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1 Plural, mas nado cadtico ALFREDO Bost © comego da elaboracio critica & a conseitncia flo que realmente somos, quer dizer, um conhe- Setsa fi onerina coma provi do proceso his tGrieo’desenvolvido. ste gora, e que deixou em {i uma infinidade de mareas recebidas, sem be- neficio do inventévio. & preciso eletuar, iniciak mente, esse inventrio. (Antonio Gramsci, Cadernos do cércere.) Da cultura brasileira j4 houve quem 2 julgasse ou a quisesse unitéria, coesa, cabslmente definida por esta ou aquela qualidade mestra, E hii também quem pretenda extrair dessa hipotética unida- de a expressio de uma identidade nacional ‘Ocorre, porém, que ndo existe wma cultura brasileira homo- nea, matriz dos nossos comportamentos € dos nossos discursos. ‘Ao contrério: a admissao do seu carter plural é um passo decisivo para compreendé-la como um “efeito de sentido”, resultado de lum processo de miltiplas interagSes © oposigdes no tempo ¢ no espace, ‘A cultura das classes populares,'por exemplo, encontra-se, em certas situagdes, com a cultura de massa; esta, com a cultura eri dita; e vice-versa, Ha imbricagdes de velhas culturas ibéticas, indi {gens e afticanas, todas elas também polimorias, pois jé traziam tum teor considerdvel de fusdo no momento do contato interétnico. 41 CULTURA BRASILEIRA — TEMAS E stTUACHES E hé outros casamentos, mais recentes, de culturas migrantes, quer externas (iteliana, alemd, siria, judaica, japonesa. ..), quer inter nas (nordesting, paulista, gaticha...), que penetraram fundo em ‘nosso cotidiano material e moral. Sem esquecer a presenca norte- americana, que vem representando, desde a Segunda Guerra Mun- dial, uma fonte privilegiada no mercado de bens simbolicos. ‘Téo notével multiplicidade produz, as vezes, aparéncias de ca0s. Caos afim com 0 nosso capitalismo selvagem, entre opulento © esquélide. Mas & preciso atravessar o mosaico das superticis. [As expresses jocosas “geléia geral” e “samba do crioulo doido”, inventadas para definir sarcasticamente 0 cadinho mental brasileiro, sto vilidas apenas como ponto de vista do consumidor disponivel que se oculta em cada um de nds, passeando 0 olhar pelos signos como 0 jldneur baudelaitiano, para quem a cidade se oferta, antes de mais nada, como um espetéiculo de vatiedades. Ora feérico, ora sinistro, ‘Mas quando nos destocamos desse Angulo de espectadores at6- nitos para o de analistas e intérpretes ou, melhor ainda, para o de criadores de cultura, enirevemos, em meio ao labitinto de vozes fe imagens, algumas linhas de forca mais claras que, perseguidas até 0 fim, remetem a estruturas sociais diferenciadas. © plural sustém-se e impde-se de pleno direita, mas aquela impressio de caos © nonsense ficard por conta do estilo de show alucinante miontado por essa gigantesca fabrica de sombras e revér- beros chamada civilizagdo de massa preciso olhar tudo de novo, devagar. I Creio que um dos principios diferenciadores de maior relevo se encontre no uso ¢ no sentido do tempo. s ritmos das culturas no Brasil so diversos, © andamento dos meios de massa acerta © passo com a pro- dugio ¢ o mercado préprios de uma sociedade capitalista de feigdes internacionais. O imperativo calegérico desse tempo social & 0 da fabricagdo ininterruptura de signos com vistas ao consumo total. TV € radio 24 horas por dia, como os postos bancétios, Jé hi muito © cinema (a primeira grande arte da Era Industrial) se presenta cm “sesso corrida”. A imprensa desdobra-se nas edigbes Aleelo Uot/PLURAL, MAS NAO CAOTICO_9 matutina ¢ vespertina, © telefone, polivalente, achs-se hoje em conexio diurna ¢ noturna com sistemas informaticos que, na opi- nigo de alguns, estariam revolucionando nao $6 a pritica mas até © sentido da cultura, As fotonovelas ¢ as revistas de passatempa ‘mudaram céleres de mensais & quinzenais © a semanais. Suspender essa periodicidade curta significaria entrar em colapso ¢ ceder @ rivals a palma da vitria mereante, As colegSes diditicas e para- idaticas em pilulas viraram o prato de resistencia das editores nestes anos 80.... E chegou a hora de os professores universitérios brasileiros seguitem a repra de ouro dos avisados colegas noste- samericanos: publish or perish! A lei do maior niémeto, no prazo mais breve © com 0 luero mais alto determina o valor ¢ 0 sabor do signo-produto. © mesmo tento aciona uma bateria de estimulos psicossociais, sca e chemariz para 0 usuério, As paixdes exploriveis sfo as de sempre, amor ¢ medo, que se estreitam e intumescem em sexo € terror, ou, 52 © feito programado for leve, dluem-se em malicia e sentimentalismo. Imagens pseudo-religiosas, desarraigadas do seu solo de culto, & dlispersas 4 e Id, dio uma cor tradicional ao conjunto sobre 0 qual, vez por outra, se deitam manchas de critica modernizante. A receita & isso af, © & tudo. ‘A montagern de bens simb6ticos em ritmo industrial nos for- nece tim modelo de tempo cultural acelerado. ‘As representacdes devem durar pouco, ou s6 enquanto o p= blico der mostras de consumi-las com agrado. Cumprida a fase da igestio amena, torne-se imperiosa a substituigéo dos signos e das séres, quando nio de padrBes de gosto interos. O sempre novo (embora nso o sempre original, dadas as timitacoes fatais do pro ddutor) comanda essa caricatura de eterna vanguarda que ao hesita, pporém, em valer-se de velhos clichés ou de peridicos revivals mal © assunto mingua ou morre © expediente mais cémodo de que lange mio o mercado cultural em um pais dependente como 0 Bras € 0 uso dos “enla- tados" na TV. (Nesse particular, guarda plena atualidade 0 artigo de José Marques de Melo, adiante reproduzids.) De resto, 0 conceito de “enlatado” poderia estender-se da esfera televisiva para 4 imprensa, onde se dfo, tantas vezes sem comentirio, noticias j4 prontas, vindas de agéncias internacionais, Em outto setor, a dose maciga de misica comercial norte-americana difondida pelas esta- ‘gbes de rio ilusira a mesma situagao de base. (Ler as observagdes ‘oportunas do texto de José Paulo Paes nesta coletinea.) Nio se trata aqui de lamentos patriéticas, pois a cultura de massa jé & cotonizadora nos seus processos e nos seus centras de origem: ela invade, ocupa e administra © tempo do reldgio ¢ o tempo interior do cidadio, pouco Ihe importando as fronteiras nacionais, ‘Uma das decorréncias mais visiveis do que chamei tempo ace- lerado da indistria cultural & a perda de meméria social genera lizada que lesa o seu consumidor inerme, Apesar da forga e da nitidez com que as imagens da TV sio projetadas no cérebro do ‘espectador, este no tem, literalmente, tempo de absorvé-las na relentiva, que Santo Agostinho considerava “o ventre da alma” © problema nao se deve a uma eventual falha tSenica do canal de comunicagao, pois a TV é um dos inventos mais complexos ¢ requiniados da eletrénica moderna; o problema est na urgéncia da substituisio e, daf, no cardter descartivel que o signo adquire dentro do regime industrial avangado. Da corrente de representagiies ¢ estimulos © sujeito $6 guar- ar o que a sus propria cultura vivida Ihe permitirfiltrar e avaliar. ‘Mas para que se facam a selegio e a critica das mensagens, € preciso que © espitito do consumidor conheca outros ritmos que no 0 da industria de signos, Se isso no ocorrer, teremos, no limite do sistema, o “home unidimensional” de Marcuse, com todos os iscos politicos que traz a massificaga uw ‘Mas qual seria essa “outra cultura”, capaz de resistir as bate- ras da civilizagio de massa, escolhendo e seinterpretando s6 0 ‘material que enriquecesse © seu campo de significagies? ‘A respasta no é univoca, Bifurea-se. Ou se trata da cultura das classes pobres, iletradas, que vivem abaixo do limiar da escrita, fou se trata da cultura erudits, conquistada, via de regra, pela cscolatidade média e superior. Embora tanto uma como a outra esiejam rodeadas ¢ permeadas pelos meios macigos de comunica- gio, ambas guardam certa capacidade de resisténcia, intencional fou nio. Resisténcia pressupde, aqui, diferenga: histria interna specifica; ritmo proprio; modo peculiar de existir no tempo hist6- rico e no tempo subjetivo, A forca das oposigdes ressalta quando se recotre ao critério dda temporalidade, Nem a cultura popular tradicional nem a cultura ‘Aledo Boe/PLURAL, MAS NAO CAGTICO 12 cerudita moderna constroem-se a partir de um regime de produczo ‘em série com linhas de montagem ¢ horétios regulados mecaniea- mente, © tempo da cultura popular é clclico. Assim & vivid em ‘reas rurais mais antigas, em pequenas cidades marginais ¢ em lgumas zonas pobres, mus socialmente estiveis, de cidades maio- res, O seu fundamento é o retorno de situagdes ¢ alos gue a memé- ria grupal reforca atribuindo-thes valor. Tempo sazonal, tempo do lavrador, mareado pelas Aguas © pela seca, Tempo lunar: tempo das marés, tempo menstrual. Tempo do ciclo agrario, da semeadura 2 ceifa, com 2 pausa necesséria 20 repousa da terra, Tempe do ciclo animal: do cio sc acoplamenta, dda gestagio a0 parto, da ctiag2o ao abate ou A nova reprodugio. Sempre que uma inovacdo penetra a cultura popular, ela vem de algum modo traduzida ¢ transposta para velhos padres de per epg © sentimento ja interiorizados © tornados como que uma segunda natureza. De resto, a condicao material de sobrevivéncia das préticas populares é 0 seu enraizamento. (Q texto seguinie, de Ecléa Bosi, persegue esse fildo que, em um pais de migrantes, esta sempre & mosira,) Ciclo e envaizamento so processos que faltam, em geral, indiistria e a0 comércio cultural. Os meios de comunicagdo nutrem- -se da aparéncia do novo, que é pura serislidade. A TV, por exem- plo, entrerém uma relacio descontinua com o piiblico: ela procisa cortejar essa massa flutuante, atitude que a propaganda leva as ‘iltimas conseqiigncias mediante varias téenicas de aliciamento & sedugao, Caso o pubblico um dia se saciasse ou se indispusesse a receber novas excitagdes, o sistema se arrisearia a fair [Nas manifestagdes rituais das classes pobres ha uma conatu- ralidade entre os eventos ¢ os seus participantes. Uma festa popular identifice-se com os festeiros e os convidados: est neles, esté entre les. © mesmo ocorre com um desafio, uma cantaria, uma procissto, tuma congads, um bumba-meu-boi, uma reza pelas almas, O dis- tanciamento comeca quando o turismo (ou a TV, paraiso do Viajante de poltrona) toma conta dessas priticas: a festa, exibida, mas nfo partilhada, torna-se espetéeulo. Nesse exato momento, 0 capitalismo se apropriou do folclore, ocultando o seu teor original de enraizamento, Mas aqui ja entramos no campo das intersegdes entre as “culturas” brasiliras, (Perfis desse universo, tomados em si mesmos, ou em seus contatos com a cultura leifada, recortam-se

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