
intengóes de Missa e as espórtulas, aproveitando assim a
ocasiáo para desenvolver a catequese eucarística; frisé bem a
diferenga entre espórtula e prego ou salario, afastando qual
quer suspeita de comercio sagrado. E, para completar, diga o
que é feito com a quantia que exceda a taxa diocesana de
intengóes de Missa.
Bibliografía :

L. Godefroy, "Fruits de la Messe", em "Dictlonnaire de Théologie


Cathollque", vol. VI/1. Paris 1947, cois. 933-943.
T. Oríolan, "Honoralres de Messes", Ib., vol. VII/1. París 1927,
cois. 69-91.

R. Naz, "Honoraires de Messes", em "Dictlonnaire de Droit Cano-


nlque", vol. V. Paris 1953, cois. 1203-1210.
A. A. Lobo, L. M. Domínguez, S. A. Moran, "Comentarios al
Código de Derecho Canónico", vol. II. Madrid 1963, pp. 232-245.
M. Schmaus, "Der Glaube der Kirche", vol. II. München 1970,
pp. 81-87.
PR 2/1958, pp. 73-76.
PR 3/1958, pp. 100-102.

— 173 —
O menino sabio:

um caso de reencarnado ?

Em siniese: O menino brasilelro Eduardo de Moura Castro faleceu


de leucemia aos sete anos e meló de idade nos Estados Unidos após
ter assumldo atftude serena diante da morte e manifestado a esperarla
de se reencarnar no Brasil. Multos dos que acompanharam o caso, jul-
garam ter sido Eduardo a reencarnacáo de grande sabio ou monae
oriental.

Ora tal interpretacSo se dissipa desde que se leve em conta o que


nem todos os jomáis noticlaram: aos tres anos e meló de idade, Eduardo
comecou a freqüentar urna Socfedade de adeptos do Vedanta, onde terá
sido doutrinado no sentido da reencarnado e imbuido dos principios
hindú Istas referentes á vida presente, ao corpo, á serenidade de ánimo
e á vida postuma. Este fato é suficiente para explicar a atitude tranquila
de Eduardo diante da morte e a sua crenca na reencarnado. Nio há
necessidade, aos olhos da psicología e do bom senso, de recorrer á
h ¡pótese de urna encarnacáo anterior.

Comentan»: A imprensa noticiou em Janeiro pp. o caso


do menino Eduardo de Moura Castro, que, aos sete anos e
meio de idade, faleceu nos Estados Unidos da América,
deixando mensagem que impressionou o público e que, entre
outras coisas, professava a crenca na reencarnacáo.

Em vista do impacto causado pelo assunto, vamos abaixo


deter-nos no ámago da questáo.

1. O caso de Eduardo

Eduardo de Moura Castro era filho do diplomata brasileiro


Claudio de Moura Castro e da senhora Bárbara, americana,
que, depois de separar-se do marido, foi com o menino para
os Estados Unidos. Vítima de leucemia, Eduardo faleceu na
eidade de Santa Bárbara (U.S.A.) aos 10/01/78, antes de
completar oito anos de idade, e após ter feito declaracóes em
fita magnética e haver pedido aos médicos, com toda a sere
nidade, que o deixassem morrer de morte natural, desligando
o respectivo equipamento de oxigénio; este so lhe trazia mais
sofrimento. Eduardo faleceu após dispor a respeito dos por
menores dos seus funerais e do lugar do seu sepultamento.

— 174 —
UM CASO DE REERCARNACAO? 35

Durante os breves anos de sua vida, surpreendeu a quantos


com ele conviveram, em vista do que fazia e dizia. Tais impres-
sóes levaram a crer que ele era a reencarnagáo de um sabio
ou de um monge oriental. Alias, o próprio menino, na mensa-
gem que deixou gravada, professou a esperanca de reencar-
nar-se no Brasil e em corpo sadio. Morrer, para ele, era o
mesmo que dormir; «quando morremos, ai, sim, somos real
mente nos mesmos».
A titulo de ilustracáo, transcrevemos aqui parte do diálogo
ocorrido entre a Sra. Williams Donwey, representante da orga-
nizacáo «Hospice» (que se dedica a confortar as pessoas que
váo morrer), e o menino, poucos dias antes de falecer:
D — Por que vocé decldiu morrer dessa manelra?
E — Por causa do meu corpo doente. S¡nto-me doente. Gostaria
de morrer e depois no céu vocé nao tem essas dores mals. E, se
alguma vez gostar de voltar á vida novamente, vocé nao terá mais dores.
As vezes a gente pode voltar sem sofrer.
D — Vocé acha entSo que reencarnará?
E — Sim.
D — Vocd gostaria de explicar para nos seus sentimentos sobre a
reencarnado?
E — Sim. Quando eu morrer, gostaria de vottar parar urna vfda
saudável.
O — Vocd tem alguma idéia sobre o que vocé será na outra vida?
E — Um menino saudável. Ou, quetn sabe, melhor do que sou
agora.

D — Vocé pensa que voltará e ficará doente novamente?


E — Nao. Acho que voltarel como um menino saudável, quando
voltar novamente.
D — Vocé sabe por que vocé escolheu nesta vida ter urna vida
sem saúde?
E — Nao. N9o se¡. Quando vocé escolhe a vida no céu, voltamos
á vida na Térra com saúde ou sem saúde. Nao é bem vocé quem decide.
Eu talvez tenha decidido por urna vida saudável, mas nao sel por que
nao aconteceu assim. Pode ser que vocé escolha ter saúde e nao a
tenha depois; vocé me entende?

D — Se vocé voltar á Térra, vocé acha que voltará como urna


pessoa, um bichinho, urna flor...?
E — Um menino.
D — Vocé acha que, quando voltar, vocé voltará a conhecer sua
máe, seus amigos, ou irá para outro país ?
E — Eu acho que voltarel para onde eu viví antes... no Brasil.
D — Vocé tem alguma razfio para amar o Brasil tanto?
E — Sim. Meus primos estSo lá e meu pai.
D — Há quantos anos vocé está, fíente ?
E — Desde que eu tinha tres anos".
(Extraído de "O Globo", 29/01/78, 1? cad., p. 25).

— 175 —
36 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 220/1978

2. Refletindo um pouco...

A explicagáo do fenómeno por recurso á tese da reencar


nagáo baseia-se no fato de que

1) o menino se mostrou dotado de notável serenidade e


lucidez de ánimo;

2) professou crer na reencarnagáo e esperar voltar a


nascer no Brasil.

Ora quem conhece os precedentes biográficos de Eduardo


de Moura Castro encontra nos mesmos as razóes tanto da
tranqüilidade de espirito do menino quanto das suas referencias
á reencarnagáo, evidenciando-se assim supérflua, se nao
mesmo fantasista, a elucidagáo do caso por recurso á tese
da reencarnagáo.

Com efeito. Alguns jornais, embora nem todos, noticiaram


que Eduardo, aos tres anos e meio de idade, comegou a
freqüentar um grupo de seguidores da antiga religiáo oriental
Vedanta. Como se compreende, ñas reunióes dessa Sociedade
foi doutrinado no sentido da reencarnagáo e imbuiu-se das
idéias hinduistas relativas ao sofrimento, ao sentido da vida,
á morte, etc. Em conseqüéncia, tornou-se apto a encarar a
morte com serenidade e esperar a sua próxima reencarnagáo...
Vé-se, pois, que a mensagem de Eduardo foi aprendida nesta
vida mesma: é a expressáo do psiquismo do próprio menino
que, durante aproximadamente quatro anos de sua infancia
(receptiva como é toda infancia), foi impregnado de conceitos
e teses hinduistas e reencarnacionistas. Louve-se a serenidade
de Eduardo diante da morte — o que é coisa rara; mas nem
por isto se diga que se trata de genio reencarnado. Eduardo
foi simplesmente um menino que recebeu educagáo religiosa
numa escola oriental e absorveu dócilmente os ensinamentos
ai ministrados, como teria absorvido ensinamentos diversos ou
mesmo contrarios, se estes lhe tivessem sido oferecidos; a
idade do menino nao lhe permitía discernir entre as diversas
proposigóes doutrinárias que lhe iam sendo ministradas.

Assim se dissipa aos olhos do bom senso e da psicología


a «mística» que o caso possa ter inspirado a parte do público.

— 176 —
Valioso depolmento:

fala werner von braun

A onda de materialismo que marca os nossos tempos,


poderia sugerir ao observador que o materialismo decorre
precisamente do avango da ciencia, correspondendo a urna
atitude mais esclarecida e evoluída do ser humano. A crenca
em Deus e nos valores transcendentais seria resquicio do
obscurantismo ou da cultura infantil e supersticiosa ou
amedrontada de épocas passadas. Ao menos é o que apregoa o
materialismo dialético de Karl Marx e o que muitos intelectuais
aceitam acriticamente. Ora, para dissipar táo errónea concep-
gáo, nada há de mais eficaz do que o testemunho dos den
tistas mais eminentes de nossos tempos, pois estes falam por
experiencia própria. Citaremos, pois, a seguir, Werner von
Braun, o inventor da bomba V-2, o pai da astronáutica e o
realizador do gigantesco Saturno V.

Werner von Braun faleceu aos 65 anos de idade, perto de


Washington (U.S.A.). Alemáo de origem e naturalizado norte-
- americano, von Braun foi um dos maiores dentistas da nossa
época. Eis a sua profissáo de fé:

"Hoje, mais do que nunca, a sobrevivencia — a sua, a


minha, a de nossos filhos — depende da nossa adesáo aos
principios éticos. Só a ética decidirá se a energia atómica vai
ser urna béncáo ou a origem da destruicáo total da huma-
nidade.

Donde vem o desejo de agir conforme os principios da


ética ? O que nos faz ser moráis? Creio que há duas torgas
que nos ¡mpulsionam. Urna délas é a crenga no Juízo Final,
em que teremos de prestar contas do que fizemos com o
grande dom que Deus nos concedeu: a vida terrena. A outra
é a crenga numa alma ¡mortal, urna alma que desfrutará da
recompensa ou sotrera o castigo decretado no Juízo Final.

A crenga em Deus e na imortalidade da alma é o que nos


dá a torga moral e a orientagáo ética de que necessitamos
praticamente para todas as agóes de nossa vida cotidiana.

— 177 —
38 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS? 220/1978

Em nosso mundo moderno, muita gente parece experi


mentar a sensacáo de que, de certo modo, a ciencia tornou
antiquadas ou pos fora de lugar as idéias religiosas.

Mas creio que a ciencia reserva urna verdadeira surpresa


aos céticos. A ciencia nos diz, por exemplo, que nada' na
natureza, nem a mais ínfima partícula, pode desaparecer sem
deixar rastro.

Temos que pensar nisto. Se o fazemos assim, os pensa-


mentos sobre a vida já nao voltario a ser os mesmos. -

A ciencia descobriu que nada pode desaparecer sem deixar


rastro. A natureza nao conhece a extincao. Sabe apenas da
transformacáo.

Entáo, se Deus aplica este principio fundamental ás partes


diminutas e insignificantes do seu universo, nao é lógico supor
que o aplique também á obra prima da sua criacáo: a alma
humana?

Creio que é assim. E tudo o que a ciencia me ensinou e


continua ensinando, reforca a minha crenca na continuidade
de nossa existencia espiritual depois da morte do corpo. Nada
desaparece sem deixar rastro".

Como se compreende, o argumento de Werner von Braun


em favor da sobrevivencia da alma humana é expresso segundo
as categorías de pensamento e linguagem de um físico. Outros
argumentos, passando por outras vias, chegam á mesma
conclusáo: no ser humano existe algo que transcende a mate
ria e, por isto, nao é oriundo da materia nem perece com a
materia: chama-se «alma humana», cuja natureza é imaterial
ou espiritual. É chamada a ver a Deus, a Beleza Infinita,
face-a-face por todo o sempre.

A respeito publicaremos oportunamente um artigo em PR.

— 178
O V ENCONTRÓ NACIONAL DA ABESC
Teve lugar em Petrópolis (RJ) de 21 a 24 de Janeiro pp.
o V Encontró Nacional da Associagáo Brasileira de Escolas
Superiores Católicas (ABESC), que reúne em intercambio
fraterno e salutar as treze Universidades Católicas do Brasil
e 53 Faculdades Isoladas católicas. Estavam presentes 34
representantes de um total de 25 dessas instituigóes, tendo
algumas das demais justificado a sua ausencia.

O Encontró teve duas partes. A primeira versou sobre


a XII Assembléia Geral da Federado Internacional das Uni
versidades Católicas (FIUC) a se realizar em Porto Ale
gre (RS) de 16 a 24 de agosto pf., enguanto a segunda parte
teve por objeto de estudo a situagáo presente e futura das
Escolas Superiores isoladas no Brasil.

1. A XII Assembléia da FIUC tem merecido especial


atengáo por parte da ABESC, que julga tratar-se de certame
de grande relevo para a orientagáo do ensino universitario
católico. O tema a ser entáo abordado tem por titulo «A
Universidade Católica, caminho de pluralismo cultural a ser-
vigo da sociedade e da Igreja». Cada continente geográfico
apresentará um documento referente ao assunto, sendo que o
Brasil, como país anfitriáo, apresentará o seu próprio. Foi,
portante, discutido em Petrópolis um estudo básico sobre o
tema, elaborado pelo Pe. Alberto Antoniazzi (Belo Horizonte);
tal estudo deverá receber alteragóes diversas para que repre
sente o pensamento exato das instituigóes de ensino superior
católico do Brasil. Entre outras notas desse documento, me
rece registro a seguinte:

A expressáo «pluralismo cultural», por mais usual que


seja na linguagem de nossos dias, é inadequada do ponto de
vista teológico, para exprimir o fenómeno, da diversidade das
culturas que marca a sociedade contemporánea; com efeito,
o vocábulo «pluralismo» pode sugerir o relativismo ou a rela-
tivizagáo das culturas. Deixa-se assim de por em relevo o
fato de que o Cristianismo se baseia na pessoa e no aconte-
cimento «Jesús Cristo», que deixou ao mundo urna mensa-
gem inconfundivel; esta possui valor que nao é lícito nivelar
com os demais nem permitir sofra o risco da relativizagáo.
Daí se segué que o documento brasileiro proporá a substitui-
gáo da locugáo «pluralismo cultural» por «pluralidade cultu
ral» — o que evitará o possivel mal-entendido atrás mencio
nado. Ademáis esse mesmo documento preconiza o diálogo

— 179 —
_40 tPERGUNTE E RESPONDEREM0S> 220/1978

entre a teología, a filosofía e as ciencias no intuito de pro


mover a síntese harmoniosa das mesmas numa hora em que
muitos intelectuais tendem a valorizar unilateralmente a cien
cia e a técnica, cultivando o cientificismo e o tecnicismo.
Mais: o documento brasileiro prevé a prestagáo de servicos
diversos a cada comunidade local em cujo meio esteja inse
rida urna Universidade Católica (tais servigos traduzir-se-áo
em cursos de extensáo universitaria, como também na promo-
Cáo da fraternidade, da justiga e da paz entre os homens...).

2. A temática das Facilidades Católicas isoladas foi


ilustrada primeiramente por um painel, em que deram seu
depoimento a Faculdade de Filosofia de Fortaleza (CE), a
Faculdade de Filosofia «Medianeira» de Sao Paulo (SP) e a
de Filosofia «Dom Bosco» de Santa Rosa (RS). Assim tres
regióes bem diversas do Brasil foram apresentadas á assem-
bléia, com as facilidades e os obstáculos que possam oferecer
á escola isolada católica. Na verdade, sabe-se que o Conselho
Federal de Educagáo está voltado para o problema da multi-
plicagáo das Escolas isoladas e da baixa do nivel do ensino
que se tem verificado em conseqüéncia. Em vista disto, tem
promulgado exigencias diversas, que póem em perigo a sub
sistencia das Escolas isoladas atuais, por mais que se esfor-
cem por aprimorar a qualidade do ensino respectivo. Espe
cialmente as Facilidades de Filosofia se véem fadadas a ter
clientela cada vez mais reduzida, visto que o mercado de
trabalho, para os diplomados em Filosofia, foi limitado ao
ensino da Filosofia no segundo grau (o que na realidade nao
ocorre). Justamente a fim de elucidar a problemática daí
decorrente para muitas instituigóes católicas, o Pe. José
Vieira de Vasconcelos, salesiano, entáo presidente do Conse
lho Federal de Educagáo, foi a Petrópolis no dia 21/01 e
fez interessante palestra aos participantes do Encontró: mos-
trou-lhes os porqués das severas medidas adotadas por aquele
Colegiado, citando fatos concretos que exigem consideragáo
das autoridades governamentais, e abrindo como perspectiva
a integragáo das Escolas isoladas em Universidades já cons
tituidas ou em Universidades novas a serem constituidas por
Escolas isoladas existentes na mesma regiáo geo-educativa.
O conferencista lembrou oportunamente que Universidade
nao significa justaposigáo de Escolas vinculadas entre si táo
somente por estatutos ou aspectos jurídicos, mas exige espi
rito novo, aprimoramento de tarefas e servigos dentro da
comunidade nacional. Em oposigáo á tendencia a alargar o
funil que leva o estudante á Universidade, e «democratizar»

— 180 —
V ENCONTRÓ NACIONAL DA ABESC 41

o ensino do terceiro grau, o entáo presidente do Conselho Fe


deral de Educacáo afirmou que o ensino universitario, para
poder ser o que dele se espera, manter alto nivel e formar pro-
fissionais á altura do seu nome, deve ficar reservado a urna
élite. Tal élite nao há de ser aristocrática ou a dos filhos de
familias abastadas, mas há de ser élite intelectual, podendo
incluir em seu seio os filhos das familias mais modestas da
sociedade merecidamente aquinhoados por bolsas de estudos.
Mesmo nos Estados Unidos da América a proporgáo dos que
chegam á Universidade nao ultrapassa os 5%. — Por fim, o
Pe. Vasconcelos sugeriu á ABESC que no decorrer de 1978
examine a situagáo académica e financeira de cada Escola
isolada católica que aceite tal servico, a fim de ajudá-la a
poder encaminhar-se para o respectivo futuro. A proposta
foi imediatamente aceita pela presidencia da ABESC.

Em suma, o Encontró foi de grande proveito para os


participantes, que todos compartilhavam as preocupagóes das
mantenedoras e dos diretores das Escolas isoladas; a respeito
os horizontes se clarearam e tragaram-se pistas para garantir
a agáo pedagogico-pastoral da Escola Católica dentro da nova
legislagáo escolar brasileira. Desta forma o Encontró contri-
buiu para corroborar nos presentes a consciéncia do valor
da Escola Católica. A propósito dizia D. Serafim Fernandes,
presidente da ABESC e Magnifico Reitor da Universidade
Católica de Minas Gerais, em tom muito convicto: «Em edu-
cagáo, tudo o que plantarmos, nos o colheremos, nem sem-
pre de imediato, mas, em alguns casos, longos anos após a
semeadura!» A experiencia comprova estes dizeres e abona
o trabalho dos educadores, máxime se estes aceitam ser ins
trumentos de Cristo.
Estévao Rettencourt O.S.B.

181
42 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 220/1978

CRISTIANISMO E FILOSOFÍA NA AMÉRICA LATINA HOJE

UM CURSO INTENSIVO DE ALTA ATUALIZAQÁO


PARA DOUTORES E LICENCIADOS EM FILOSOFÍA

DE 16 A 30 DE JULHO DE 1978

ARTICULACÓES DO TEMA GERAL

1? — |jm esclarecimento ¡ntrodutórlo sobre o tema do curso-pesquisa de


1978 e sobre os processos metodológicos deste novo coloquio filo
sófico, quinto da serie Iniciada em 1974: 16 de julho as 16 h.

2? — a distlncfio entre o saber filosófico e o teológico, suas relagSes


mutuas e sua conjuncSo realista na perspectiva da elaboragfio de
urna sfntese crista atualIzada para a América Latina de hoje.

Días 17, 18 e 19 de ]ulho

— Dr. Urbano Zules, Diretor e Professor do Instituto de Teología e


Ciencias Religiosas da Pontificia Universidade Católica do Rio
Grande do Sul, Porto Alegre, RS.

3? — A figura do cristáo hoje e a filosofía na sua autentlcidade latino-


•americana. — Días 20, 21, 24, 25 e 26 de julho.

— Dr. Alberto Caturelll, Professor de Filosofía da Universidade de


Córdoba, 1? Vice-Presidente da AssociacSo Latino-Americana de
Filósofos Católicos.

4? — A funcSo da filosofía no diálogo cristáo com o secularismo hodierno


na América Latina. — Días 27, 28 e 29 de julho.

— Dr. Henrique de Lima Vaz S.I., Reltor do Instituto Alolslano do


Rio de Janeiro e Professor Universitario de Filosofía em Belo
Horizonte, MG.

5? — As conclusOes fináis, ressaltando principalmente :

a) — o significado positlvo-construtlvo e critico da filosofía na vida


e cultura dos povos latino-americanos hoje:

b) — a exigencia atual da pesquisa científica e da crlatlvidade filo


sófica na América Latina;

c) — a filosofía como interdlsclpllna dentro de um conjunto de va


lores ;

d) o sentido auténtico do pluralismo filosófico sob o signo pro


pulsor do cristianismo na América Latina hoje.

Ola 30 de Julho, ás 9 h

Prof. Dr. Stanlslavs Ladusans S.I., Diretor do Conjunto d»


Pesquisa Filosófica e Presidente da AssocíacSo Latino-Ameri
cana de Filósofos Católicos.

— 182 —
43

OBJETIVO

Contribuir, através dos processos de Indagacfies monográficas, mesas


redondas (organizadas pelos Professores Jofio Evangelista Térra S.I.,
Eduardo Abranches de Soveral, José Antonio Tobías), debates e dlsserta-
c6es pessoals, para a aluallzacao dos professores das Universidades latlno-
-amerlcanas e de outros cultores da filosofía em nivel superior, bem como
para o desenvolvlmenlo filosófica latino-americano, conforme as exigencias
da realldade do hemisferio. Em consonancia com este objetivo, o curso tem
também como flm proporcionar urna preparacao científica em 1978 para
comemorar em 1979 o centenario da Encíclica de LeSo XIII sobre a filosofía
crlstfi "Aeternl Patris" (4.VIII.1879 — 4.VIII.1979), que evoca a llgacfio do
nosso filosofar ás rafzes cristas, e contribuir para dlnamlzar a nossa crlatl-
vldade no campo do pensamento profundo, conforme o lema contldo na
dita Encíclica: "incrementar e aperfeicoar o antigo pelo novo — vetera
novls augere et perftcere".

CONDICdES DE INSCRICAO

1? — Licenciatura em Filosofía, pelo menos; outro diploma equivalente;


2? — pagamento da taxa de inscribo e freqüéncla; efetuagño da inscrlcáo
conforme o regimentó do curso-pesquisa.

INSCRICÓES

Nos días úteis, das 8 ás 12 h e das 14 ás 17 h, na sede do Conjunto


de Pesquisa Filosófica (CONPEFIL), situado no Km 26 da Vía Anhanguera,
Sao Paulo, Capital, Brasil.

BOLSA DE PESQUISA

Comprovada a necessidade, haverá posslbilldade de bolsas de pesquisa


para quem nao resida na cldade de Sao Paulo.

LOCAL DO CURSO

O curso-pesquisa será realizado, em nivel de pós-graduacfio, no Con


junto de Pesquisa Filosófica, "campus" universitario das Faculdades An-
chleta, dos Padres Jesuítas, local tranquilo e atraente, fora da regido de
polulpao, onde os inscritos poderáo ter também a hospedagem durante o
curso e utilizar urna biblioteca especializada em filosofía.

PROMOCÁO

O curso-pesquisa é promovido pelo Conjunto de Pesquisa Filosófica,


entldade da Companhla de Jesús, tendo urna colaboracao efetiva da Asso-
clacao Latino-Americana de Filósofos Católicos, destinada a pensadores de
20 nac5es do hemisferio, que lem a sua sede central no mencionado Con
junto.
INF0RMAC6ES

As InformacOes mals detalhadas podem ser obtldas visitando pessoal-


mente o Conjunto de Pesquisa Filosófica, Km 26 da Via Anhanguera, Sao
Paulo, Capital; telefonando para tel. 260-7680 ou escrevendo á Diretorla
do Curso (Caixa Postal 11.587 — 05049 S8o Paulo, S.P. — Brasil).

— 183 —
livros em estante
Introducto á Biblia, com antología exegétlca, sob a direcáo geral de
P. Teodorlco Bailarín!. Vol. U/3: Profetlsmo e Profetas em geral — Isaías
— Jeremías — Lamentacfies — Baruc — Carla de Jeremías — Ezequlel.
TraducSo de Freí Oswaldo Antonio Fu rían; revlsio de Pe. Ney Brasil Pe-
relra. — Ed. Vozes, Petrópolis 1977, 431 pp., 165 x 235 mm.

Este tomo faz parte de urna colecfio, de cinco volumes de iniciacáo á


S. Escritura, á obra dos melhores exegetas Italianos, que representam fiel
mente a orientacáo da Igreja no tocante aos estudos bíblicos. Como se vé,
o tomo U/3 nao abrange toda a literatura profética, ficando para o tomo
II/4 (a ser publicado) os estudos dos livros nao abordados em II/3. O que
chama a atencáo no lomo U/3, é o sabio título do capitulo II: Isaías e os
seus continuadores, ficando asslm compreendidos o profeta Isaías (Is 1-39),
o Déutero-lsafas (Is 40-55) e o Trlto-lsatas (Is 56-66); enquanto o primeiro
é atribuido ao séc. VIII a. C, o segundo é situado no periodo do exilio
(587-539, sendo provável o decenio final desta fase) e o terceiro Isaías é
colocado em meados do séc. V a. C. O livro de Daniel, cuja redacSo final
data do secuto II, ou seja, do lempo da resistencia macabaica aos sirios,
é estudado no tomo U/4, ocupando o último lugar na serle dos livros pro-
fétlcos; esta colocagáo, embora quebré a ordem do canon bíblico, é fiel á
cronología; ademáis sabe-se que On é mais apocaiipse do que obra profética.

A colecSo de Ballarini e seus colaboradores segué estilo estritamente


didátlco e claro; é enriquecida pela exegese das principáis passagens de
cada llvro analisado. € de notar também que as listas bibliográficas (de
livros estrangeiros) sao completadas pelo tradutor mediante a Indicacáo
de estudos ou artlgos publicados no Brasil; assim a obra de Ballarini é
adaptada aos Interesses do leitor braslleiro. Tais títulos a recomendam aos
estudiosos de S. Escritura como sendo urna das melhores coletaneas de
que dlspomos no Brasil. Observamos aínda que da "IntroducSo á Biblia"
a cargo de Ballarini e sua equipe já foram publicados: vol. I (Introducao
Geral), vol. U/1 (O Pentateuco), vol. II/2 (Josué, Julzes, Rute, 1/2 Samuel,
1/2 Reís), vol. U/3 (conteúdo ácima enunciado), vol. IV (Os Evangelhos),
vol. V/1 (Atos dos Apostólos, Sao Paulo e as epístolas aos Tessalonicenses,
1/2 Corintios, Gálatas, Romanos), vol. V/2 (Epístolas do catlvelro, Pastorais,
Hebreus, Católicas, Apocaiipse). ,

Aguardamos o vol. U/4 (restantes livros proféticos) e o vol. III, que,


como anunclam os editores, versará sobre os livros saplenclais. Pergunta-
mo-nos, porém: onde será Inserido o estudo de Tobías, Judlte, Ester, 1/2
Crónicas, Esdras e Neemlas ? Como quer que seja, qualquer dos volumes
já publicados pode ser utilizado com proveito Independentemente dos demais.

O desafio de ser crlstáo, por Karl Rahner. TraducSo de Frei Alvaro


Machado da Silva. — Ed. Vozes, Petrópolis 1978, 167 pp., 138 x 210 mm.

Temos aqui um conjunto de "textos espirituais" (como diz o subtftulo


do livro) ou de reflexdes teológicas acerca de temas atinentes á vida espi
ritual. A prfmelra e a segunda partes do livro versam sobre assuntos de
interesse geral, como o homem, a verdade, a evangelizacSo, a fé, a oracáo,
a penitencia, ao passo que a tercelra parte diz respeito diretamente á Vida
Religiosa regular. O autor é teólogo notável nao só pela profundidade de
sua doutrina, mas também pelo seu interesse por questQes de ascese e
mística; estes predicados de Rahner transparecem claramente através das
páginas do llvro, embora o estilo do autor seja denso e carregado.

— 184 —
Chama-nos a atencSo a p. 101 da obra, em que Rahner, abordando a
questáo da morte, se mostra desfavorável á "mlstlflcacáp" (slc I) da mes-
ma,... mistificarlo que consistiría no segulnte: no momento exáto da morte,
o ser humano serla sempre Iluminado por especial claráo de Deus, a fim
de poder proferir, com nitidez nunca dantes alcanzada, o seu último Slm
ou NSo frente a Deus. Karl Rahner julga que esta hipótese, sustentada por
L. Boros e outros teólogos, é gratuita, bremos que Rahner tem razáo. Com
efeito,' existem casos de morte lenta precedida de esclerosa dos tecldos,
de tal modo que a mencionada lucidez se tornarla entSo algo de antinatural.
— Urna vez que n3o se admita a ilumlnacáo postulada por Boros, verlflca-se
aínda mais nítidamente quanto é necessário avivarmos todos os dias a
nossa consciéncia da importancia de cada urna de nossas pequeñas opcSes;
sejam.sempre coerentes, ao máximo, com a nossa opcáo fundamental e
o nosso fim supremo.

Em suma, o livro de K. Rahner será proficuo a quantos procuram fun


damentar sólidamente a sua vida de ascese e oracáo.
^ ...

Revista "Parapsicología e Pslcolrónlca". Ano 2, fí° 3. — Editora


Científica Aura Ltda., Sfio Paulo, 48 pp., 210 x 275 mm.

A parapsicología estuda as manlfesta$6es do pslquismo humano que


se realizam para, isto é, ao lado do ordinario ou habitual; trata de fenómenos
naturals (explicáveis pela própria natureza da psique) qué ocorrem em
determinadas circunstancias (forte sugestionamento em estado lúcido ou em
hipnose, transe...).

A parapsicología tem sido cultivada com rigor científico por Joseph


Rhlne na Duke Unlversity (U.S.A.), Robert Amadou (París) e outros sabios.
Ela explana, entre outras coisas, as potencialidades do subconsciente
humano.

Ao lado, porém, da ciencia parapsicología, existem falsas ciencias


que usurpara ¡ndevidamente o nome de parapsicología ou outro congénere.
Tal é o caso da Psicotronlca... A revista ácima anunciada se Interessa
pelas enerqlas cósmicas e pela pretensa concentracSo das mesmas nos
objetos que tenham forma de pirámide; ao enunciar isto, o editor aproveita
a ocasiSo para oferecer ao leitor varios tipos de pirámide de aluminio, de
cobre, de madelra, de plástico, etc,

Mais de um artigo da revista abordam as pirámides do Egito, men


cionando os apregoadós segredos das mesmas — o que cortamente con
tribuí para recomendar ao leitor o uso de urna réplica de pirámide, a fim
de perfazer exercicios físicos ou mentáis a domicilio. Ora sabe-se que há
numerosas mistificacQes e lendas em torno das pirámides, cuja realldade é
bem mais simples do que a descrevem. Cf. PR 217/1978, pp. 18-20.

Outros artlgos falam da aura e sugerem aparelhos para medir a aura


do corpo humano.

Ora tudo Isto tem o caráter de proposigóes nio comprovadas pela


ciencia, mas, sim, resultantes da fantasía. Os articulistas da revista supfiem
que de todos os corpos emanem ondas energéticas e vibratorias — o que
é hipótese arbitraria. Além do que, a doutrlna da aura ou da forca ódlca
(gratuita ou Infundada) ó particularmente cara aos espiritas, que sobre ela
constroem suas teorías. De resto, é surpreendente a quantidade de minucias
relativas á aura propostas ao leitor ñas pp. 24-26 do fascículo em quest&o;
só servem para impressionar o leitor Incauto. Em se tratando de fenómenos
portentosos, é preciso, especialmente em nossos dias, que a lógica e o
bom senso exercam a sua funcSo critica I
E. B.
QUEM SAO OS CEGOS?

"NO CAIRO, HAVIA UM VELHO TRAPEIRO


SENTADO A CALCADA DE UMA RUAZINHA, PA
RALITICO E CEGÓ.

QUANDO LHE PERGUNTAVAM : 'Ó VELHO


PAI, QUE FAZES Af ? NAO TE ABORRECES?1,
LEVANTAVA O SEMBLANTE DESCARNADO, MAS
RESPLANDECENTE QUAL MISTERIOSA AURORA.
E RESPONDÍA:

'NAO, MEU FILHO, NAO ME ABORREGO


JAMÁIS, MAS DOU GRACAS A DEUS1.

'GRAQAS A DEUS? POR QUE, Ó VELHO


PAI?1

'AGRADEQO A DEUS PELO RAIO DE SOL


QUE ACARICIA, PELO PÁSSARO QUE OUCO CAN
TAR AO LONGE, PELA GALINHA QUE ACABA DE
POR SEU OVO E PELO CEU AZUL QUE OS
OUTROS CONTEMPLAM. VIVO NA ALEGRÍA,
HAMDULILLAH, LOUVADO SEJA DEUS! ELE ESTA
PERTINHO DE MIM'.

AFINAL DE CONTAS, QUEM SAO OS


CEGOS ?"

EMMANUELLE CINQUIN
"CHIFFONNIÉRE AVEC LES CHIFFONNIERS"
(ED. OUVRIÉRES)

(Texto transcrito de "Informations Catholiques In-


ternationales" n<? 516, 15/07/1977, 4<? capa; neste
fascículo alude ao Editorial, pp. 141 s).

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