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A Quistio DE Deus O ESTATUTO DO DIVINO NO ESTOICISMO DE SENECA. Ricarpo VENTURA Introdugao: Teologia no Estoicismo Antigo Entre as escolas que emergiram no perfodo helenistico, a escola do Pértico foi, prova- velmente, aquela que maior importancia deu A questo de Deus e que, na sua formulacao, procurou seguir uma linha mais consensual, reinterpretando, por um lado, as concepgées da religiosidade tradicional sob uma perspectiva racional sem as recusar na sua totalidade, e reagindo, por outro lado, as propostas provenientes de Platdo e de Aristételes. ‘Na generalidade, os autores est6icos inserem a teologia no dominio da filosofia natu- rale identificam Deus e natureza. Porém, o conceito de Deus encerra, na visio dos estéicos, diversos atributos e definicdes. Ele designa nao s6 o fogo criador enquanto principio (arkhé) responsavel pela ordenacio dos elementos e pela constituicdo da substéncia, mas também a prépria ordem ou lei que determina os seus movimentos. Deus é pois o termo que funda- menta e conjuga todos os processos césmicos segundo uma lei imperturbavel; 0 sentido de Deus como Providéncia ou Fado é preponderante em boa parte dos escritos estéicos. Esta identificacdo entre Deus e natureza, entendida como a ordem dos processos ope- rados pelo fogo criador, esté aliés subentendida no difuso preceito ético atribufdo a Zenao, © fundador da escola do Pértico, to homologoumenon téi physei zén, “viver de acordo com a natureza”, que designaria assim a adequacao da acco e do pensamento do homem a or- dem providencial determinada pela instancia divina. Por conseguinte, a filosofia natural, enquanto investigacao dos fenémenos, sua ordem e suas razées, revela-se, sob a perspec- tiva estéica, uma tarefa fundamental para 0 aperfeicoamento ético. Por esse motivo, nao é surpreendente que a teologia seja matéria presente em grande parte das reflexdes estéicas e constitua, por diversas vezes, o seu assunto central. Na verdade, como veremos adiante com maior detalhe, a tendéncia estéica para centrar a abordagem da Fisica e da Kitica na Teologia é notéria nos primeiros testemunhos da escola e tornar-se-ia por demais evidente no estoicismo tardio. O Hino a Zeus, de Cleantes, o discipulo predilecto de Zeno, é um exemplo explicito dessa importancia dada a teologia nos principios da Escola do Pértico. Neste testemunho em que, como Emile Bréhier comentou, «a liturgia se transforma em filosofia»', a formula- do do conceito estéico de Deus vé-se contaminada pelo registo de um homem piedoso que se dirige a um Deus-Paie, portanto, personalizado ou pessoal. Ap6s a enumeracao dos atri- butos dessa divindade, Cleantes suplica a Zeus que salve os homens da ignorancia* e que lhes permita participar da sabedoria em que Ele se baseia para governar todas as coisas’, dando prova de uma componente devocional que, tanto quanto nos é dado entender, pare- ce particularmente explicita no estoicismo de Cleantes, mas que deve ser tida em conta para a compreensio dos contributos da religiosidade tradicional no seio da Escola do Portico. 1 eda liturgie se transpose ici en philosophie.», fimile Bréhier, «Notice - L/Hymne a Zeus de Cléanthe», in Les Stoiciens, Paris, Editions Gallimard, 1962, p. 5. 2 Sobre a oracio no estoicismo como meditacao e “pedido de racionalidade”, cf. Keimpre Algra «Stoic Theolo- gy», Cambridge Companion to Stoics, ed. Brad Inwood, Cambridge, Cambridge University Press, 2003, p. 175: «lt represents a form of meditation, of telling one’s rational self that Zeus will lead, and that one will have to follow the decrees of fate anyway.». 3 Sauve les hommes de la maifaisance ignorance, / Dissipe-la, 6 Pere, loin de notre-Ame; laisse-nous participer / A cette sagesse sur lequelle tu te fondes pour gouverner toutes choses avec justice.», Cléanthe, in Les Stoicens, p. 8. 11 oe A Quisrio pe Divs Num trecho do livro Vidas e Opinides dos Fildsofos em que Didgenes Laércio', ao re- sumir a teologia da Escola do Portico, comeca por apresentar a perspectiva de um deus pessoal, demiurgo e pai de todas coisas, mas também imanente em todas elas, avangando para a reinterpretacdo estdica do pantedo grego e terminando com as definicdes de Deus pertencentes aos diferentes autores da escola. A partir desta apresentagao de Diégenes La- ércio, compreendemos claramente que a reelaboracaio est6ica do panteao grego nao tipifica uma simples postura henoleista, segundo a qual os est6icos conceberiam um deus principal do qual estéo dependentes deuses menores. Os diferentes deuses do pantedo parecem, na verdade, constituir aspectos da accdo divina ou, tal como Plutarco indica, diferentes nomes para cada “poder” que Deus “exerce”. Os testemunhos de que dispomos nao nos permitem, porém, clarificar plenamente esta questdo. A interpretacdo mais correcta desta polifonia de discursos em torno de Deus parece-nos a de que o Estoicismo operava uma adequaco a diversos graus de compreensdo da natureza. Em estddios intermédios dessa compreensao, admitia-se, portanto, a terminologia e até mesmo os rituais e as préticas da religiosidade tradicional. De facto, esta aceitacao parcial da tradicao, racionalizando-a na esteira de Xenofonte, Platao e Aristoteles, nem sempre permitiu uma recepcdo pacifica dos argumentos teolégi- cos do Estoicismo por parte dos autores mais tradicionalistas. As obras em que Plutarco polemiza com as concepgées da Escola do Portico estao repletas de veementes acusac6es de impiedade em relacao a religiosidade tradicional, que o autor procura refutar com ar- gumentacdo filoséfica’. Ocontributo de Crisipo veio a revelar-se determinante para a clarificagao de diversas questdes da filosofia estéica, nao tanto por ter trazido novas concepgdes, como por lhes ter trazido uma formulacdo sistematica em discurso filoséfico’. Nos trechos retirados da sua vasta obra, actualmente perdida, mas que diversos autores antigos fizeram chegar até nés, podemos constatar que, A semelhanca do que é visivel em praticamente todos os autores estéicos e de acordo com os registos de Plutarco, a teologia ocupava um papel central no seu pensamento. Integrada no estudo da fisica, a questo dos deuses representaria 0 ponto de partida para o aprofundamento da ética, nomeadamente, da questao do bem e do mal’, * «Dieu est un vivant immortel, raisonnable, parfait, intelligent, bienheureux, incapable d’admetire en lui aucun ‘mal, ordonnant par se providence le monde et les choses qui sont dans le monde; mais iln‘a pas la forme humai- ne; il est le demiurge de I'univers et comme pére de toutes choses, a la fois en general et parla partie de lui-méme qui pénétre toutes choses, partie qui est appelée de plusieurs noms selon les pouvoirs qu’il exerce: Dia, parce qu'il vaa travers (dia) toutes choses, Zena parce qu'il est cause de la vie (2én) et la pénetre, parce qu'il se répand dans Yéther (cithera), on Yappelle Athéra; dans Yair (aera), Féra; dans le feu artiste, Héphaistos; dans Y’élement humide, Poseidon; dans la terre, Déméter; et on Iui donne encore d‘autres noms qui dependent chacun d'une de ses pro- priétés. Zénon dit que la substance de Dieu est le monde tout entier et le ciel; de méme Chrysippe au premier livre’Des Dieux’ et Posidonius au premier livre ‘Des Dieux’. D’aprés Antipater, au septi¢me livre ‘Du Monde’, sa substance est aériforme; Boéthius, en son traité ‘De la Nature’, dit que la substance de Dieu est la sphere des étoi- les fixes.», in Diogene Laérce, Vies et opinions des Philosophes (147-148), trad. Emile Bréhier, in Les Stoiciens, p. 63. A titulo de exemplo, cf. Das Contradigies dos Estéicos, XXXVIL-XL; Das Nogdes Comuns, XXXI-XVIL. ¢ «Chrysippe, par exemple, se sentait capable de trouver par Iui-méme les arguments justifiant les dogmes stoi- ciens posés par Zenon et par Cléanthe, ce qui !amenait d’ailleurs a étre en désaccord avec eux, non pas sur les dogmes, mais surla manidre de les établir.», Pierre Hadot, Exercices Spirituels et Philosophie Antique, Paris, Etudes Augustiniennes, 1987, p. 208. 7 «IX. Crysippe pense que c'est d’abord la logique qu'il faut enseigner aux jeunes gens, en second lieu I’éthique, puis la physique, en réservant pour la fin la question des dieux. (...] Ecoutez. plutot ce qu’il dit dans le troisiéme livre Sur les Dieux: ‘Il n’est pas possible de trouver a la justice un autre principe ni une autre origine que de la dériver de Zeus et de la nature universelle: c’est en effet par la qui faut débuter quando nous avons a parles des biens et des maux. Et il le répete dans les Théses physiques: ‘I n‘est pas d’autre moyen ni plus convenable pour arriver a la théorie des biens et des maux, aux vertus et a la sagesse que de partir de la nature universelle et du governement du monde’; et plus loin a nouveau: ‘Car il faut rattacher a ces sujets la théorie des biens et des maux; 12 A Quistio DE Deus O conceito de pneuma é um exemplo do contributo notavel que Crisipo trouxe para uma formulagio, em termos filoséficos, mais consistente da doutrina da presenca do divi- no na realidade corporal. Zeno e Cleantes té-la-iam formulado anteriormente nos termos vagos de uma presenca do fogo criador nos corpos. Crisipo definiu 0 pneuma como uma parcela do divino que, penetrando a substancia, desempenha a fungaio de vefculo da pro- vidéncia, mantendo a ordem natural: nos seres inanimados enquanto hexis (consisténcia), nas plantas enquanto physis (natureza), nos animais enquanto psyché (alma) e nos humanos enquanto dianoia (razio) a forma mais pura de pneuma, constituinte do hegemonikon, princi- pio racional ordenador presente no homem. Este conceito de evocacio heraclitiana, o fogo criador que, na sua explicita modalida- de de logos disseminado e nao enquanto arkhé fisico, ordena a substancia, tera, em Crisi- Po, consequéncias assinalaveis na evolucao da doutrina estéica. Ao introduzir uma scala naturae em que sao estipulados diferentes graus de presenca do fogo divino na natureza, Crisipo permite clarificar o estatuto de cada um dos seres perante o principio racional or- denador ou Deus. Assim, considerando as etapas de cada ciclo césmico, Crisipo estipula que a ekpyrosis (conflagracao final) corresponde a maxima expansio do fogo divino, em que este consu- miré todas as instancia corporais do ser. Seguindo este raciocinio, os deuses sao também corruptiveis e s6 0 fogo divino, Zeus, é incorruptivel. Em Plutarco*, lemos a confrontacao das teses de Crisipo com a concepgao tradicional do estéico Antipater. Com a introducdo do conceito de preuma, Crisipo afastou a hipotese henoteista, concedendo a Zeus um es- tatuto principal numa escala de seres corporais. Por outro lado, esta escala abriu novas possibilidades de interpretacdo do estatuto humano: ela introduziu uma gradualidade de acordo com a qual os autores estéicos posteriores concederam uma nova dignidade ao percurso filoséfico e, sobretudo, ético de cada homem. Entio, veio a tornar-se explicito que to homologoumenon téi physei zén, “viver de acordo com a natureza”, néo significa apenas conformar-se as leis naturais, mas também elevar-se ao estatuto dos deuses, quando nao mesmo de Deus. Este aprofundamento dos termos da teologia césmica estdica permite-nos compre- ender melhor o sentido dos argumentos teolégicos dos pensadores estdicos. No seu Da Natureza dos Deuses, Cicero reconstitui estes argumentos: «O nosso Cleantes disse que estava nos animos dos homens impressa a nocio de que os deuses existem, por quatro razdes: a primeira tem a ver com a presciéncia das coisas futuras, de que jé falei, a segunda inferimos a partir do imenso nimero de beneficios que tiramos da brandura do clima, da fertilidade das terras, enfim, de uma enorme abundancia de bens; a terceira diz respeito ao nosso terror pelos raios, tempestades, procelas, neves, granizo ...].[...] A quarta razdo, ea mais importan- elle n’a pas de principe meilleur auquel se référer, et la physique nest enseigné que pour s‘étendre sur les biens et sur les maux.», Plutarque, Des Contradictions des Stoiciens, IX, trad. Emile Bréhier, in Les Stoiciens, pp. 96-96. * «Antipater de Tarse écrit littéralement dans le traité Des diewx: ‘Avant tout raisonnement, nous expliquerons en peu de mots ridée que nous avons des dieux: nous concevons Dieu comme un étre vivant, incorruptible et bienfaisant pour les hommes.’ Puis il explique chacun de ces termes, et il dit: “Tous les estiment incorruptibles.’ Chrysippe n’est donc pas compris dans ces ‘tous’ d’aprés Antipater; car il pense que nul dieu n’est incorruptible saufle feu, et que tous également sont nés et seront détruits; c’est ce qu'il dit en beaucoup d’endroits; je citerai ce texte du troisiéme livre Des diewx: ‘... selon un autre raisonnement. Car les dieux sont les uns engendrés et cor- ruptibles, les autres non engendrés; de cela ily a, dés le début, une demonstration physique; car le soleil, la lune, et les autres dieux de la méme espce sont engendrés; mais Zeus est incorruptible’ Et il poursuit: ‘A propos de la naissance et de la corruption, on dira la méme chose de Zeus et des autres dieux; les autres dieux sont corrup- tibles, mais les parties de Zeus sont incorruptibles’», in Plutarque, Des Contradictions des Stoiciens, XXXVI, trad. Emile Bréhier, in Les Stoiciens, pp. 124-125. 123, =

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