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Revista Jurídica dos

Formandos em Direito
da Universidade Católica
do Salvador

2007.2
Universidade Católica do Salvador

Reitor
José Carlos Almeida

Faculdade de Direito

Diretor
Thomas Bacellar da Silva

Revista Jurídica de Formandos 2007.2

Coordenação Editorial

Daniel Soeiro Freitas


Oacir Silva Mascarenhas
Ticiano Alves e Silva
Verena Aguiar Silveira
Revista Jurídica dos
Formandos em Direito
da Universidade Católica
do Salvador

2007.2

Universidade Católica do Salvador


Todas as idéias constantes nos artigos são de
inteira responsabilidade dos seus autores

É vedada a reprodução, parcial ou total, sem a


citação da fonte.

Coordenação Editorial
Daniel Soeiro Freitas
Oacir Silva Mascarenhas
Ticiano Alves e Silva
Verena Aguiar Silveira

Conselho Editorial
Antonio Adonias Aguiar Bastos
Carlos Martheo Guanaes Gomes
Nágila Maria Sales Brito
Rita Simões Bonelli

UCSAL. Sistema de Bibliotecas. Setor de Cadastramento.

R449 Revista Jurídica da Faculdade de Direito da Universidade


Católica do Salvador. Organização de Daniel Soeiro
Freitas, Oacir Silva Mascarenhas, Ticiano Alves e
Silva e Verena Aguiar Silveira– v. 1, n. 1. Salvador:
UCSal, 2008.

Semestral

Revista dos formandos do Curso de Direito 2007.2.

1. Direito. I. Universidade Católica do Salvador.


Faculdade de Direito.
CDU 34(05)
Agradecimentos
A realização desse projeto não teria sido possível sem
o relevante apoio de:

José Gomes Brito


Nágila Maria Sales Brito
Maria Laura Britto
Luiz Viana Queiroz
José Américo Silva Fontes
Orlando Kalil Filho
Antônio José Marques Neto
Graciliano Bomfim
Eurípedes Brito Cunha Júnior
Cláudia Viana
Hélio José Neves da Rocha
Christianne Gurgel
Marco Valério Viana Freire
Anna Carla Fracalossi
Neuza Farias
Diogo Guanabara
Benício Boida de Andrade Júnior
Luiz Vasconcelos Júnior
Cibele Azevedo (in memoriam)
SUMÁRIO

MENSAGEM DA COORDENAÇÃO EDITORIAL ......................................... 11

APRESENTAÇÃO ................................................................................................ 15

CONVIDADOS
O NOVO REGIME DA ALIENAÇÃO DE BENS DO EXECUTADO
Alexandre Freitas Câmara ................................................................................. 19

ADVOGADOS E JUÍZES: HARMONIA OU GUERRA?


André Marinho Mendonça ................................................................................ 29

A LEI INCONSTITUCIONAL E O PODER EXECUTIVO NO MARCO DO


ESTADO CONSTITUCIONAL DE DIREITO
André Ramos Tavares ........................................................................................ 36

A SENTENÇA CONSTITUTIVA COMO TÍTULO EXECUTIVO


Fredie Didier Jr. ................................................................................................... 52

AS DIMENSÕES DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA: CONSTRUIN-


DO UMA COMPREENSÃO JURÍDICO-CONSTITUCIONAL NECESSÁ-
RIA E POSSÍVEL
Ingo Wolfgang Sarlet ......................................................................................... 68

ALGUMAS INCONGRUÊNCIAS DECORRENTES DO ART. 60, PARÁ-


GRAFO ÚNICO, DA LEI Nº. 9.099/95, COM A REDAÇÃO ATRIBUÍDA
PELA LEI Nº. 11.313/06.
João Daniel Jacobina Brandão de Carvalho ................................................... 105

DIFERENTES, MAS IGUAIS: O RECONHECIMENTO JURÍDICO DAS RE-


LAÇÕES HOMOAFETIVAS NO BRASIL
Luís Roberto Barroso .......................................................................................... 110

BUSCA DA VERDADE PROCESSUAL E TEORIA DINÂMICA DO ÔNUS


DA PROVA: BREVES E SINGELAS CONSIDERAÇÕES.
Luiz Alberto Ferreira de Vasconcelos Júnior ................................................ 146

O DIREITO À HOMOAFETIVIDADE
Maria Berenice Dias ............................................................................................ 155
O CONCEITO DE DIREITO - UMA INTRODUÇÃO CRÍTICA
Paulo Queiroz ...................................................................................................... 183

JUDICIÁRIO: ALGUMAS REFLEXÕES


Pedro Milton de Brito ......................................................................................... 193

ANOTAÇÕES SOBRE PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO COMO UM DOS


FUNDAMENTOS DO PROCESSO CIVIL CONTEMPORÂNEO
Teresa Arruda Alvim Wambier ....................................................................... 197

CORPO DOCENTE
BREVES CONSIDERAÇÕES ACERCA DA PENSÃO POR MORTE NO RGPS
Anna Carla M. Fracalossi ................................................................................... 209

O RECONHECIMENTO DA DÍVIDA E A SATISFAÇÃO EM PRES-


TAÇÕES: UM ESTUDO SOBRE O ART. 745-A, DO CPC.
Antonio Adonias Aguiar Bastos ................................................................. 215

A OBRIGAÇÃO DE FAZER OU NÃO FAZER CONTRA A FAZENDA


PÚBLICA
Cezar Santos ......................................................................................................... 233

DIREITOS TRABALHISTAS E A DIGNIDADE DO TRABALHADOR


Christianne Gurgel ............................................................................................. 236

REGIME JURÍDICO DOS CONTRATOS ELETRÔNICOS NO BRASIL


Eurípedes Brito Cunha Júnior ........................................................................... 239

ENSAIO SOBRE O MOMENTO DO INTERROGATÓRIO NO PROCESSO


PENAL
José Gomes Brito ................................................................................................. 275

FOCO DISTORCIDO NA ANENCEFALIA: UMA QUESTÃO DA BIOÉTICA


E DO BIODIREITO
Nágila Maria Sales Brito .................................................................................... 281

CORPO DISCENTE - FORMANDOS


REGIME DISCIPLINAR DIFERENCIADO: SOLUÇÃO OU DISCURSO
PALIATIVO PARA O PROBLEMA DA EXECUÇÃO PENAL?
Igor Raphael de Novaes Santos ........................................................................ 303

A RESPONSABILIDADE DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA PELOS


DÉBITOS TRABALHISTAS E A LEI DE LICITAÇÕES. INTERPRETANDO
O § 1º DO ART. 71 DA LEI 8.666/93
Rodrigo Tourinho Dantas .................................................................................. 315
CORPO DISCENTE - GRADUANDOS
A CRISE ONTOLÓGICA DO ARTIGO 5º, CAPUT, DA CARTA CIDADÃ
DE 1988
Carlos Alberto José Barbosa Coutinho .......................................................... 325

A REPERCUSSÃO GERAL DE QUESTÃO CONSTITUCIONAL COMO


PRESSUPOSTO PRELIMINAR DE ADMISSIBILIDADE DO RECURSO
EXTRAORDINÁRIO
Marcel Santos Mutim .......................................................................................... 337

ASPECTOS POLÊMICOS DO TRATAMENTO ESPECIAL ÀS MICRO E


PEQUENAS EMPRESAS NAS AQUISIÇÕES PÚBLICAS (LEI
COMPLEMENTAR Nº 123/2006 E DECRETO FEDERAL Nº 6.204/2007) -
COMPROVAÇÃO DE REGULARIDADE FISCAL, EMPATE FICTO E O
PRINCÍPIO DA ISONOMIA.
Janilde Silva Cruz ................................................................................................ 351

SÚMULA DE EFEITO VINCULANTE E ERRO JUDICIÁRIO:


INDENIZAÇÃO EM VIRTUDE DA SUA NÃO APLICAÇÃO
Ana Paula Fernandes Neves .............................................................................. 360

SOBERANIA POPULAR: VIDA, SUPERAÇÃO E DIREITO


Ricardo Gonçalves dos Santos Júnior .............................................................. 370

A FALÊNCIA DAS TEORIAS JUSTIFICACIONISTAS DA PENA FACE ÀS


CRÍTICAS ABOLICIONISTAS
Gleison Soares ...................................................................................................... 382

DA INCONSTITUCIONALIDADE DO REGIME DISCIPLINAR


DIFERENCIADO
Igor Souza Marques ............................................................................................ 394

A SÚMULA VINCULANTE CONFORME ESTABELECIDA NA EMENDA


CONSTITUCIONAL N°45 E SUAS CONSEQUÊNCIAS JURÍDICAS
Érica Rios de Carvalho ....................................................................................... 408
MENSAGEM DA COORDENAÇÃO EDITORIAL

CARTA DOS EDITORES

Só a luta dá sentido à vida. A vitória ou a derrota está nas mãos dos


Deuses. Por isso lute! Foi com este ditado zulu em mente que, já tarde, nos
derradeiros dias do mês de julho de 2007, decidimos, de uma vez por todas,
dar continuidade ao trabalho dos formandos de 2006.2: lançar a Revista
Jurídica dos Formandos em Direito da UCSAL 2007.2.

É certo que a vontade de fazer a Revista não era nova. A idéia nos
perseguia há algum tempo, com a força que têm as idéias que na verdade
são um sonho. Mas colocá-la em prática dependia de numerosos fatores
(projetos pessoais, dificuldades financeiras, apoio da própria Universida-
de Católica, disposição da comunidade acadêmica (corpo docente e dis-
cente, que se diga) e, como não podia deixar de ser, tempo). A certa altura,
chegamos à conclusão que deveríamos logo pôr em prática a idéia. Afinal,
como já disse o poeta Antonio Machado, “caminante, no hay camino,/se
hace camino al andar”.

Tendo como principal propósito incentivar a produção acadêmica,


tão escassa, que se grite!, tratamos logo de lançar o Concurso de Artigos da
Revista, com duas categorias, “formandos” (agora já bacharéis) e
“graduandos”. Ao mesmo tempo, para julgar os trabalhados inscritos, for-
mamos um Conselho Editorial com nomes de peso: Nágila Maria Sales
Brito, Rita Simões Bonelli, Antonio Adonias Aguiar Bastos e Carlos Martheo
Guanaes Gomes. A todos estes nossos queridos e inteligentes mestres, com-
prometidos com a produção de conhecimento, nosso especial obrigado e
eterna gratidão. Sem vocês, isso que se tem em mãos não existiria.
Sem perder tempo – que era o ingrediente que menos tínhamos depois
de dinheiro – convidamos expoentes das letras jurídicas nacionais para
colaborar com a Revista, bem como jovens talentos que prometem despontar
mais dia menos dia. A disposição em ajudar a concretizar a Revista foi tama-
nha que da seção “Convidados” quase que dá para fazer uma antologia
jurídica. Somam-se quase duzentas páginas, enviadas de diversos estados
brasileiros. Do Rio de Janeiro, colaboraram Alexandre Freitas Câmara e Luís
Roberto Barroso. Do Paraná, Teresa Arruda Alvim Wambier. De São Paulo,
André Ramos Tavares. De Rio Grande do Sul, Ingo Wolfgang Sarlet e Maria
Berenice Dias. De Brasília, o baiano e ex-professor da UCSAL, Paulo de Sou-
za Queiroz. Da Bahia, finalmente, Fredie Didier Jr. e os jovens talentos André
Marinho, Luiz Vasconcelos Jr. e João Daniel Brandão de Carvalho. A todos
eles, também, nosso muito obrigado por acreditar.

Enquanto isso, íamos, inicialmente meio sem jeito, depois já sem


maiores cerimônias, passando o famoso Livro de Ouro entre os professo-
res, em busca de qualquer colaboração que pudesse ser feita. As dificulda-
des financeiras da Revista a certa altura foram tão grandes que chegamos
a pensar somente numa Revista virtual. Com a ajuda de mais alguns pou-
cos patrocinadores, conseguimos, enfim, numerário bastante para poder
imprimir a Revista. Respiramos aliviados e da tristeza passou-se à euforia!

Selecionados os artigos do corpo discente, tanto dos formandos como


dos graduandos, e recebidos os artigos do corpo docente, era hora de fe-
char a Revista para a futura diagramação e a tão esperada impressão.
Foram, assim, criadas três seções: “Convidados”, como já mencionado;
“Corpo Docente”, formada também por convidados, mas na qualidade de
professores da UCSAL; “Corpo Discente”, subdividida em “Formandos” e
“Graduandos”, com artigos inscritos no Concurso e com muita dificulda-
de selecionados.

Impõem-se, derradeiramente, o agradecimento a todos os professo-


res da Faculdade de Direito que colaboraram com a Revista, especialmente
ao Prof. José Gomes Brito, humanista – como, aliás, devem ser todos da área
jurídica – mestre na acepção verdadeira da palavra, grande incentivador
do estudo e da pesquisa na UCSAL. Nosso primeiro e mais incansável
aliado! Muito obrigado.
É chegado, pois, o momento de oferecermos à comunidade acadêmi-
ca a Revista Jurídica dos Formandos em Direito da Universidade Católica
do Salvador 2007.2, com a confiança de termos cumprido a nosso missão
de dar seguimento ao projeto implantado pelos colegas que nos antecede-
ram, e com a esperança que, nos semestres subseqüentes, seja dada conti-
nuidade a tão relevante empreitada. Estamos todos às ordens no que for
possível ajudar.

E, finalmente, não esqueçam, só a luta dá sentido à vida. A vitória é


incerta! Mas, apostando na luta, não há porque temer a derrota.

Abraço forte e boa leitura.

DANIEL SOEIRO FREITAS


danielsoeiro@oi.com.br

OACIR SILVA MASCARENHAS


oacirsm@yahoo.com.br

TICIANO ALVES E SILVA


tici.alves@gmail.com

VERENA AGUIAR SILVEIRA


verenasilveira@hotmail.com

Bacharéis em Direito pela Universidade Católica de Salvador 2007.2


APRESENTAÇÃO

Os formandos da Faculdade de Direito da Universidade Católica do


Salvador integram mais uma turma que produz uma Revista Jurídica. Com
humildade e orgulho, aceitei o honroso encargo de apresentar à comunida-
de jurídica baiana a Revista Jurídica dos Formandos de 2007.2.
Inquestionavelmente, conferir-me a atribuição de apresentar este trabalho
afigura-se extremamente relevante na medida em que boa parte da turma
esteve sob a minha orientação, na condição de Professor de Direito Proces-
sual Penal.

Nunca fez tanto sentido o adágio popular “fechar com chave de


ouro”. Em um curso eminentemente intelectual como o de Direito, nada
mais apropriado do que produzir uma Revista Jurídica.

Apresentar esta obra é corroborar o valor da turma que ora se forma,


testemunho da dedicação em produzir um trabalho de qualidade,
enaltecendo o nome da Faculdade de Direito da Universidade Católica do
Salvador, que, com isso, permanece atuando no cenário da produção cien-
tífica.

O valor do livro foi muito bem definido pelo padre Antônio Vieira,
ao vaticinar que um livro é um mudo que fala, um surdo que responde, um cego
que guia, um morto que vive.

A concretização deste trabalho representa muito mais do que seu


conteúdo jurídico enceta; representa a aliança entre cada um dos colegas,
amarrando-os eternamente uns aos outros. Ainda que o tempo encarregue-
se de distanciar alguns, além do álbum de fotografia para aplacar a sauda-
de, este livro preservará a chama da amizade que esteve acesa ao longo do
período acadêmico que agora se encerra.

Enfim, apresentar a Revista dos Formandos de 2007.2 é exortar o


compromisso com a produção cultural e reconhecer os laços fraternos que
une todos desta Turma.

Salvador, 14 de fevereiro de 2008

JOSÉ GOMES BRITO


Professor de Processo Penal da Universidade Católica do Salvador -
Procurador de Justiça do Ministério Público do Estado da Bahia
CONVIDADOS
CONVIDADOS 19
Alexandre Freitas Câmara

O NOVO REGIME DA ALIENAÇÃO DE BENS DO


EXECUTADO

Alexandre Freitas Câmara


Advogado. Professor de Direito Processual Civil
da EMERJ (Escola da Magistratura do Estado
do Rio de Janeiro). Membro do IBDP e do Insti-
tuto Ibero-Americano de Direito Processual.

I – INTRODUÇÃO

As reformas por que passou o Código de Processo Civil mais re-


centemente atingiram, de forma bastante profunda, o modelo da execução
civil brasileira. A execução de sentença passou a seguir um novo modelo
teórico, abandonando-se o paradigma liebmaniano e se passando a dela
tratar como se mera fase complementar do mesmo processo em que o título
executivo judicial é produzido.1 Já a execução de título extrajudicial está,
agora, sujeita a regras novas, que modificaram profundamente alguns
procedimentos executivos. Dentre estes, sem qualquer dúvida, a mais ra-
dical modificação foi a sofrida pela execução por quantia certa contra
devedor solvente.
As alterações perpassam todo o procedimento executivo. Desde a
fase postulatória, com a possibilidade de o exeqüente indicar, desde logo,
os bens que pretende ver penhorados, passando pela penhora (tendo sido
modificada a gradação legal dos bens penhoráveis), até a expropriação
dos bens penhorados e o pagamento do crédito exeqüendo, todas as fases
do procedimento executivo sofreram, em maior ou menor medida, alguma
alteração.
O objetivo desta exposição é analisar o novo regime de alienação
de bens do executado, instaurado pela reforma operada no CPC pela Lei
nº 11.382/2006. Tratar-se-á, portanto, das novas regras acerca da adjudi-
cação, da alienação por iniciativa particular, da alienação em hasta públi-
ca e do “usufruto de móvel ou imóvel”.

1
Sobre o tema, seja permitido remeter a Alexandre Freitas Câmara, A nova execução de
sentença. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 4ª ed., 2007, passim.
20 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

Registro, desde logo, e para maior clareza da exposição, que embo-


ra localizadas no Livro II do Código de Processo Civil, as disposições acer-
ca da alienação dos bens penhorados não são aplicáveis somente à execu-
ção de títulos extrajudiciais, mas também à execução de sentenças, na for-
ma do disposto no art. 475 – R do CPC, que determina a aplicação subsidi-
ária, a este módulo processual, das disposições contidas no segundo livro
do Código de Processo Civil.

II – A MODIFICAÇÃO DA ORDEM DE UTILIZAÇÃO DOS MEIOS DE


EXPROPRIAÇÃO DE BENS PENHORADOS

Nos termos do que dispõe o art. 646 do CPC, “a execução por


quantia certa tem por objeto expropriar bens do devedor, a fim de satisfazer
o direito do credor”. Não se deve, porém, interpretar este dispositivo como
se a expropriação de bens do executado fosse o objeto do módulo processu-
al executivo. Objeto do processo, aí, é a pretensão executiva (assim entendi-
da a intenção do exeqüente de ver o interesse do executado submeter-se ao
seu). O art. 646 do CPC deve ser compreendido no sentido de que a execu-
ção por quantia certa expropria bens do executado com o propósito de
satisfazer o crédito exeqüendo.
Antes da reforma operada pela Lei nº 11.382/2006, a expropria-
ção de bens do executado se realizava, preferentemente, em hasta pública.
Admitia-se, em caráter excepcionalíssimo, a alienação de imóvel penhora-
do por iniciativa particular, na forma do agora revogado art. 700 do CPC.
Este, porém, era dispositivo de praticamente nenhuma aplicação prática.
Basta dizer que o único aresto em que o STJ aplicou o art. 700 do CPC tratou
de um caso em que houve hasta pública, não se nomeando corretor para
alienar o imóvel, e aquele dispositivo incidiu apenas por analogia.2
Excepcionalmente, admitia-se a expropriação por adjudicação ou,
por fim, através do “usufruto de imóvel ou empresa”. Este sistema, como se
pôde observar ao longo de mais de três décadas de aplicação do regime
original do CPC, não funcionava bem.
Em primeiro lugar, merece registro o fato de que a alienação em
hasta pública raramente dava bons resultados. Isto porque em primeira
hasta pública, quando não se admitia lanço inferior à avaliação, raramente
se conseguia expropriar o bem penhorado. A arrematação – quando ocor-
ria – se dava normalmente na segunda hasta pública, por preço inferior à

2
STJ, REsp 557467/SC, rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito, j. em 01.06.2004.
CONVIDADOS 21
Alexandre Freitas Câmara

avaliação que não fosse vil (mas que, normalmente, ficava muito próximo
desse limite).3
O ponto não me permite deixar de narrar história bastante curiosa,
ocorrida alguns anos atrás. Ministrava eu uma aula sobre a execução por
quantia certa e, então, explicava aos meus alunos que normalmente não
aparece ninguém na primeira hasta pública, mas apenas na segunda, pe-
las razões já expostas. Uma aluna, então, perguntou-me por que não se
fazia a segunda hasta pública antes da primeira. Confesso que não foi
muito fácil fazê-la entender que se a segunda hasta pública se realizasse
antes da primeira, não seria a segunda…
O fato é que, no regime original do CPC a expropriação em hasta
pública jamais foi capaz de produzir os bons resultados que dela esperava
o legislador.
Quando se encerrava a praça sem lançador, na forma do art. 714
do CPC, permitia-se ao exeqüente (ou ao credor hipotecário do executado)
requerer a adjudicação do bem penhorado, pelo preço da avaliação. Sem-
pre tive dificuldade para entender o que levaria alguém a requerer a adju-
dicação de um bem. Afinal, todos os que podiam adjudicar estavam, tam-
bém, legitimados a arrematar. Ora, por que adjudicar pelo preço da avalia-
ção se a mesma pessoa poderia arrematar por preço inferior (desde que não
fosse vil)?
Por fim, admitia-se a expropriação dos frutos de um imóvel ou de
uma empresa, através dessa figura pouquíssimo utilizada a que se deu o
nome de “usufruto de imóvel ou empresa”. Este era instituto raramente
utilizado, como se pode ver pela jurisprudência do STJ. Em breve pesquisa
que efetivei na página eletrônica de jurisprudência daquela Alta Corte,
encontrei apenas um caso em que essa modalidade de expropriação de
frutos foi mencionada.4
A Lei nº 11.382/2006 alterou, como dito, de forma bastante subs-
tancial esse regime. Agora, como se vê pela nova redação do art. 647, a
preferência da lei é pela adjudicação. Caso esta não ocorra, dar-se-á a ex-
propriação através da alienação por iniciativa particular. Como terceira
alternativa, admite-se a expropriação em hasta pública. Por fim, tem-se a
expropriação de frutos de bens móveis ou imóveis (no assim chamado
“usufruto de bem móvel ou imóvel”). Passo, então, a examinar essas novas
disposições do CPC.

3
O STJ tem precedentes admitindo, por exemplo, que se considere válida expropria-
ção feita por preço inferior à metade da avaliação. Confira-se, por exemplo, STJ
REsp 704006/ES, rel. Min. Hélio Quaglia Barbosa, j. em 13.02.2007.
4
STJ, REsp 419151/SP, rel. Min. Luiz Fux, j. em 05.11.2002.
22 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

III – A ADJUDICAÇÃO

Adjudicação, como sabido, é a utilização direta do bem penhora-


do na satisfação do crédito exeqüendo. Para usar terminologia empregada
em boa doutrina, na adjudicação não se faz a expropriação liquidativa,
mas tão-somente a expropriação satisfativa. Como ensina Garbagnati,5
“pode acontecer que o bem penhorado, em vez de ser coativamente aliena-
do a um terceiro, venha diretamente transferido à propriedade do exeqüente;
também aqui (…) a sanção expropriativa se atua em um único momento e o
provimento jurisdicional de assinação forçada se apresenta como um pro-
vimento de expropriação satisfativa, concretizando uma forma de datio in
solutum coativa”.
Admite o CPC, então, que o exeqüente requeira a adjudicação do
bem penhorado, oferecendo por ele preço não inferior ao da avaliação.
Agora, com a adjudicação podendo ser requerida antes de se levar o bem a
hasta pública, esta modalidade de expropriação torna-se provida de senti-
do. É que ao exeqüente pode interessar tanto ficar com o bem que não lhe
pareça vantajoso correr o risco de deixá-lo ir à hasta pública, onde outras
pessoas podem oferecer lanços por ele. Além disso, evitam-se as despesas
inerentes à realização da hasta pública, como o custo da publicação dos
editais e a comissão do leiloeiro.
É importante, ainda, observar que com a redação dada ao art. 685
– A do CPC, desaparece qualquer dúvida acerca da possibilidade de adju-
dicação de bens móveis, o que era – antes da reforma – objeto de profunda
divergência doutrinária.6
Legitimados a adjudicar são, além do exeqüente, o credor hipote-
cário, pignoratício ou anticrético, outros credores que tenham obtido a pe-
nhora do mesmo bem, além do cônjuge, descendentes e ascendentes do
executado. Além disso, e apesar do silêncio da lei, tenho para mim que
também o companheiro, que viva com o executado em união estável, está
legitimado a adjudicar. O legislador, lamentavelmente, mostrou mais uma
vez seu desprezo pela união estável e esqueceu-se dela por completo.
A atribuição de legitimidade para adjudicar a pessoas da família
do executado permitiu à Lei nº 11.382/2006 a abolição do instituto da
remição de bens, inteiramente absorvido pela adjudicação.

5
Edoardo Garbagnati, Il concorso di creditori nel processo di espropriazione. Milão: Giuffrè,
1983, pp. 14-15.
6
Eu mesmo, antes da Lei nº 11.382/2006, sempre me pronunciei pela impossibilidade
de adjudicação de bens móveis, na esteira do que era sustentado por José Carlos
Barbosa Moreira. Agora, porém, aquela opinião perdeu completamente seu sentido.
CONVIDADOS 23
Alexandre Freitas Câmara

No caso de se ter penhorado as quotas, pertencentes ao executa-


do, de uma sociedade, permite-se também que os sócios não-executados
requeiram a adjudicação.
A adjudicação se faz pelo preço da avaliação. Caso haja, porém,
mais de um interessado, realizar-se-á entre eles uma licitação, e o bem será
adjudicado ao que fizer a maior oferta. Em igualdade de condições, terá
preferência sobre os demais o cônjuge (ou companheiro). Depois dele, os
descendentes e, em seguida, os ascendentes. Outros legitimados não têm
preferência, o que levará à necessidade de que – em caso de ofertas iguais
– se prossiga com a licitação até que alguém ofereça preço maior.
Caso a adjudicação seja feita por quem não é credor, este terá de
depositar o preço pelo qual adquire o bem, e nesse caso haverá a duplicidade
de expropriações; a expropriação liquidativa, do bem penhorado, e a ex-
propriação satisfativa, do dinheiro, que será entregue ao exeqüente. Sen-
do a adjudicação deferida a um credor, este não terá de depositar o dinhei-
ro, mas apenas exibirá seu crédito. Caso este seja inferior ao valor do bem,
será preciso depositar a diferença, que será entregue ao executado. Caso
seja superior, a execução prosseguirá pelo restante.
Questão interessante é a de saber como se procede quando o
adjudicante é credor mas não é o próprio exeqüente. Neste caso, parece-
me que será necessário verificar qual dos dois, o destinatário da adjudica-
ção ou o exeqüente, tem preferência no recebimento, por aplicação do prin-
cípio prior tempore, potior iure. Caso a preferência seja do credor que adju-
dica, bastará a ele exibir seu crédito. Já se a preferência for do exeqüente, o
credor que adjudica terá de depositar o dinheiro, sob pena de se violar sua
garantia de que receberá em primeiro lugar.
Decididas eventuais questões, o juiz determinará a imediata
lavratura do auto de adjudicação. A lavratura será imediata, registre-se,
por ter desaparecido – como dito anteriormente – a remição de bens, não
havendo mais a necessidade de aguardar vinte e quatro horas como ante-
riormente.
Lavrado e assinado o auto de adjudicação, esta se considera per-
feita e acabada, na forma do art. 685 – B, expedindo-se a respectiva carta
de adjudicação se o bem for imóvel, ou o mandado de entrega da coisa ao
adjudicante se o bem for móvel. A carta de adjudicação, que conterá os
elementos enumerados no parágrafo único do art. 685 – B, será documen-
to hábil à prática de atos registrais. No caso de ser móvel o bem, o manda-
do permitirá a busca e apreensão da coisa adjudicada independentemen-
te de ajuizamento de demanda autônoma.
24 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

Caso ninguém requeira a adjudicação, passa-se à segunda alter-


nativa do legislador, de que se passa a tratar.

IV – A ALIENAÇÃO POR INICIATIVA PARTICULAR

Estabelece o art. 685 – C do Código de Processo Civil que se não


for realizada a adjudicação dos bens penhorados, o exeqüente poderá
requerer sejam eles alienados por sua própria iniciativa ou por intermédio
de corretor credenciado perante a autoridade judiciária. Trata-se do insti-
tuto que a própria lei processual chamou de “alienação por iniciativa
particular”. Não se trata de figura sem precedentes no direito comparado.
No direito italiano, por exemplo, a expropriação de bens móveis se faz,
preferentemente, sem realização de hasta pública.7
É preciso ter claro que, no direito processual civil brasileiro, a
alienação por iniciativa particular só pode se dar a requerimento do
exeqüente. Este poderá pleitear ao juiz que o autorize a, ele próprio, alie-
nar o bem, ou que nomeie corretor credenciado para fazê-lo.
Caberá ao juiz da execução, então, fixar o prazo em que a aliena-
ção deve ser efetivada, a forma de publicidade, o preço mínimo, as condi-
ções de pagamento e as garantias, assim como – se for o caso – a comissão
do corretor nomeado.
Questão interessante diz respeito a se saber se será possível a
alienação por iniciativa particular por preço inferior ao da avaliação. É
que no texto do art. 685 – C do Código há uma expressa referência ao art.
680, que trata da avaliação. A meu ver, a única interpretação possível é no
sentido de que não se admitirá alienação por iniciativa particular por
preço inferior à avaliação.8
A alienação por iniciativa particular se formaliza por termo nos
autos, expedindo-se carta de alienação do imóvel (para registro imobiliá-
rio), ou mandado de entrega da coisa móvel ao adquirente.
A alienação por iniciativa particular tem, a meu ver, uma grande
vantagem sobre a arrematação em hasta pública. É que, como já visto,
raramente alguém arremata em hasta pública um bem pelo seu real valor.

7
Sobre o ponto, Francesco Cordopatri, “Le nuove norme sull’esecuzione forzata”, in
Rivista di diritto processuale, 2005, n. 3, p. 768.
8
No mesmo sentido, Luiz Rodrigues Wambier, Teresa Arruda Alvim Wambier e José
Miguel Garcia Medina, Breves comentários à nova sistemática processual civil, vol. 3. São
Paulo: RT, 2007, p. 156, com a ressalva (feita na p. 157), de que seria possível a
alienação por preço inferior à avaliação se com isso concordar o executado, em
opinião a que expressamente manifesto minha adesão.
CONVIDADOS 25
Alexandre Freitas Câmara

Na hasta pública o que se busca, normalmente, é uma “pechincha”. Já na


alienação por iniciativa particular as chances de se obter preço maior pelo
bem aumentam, o que permite que se atendam aos interesses do exeqüente
sem que se descuide do princípio do menor sacrifício possível do executa-
do, insculpido no art. 620 do Código de Processo Civil.
Estabelece o § 3º do art. 685 – C que os tribunais poderão expedir
provimentos detalhando o procedimento da alienação por iniciativa parti-
cular, inclusive com a utilização de meios eletrônicos, e dispondo sobre o
credenciamento dos corretores, os quais deverão ser profissionais com pelo
menos cinco anos de exercício profissional. Penso que, enquanto não hou-
ver essa regulamentação, deve-se reconhecer ao juiz o poder de nomear
corretores de sua confiança pessoal, respeitado o tempo mínimo de experi-
ência profissional exigido. O que não se pode admitir é que eventual inér-
cia administrativa do tribunal inviabilize a incidência da lei processual.

V – A ALIENAÇÃO EM HASTA PÚBLICA

Caso não se faça a adjudicação ou a alienação por iniciativa par-


ticular, será o bem penhorado levado a hasta pública. Esta, em linhas
gerais, continua a realizar-se como antes da reforma, ressalvadas algu-
mas alterações legislativas de pequena monta (como, e.g., a modificação
do texto do art. 686, IV, do CPC, que agora exige que do edital conste o local
da realização do leilão, mas não o da praça, que sempre se faz no fórum).
Não se pode, porém, deixar de fazer referência ao novo art. 689 – A do
CPC, que permite a realização da hasta pública eletrônica. Autoriza a lei
que, a requerimento do exeqüente, a hasta pública se faça pela Internet, com o
uso de páginas virtuais criadas pelo próprio tribunal ou por entidades,
públicas ou privadas, em convênio com eles. É de se lamentar, apenas, a
exigência de requerimento do exeqüente para que se possa usar o meio
eletrônico, ainda mais se for considerada a vigência da Lei 11.419/2006,
(que permite que todos os atos processuais sejam eletrônicos).
Inegavelmente, porém, a hasta pública eletrônica tem uma série
de vantagens. Permite que lanços sejam feitos de qualquer lugar do mun-
do; admite o pagamento por meios usualmente não empregados nesses
casos, como o cartão de crédito; amplia o tempo durante o qual o bem
penhorado é oferecido aos interessados.
Estabelece o parágrafo único do art. 689 – A que os Tribunais de
Justiça e o Conselho da Justiça Federal, no âmbito de suas competências,
regulamentarão essa modalidade de hasta pública. Enquanto isso não
ocorrer, será impossível a realização da hasta pública eletrônica.
26 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

O arrematante pagará pelo bem à vista, ou no prazo máximo de


quinze dias (e não mais três dias, como se dava antes da reforma).
No caso de ser imóvel o bem penhorado, pode acontecer de algum
interessado apresentar, antes da realização da praça, oferta para aquisi-
ção do bem com pagamento do preço em parcelas. Nesse caso, não se
admite oferta inferior à avaliação, cabendo ao juiz, por ocasião da praça,
decidir qual oferta prevalecerá. Isto porque é possível imaginar que seja
melhor prevalecer um lanço de oitenta por cento do preço da avaliação à
vista, ou que – em outro caso – seja melhor que prevaleça um lanço igual
ao preço da avaliação para pagamento em parcelas.
Considera-se perfeita a arrematação assim que assinado o auto, o
que se dará imediatamente (já que não se precisa mais esperar pelas vinte
e quatro horas do prazo para a agora inexistente remição do bem). Efetua-
do o depósito ou – no caso de pagamento em parcelas – prestada a garan-
tia, expedir-se-á a carta de arrematação do imóvel ou o mandado de entre-
ga do bem móvel ao arrematante.
É importante observar que aperfeiçoada a arrematação esta pre-
valecerá ainda que, em momento posterior, se julgue procedente o pedido
formulado pelo executado em seus embargos (ou, por força do disposto no
art. 475 – R, na impugnação à execução de sentença). Neste caso, ainda
que sobrevenha declaração de inexistência da obrigação, o bem expropri-
ado pertencerá ao arrematante, e o direito do executado se resolverá em
perdas e danos, devendo o exeqüente indenizá-lo independentemente de
culpa, na forma do art. 694, § 2º, do CPC.
Por fim, deve-se dizer que embora aperfeiçoada a arrematação,
poderá o arrematante dela desistir caso sejam opostos embargos (ou
impugnação) de segunda fase, na forma do que dispõe o art. 746, §1º,
aplicável à execução de sentença por força do tantas vezes citado art. 475
– R. Neste caso, será imediatamente deferido o requerimento do arrematante,
liberando-se desde logo o depósito por ele já efetuado. Caso os embargos
(ou a impugnação) de segunda fase sejam considerados manifestamente
protelatórios, porém, incidirá multa, em favor do arrematante que desis-
tiu, de até vinte por cento sobre o valor do crédito exeqüendo.

V – ALIENAÇÃO POR “USUFRUTO DE BEM MÓVEL OU IMÓVEL”

Admite a lei processual a expropriação dos frutos de um bem


móvel ou imóvel para que, com eles, seja efetuado o pagamento do crédito
exeqüendo. Trata-se de instituto que descende, diretamente, do que antes
da reforma era o “usufruto de imóvel ou empresa”. Mantenho, aqui, a
CONVIDADOS 27
Alexandre Freitas Câmara

crítica que sempre dirigi à nomenclatura adotada na lei. De usufruto esse


instituto nada tem. A se considerar adequada a idéia de que é do direito
civil que se deve extrair o nome desse instituto de direito processual, me-
lhor seria falar-se em anticrese processual. E como a anticrese, esse instituto
sempre foi de raríssima utilização (e assim tende a continuar, ao que me
parece).
A maior novidade promovida pela Lei nº 11.382/2006 foi a auto-
rização para que se expropriem os frutos de bens móveis do executado.
Chama a atenção, também, o fato de que foram expurgadas do texto do
Código de Processo Civil as referências ao “usufruto de empresa”. Isto se
deu, salvo melhor juízo, porque ao legislador teria parecido que o “usu-
fruto de empresa” não faria sentido em um sistema que admite a penhora
de percentual do faturamento da mesma. Assim não é, porém. Com todas
as vênias, a penhora de percentual de faturamento nada mais é do que
penhora de dinheiro, e não se confunde com a penhora do próprio estabe-
lecimento empresarial, que sempre levou ao “usufruto de empresa”.9
Não me parece, porém, que tenha desaparecido a figura do “usu-
fruto de empresa”. A meu ver, ele é possível como “usufruto de bem mó-
vel”. Afinal, só assim fará sentido o disposto no art. 678, parágrafo único,
que mesmo antes da Lei nº 11.382/2006 já mandava aplicar, no caso de
penhora de estabelecimento empresarial, as regras do “usufruto de imó-
vel” e que, agora, são aplicáveis ao “usufruto de bem móvel ou imóvel”.
Além disso, como ensina a boa doutrina do direito empresarial, a empresa
não tem personalidade, mas é objeto de direito.10 Trata-se, pois, de um bem
que, na forma do disposto no art. 83, III, do Código Civil, é bem móvel (já
que se trata, inegavelmente, de um direito pessoal de caráter patrimonial).
Assim, permanece íntegro no direito processual civil brasileiro o “usufru-
to de empresa”, agora regido pelas mesmas disposições de todos os de-
mais “usufrutos processuais”.

VI – CONCLUSÃO

Encerro esta exposição com uma consideração: fui – e continuo a


ser – um crítico da maior parte das reformas por que vem passando o
processo civil brasileiro. Estou convencido de que a maioria delas poderia

9
Como acertadamente afirmou o STJ no acórdão anteriormente citado em a nota de
rodapé nº 4.
10
Sérgio Campinho, O direito de empresa à luz do novo Código Civil. Rio de Janeiro:
Renovar, 2002, p. 9.
28 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

ter sido mais meditada e será, afinal, incapaz de melhorar a qualidade da


prestação jurisdicional de natureza civil. De outro lado, porém, a reforma
operada pela Lei nº 11.382/2006 é, a meu juízo, de excepcional qualidade.
Penso que essa lei foi capaz de melhorar, sobremaneira, o regime da exe-
cução civil brasileira. Não posso deixar de dizer, porém, que antes da
reforma o maior problema da execução civil não era a lei, mas o fato de que
raramente a mesma era cumprida. De nada adiantará trocarmos uma lei
que não se cumpre por outra lei que também não se cumpre. O que me
resta, então, é augurar que a reforma do CPC permita aos profissionais do
processo ver, em curto prazo, a lei processual ser aplicada na prática, para
que a execução se transforme em um instrumento capaz de realizar o di-
reito fundamental do exeqüente à tutela jurisdicional, dando ao titular do
direito precisamente aquilo que ele tem o direito de receber: justiça.
CONVIDADOS 29
André Marinho Mendonça

ADVOGADOS E JUÍZES: HARMONIA OU GUERRA?

André Marinho Mendonça


Bacharel em Direito pela Universidade Federal
da Bahia. Especialista em Direito Processual
Civil pelas Faculdades Jorge Amado em parce-
ria com o Curso Jus Podivm. Assessor da Vice-
Presidência do Superior Tribunal de Justiça.

1. INTRODUÇÃO.

Muitos comentários têm sido feitos, atualmente, a respeito da rela-


ção entre advogados e juízes.
É fato que um precisa do outro para exercer a sua função, de modo
que um não poderia existir sem o outro. Cabe ao advogado representar o
cidadão-jurisdicionado e requerer ao Poder Judiciário a definição para a
controvérsia enfrentada pelo cliente, solução essa que terá a sua viabilida-
de analisada pelo Juiz, representante do Estado na resolução das lides.
No entanto, objetivando uma melhor prestação dos seus serviços,
juízes e advogados têm cometido excessos, tornando esta relação bastante
conflituosa.
O presente artigo abordará passagens dessa conturbada convivên-
cia entre os advogados e os juízes, analisando a legislação vigente e as
recentes decisões a respeito do tema.

2. O ADVOGADO.

Consoante lição do advogado paulista Paulo Lôbo:

Para o Estatuto, advogado é o bacharel em direito, inscrito no


quadro de advogados da OAB, que realiza atividade de
postulação ao Poder Judiciário, como representante judicial
de seus clientes, e atividades de consultoria e assessoria em
matérias jurídicas.1

1
LÔBO, Paulo. Comentários ao Estatuto da Advocacia e da OAB. 4 ed., rev. e atual., São
Paulo: Saraiva, 2007, p. 18.
30 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

A Constituição de 1988, em seu art. 133, consagra a importância do


advogado para a administração da justiça quando estabelece a sua fun-
ção como “indispensável”2.
É, portanto, o advogado o agente responsável por acionar o Poder
Judiciário, defendendo os interesses do seu cliente. Ao contrário do juiz, o
advogado age com parcialidade, respeitando os limites da legislação vi-
gente. Importante a observação do Professor Calmon de Passos, segundo
a qual o interesse do advogado não é pessoal, in verbis:

[...] não tem o advogado, à semelhança do magistrado, no


processo, interesses que lhe sejam próprios. Seu interesse é o
interesse do constituinte, que ele formula e patrocina peran-
te os tribunais de que espera a segurança a que faz jus.3

Toda a atividade do advogado é regulada pela Lei nº 8.906/94,


denominada Estatuto da Advocacia.

3. O JUIZ.

Por sua vez, segundo leciona Moacyr Amaral Santos, o juiz:

[...] é um órgão do Estado, órgão do Poder Judiciário. Exerce


funções específicas do Estado. Assim encarado é um servidor
do Estado, entrando na categoria profissional dos funcioná-
rios públicos, no sentido amplo. Todavia, em razão da rele-
vância das funções que exercem, para as quais se exigem es-
peciais garantias que lhes assegurem a mais completa inde-
pendência, separam-se os juízes do quadro daqueles e se cons-
tituem em categoria de funcionários sui generis.
[...]
Para se investirem no exercício da função jurisprudencial
deverão ser nomeados pelo Estado, e quando organizados
em carreira, como o são os juízes togados vitalícios, gozam
de direitos a acesso ou promoção.4

2
Art. 133, CF. O advogado é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável
por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei.
3
PASSOS, J.J. Calmon de. Advocacia – O direito de recorrer à justiça. Tese n. 11 da VI
Conferência Nacional da Ordem dos Advogados do Brasil, Salvador: Conselho
Federal da OAB, 1976, p. 15.
4
SANTOS, Moacyr Amaral. Primeiras linhas de Direito Processual Civil. 20 ed., rev e
atual., São Paulo: Saraiva, 1998, p. 96.
CONVIDADOS 31
André Marinho Mendonça

O magistrado é o representante do Estado-juiz, aquele responsável


em pôr fim aos litígios que lhe forem levados pelos cidadãos, devidamente
representados pelos seus advogados, consoante apresentado anteriormente.
Os juízes têm como garantias para o exercício das suas funções a
vitaliciedade, a inamovibilidade e a irredutibilidade de vencimentos. Os
magistrados devem agir com imparcialidade para que possam aplicar
corretamente a legislação ao caso concreto, independente de quem sejam
as partes em contenda.
A atividade dos juízes é estabelecida pela Lei Complementar nº 35/
79, a muito comentada LOMAN – Lei Orgânica da Magistratura Nacional.

4. A RELAÇÃO JUIZ-ADVOGADO.

A relação que deve existir entre o juiz e o advogado está disciplina-


da pela Lei nº 8.906/94, que, dentre outras passagens, assim estabelece no
seu art. 6º:

Art. 6º Não há hierarquia nem subordinação entre advoga-


dos, magistrados e membros do Ministério Público, devendo
todos tratar-se com consideração e respeito recíprocos.

O mencionado artigo não dá ensejo a diversas interpretações. O


dispositivo legal é claro ao colocar advogados, magistrados e membros do
Ministério Público no mesmo patamar, inexistindo hierarquia entre eles e
exigindo no trato a consideração e o respeito mútuos.
Entretanto, a mencionada norma, comumente, é esquecida e os juízes,
por deterem o poder de apreciar os pedidos aduzidos pelos advogados,
costumam se colocar num patamar superior. Tanto é assim que Márcio
Martins Moreira fez o seguinte comentário acerca dessa questão:

Os advogados mais antigos são conhecedores dos interminá-


veis lanches da tarde saboreados pelos ínclitos integrantes
do Poder Judiciário, muitas vezes, estes lanches só termina-
vam quando o expediente do dia seguinte começava, salvo,
evidentemente, raras e honrosas exceções que ainda susten-
tam à confiança na Magistratura, este é também um esforço
para tentativa de extinção da enfermidade exclusiva de al-
guns magistrados, no dizer do então Presidente do STF Mi-
nistro Marco Aurélio Mello, publicado no Jornal Folha de
São Paulo de 31.05.2003, enfermidade conhecida como ‘juizite’
que transforma o Juiz de Direito em ‘reizinho’ conforme di-
zer do ilustre Ministro, enfermidade que começa desde o dia
32 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

da sua posse, e que espantosamente se extingue ou no dia da


aposentadoria ou meses após, via de regra curada junto à
‘clínica’ da OAB, onde o paciente vai buscar acolhida e auxí-
lio, seja porque o reinado terminou, seja porque a solidão o
abate. 5

Nos últimos meses, a questão juiz-advogado tomou as páginas dos


principais jornais do país, especialmente depois do julgamento pelo Con-
selho Nacional da Justiça – CNJ do Pedido de Providência nº 1.465, ocor-
rido em 04 de junho de 2007.
A consulta foi feita ao CNJ para que o órgão esclarecesse se o magis-
trado poderia reservar horários específicos para o atendimento dos advo-
gados ou se estaria o juiz obrigado a atender os procuradores das partes
sempre que estes fossem ao seu gabinete.
O Conselheiro Marcus Faver, relator do referido pedido de provi-
dências, exarou decisão na qual concluiu que:

1) NÃO PODE o magistrado reservar período durante o expe-


diente forense para dedicar-se com exclusividade, em seu
gabinete de trabalho, à prolação de despachos, decisões e
sentenças, omitindo-se de receber profissional advogado
quando procurado para tratar de assunto relacionado a inte-
resse de cliente. A condicionante de só atender ao advogado
quando se tratar de medida que reclame providência urgente
apenas pode ser invocada pelo juiz em situação excepcionais,
fora do horário normal de funcionamento do foro, e jamais
pode estar limitada pelo juízo de conveniência do Escrivão
ou Diretor de Secretaria, máxime em uma Vara Criminal,
onde o bem jurídico maior da liberdade está em discussão.
2) O magistrado é SEMPRE OBRIGADO a receber advogados
em seu gabinete de trabalho, a qualquer momento durante o
expediente forense, independentemente da urgência do as-
sunto, e independentemente de estar em meio à elaboração
de qualquer despacho, decisão ou sentença, ou mesmo em
meio a uma reunião de trabalho. Essa obrigação se constitui
em um dever funcional previsto na LOMAN e a sua não-
observância poderá implicar responsabilização administra-
tiva. (destaques do original).6

5
MOREIRA, Márcio Martins. Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil Anotado. São
Paulo: Ícone, 2005, p. 31.
6
CONSULTOR JURÍDICO. Palavra do Conselho. Disponível em: <http://
conjur.estadao.com.br/static/text/58364,1#null>. Acesso em: 15 set. 2007.
CONVIDADOS 33
André Marinho Mendonça

A referida decisão causou a grande polêmica no meio jurídico e


prontamente magistrados e advogados saíram em defesa dos interesses
das respectivas classes.
Em recente decisum, o Min. Francisco Peçanha Martins do STJ tam-
bém enfrentou a celeuma. A Associação dos Advogados de São Paulo
impetrou mandado de segurança visando a suspender a Ordem Interna nº
1, de 07.05.2007, da Min. Nancy Andrighi do STJ, que disciplina o proce-
dimento de marcação prévia de audiência por parte de advogados para
tratar de processos sob a relatoria da Ministra.7
O eminente ministro baiano deferiu a liminar pleiteada para sus-
pender a eficácia da referida ordem interna até o julgamento do mandamus,
entendendo que ela feria as normas vigentes, em especial o Estatuto da
Advocacia, como se verifica no trecho a seguir:

O Estatuto da Advocacia e da Ordem dos Advogados do Bra-


sil, regulamentando o art. 133 da CF, garantiu aos advogados
ampla proteção no pleno exercício de suas atividades profis-
sionais, dentre as quais o direito de dirigirem-se “diretamente
aos magistrados nas salas e gabinetes de trabalho, independente-
mente de horário previamente marcado ou outra condição, observan-
do-se a ordem de chegada” (art. 7º, inciso VIII, da Lei n. 8.906/
94).
A estipulação de qualquer medida que condicione, crie em-
baraço ou impeça o acesso do advogado à pessoa do magis-

7
Ordem Interna nº 01, de 07.05.2007.
Art. 1º. As solicitações de audiências serão formuladas por escrito e assinadas por
procurador constituído do interessado.
§ 1º. A petição deverá ser protocolizada na Secretaria do Gabinete, podendo ser
apresentada via fax, ou e-mail.
Art. 2º. Uma vez deferido o pedido, com designação de data para a audiência,
serão cientificados, por telegrama ou por carta registrada, os procuradores da parte
contrária e os procuradores de eventuais interessados já admitidos no processo,
ficando estes convidados a participar da audiência, caso tenham interesse em fazê-
lo.
§ 1º. O aviso de recebimento e/ou cópia de telegrama será juntado aos autos.
Art. 3º. Comparecendo ou não os procuradores dos demais interessados, a audiên-
cia será realizada, em dia e hora marcados, atendendo-se ao pedido formulado.
§ 1º. Os procuradores poderão ser acompanhados pelas partes, que só poderão
manifestar-se por intermédio daqueles.
Art. 4º. Esta Resolução entra em vigor na data de sua publicação.
Brasília-DF, 07 de maio de 2007. MINISTRA NANCY ANDRIGHI
34 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

trado configura ilegalidade, porquanto o advogado é essen-


cial à administração da justiça e deve ter as suas prerrogati-
vas respeitadas.8

Agiu com acerto o Min. Francisco Peçanha Martins, uma vez que
não pode uma ordem interna fazer letra morta ao quanto estabelecido pela
Lei nº 8.906/94, que é de clareza ímpar ao garantir ao advogado o acesso
ao magistrado.9

5. CONCLUSÃO.

Muitos advogados extrapolam o bom senso e acreditam que o ma-


gistrado tem apenas os processos patrocinados por eles para apreciar.
Da mesma forma, todos conhecem a realidade do Poder Judiciário,
abarrotado de processos e conturbado com o excesso de recursos previs-
tos no ordenamento vigente.
A missão dos advogados e dos magistrados, principalmente repre-
sentados pelas suas organizações de classe, é a de encontrar um ponto de
equilíbrio no qual os anseios de todos sejam atendidos.
De nada adianta que o magistrado ocupe todo o dia atendendo
patronos e não redija uma decisão ou sentença. Assim como, um advoga-
do que não tenha acesso ao juiz do processo patrocinado por ele não
consegue exercer da melhor forma o direito de defesa do seu cliente.
A marcação prévia para atendimento dos advogados é uma boa
solução, desde que o magistrado entenda que existirão casos que não po-
dem aguardar uma “vaga” na sua agenda, como por exemplo, uma exclu-
são indevida de uma empresa de um processo licitatório ou a sustação de
um protesto de determinado título já pago.
O disposto no art. 7º, VIII, da Lei nº 8.906/94 consiste em direito
conquistado pelos advogados de que terão a possibilidade de expor ao
magistrado a urgência e as peculiaridades do caso que patrocinam. Não

8
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Corte Especial, MS 13.080/DF, relator: Mi-
nistro Francisco Peçanha Martins, Brasília, DF, 11.09.2007, DJ 18.09.2007. Disponí-
vel em: <https://ww2.stj.gov.br/revistaeletronica/REJ.cgi/
MON?seq=3349733&formato=PDF>. Acesso em: 08 out.2007.
9
No mesmo sentido: SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. 2ª Turma, RMS 15.706/
PA, relator: Ministro João Otávio de Noronha, Brasília, DF, 01.09.2005, DJ 07.11.2005,
p. 166. Disponível em: <http://www.stj.gov.br/SCON/jurisprudencia/
doc.jsp?processo=15706&&b=ACOR&p=true&t=&l=10&i=1>. Acesso em: 29
ago.2007.
CONVIDADOS 35
André Marinho Mendonça

se trata de um benefício. Os magistrados precisam deixar de encarar os


advogados como inimigos, como aqueles que somente atrapalham o seu
cotidiano, e restabelecer o procedimento de cooperação mútua de um com
o outro.
Infelizmente, muitos juízes, especialmente os de primeiro grau de
jurisdição, esquecem da necessidade de cooperação e criam barreiras para
receber advogados nos cartórios que coordenam. Não por outra razão,
costuma-se dizer no meio jurídico que é mais fácil ter uma audiência com
um ministro de Tribunal Superior que com um juiz de uma comarca no
interior de um dos estados brasileiros.
A harmonia nas relações entre magistrado e advogado somente
será alcançada quando ambos forem capazes de entender a importância
da cooperação e aplicá-la no dia-a-dia. Enquanto isso não se realiza, con-
tinuamos vivendo em meio a essa guerra, na esperança de que a paz
volte a reinar.

6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.

CONSULTOR JURÍDICO. Palavra do Conselho. Disponível em: <http://


conjur.estadao.com.br/static/text/58364,1#null>. Acesso em: 15 set. 2007.

LÔBO, Paulo. Comentários ao Estatuto da Advocacia e da OAB. 4 ed., rev. e


atual., São Paulo: Saraiva, 2007.

MOREIRA, Márcio Martins. Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil Ano-


tado. São Paulo: Ícone, 2005, p. 31.

PASSOS, J.J. Calmon de. Advocacia – O direito de recorrer à justiça. Tese n. 11


da VI Conferência Nacional da Ordem dos Advogados do Brasil, Salva-
dor: Conselho Federal da OAB, 1976.

SANTOS, Moacyr Amaral. Primeiras linhas de Direito Processual Civil. 20


ed., rev e atual., São Paulo: Saraiva, 1998.

SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Corte Especial, MS 13.080/DF,


relator: Ministro Francisco Peçanha Martins, Brasília, DF, 11.09.2007, DJ
18.09.2007. Disponível em: <https://ww2.stj.gov.br/revistaeletronica/
REJ.cgi/MON?seq=3349733&formato=PDF>. Acesso em: 08 out.2007.
36 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

A LEI INCONSTITUCIONAL E O
PODER EXECUTIVO NO MARCO DO ESTADO
CONSTITUCIONAL DE DIREITO

André Ramos Tavares


Professor dos Programas de Doutorado e
Mestrado em Direito da PUC/SP; Livre-Docente
em Direito Constitucional pela USP; Diretor do
Instituto Brasileiro de Estudos Constitucionais.

1. CONTEXTUALIZAÇÃO DO TEMA E APROXIMAÇÃO


PRELIMINAR

Para enfrentar a discussão acerca da existência de “poder” na Ad-


ministração capaz de justificar o descumprimento de lei ao argumento de
sua inconstitucionalidade, é imprescindível discorrer sobre o regime jurí-
dico aplicável à lei considerada inconstitucional. Este é, certamente, de
todos, o mais relevante dos elementos definidores daquele “poder”.
Para além desse ponto, cumpre, igualmente, apresentar, ainda que
em breve panorama, os diversos modelos e modalidades de controle da
legitimidade das leis. Quanto a esse aspecto, diversas são as classificações
possíveis (TAVARES, 2003: 205 segts.), tomando-se como critério ou a nature-
za do órgão, ou o objetivo do controle, ou o momento, ou, ainda, o número
de órgãos.
No que tange à natureza do órgão fiscalizador das leis, tal pode ser
de duas ordens: política ou judicial. No Brasil tem-se a possibilidade do
controle tanto judicial quanto político. É o controle de natureza política,
realizado a posteriori, o objeto de análise deste ensaio.
As comissões de Constituição, de cada uma das Casas legislativas
do Congresso Nacional, no Brasil, têm como missão analisar a conformi-
dade de uma proposta de lei para com a Lex Suprema, isto é, realizam o
controle preliminar ou preventivo, anterior a qualquer consubstanciação
da lei no mundo jurídico. Trata-se, pois, de um dos casos brasileiros de
controle político. Tal forma de controle, porém, assim como ocorre com o
modelo francês, principal exemplo dessa modalidade de controle, é deve-
ras inócuo. Não é raro encontrar leis que, mesmo após sua análise e emen-
da por alguma Comissão de Constituição, estejam eivadas de
inconstitucionalidade, algumas até grosseiras e evidentes.
CONVIDADOS 37
André Ramos Tavares

O porquê da usual falência e rechaço ao controle político preventivo


decorre da composição dos órgãos responsáveis pelo controle. No caso bra-
sileiro, a Comissão é composta por parlamentares e, no caso francês, por
antigos presidentes franceses, bem como por membros eleitos pelo Presiden-
te da República, pelo Presidente da Assembléia Nacional e pelo Presidente
do Senado. Dessa forma, não seria equivocado afirmar que, freqüentemente,
os integrantes desses órgãos têm interesses próprios (políticos ou não-jurídi-
cos) na aceitação ou na emenda de determinados projetos de leis, o que, por
si só, já é suficiente para tolher a tão requisitada e necessária imparcialidade
e, assim, inviabilizar uma adequada fiscalização.
Outra forma de contole político, anda preventivo de
constitucionalidade encontra-se no limiar da promulgação da lei, é dizer,
no veto do Chefe do Executivo. Tal está previsto no art. 84, inc. V da Cons-
tituição Federal, e é estendido também aos Chefes do Executivo de todos
os entes da federação, isto é, governadores e prefeitos. De acordo com
SABINO JR. (1976: 262), o veto “é uma arma poderosa destinada à defesa da
própria Carta Maior ou dos interesses legítimos da administração”.
Verifica-se, dessa forma, a existência de dois mecanismos preventi-
vos que visam a dificultar o aparecimento de leis despregadas do quadro
constitucional.
Afirmou-se, anteriormente, que o controle político, além de sua es-
pécie preventiva, também pode ser repressivo. Este, porém, assim como seu
congênere preventivo, está repleto de incertezas e dúvidas doutrinárias
acerca da sua eficiência e adequabilidade, conforme se demonstrará.
O controle político repressivo, pouco comum, seja pelo seu uso efeti-
vo, seja pelo seu enfrentamento doutrinário, é exercido pela Adminstração
Pública quando esta se nega a fazer cumprir certa lei, em vista de uma
suspeita de inconstitucionalidade.
Entretanto, a possibilidade de a Administração Pública desobede-
cer a lei, em nome de uma possível inconstitucionalidade, não é
incondicionada. Faz-se necessária a presença de certo modelo e a obedi-
ência a certos requisitos e limites. É o que se passa a analisar.

2. NULIDADE ABSOLUTA DA LEI INCONSTITUCIONAL E SUAS


CONSEQÜÊNCIAS PARA A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

A vinculação do regime de nulidade absoluta à lei inconstitucional


foi a primeira e mais forte tese a ser adotada quando se estabeleceram,
definitivamente, os regimes constitucionais, especialmente nos E.U.A.
38 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

Ocorre, consoante essa tese, a eliminação retroativa do ato


normativo, ou de seus efeitos, podendo-se falar de poderes de “destruição
maciça” (ANDRADE, 1995: 79). Essa é a doutrina tradicionalmente aceita (cf.
ALMEIDA, 1988: 883; FERREIRA FILHO, 2002: 39; REALE, 1981: 55; TAVARES, 1998:
120-1; TRIBE, 2000: 216. Para uma visão geral: TAVARES, 2005a: 263-9), de-
senvolvida e adotada pela Corte Suprema norte-americana, como acen-
tuou o Justice HOLMES em um de seus julgados, em 1910, ao anotar que a
regra da operatividade retroativa tem norteado as decisões do Tribunal
“for near a thousand years” (apud TRIBE, 2000: 217).
O princípio ensejador da prerrogativa administrativa de descumprir
lei supostamente inconstitucional é o fato de o Poder Executivo ter de
respeitar a Carta Magna antes de curvar-se às leis. Nesse sentido tem-se
RAMOS (1994: 237), o qual dispõe que “não há como se pretender que o
Poder Executivo, obrigado que está, tanto quanto os demais Poderes, a
observar a Constituição, a deixe de lado para cumprir a lei que se lhe
parece inconstitucional”. Mas não é só, pois como lembra SAMPAIO (2002:
518): “Imagina-se, com essa solução, que a independência e autonomia de
cada Poder, reforçadas pelo sistema de freios e contrapesos, permitem
decisões acerca da legitimidade dos atos que pratica, aferida não em fun-
ção da lei, se reputada inconstitucional, mas em face da Constituição dire-
tamente.”.

2.1. REQUISITOS E LIMITES PARA O USO DA “PRERROGATIVA” DE


DESCUMPRIMENTO DE LEI ILEGÍTIMA

A Administração Pública somente estará desobrigada a cumprir


determinada lei, por suspeita de inconstitucionalidade, se o efeito da deci-
são do órgão judicial responsável pela guarda da Constituição e fiscaliza-
ção das leis, S. T. F., no caso brasileiro, retroagir no tempo, isto é, for (ou
haver a possibilidade de vir a ser) ex tunc. Em outras palavras, se o efeito
da decisão do guardião constitucional somente produzir efeitos futuros, ex
nunc, estar-se-á impedindo toda e qualquer possibilidade de a Adminis-
tração Pública desatender a malsinada lei. “Afinal, embora passível de
invalidação ex nunc, a lei inconstitucional dispõe, nessa hipótese, de vali-
dade provisória, incidindo imperativamente até que sobrevenha a sua
anulação pelo órgão de controle.” (RAMOS, 1994: 236). Logo, a teoria da
nulidade da lei inconstitucional seria um reforço à tese da possibilidade
de seu descumprimento (Sampaio, 2002: 518). Assim também entendeu
BITTENCOURT, para quem “A lei, enquanto não declarada pelos tribunais
incompatível com a Constituição, é lei – não se presume lei – é para todos
CONVIDADOS 39
André Ramos Tavares

os efeitos. Submete a seu império tôdas as relações jurídicas a que visa


disciplinar e conserva plena e ínetegra aquela fôrça formal que a torna
irrefragável, segundo a expressão de Otto Mayer.” (BITTENCOURT, 1968: 95-
96, grifo original).
Logo, a existência do controle político repressivo e a conseqüente
possibilidade de a Administração Pública desacatar a lei está condiciona-
da ao efeito concedido às decisões do Tribunal Constitucional.
Realmente, “Nos ordenamentos em que a Constituição estabelece a
sanção de nulidade para as leis que a violem, é irrecusável a competência
do Poder Executivo para negar cumprimento à lei inconstitucional” (RA-
MOS, 1994: 237).
Outro requisito para o uso dessa prerrogativa pelo Poder Executivo
“é de se exigir que a decisão administrativa de negar cumprimento à lei
inconstitucional deve ser suficientemente motivada.” (RAMOS, 1994: 238-
239).
Não se está a exigir aqui que o Chefe do Executivo esteja certo da
inconstitucionalidade da lei. Isso não significa ser conditio sine qua non que
a inconstitucionalidade seja patente e de fácil intelecção, pois se até os
Ministros do Supremo Tribunal Federal, dotados de notável e indubitável
conhecimento jurídico, enfrentam intermináveis discussões e dúvidas para
decidir acerca da contitucionalidade de determinada lei, sendo, ainda,
costumeiro ocorrer mudanças de entendimento, seria impensável e
irrazoável exigir do Chefe do Executivo a visibilidade incontrastável do
vício. Tal condicionante reconduzir-se-ia a uma negativa de atuação ad-
ministrativa.
O que se está a impor, com a existência desse requisito, é que o Chefe
do Executivo aja de acordo com um dos princípios ordenadores da Admi-
nistração Pública, qual seja, o princípio da motivação, o qual “implica
para a Administração o dever de justificar os seus atos, apontando-lhes os
fundamentos de direito e de fato, assim como a correlação lógica entre os
eventos e situações que deu por existente e a providência tomada, nos
casos em que este último aclaramento seja necessário para aferir-se a con-
sonância da conduta administrativa com a lei que lhe serviu de arrimo”
(MELLO, 2002: 94).
Assim, exige-se da Administração Pública, quando do
descumprimento de lei passível de inconstitucionalidade, que demonstre
o porquê da sua ação devinculada da lei, isto é, que exponha o dispositivo
que está em dúvida, o preceptivo constitucional que a lei inferior estaria
em conflito e as razões que a levaram a crer na inconstitucionalidade,
tudo isso, é claro, sob a égide do razoável: não se quer que a Administra-
40 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

ção Pública deixe de aplicar determinada lei, v.g., criminalizdora de con-


duta, por estar ela conflitando com a liberdade de ir e vir prevista na
Constituição.
Outra medida adotada para se evitar o desenfreado e desarrazoa-
do uso de “descumprimento de lei por provável inconstitucionalidade”
foi a limitação subjetiva dessa prerrogativa, encartada apenas nas mãos
do Chefe do Executivo. Isso significa, em síntese, que não está franqueado
a todo e qualquer servidor ou agente da Administração Pública descumprir
lei que lhe pareça inconstitucional. Logo, “Sempre que um funcionário
subordinado vislumbrar o vício de inconstitucionalidade legislativa, de-
verá propor a submissão da matéria ao titular do Poder, até para fins de
uniformidade da ação administrativa.” (RAMOS, 1994: 238).
Por fim, tem-se mencionado, ainda, a exigência de que se trate de
inconstitucionalidade flagrante, manifesta, o que, critério que se revela de
baixa objetividade para fins de aferimento do uso legítimo dessa prerroga-
tiva.

2.2. FUNDAMENTOS

Na evolução histórica do controle de constitucionalidade no Brasil,


uma argumentação contrária à aceitação do controle de constituciona-
lidade pelo Executivo, fora do Judiciário, passou a firmar-se após a EC
16/65, justamente porque a partir desta ter-se-ia uma tarefa específica e
exclusiva nesse sentido, atribuída ao S.T.F.. Posteriormente, passou-se a
admitir o controle pelo Executivo, especialmente porque a legitimidade
para alcançar o S.T.F. era apenas do Procurador-Geral da República, o
que não permitia a adoção dessa medida pelo Executivo. Por fim, com a
Constituição de 1988, volta-se, em geral, às teses mais restritivas, exata-
mente pelo alargamento de legitimidade ativa que esta promove, ao admi-
tir o Chefe do Executivo federal e dos Executivos estaduais (para um estu-
do com referências jurisprudenciais: SAMPAIO, 2002: 516-9). Contudo, em
face dos termos empregados pela EC 3/93, seria sustentável que nela ad-
mitiu-se o descumprimento de leis pelo Executivo quando não haja decla-
ração de sua constitucionalidade com efeito vinculante (sobre essa tese:
BARROSO, 2004: 66; BINENBOJM, 2004: 2401).
A aceitação de um modelo institucional de controle político repres-
sivo de constitucionalidade, portanto, não é pacífica na doutrina brasilei-
ra, e só bem se compreende com certa contextualização. MENDES (1996:
133), por exemplo, ao tratar desse assunto, lembra que “se o Presidente da
CONVIDADOS 41
André Ramos Tavares

República – ou, eventualmente, o Governador do Estado – está legitimado


a propor a ação direta de inconstitucionalidade perante o Supremo Tribu-
nal Federal, inclusive com pedido de medida cautelar, não se afigura legí-
timo que deixe de utilizar essa faculdade ordinária para valer-se de recur-
so excepcional, somente concebido e tolerado, à época, pela impossibili-
dade de um desate imediato e escorreito da controvérsia”. MOREIRA ALVES,
por sua vez, possui opinião contrária à de MENDES, sendo que sua lógica
funciona da seguinte forma: “A opção entre cumprir a Constituição ou
desrespeitá-la para dar cumprimento à lei inconstitucional é concedida
ao particular para a defesa do seu interesse privado. Não o será ao Chefe
de um dos Poderes do Estado para a defesa, não do seu interesse particu-
lar, mas da supremacia da Constituição que estrutura o próprio Estado?”
(apud RAMOS, 1994: 238).
No que tange ao argumento utilizado por MENDES sobre a existência
da Medida Cautelar, RAMOS (1994: 240) possui, por assim dizer, uma posi-
ção intermediária, a ver: “Nessas hipóteses, parece-nos razoável admitir
que o Chefe do Executivo pode recusar-se a cumprir a lei sub judice apenas
até o julgamento do pedido de medida cautelar, por ele próprio formula-
do. Se o Pretório Excelso acolher o pedido, a execução da lei doravante
estará suspensa por força de concessão da medida cautelar, com eficácia
erga omnes. Se ao contrário, o rejeitar, estará recusando o fumus boni iuris da
argüição ou os danos que a execução temporária da lei possa provocar
(periculum in mora), juízo esse que deve ser acatado pelo Chefe do Poder
Executivo requerente.”.
MORAIS ao tratar da desobediência civil como provável meio de com-
bater a inconstitucionalidade das leis fornece, ao final, seus argumentos
contrários, que são subsídios à teoria defendida por MENDES.
Pouco se fala, no Brasil, sobre a questão da “desobediência civil”, o
qual surgiu como elemento garantidor da democracia e, por consegüinte,
do respeito aos anseios e vontades do povo que, embasado na teoria
contratualista dos iluministas LOCKE e ROUSSEAU, seria o titular do poder.
De acordo com BLANCO DE MORAIS (2002: 98), “A desobediência civil tem
como objecto a contestação da legitimidade, política e jurídica de actos do
poder e intenta como fim, alcançar um acordo com os decisores políticos
ou judiciais, no sentido da alteração, revogação ou declaração da nulida-
de dos referidos actos.” (original grifado). De acordo com o mesmo jurista,
tal medida estaria, na opinião de alguns de seus defensores, sob a égide
constitucional, pois, “de um lado, de acordo com DWORKIN, a desobediên-
cia é desferida contra as decisões que os responsáveis pelo protesto esti-
42 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

mem, em consciência, como de duvidosa constitucionalidade” e “de ou-


tro, na linha de construção de DREIER, a desobediência surge como auto-
tutela de direitos fundamentais que se tenham como abusivamente res-
tringidos.” (MORAIS, 2002: 98). Isto explicaria, assim, a tese da desobediên-
cia civil como um meio constitucionalmente legítimo, quer seja por pos-
suir como objetivo as decisões inconstitucionais, quer seja por visar a
reparar direitos fundamentais cerceados pelo Estado.
Entretanto, não se pode aceitar incondicionalmente o uso da “deso-
bediência civil” como meio de se combater leis inconstitucionais. De acor-
do com MORAIS (2002: 100), somente “Na falta de procedimentos que invis-
tam a cidadania em sujeito activo de recursos directos de
constitucionalidade junto da Justiça Constitucional ou que confiram à
mesma Justiça meios para desencadear oficiosamente a fiscalização des-
ses actos, haveria fundamento para acções de desobediência civil em rela-
ção a legislação carente de uma participação.”. Ademais, “a legitimação
jurídica da desobediência civil como instituto informal de promoção do controlo
de constitucionalidade é por regra inaceitável, em qualquer regime democrático-
representativo. Isto porque violaria gravemente os princípios identitários
da soberania interna, da lógica da representação, do axioma democrático
e da tipicidade dos meios de defesa ordinária da Constituição.” (MORAIS,
2002: 102).
Assim, utilizando expressão de MENDES, somente na falta de uma
“faculdade ordinária” de controle de constitucionalidade é que seria per-
mitido o uso da “desobediência civil” como instrumento de confronto das
leis inconstitucionais pelo particular. Conseqüentemente, de acordo com
MENDES, a possibilidade de o Chefe de determinado Poder Executivo
descumprir lei inconstitucional seria tão-só permitida se não houvesse
outro meio eficaz e suficiente para tanto, e como esse meio já existe, qual
seja, as ações diretas, conjugadas com a possibilidade de concessão da
medida cautelar, não seria, então, cabível admitir tal prerrogativa.
Verifica-se que, quer seja pelo quilate dos doutrinadores, quer seja
por seus argumentos, torna-se praticamente impossível assentar-se paci-
ficamente em uma das posições. A tese de MOREIRA ALVES, contudo, merece
maiores considerações. O porquê dessa constatação encontra-se embasado
em dois pontos, a seguir aduzidos.
Primeiramente, deve-se atentar para o texto Constitucional, pois, ao
contrário do que ocorre com o particular, todo e qualquer ato do Poder
Público deve estar amparado em lei. Embora não esteja expressamente
prevista na Constituição Federal a possibilidade de o Chefe do Executivo
CONVIDADOS 43
André Ramos Tavares

descumprir lei que possua constitucionalidade duvidosa ou suspeita, o


art. 78 da Constituição exige do Presidente e do Vice-Presidente da Repú-
blica o compromisso de manter, defender e cumprir a Constituição, o que dá
ensejo à sustentabilidade da tese que confere ao Chefe do executivo essas
prerrogativas. Assim também procedem as Constituições estaduais, como
a do Rio de Janeiro (art. 136), a de São Paulo (art. 43), de Santa Catarina
(art. 65), de Minas Gerais (art. 86) e do Paraná (art. 83), dentre outras.
Outro ponto de grande importância para legitimar o Chefe do Exe-
cutivo em seu descumprimento de leis inconstitucionalmente viciadas é a
morosidade que assola a Corte Suprema brasileira. É sábido por todos que
o S.T.F. é obrigado a lidar com milhares de ações anualmente. Um montan-
te assutador se for comparado aos países europes que adotam o modelo
concentrado de constitucionalidade. A Suprema Corte é inundada diaria-
mente por um excesso de causas, o que leva a um atravancamento na
solução das lides e questões constitucionais, fazendo com que a pacifica-
ção de uma questão constitucional leve um grande período de tempo para
ocorrer. Evidentemente que a EC 45/04 parece pretender combater esse
fenômeno, ao criar o mecanismo da “repercussão geral” e da “súmula
vinculante” (sobre o tema: TAVARES, 2005b).
Não obstante o posicionamento sempre seguro de MENDES, tem-se
que não deve prevalecer o entendimento de que ao Chefe do Executivo não
é permitido agir em desconformidade com uma lei infraconstitucional no
caso desta afrontar a Lex Máxima. Não que não haja razão em seus argu-
mentos, mas sim com base na realidade fática brasileira, em que a palavra
da vez é a lentidão do Judiciário. Não se pode constranger o Chefe do
Executivo a cumprir uma lei, ainda que sabidamente inconstitucional,
para aguardar o posicionamento definitivo do Tribunal Constitucional
(ainda que se trate de legitimado ativo para propor a ação direta perante
este).
Outrossim, faz-se salutar lembrar do fato de os prefeitos não terem
recebido legitimidade ativa para propor ações diretas perante o S.T.F., o
que faria com que os chefes desses Executivos ficassem ou prejudicados
ou em posição mais benéfica, se comparados com os dos outros dois entes
federativos. Sim, porque ou lhes seria permitido descumprir as leis
inconstitucionais, enquanto que os demais chefes de Executivo teriam de
ingressar com a respectiva ação direta, concedendo-lhes, assim, “nessa
matéria, mais poder que [a]o Presidente e [a]o Governador” (BARROSO, 2004:
65) ou lhes seria proibido descumprir essas leis, e outra alternativa não
lhes restaria, ao passo que os demais chefes de Executivo estariam con-
44 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

templados com a possibilidade de insurgirem-se contra essas leis por via


de alguma ação direta. Dir-se-á que sempre restaria aos prefeitos o contro-
le difuso-concreto em ações comuns. Ocorre que, nesses casos, uma prová-
vel decisão judicial favorável somente teria eficácia inter partes, manten-
do-se em vigor e devendo ser cumprida a norma inconstitucional para as
demais situações concretas que surgissem1.
Verifica-se, portanto, que a utilização da prerrogativa em tela é es-
sencial para a preservação da Carta Máxima, do próprio Estado Constitu-
cional de Direito, base e substratum de atuação dos “poderes”. Trata-se de
mais um instrumento contra desmandos e desatenções eventualmente
praticados pelo Legislativo. É importante, ainda, reforçar que não se pre-
tende, aqui, defender o uso desmedido da prerrogativa ora em análise,
mas sim o seu uso razoável e passível de responsabilização.

2.3 CONSEQÜÊNCIAS PELO DESCUMPRIMENTO ILEGÍTIMO DA LEI

A assunção da tese acima não pretende sempre isentar a Adminis-


tração Pública, para que descumpra, ao seu talante, qualquer lei, seja por
rusgas políticas, seja por interesses próprios ou secundários; “não se pode
admitir que, com base em singela invocação de vício de
inconstitucionalidade, despida de um mínimo de fundamentação exis-
tente, se ponha o Chefe do Executivo a descumprir os atos legislativos
editados pelo parlamento.” (RAMOS, 1994: 239).
Para evitar o desarrazoado uso dessa prerrogativa, qual seja, do
descumprimento de lei, pelo Poder Executivo, tem-se a possibilidade, em
tese, de incorrer o Chefe do Executivo no crime de responsabilidade. O uso
meramente político de uma prerrogativa desse porte está totalmente veda-
do e caracterizará automaticamente o crime de responsabilidade. No âm-
bito da União, ou seja, em que o Chefe do Executivo é o Presidente da
República, os crimes de responsabilidade estão previstos no art. 85 da
C.F., no qual se encontra, em seu inciso VII, a tipificação dos atos contrári-
os ao cumprimento das leis e das decisões judiciais. Quanto aos Governa-

1
A única ressalva que se poderia fazer diz respeito à hipótese, remonta, em que a lei
inconstitucional fosse uma lei estadual ou municipal que atentasse contra norma
da Constituição estadual que repetisse norma da Constituição Federal, hipótese em
que cabe a ação direta no âmbito estadual, com eficácia erga omnes. De resto, ter-
se-ia de aguardar a causa alcançar, em grau de recurso, o S.T.F. para, posteriormen-
te, aguardar uma resolução do Senado Federal que suspendesse a execução da lei
com eficácia erga omnes.
CONVIDADOS 45
André Ramos Tavares

dores do Estado, a previsão de crime de responsabilidade encontra-se nas


respectivas constituições. A Constituição Estadual de São Paulo (art. 48,
VII), do Rio de Janeiro (143, VII), de Santa Catarina (art. 72, VII), do Paraná
(art. 88, VII), do Amazonas (art. 55, VII), de Rondônia (art. 66, VI), dentre
outras, contemplam essa figura. Já, no que tange ao Chefe do Executivo
Municipal, tem-se a disciplina instaurada pela Lei 1.0792, de 1950.

3. O ABANDONO DA TESE DA NULIDADE ABSOLUTA DA LEI


INCONSTITUCIONAL

O abandono da tese da nulidade absoluta da lei inconstitucional


encontra fundamento na necessidade de preservar o Direito contra a
descontinuidade, devendo-se buscar um equilíbrio entre o princípio da
constitucionalidade e a insegurança jurídica (ZAGREBELSKY, 1988: 307).
Quando o Tribunal Constitucional for dotado da possibilidade de
anular uma lei com eficácia prospectiva e diferida (a partir de uma data
futura) continuará prevalecendo, por determinado período, a legislação,
mesmo após sua declaração de inconstitucionalidade. Sua ocorrência deve-
se à ponderação realizada pelo Tribunal Constitucional.
É o sistema admitido na Constituição portuguesa, ao prescrever em
seu art. 282 (conforme revisão de 1982):

4. Quando a segurança jurídica, razões de equidade ou inte-


resse público de excepcional relevo, que deverá ser funda-
mentado, o exigirem, poderá o Tribunal Constitucional fixar
os efeitos da inconstitucionalidade ou da ilegalidade com
alcance mais restrito do que o previsto nos ns. 1 e 2.

Idêntica orientação foi adotada no Brasil por meio da Lei n. 9.868,


de 10 de novembro de 1999:

2
Art 4º São crimes de responsabilidade os atos do Presidente da República que
atentarem contra a Constituição Federal, e, especialmente, contra:
I - A existência da União;
Il - O livre exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário e dos poderes consti-
tucionais dos Estados;
III - O exercício dos direitos políticos, individuais e sociais;
IV - A segurança interna do país;
V - A probidade na administração;
VI - A lei orçamentária;
VII - A guarda e o legal emprêgo dos dinheiros públicos;
VIII - O cumprimento das decisões judiciárias (Constituição, artigo 89).
46 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

Art. 27. Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato


normativo, e tendo em vista razões de excepcional interesse
social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de
2/3 (dois terços) de seus membros, restringir os efeitos da-
quela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir
de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha
a ser fixado.

A possibilidade, reconhecida ao Tribunal Constitucional, de modu-


lar (dosar) a eficácia temporal de suas decisões (de reconhecimento da
inconstitucionalidade) significa a possibilidade de atuação tipicamente
legislativa. A faculdade conferida ao Tribunal de restringir os efeitos da
decisão, ao poder se basear em considerações de interesse público,
transmuda-se em função de caráter acentuadamente político (ANDRADE,
1995: 79), com o que se revela, novamente, uma conotação constitutiva.
Ora, isso significa, em outro giro, que também a Administração Pública
está vinculada à decisão que vier a ser adotada pelo Tribunal Constituci-
onal. Não lhe pode suceder, substituir ou antecipar a vontade, como se
demonstrará ao final.
A eficácia (força) prospectiva permite resolver relações jurídicas de
maneira abstrata, tal como o legislador, porque inova a ordem jurídica em
relação ao regime anterior, que permanece em seus efeitos já produzidos.
Para ENTERRÍA, essa jurisprudência com força apenas prospectiva:

[...] insere o Tribunal Constitucional quase no papel de legis-


lador, que inova o Direito para o futuro. (ENTERRÍA, 1983: 181,
tradução livre)

Tem-se, na doutrina constitucional, verdadeiro rompimento com


o dogma, mencionado anteriormente, da nulidade da lei e retroatividade
dos efeitos dessa declaração, tese tradicionalmente aceita (CAPPELLETTI,
1971: 90). Foi no caso Linkletter versus Walker, de 1965, que a própria Supre-
ma Corte norte-americana passou a se afastar desse dogma:

[...] a Corte desenvolveu uma doutrina na qual poderia ne-


gar efeito retroativo a uma recém-anunciada regra penal. A
Corte anunciou que “a Constituição nem proíbe nem requer
efeito retroativo” e cita o Justice Cardozo para o problema
que “‘a constituição federal não tem voz ativa sobre a maté-
ria’”. A Corte tratou essencialmente a questão da
retroatividade nos casos criminais como problema puramente
de política, a ser decidido novamente em cada caso.
(TRIBE, 2000: 218-9, tradução livre)
CONVIDADOS 47
André Ramos Tavares

No modelo austríaco originário (cf. KELSEN, 1942: 305; ZAMUDIO,


1982: 167) também se consignou a possibilidade de que a decisão de
inconstitucionalidade tenha eficácia diferida no futuro, pois a decisão
surtia efeitos imediatos salvo se a Corte estabelecesse um adiamento de,
no máximo, um ano. Trata-se de deferêcia ao Legislador para lhe permitir
editar, nesse lapso de tempo, uma lei adequada constitucionalmente e,
assim, evitar a lacuna e eventuais efeitos indesejáveis dela decorrentes.
Era a doutrina exposta pelo próprio KELSEN, que fez consignar sua
tese de que só o modelo de efeitos ex nunc atenderia aos objetivos de segu-
rança jurídica:

Quanto ao seu alcance no tempo, a anulação pode se limitar ao


futuro ou, ao contrário, igualmente se estender ao passado, ou
seja, ter ou não efeito retroativo. Essa diferença obviamente
só tem sentido para os atos que tenham conseqüências jurídi-
cas duradouras; ela diz respeito portanto, antes de mais nada,
à anulação das normas gerais. O ideal da segurança jurídica
requer que se atribua, geralmente, efeito à anulação de uma
norma geral irregular pro futuro, ou seja, a partir da anulação.
Deve-se considerar inclusive a possibilidade de não se deixar
a anulação entrar em vigor antes do término de determinado
prazo. Da mesma forma que podem existir motivos válidos
para fazer a entrada em vigor de uma norma geral ser antece-
dida, por exemplo, de uma vacatio legis, também poderia haver
motivos válidos para que uma norma geral só deixasse de
vigorar após certo prazo a partir da sentença de anulação.
Todavia, certas circunstâncias podem tornar uma anulação
retroativa necessária. Não se deve somente pensar no caso
extremo, precedentemente considerado, de uma retroatividade
ilimitada, em que a anulação do ato equivale a sua nulidade,
quando o ato irregular deve, conforme a apreciação soberana
da autoridade competente para anulá-lo ou em virtude da exi-
gência pelo direito positivo de um mínimo de condições para
sua validade, ser reconhecido como sendo pura e simples-
mente um pseudo-ato jurídico. Deve-se vislumbrar antes de
mais nada um efeito retroativo excepcional, limitado a alguns
casos específicos ou a certa categoria deles.
(KELSEN, 1928: 22-3, tradução livre)

KELSEN (1942: 305) explica, ainda, que a anulação meramente ex


nunc das leis justifica-se na medida em que o legislador está autorizado a
interpretar as leis, e, assim, essa sua interpretação deve ser respeitada até
que sobrevenha uma decisão contrária (do Tribunal Constitucional).
48 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

A Suprema Corte norte-americana reuniu seus critérios para a


atribuição de eficácia futura no caso Stovall versus Denno, em 1967, consig-
nando:

Os critérios orientadores da resolução da questão implicam


(a) o propósito de servir-se dos novos padrões, (b) a extensão
da confiança nos antigos padrões pelas autoridades respon-
sáveis pela aplicação da lei, e (c) o efeito na administração da
justiça de uma aplicação retroativa dos novos padrões.
(apud TRIBE, 2000: 219)

A tese da eficácia meramente prospectiva pode ser criticada por


permitir a sobrevivência, durante determinado período, de lei flagrante-
mente inconstitucional, com todo seu vigor. SOTO (1995: 352-5) observa
que uma determinada praxe do Tribunal Constitucional pode alterar a
própria natureza da Constituição:

O perigo das novas técnicas que modulam a eficácia no tem-


po das sentenças é que relativizam o caráter normativo e
hierárquico da Constituição, na medida em que em muitos
casos se deixa em suspenso sua rigidez, permitindo que ope-
re “temporalmente” uma lei inconstitucional.
(SOTO, 1995: 355)

4. POSIÇÃO ADOTADA: PODERES DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA


EM FACE DO SISTEMA DE INCONSTITUCIONALIDADE
ATUALMENTE ADOTADO

Como foi visto acima, a questão sobre a possibilidade de a Admi-


nistração Pública descumprir lei de constitucionalidade questionável não
é das mais pacíficas. A problemática aprofunda-se a partir do ponto em
que o Brasil adota um sistema aberto quanto à eficácia das decisões do
S.T.F. em controle de constitucionalidade, como foi visto anteriormente, no
qual há uma eficácia temporal em branco, a ser preenchida pelo livre con-
vencimento do Tribunal Constitucional. A Administração Pública somen-
te pode utilizar-se da prerrogativa de descumprimento de lei
inconstitucional se a eficácia da decisão fosse, necessariamente, retroativa.
A Lei n. 9.868/99, em seu artigo 27, previu justamente o oposto,
no que foi seguida pela Lei n. 9.882/99. Verifica-se, então, que foi aberta
a possibilidade de o Supremo anular a lei eivada de inconstitucionalidade,
isto é, de cancelar os seus efeitos preteritamente ou ex nunc ou, ainda, de
CONVIDADOS 49
André Ramos Tavares

outra data que venha a fixar consoante seu entendimento acerca do vício
constatado.
A questão que surge, portanto, em sistemas jurídicos que adotam
esse modelo, é a seguinte: como agirá o Chefe do Executivo se a certeza
quanto à constitucionalidade somente surgirá no momento na decisão
final do S.T.F? Quer dizer que unicamente os chefes do Executivo que
possuirem “poderes paranormais de advinhação” é que poderão
descumprir a lei? Ou, que o Chefe do Executivo, agora, encontra-se amar-
rado, impossibilitado de agir em conformidade com a Constituição no
caso do advento de lei inconstitucional?
Nem Constituição Federal nem, muito menos, o legislador ordi-
nário trouxeram respostas às indagações apresentadas. Entretanto, pare-
ce que a solução reside na possibilidade de a Adminstração Pública dei-
xar de dar guarida à lei inconstitucional.
As opções possíveis, como se sabe, são as que se seguem: (i) o
Chefe do Executivo descumpre a lei e ela é, posteriormente, julgada, em
definitivo, inconstitucional e; (ii) o Chefe do Executivo descumpre a lei que
é, mais tarde, julgada, em definitivo, constitucional.
Na primeira hipótese, dois são os desdobramentos possíveis: (i.a)
de o Tribunal tornar nula a lei e; (i.b) de o S.T.F apenas anulá-la. Naquele
caso (i.a), nenhuma responsabilidade administrativa teria de ser apura-
da, visto que se considera como lei inexistente, que jamais poderia, nesses
termos, produzir efeitos. Na última situação (i.b), diferentemente, seria
cabível a indenização dos particulares prejudicadospela decisão admi-
nistrativa não ratificada pelo Tribunal em sua postura temporal, mas não
se deveria falar em responsabilização do agente político, porque
descumpriu lei que, ao final, foi considerada inconstitucional, apesar da
manipulação temporal.
Na segunda hipótese (ii), o desdobramento seria único:
responsabilização do Chefe do Executivo e indenização dos particulares
prejudicados.
A possibilidade de a Administração Pública utilizar o controle
político repressivo em questão é fortalecida, ainda, pelo fato de seu ato, no
caso de decidir pelo não cumprimento da lei, não ser passível de obrigar
os particulares a, concomitantemente, descumpri-la. Nesse sentido tem-se
RAMOS (1994: 237), o qual defende a tese de que “Tal declaração, por certo,
não vincula terceiros, que sempre poderão questionar o entendimento da
Administração, prevalecendo, afinal, o que o Poder Judiciário decidir a tal
respeito.”.
50 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

Portanto, com o advento da referida lei, não se proibiu ao Chefe do


Executivo descumprir as leis inconstitucionais, cumprindo, apenas, uma
maior cautela no uso dessa prerrogativa inerente ao Estado Constitucio-
nal de Direito.

5. BIBLIOGRAFIA

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52 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

A SENTENÇA CONSTITUTIVA COMO


TÍTULO EXECUTIVO1

Fredie Didier Jr.


Professor-adjunto de Direito Processual Civil
da Universidade Federal da Bahia.
Mestre (UFBA) e Doutor (PUC/SP). Professor-
coordenador da Faculdade Baiana de Direito.
Membro dos Institutos Brasileiro e Ibero-ameri-
cano de Direito Processual. Advogado e con-
sultor jurídico. www.frediedidier.com.br

Sumário: 1. Nota introdutória; 2. A sentença que reconhece a existência de um


direito a uma prestação como título executivo (art. 475-N, I, CPC); 3. O conteú-
do da sentença constitutiva e o direito potestativo; 4. Eficácia constitutiva do
direito potestativo: o direito a uma prestação como efeito possível da efetivação
de um direito potestativo; 5. Efeitos anexos de uma decisão judicial: a sentença
como fato jurídico; 6. O direito a uma prestação como possível efeito anexo de
uma sentença constitutiva; 7. Execução do direito a uma prestação decorrente
de uma sentença constitutiva; 8. Bibliografia.

Resumo. Este ensaio cuida de examinar a possibilidade de a sentença constitutiva


poder servir como título executivo, em razão do surgimento de um direito a
uma prestação como efeito anexo dessa decisão judicial.
Palavras-chave: Fato jurídico. Eficácia jurídica. Sentença constitutiva. Direito
potestativo. Execução de título judicial.

Riassunto. Questo saggio esamina la possibilità della sentenza costitutiva servire


come titolo esecutivo, per forza della nascita di un diritto ad una prestazione
come effeto anesso di questa decisione giudiziale.
Palavre-chiavi: fatto giuridico. Efficacia giuridica. Sentenza costitutiva. Diritto
potestativo. Esecuzione di un titolo giudiziale.

1. NOTA INTRODUTÓRIA.

A sentença constitutiva pode ser título executivo, permitindo a ins-


ta instauração de atividade executiva?

1
Escrito em homenagem ao Prof. Marcos Bernardes de Mello.
CONVIDADOS 53
Freddie Didier Jr.

Essa é a questão que será examinada neste breve ensaio, dedicado


ao Prof. MARCOS BERNARDES DE MELLO, uma das pessoas mais influentes no
desenvolvimento da minha formação intelectual, de quem sou discípulo
sem ter sido aluno.
A resposta à indagação passará pelo exame da sentença como fato
jurídico, e não apenas como ato jurídico. Essa é a minha contribuição à
coletânea dedicada ao ilustre jurista alagoano, cujo tema geral é a “Teoria
do Fato Jurídico”.

2. A SENTENÇA QUE RECONHECE A EXISTÊNCIA DE UM DIREITO


A UMA PRESTAÇÃO COMO TÍTULO EXECUTIVO (ART. 475-N, I,
CPC).

A doutrina costuma estabelecer uma relação muito próxima entre a


sentença condenatória (em sentido amplo: aqui compreendida como sen-
tença que reconhece a exigibilidade de um direito a uma prestação) e a
atividade executiva. A lição, de tão conhecida, carece de indicação de
referências doutrinárias.
O rol dos títulos executivos judiciais no direito positivo brasileiro
sofreu considerável ampliação com a mudança da redação do inciso I do
art. 475-N do CPC (antes inciso I do art. 584, já revogado), que confere
eficácia executiva à sentença que reconhecer (certificar) a existência de
uma obrigação (um direito a uma prestação). Há quem admita, por isso, e
com razão, a eficácia executiva também de sentenças meramente
declaratórias2, desde que reconheçam a existência de um direito a uma
prestação3.

2
Percebeu o ponto, apoiando a iniciativa, SANTOS, Ernane Fidélis dos. As reformas de
2005 do Código de Processo Civil. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 29-30; THEODORO Jr.,
Humberto. As novas reformas do Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2006,
p. 132-138; KNIJNIK, Danilo. A nova execução. Carlos Alberto Alvaro de Oliveira
(coord.). Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 170-171; BRAGA, Sérgio Jacob. “Da
possibilidade de execução das sentenças meramente declaratórias”. Revista Jurídica
Consulex. Brasília: Consulex, 2006, ano X, n. 236, p. 61-63; CARMONA, Carlos
Alberto. “Cumprimento da sentença conforme a Lei n. 11.232/2005”. Processo civil
– aspectos relevantes. Bento Herculano Duarte e Ronnie Preuss Duarte (coord.). São
Paulo: Método, 2007, v. 2, p. 156; YOSHIKAWA, Eduardo Henrique de Oliveira.
“A sentença declaratória como título executivo e o princípio da ação (interpretação
do artigo 475-N, I, do CPC, introduzido pela Lei n° 11.232/2005)”. Revista Dialética
de Direito Processual. São Paulo: Dialética, 2007, n. 49, p.19-36; LUCON, Paulo.
“Sentença e liquidação no CPC (Lei 11.232/2005)”. Processo e constituição – estudos
em homenagem ao Professor José Carlos Barbosa Moreira. Luiz Fux, Nelson Nery Jr. e
54 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

De fato, o que torna uma decisão judicial um título executivo é o fato


de ela reconhecer a existência de um direito a uma prestação exigível. Se
uma decisão judicial certifica a existência de um direito a uma prestação
já exigível (definição completa da norma jurídica individualizada), em
nada ela se distingue de uma sentença condenatória, em que isso também
acontece. A sentença declaratória, proferida com base no art. 4º, par. ún.,
CPC4, tem força executiva, independentemente do ajuizamento de outro
processo de conhecimento, de natureza “condenatória”.5 O que importa,

Teresa Arruda Alvim Wambier. São Paulo: RT, 2006, p. 915; MATTOS, Sérgio
Luis Wetzel de. A nova execução. Carlos Alberto Alvaro de Oliveira (coord.). Rio de
Janeiro: Forense, 2006, p. 170-173; CARNEIRO, Athos Gusmão. “Do ‘cumpri-
mento da sentença’, conforme a Lei n. 11.232/05. Parcial retorno ao medievalismo?
Por que não?” Revista Dialética de Direito processual. São Paulo: Dialética, 2006, n.
38, p. 34-35; RODRIGUES, Marcelo Abelha. A terceira etapa da reforma processual
civil. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 172-174; CALMON FILHO, Petrônio. “Senten-
ça e títulos executivos judiciais”. A nova execução de títulos judiciais – comentários à
Lei 11.232/05. Sérgio Renault e Pierpaolo Bottini (coord.). São Paulo: Saraiva,
2006, p. 100-101. Em sentido contrário, peremptoriamente, Araken de Assis, que
afirma: “Quando se afirma que há execução baseada em sentença declaratória –
por exemplo, o órgão judiciário ‘declarou’ que Pedro deve ‘x’ a João –, incorre-se
em erro crasso, olvidando que nenhum provimento é ‘puro’ e, no exemplo aventa-
do, o juiz foi além da simples declaração, emitindo pronunciamento condenatório”.
(Cumprimento da sentença. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 204) O autor não
examina o ar. 4o, par. ún., nem faz referência às decisões do STJ comentadas no
texto, citando outras, mais antigas, em sentido contrário. Também em sentido
contrário, não admitindo a executividade de sentença meramente declaratória,
CÂMARA, Alexandre Freitas. A nova execução da sentença. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2006, p. 92-98; WAMBIER, Luiz Rodrigues, ALMEIDA, Flávio Renato Cor-
reia, e TALAMINI, Eduardo. Curso avançado de processo civil. 8ª ed. São Paulo: RT,
2006, v. 2, p. 56-58; GRINOVER, Ada Pellegrini. “Cumprimento da sentença”. A
nova execução de títulos judiciais – comentários à Lei 11.232/05. Sérgio Renault e
Pierpaolo Bottini (coord.). São Paulo: Saraiva, 2006, p. 125-126; RAMOS, Glauco
Gumerato. Reforma do CPC. São Paulo: RT, 2006, p. 257.
3
Sérgio Shimura já considerava, antes da vigência do novo texto legal, que a sen-
tença de partilha, que é título executivo, tem natureza declaratória (Título execu-
tivo. São Paulo: Saraiva, 1997, p. 252-253).
4
Parágrafo único do art. 4º do CPC: ”É admissível a ação declaratória, ainda que
tenha ocorrido a violação do direito”.
5
Em sentido diverso, José Roberto dos Santos Bedaque, comentando o parágrafo
único do art. 4º do CPC, antes da Lei Federal n. 11.232/2005: “Essa tutela,
todavia, não terá o condão de eliminar completamente a crise de direito material.
Embora declarado existente o direito, o inadimplemento não poderá ser afastado
pela tutela executiva, pois a sentença declaratória não é título. Terá o credor que
postular nova tutela cognitiva, de conteúdo condenatório, para obter acesso à via
executiva”. (Código de Processo Civil interpretado. 2a ed. São Paulo: Atlas, 2005, p.
49.)
CONVIDADOS 55
Freddie Didier Jr.

para que uma decisão judicial seja título executivo, é que haja o reconheci-
mento da existência de um dever de prestar, qualquer que seja a natureza
da sentença ou da prestação6.
É por isso que a decisão que homologa a transação judicial ou o
reconhecimento da procedência do pedido é título executivo judicial, pos-
to não ser condenatória, é título executivo judicial (art. 475-N, III, CPC), e
não há quem duvide disso.
A questão examinada está dentro deste contexto: é possível reco-
nhecer eficácia executiva a uma sentença constitutiva? Para responder à
questão, é preciso continuar a estabelecer as premissas do raciocínio.

3. O CONTEÚDO DA SENTENÇA CONSTITUTIVA E O DIREITO


POTESTATIVO.

O conteúdo de uma sentença constitutiva consiste no reconheci-


mento e na efetivação de um direito potestativo.
O direito potestativo não se relaciona a qualquer prestação do sujei-
to passivo, razão pela qual não pode e nem precisa ser “executado”, no
sentido de serem praticados atos materiais consistentes na efetivação de
uma prestação devida (conduta humana devida), de resto inexistente nes-
te vínculo jurídico. O direito potestativo é direito (situação jurídica ativa)
de criar, alterar ou extinguir situações jurídicas que envolvam outro sujei-
to (que se encontra em uma situação jurídica passiva denominada de esta-

6
“Se a norma jurídica individualizada está definida, de modo completo, por senten-
ça, não há razão alguma, lógica ou jurídica, para submetê-la, antes da execução, a
um segundo juízo de certificação, até porque a nova sentença não poderia chegar a
resultado diferente do da anterior, sob pena de comprometimento da garantia da
coisa julgada, assegurada constitucionalmente. Instaurar a cognição sem oferecer
às partes e principalmente ao juiz outra alternativa de resultado que não um já
prefixado representaria atividade meramente burocrática e desnecessária, que po-
deria receber qualquer outro qualificativo, menos o de jurisdicional”. (ZAVASCKI,
Teori Albino. “Sentenças declaratórias, sentenças condenatórias e eficácia executiva
dos julgados”, cit., p. 31-32.) E acrescenta Ernane Fidélis: “Evidente que haverá
sentenças declaratórias e mesmo constitutivas que não ensejarão qualquer execu-
ção, como a declaração de paternidade ou a de simples anulação de negócio jurídi-
co, sem reconhecimento de qualquer obrigação de fazer ou não fazer, de entregar ou
pagar quantia, mas, ainda que o autor afirme que pretende apenas declaração, o
reconhecimento da existência da obrigação fará nascer o título executivo em se for a
hipótese, ensejará liquidação de sentença”. (As reformas de 2005 do Código de Processo
Civil, cit., p. 29-30.)
56 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

do de sujeição7). O direito potestativo efetiva-se normativamente: basta a


decisão judicial para que ele se realize no mundo ideal das situações jurí-
dicas. É suficiente que o juiz diga “anulo”, “rescindo”, “dissolvo”, “resol-
vo”, para que as situações jurídicas desapareçam, se transformem ou sur-
jam. Situações jurídicas nascem, transformam-se e desaparecem no mun-
do do direito, que é um mundo lógico e ideal8.
É por isso que se reputa comum a afirmação de que “sentença constitutiva
não é título executivo”. O que, na verdade, dispensa “execução” é o direito
potestativo reconhecido na sentença constitutiva, e não ela mesma.
O efeito principal de uma sentença constitutiva (aquele que decorre
diretamente do seu conteúdo) é, então, a situação jurídica nova, a transfor-
mação ou a extinção de uma situação jurídica já existente.

4. EFICÁCIA CONSTITUTIVA DO DIREITO POTESTATIVO: O


DIREITO A UMA PRESTAÇÃO COMO EFEITO POSSÍVEL DA
EFETIVAÇÃO DE UM DIREITO POTESTATIVO.

GIUSEPPE CHIOVENDA considerava o direito potestativo como direito-


meio: o direito potestativo é um meio de remover um direito existente

7
A situação jurídica passiva correlata ao direito potestativo não impõe ao sujeito
passivo nenhuma prestação, nenhuma conduta. O sujeito passivo do direito
potestativo submete-se à alteração jurídica desejada pelo titular desse direito. Por-
quanto não há “conduta devida”, não se pode conceber a existência de uma violação
a um direito potestativo. Não há controvérsia sobre o tema. A propósito: TUHR, A.
von. Tratado de las obligaciones. 1ª ed. (reimp.). W. Roces (trad.). Madrid: Editorial
Reus, 1999, t. 1, p. 16; CHIOVENDA, Giuseppe. La acción en el sistema de los derechos.
Santiago Sentis Melendo (trad.). Bogotá: Editorial Temis, 1986, p. 31-32;
VILANOVA, Lourival. Causalidade e relação no direito. 4ª ed. São Paulo: RT, 2000, p.
231-234; LARENZ, Karl. Derecho civil – parte general. Miguel Izquierdo y Macías-
Picavea (trad.). Madrid: Editorial Revista de Derecho Privado – Editoriales de Derecho
Reunidas, 1978, p. 282; PINTO, Carlos Alberto da Mota. Teoria geral do direito civil.
3ª ed. Coimbra: Coimbra Editora, 1999, p. 174; HENNING, Fernando Alberto Corrêa.
Ação concreta – relendo Wach e Chiovenda. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor,
2000, p. 91-92; ANDRADE, Manuel A. Domingues de. Teoria geral da relação jurídica.
Coimbra: Livraria Almedina, 1997, v. 1, p. 13 e 17; GOMES, Orlando. Introdução ao
estudo do direito. 17ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 118; FONTES, André. A
pretensão como situação jurídica subjetiva. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p. 109;
NORONHA, Fernando. Direito das obrigações. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 57;
LEMOS FILHO, Flávio Pimentel de. Direito potestativo. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
1999, p. 35-41.
8
Assim, também, corretamente, HENNING, Fernando Alberto Corrêa. Ação concreta
– relendo Wach e Chiovenda, cit., p. 89-90.
CONVIDADOS 57
Freddie Didier Jr.

(extintivo) ou é um instrumento (“tentáculo”) de um direito-possível que


aspira surgir; é esse direito existente ou possível que impõe ao direito
potestativo seu caráter, patrimonial ou não, e o seu valor. Por isso, o direi-
to potestativo esgota-se com o seu exercício: a extinção de um direito ou a
criação de outro (acrescentamos: a alteração de um já existente, também)9.
Direitos a uma prestação podem ser esses direitos possíveis de que
fala GIUSEPPE CHIOVENDA; o direito potestativo é, na linguagem chiovendiana,
“tentáculo” desse “direito possível”.
A efetivação de um direito potestativo pode gerar um direito a uma
prestação. A situação jurídica criada após a efetivação de um direito
potestativo pode ser exatamente um direito a uma prestação (de fazer,
não-fazer ou dar). Perceba: a efetivação de um direito potestativo pode
fazer nascer um direito a uma prestação, para cuja efetivação (deste últi-
mo), aí sim é indispensável a prática de atos materiais de realização da
prestação devida10.

5. EFEITOS ANEXOS DE UMA DECISÃO JUDICIAL: A SENTENÇA


COMO FATO JURÍDICO.

Toda decisão judicial pode produzir, além dos principais, efeitos


anexos.
Dizem-se anexos, ou secundários, os efeitos da decisão que decor-
rem de previsão legal, e não do conteúdo da decisão (da declaração judici-
al). Independem de pedido da parte, da manifestação do juiz ou do con-
teúdo da decisão. Operam ex lege. São efeitos indiretos e automáticos que
resultam do fato de a decisão existir. A decisão, neste caso, é tratada como
se fosse um fato jurídico, cujos efeitos independem da vontade, e não um

9
CHIOVENDA, Giuseppe. La acción en el sistema de los derechos. Santiago Sentis Melendo
(trad.). Bogotá: Editorial Temis, 1986, p. 35.
10
Merece transcrição a bela lição de Fernando Alberto Corrêa Henning, quando cuida
do direito potestativo de “denunciar” o contrato de comodato: “A denúncia pro-
duz tal ruptura, fato que possibilita o nascimento do direito à devolução [da coisa],
na precisa medida em que torna injusta a posse do comodatário. Direito de denun-
ciar e direito à devolução são elos numa mesma corrente e isso não impede que
sejam direitos distintos. A hipótese do direito de denunciar é interessante, já que
exemplifica uma possibilidade muito freqüente nos direitos potestativos: a possibi-
lidade de que seu exercício redunde em nascimento de um novo direito. No nosso
caso, o exercício do direito (potestativo) de denunciar leva ao nascimento do direito
à devolução”. (Ação concreta – relendo Wach e Chiovenda, cit., p. 88-89, o texto entre
colchetes é nosso.)
58 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

ato voluntário, cujos efeitos jurídicos são determinados pela vontade de


quem os pratica11.
São exemplos de efeitos anexos: (i) a perempção, que é gerada pela
terceira sentença de extinção sem julgamento de mérito por abandono uni-
lateral (art. 268, par. ún., do CPC); (ii) a separação de corpos, que é gerada
pela sentença que decreta o divórcio ou a separação judicial; (iii) o direito
ao ressarcimento de danos, independentemente de condenação, que é efei-
to da sentença que extingue a execução provisória (art. 475-O, I, CPC); (iv)
o direito ao ressarcimento de danos, independentemente de condenação,
que é efeito dos provimentos que fazem cessar a eficácia das medidas
cautelares (art. 811, CPC); (v) o direito ao ressarcimento de danos, indepen-
dentemente de condenação, que é efeito da sentença penal condenatória
transitada em julgado (arts. 475-N, II, CPC e 91, I, Código Penal); esse direi-
to pode ser exercido pelo ofendido, seu representante legal ou seus herdei-
ros (art. 63, Código de Processo Penal)12.

6. O DIREITO A UMA PRESTAÇÃO COMO POSSÍVEL EFEITO


ANEXO DE UMA SENTENÇA CONSTITUTIVA.

A sentença constitutiva pode ter por efeito anexo um direito a uma


prestação e, assim, servir como título executivo para efetivar a prestação
conteúdo deste direito que acabou de surgir.
O efeito anexo de uma sentença é efeito jurídico que decorre da sen-
tença encarada como um fato jurídico; mais precisamente, é efeito que de-
corre da produção de efeitos principais por uma sentença, encarada essa
eficácia principal como o fato gerador da eficácia anexa. Arremata PONTES
DE MIRANDA: “O efeito anexo é efeito da sentença e pressuposto do direito,
pretensão, ação ou poder, que se crie com ele”13.

11
“Potremo parlare in questi casi della sentenza come fatto giuridico in senso stretto: in
quanto, pur essendo la sentenza una dichiarazione di volontà ossia un atto giuridico,
qui non vengono in considerazione gli effetti per i quali la sentenza è atto giuridico, cioè
gli effetti (che posiamo chiamare interni) di cui appar come causa la volontà dichiarata
nella sentenza; ma altri effetti (che possiamo chiamare esterni) che la legge riconnnette ad
essa considerata dal di fuori, come un fatto materiale, produttivo di per sè di certe
conseguenze giuridiche, l’avverarsi delle quali non dipende dalla volontà del dichiarante”.
(CALAMANDREI, Piero. “Appunti sulla sentenza come fatto giuridico”. Opere giuridiche
– a cura di Mauro Cappelletti. Napoli: Morano Editore, 1965, v. 1, p. 271.)
12
ZAVASCKI, Teori Albino. “Sentenças declaratórias, sentenças condenatórias e eficácia
executiva dos julgados”. Leituras complementares de processo civil. 3ª ed. Salvador: Editora
JUS PODIVM, 2005, p. 35-36.
13
MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Comentários ao Código de Processo Civil. 3a
ed. Rio de Janeiro: Forense, 1997, t. 5, p. 51 (o grifo em “pressuposto” não existe no
original).
CONVIDADOS 59
Freddie Didier Jr.

Direitos a uma prestação, que surjam da efetivação de um direito


potestativo, são, portanto, reconhecidos por uma sentença constitutiva: ao
certificar e efetivar um direito potestativo, o órgão jurisdicional certifica,
também, por tabela, o direito a uma prestação que daquele é conseqüência.
Há um aspecto teórico importante para explicar esse fenômeno.
O direito potestativo é uma espécie de situação jurídica (eficácia jurí-
dica, portanto), que decorre da incidência de um enunciado normativo
sobre um fato ou um conjunto de fatos. Uma vez reconhecida a existência
de um direito potestativo, essa eficácia realiza-se, criando, alterando ou ex-
tinguindo situações jurídicas, como já foi dito.
Direitos a uma prestação são, também, situações jurídicas (efeitos jurí-
dicos). Eles podem ter como pressuposto de fato um efeito jurídico; no caso,
um direito potestativo que lhe seja anterior. Ou seja: o direito a uma prestação
pode ser exatamente produto da eficácia de um direito potestativo, ele mes-
mo também uma eficácia jurídica. Assim, perceba, um efeito jurídico pode
ser suporte fático (fato, e não efeito jurídico) para a produção de outro efeito
jurídico. O reconhecimento de direito potestativo pode ser fato para o
surgimento de um outro direito. Um direito, enfim, pode ser fato para o
surgimento de outro14. É como afirma LOURIVAL VILANOVA: “Também a pró-
pria relação jurídica, que num ponto da série é efeito, pode figurar, num
outro ponto da série, como antecedente ou causa, aqui compondo o suporte
fáctico, passando, pois, à categoria de fato jurídico”15.

14
Não pode estranhar a afirmação de que algo pode ser ao mesmo tempo fato jurídico
e efeito jurídico. “Pode parecer incoerente essa afirmativa, quando considerada dian-
te daquela outra de que suporte fáctico é conceito pré-jurídico, do mundo dos fatos,
e não do mundo do direito. Como considerar fáctico o que é jurídico? Esclarecemos.
O fato jurídico e o efeito jurídico estão no mundo jurídico, mas nem por isso deixam
de integrar, com essa característica de jurídico, o mundo em geral, dito mundo dos
fatos. O mundo jurídico é, apenas, parte do mundo geral, portanto compõe o todo. O
fato jurídico, como os efeitos jurídicos, quando entram na composição de um suporte
fáctico, são tomados como fato jurídico ou como efeito jurídico, tal qual são. Não
voltam a ser fáctico desqualificado de jurídico, mas continuam a ser fáctico adjetivado de
jurídico. A distinção entre mundo dos fatos (geral) e mundo do direito é puramente
lógica, nunca fáctica. O que interessa, portanto, como bem demonstram Pontes de
Miranda e Ennecerus-Nipperdey, é a existência do fato jurídico ou de efeito jurídico,
como tais, porque é essa existência que importa à composição do suporte fáctico do
outro fato jurídico; quer dizer: se a norma jurídica tem como pressuposto de sua
incidência (=suporte fáctico) fato já juridicizado por outra norma jurídica (=fato
jurídico), somente se comporá seu suporte fáctico se aquele fato já existir juridicizado”.
(MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico – plano da existência. 10a. ed. São
Paulo: Saraiva, 2001, p. 42-43.)
15
VILANOVA, Lourival. Causalidade e relação no direito, 4ª ed., cit., p. 128, grifos do
original.
60 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

7. EXECUÇÃO DO DIREITO A UMA PRESTAÇÃO DECORRENTE


DE UMA SENTENÇA CONSTITUTIVA.

Apresentadas as premissas, eis alguns exemplos que fundamen-


tam a conclusão já apresentada (sentença constitutiva pode servir como
título executivo).
Vejamos alguns exemplos (outros tantos poderiam ser citados).
a) Conforme apontado, a situação jurídica passiva correlata ao di-
reito potestativo é o estado de sujeição; não há dever correlato ao direito
potestativo. O sujeito passivo nada pode fazer contra o exercício do direito
potestativo, uma vez preenchidos os seus pressupostos: os efeitos “pro-
duzir-se-ão sempre, queira ou não o sujeitado, logo que o direito potestativo
exista e seja exercitado em devida forma. A sujeição, portanto, ao contrário
do dever jurídico, não pode ser infringida”16. No entanto, poderá o sujeito
passivo “infringir depois os efeitos produzidos, mas então estaremos já
no domínio dos direitos subjectivos”17 (direitos a uma prestação). A lição
de MANUEL ANDRADE é utilíssima e serve como regra geral: uma sentença
constitutiva, ao efetivar um direito potestativo, cria um preceito que deve
ser obedecido pelo sujeito passivo, consistente no dever de obedecer à
nova situação jurídica, não criando embaraços à sua concretização. Sur-
ge, pois, um dever de prestar (correlato a um direito a uma prestação nega-
tiva) cujo descumprimento pode dar ensejo à instauração da atividade
executiva, que, rigorosamente, buscará efetivar o comando judicial conti-
do na sentença constitutiva.
b) A decisão que rescinde (art. 485 do CPC) uma sentença que já fora
executada (decisão inegavelmente constitutiva) gera, por efeito anexo, o
direito do executado à indenização pelo exeqüente dos prejuízos que lhe
foram causados em razão da execução malsinada (art. 574 do CPC)18. Essa
decisão tem aptidão para transformar-se em título executivo, pois torna
certa a obrigação de indenizar, que, não obstante, ainda é ilíquida, se
impondo a apuração da extensão do prejuízo em liquidação.

16
ANDRADE, Manuel A. Domingues de. Teoria geral da relação jurídica. Coimbra:
Livraria Almedina, 1997, v. 1, p. 17, grifos do original.
17
ANDRADE, Manuel A. Domingues de. Teoria geral da relação jurídica, v. 1, cit., p. 17.
18
ZAVASCKI, Teori Albino. Comentários ao Código de Processo Civil. 2ª ed. São Paulo:
RT, 2003, v. 8, p. 117.
CONVIDADOS 61
Freddie Didier Jr.

c) A decisão que resolve um compromisso de compra e venda, em


razão do inadimplemento, tem por efeito anexo o surgimento do dever de
devolver a coisa prometida à venda19-20.
A jurisprudência maciça do Superior Tribunal de Justiça tem enten-
dido que o pedido de devolução da coisa, decorrente da resolução do
compromisso, não precisa ser formulado e nem é relevante para a determi-
nação da competência do foro da situação do imóvel (art. 95 do CPC),
exatamente porque se trata de um efeito anexo21.
Assim, resolvido o negócio e não devolvida a coisa, pode o autor-
vencedor pedir a instauração de atividade executiva para a entrega do
bem, já que esse direito a uma prestação (devolução da coisa) foi certifica-
do pela sentença constitutiva, não obstante como efeito anexo, em razão
da efetivação do direito potestativo de resolução do contrato. Não faria
muito sentido, de fato, a interpretação que impusesse ao autor o ônus de
propor outra ação de conhecimento reipersecutória, se a existência deste
direito não pode ser mais discutida. Nada há a ser certificado. E, conve-
nhamos, não é isso o que acontece no foro: a parte requer, incontinenti, a
expedição do mandado para a devolução da coisa.
d) A decisão que extingue uma relação jurídica locatícia, em razão,
por exemplo, de uma denúncia vazia do locador, é constitutiva (extingue

19
“Às vezes, ao direito formativo extintivo junta-se direito formativo gerador ou
modificativo; ou ao efeito daquele, efeito gerador ou modificativo. Com a resolu-
ção, em virtude de exercício de direito formativo gerador, surge a pretensão à
restituição das prestações pagas”. (MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de.
Tratado de direito privado. 4ª ed. São Paulo: RT, 1983, t. 5, § 583, n. 2, p. 307.)
20
Assim, também, ZAVASCKI, Teori Albino. Comentários ao Código de Processo Civil. 2ª
ed., cit., v. 8, p. 196; ZANETI Jr., Hermes. “A eficácia constitutiva da sentença, as
sentenças de eficácia preponderantemente constitutiva e a força normativa do co-
mando judicial”. Eficácia e coisa julgada. Carlos Alberto Alvaro de Oliveira (coord.)
Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 110; OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de. “Sen-
tença constitutiva e volta ao estado anterior”. Instituto dos Advogados do Rio Grande
do Sul – sessenta anos de existência. Antonio Cachapuz de Medeiros (org.) Porto Ale-
gre: IARGS, 1986, p. 227.
21
Ver, por exemplo, STJ, 3ª T., REsp n. 402762/SP, rel. Min. Menezes Direito, j.
27.08.2002, publicado no DJ de 04.11.2002, p. 201: “Ação de anulação de compro-
misso de compra e venda cumulada com reintegração de posse. Foro de eleição.
Precedentes da Corte. 1. Na panóplia de precedentes da Corte há convergência para
afirmar que a ação de anulação de compromisso de compra e venda é pessoal e que
o pedido de reintegração, como conseqüência, não acarreta a incidência do art. 95
do Código de Processo Civil, que estabelece a competência absoluta, prevalecendo
o foro de eleição, se existente”.
62 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

vínculo contratual), mas gera, indiscutivelmente, o direito de o autor-loca-


dor rever a coisa anteriormente locada. E é o que acontece, é cediço, nas
ações de despejo, comumente designadas como executivas lato sensu, mas
que, de fato, são constitutivas que dão ensejo a futura atividade executiva
em razão do surgimento do direito à devolução da coisa locada.
e) A decisão que extingue a execução provisória, em razão da refor-
ma da sentença em que se baseara, é preponderantemente constitutiva
(extingue-se o procedimento executivo, desfazendo, por tabela, os atos
executivos já praticados), mas, todos sabem, torna certa a obrigação de o
exeqüente indenizar o executado pelos prejuízos efetivamente sofridos
(art. 475-O, I e II, CPC).
f) A decisão que anula um auto de infração (inegavelmente
constitutiva negativa) tem por efeito anexo o dever de a Administração
Tributária não proceder à inscrição do respectivo tributo na dívida ativa.
Se isso acontecer, haverá descumprimento de uma prestação negativa,
que dará ensejo à instauração, com base na referida sentença, de atividade
executiva. Seria possível defender a tese de que contra este ato administra-
tivo caberia mandado de segurança. Sucede que não há necessidade nem
utilidade no ajuizamento de uma ação de conhecimento para certificar
um direito já existente e indiscutível pela coisa julgada material. O com-
portamento administrativo dá ensejo à execução, e não a nova atividade
jurisdicional cognitiva.
g) A anulação de um ato jurídico provém de uma sentença indiscu-
tivelmente constitutiva. O art. 182 do Código Civil determina que “anula-
do o negócio jurídico, restituir-se-ão as partes ao estado em que antes dele
se achavam, e, não sendo possível restituí-las, serão indenizadas com o
equivalente”. É clara a disposição legislativa: a efetivação do direito
potestativo de anular o ato jurídico faz surgir direitos a uma prestação
como efeito anexo, ou para restituir as partes ao estado anterior (devolu-
ção da coisa objeto do contrato, por exemplo) ou para serem indenizadas
(indenização cujo montante deverá ser apurado em liquidação).
É como afirma PONTES DE MIRANDA: com a anulação do ato jurídico,
“voltam os créditos cedidos; voltam à eficácia as dívidas remitidas; as
quantias pagas são restituídas. E tudo se passa com se não tivesse havido
cessão de crédito, remissão de dívida, ou pagamento”22.

22
MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Tratado das ações. Campinas: Bookseller,
1999, t. 4, p. 164.
CONVIDADOS 63
Freddie Didier Jr.

h) A sentença de revisão de aluguel é constitutiva23, pois transforma


um dos elementos de uma relação jurídica já existente. Não parece haver
dúvida de que o locador possa executá-la se o locatário deixar de pagar o
valor do aluguel reajustado (art. 69, § 2º, Lei Federal n. 8.245/1991)24 – e a
possibilidade de execução abrange, inclusive, o aluguel provisório (tutela
antecipada na ação revisional), previsto no art. 68, II, da Lei Federal 8.245/
199125.
Em razão disso, LUIZ GUILHERME MARINONI afirma, ao comentar a
possibilidade ação de despejo decorrente do inadimplemento do aluguel
provisoriamente fixado na ação constitutiva de revisão de aluguel: “Quan-
do é possível extrair da constituição provisória alguma pretensão condenatória,
mandamental ou executiva, dá-se vida, em caso de inobservância da tutela
antecipatória, à provisoriedade, que, em outro caso, poderia se transfor-
mar em algo sem utilidade”26.
i) Esse raciocínio explica, ainda, a possibilidade de antecipação
dos efeitos da tutela (art. 273 do CPC) em ações constitutivas27. Antecipa-
se a eficácia anexa da sentença constitutiva. A decisão que antecipa a
tutela, em tais situações, deverá ser executada para realizar uma presta-
ção devida, decorrente de um direito a uma prestação que é (será) eficácia
anexa de futura e provável sentença constitutiva.
LUIZ GUILHERME MARINONI dá o exemplo da antecipação da tutela em
demanda com pedidos cumulados sucessivamente de resolução de con-
trato e devolução da coisa, em que se permite a antecipação da tutela de
reintegração de posse28. Perceba que, como visto, o segundo pedido é efeito
anexo do primeiro, e nem precisaria ter sido formulado: o direito a ter a
coisa de volta (direito a uma prestação de entrega de coisa) é conseqüência

23
FERREIRA, William Santos. “Procedimentos na lei do inquilinato: ação revisional e
renovatória de aluguel”. Procedimentos especiais cíveis na legislação extravagante. Fredie
Didier Jr. e Cristiano Chaves de Farias (coord.). São Paulo: Saraiva, 2003, p. 1.013.
24
“Art. 69. O aluguel fixado na sentença retroage à citação, e as diferenças devidas
durante a ação de revisão, descontados os alugueres provisórios satisfeitos, serão
pagas corrigidas, exigíveis a partir do trânsito em julgado da decisão que fixar o
novo aluguel. (...) 2° A execução das diferenças será feita nos autos da ação de
revisão”.
25
Sobre o assunto, amplamente, FERREIRA, William Santos. “Procedimentos na lei
do inquilinato: ação revisional e renovatória de aluguel”, cit., p. 1.014-1.017.
26
Antecipação da tutela. 9ª ed. São Paulo: RT, 2006, p. 59, grifos aditados.
27
Sobre o tema, mais amplamente, DIDIER Jr., Fredie, OLIVEIRA, Rafael, BRAGA,
Paula Sarno. Curso de Direito Processual Civil. Salvador: Editora JUS PODIVM, 2007,
v. 2, p. 532-534.
28
Antecipação da tutela. 9ª ed., cit., p. 63-64.
64 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

anexa e ex vi legis do reconhecimento e efetivação do direito potestativo de


resolução do contrato.
Arremata o autor, partindo de premissa semelhante àquela que já
foi apresentada: “a constituição, gerando uma situação substancial nova,
torna ilegais quaisquer atos praticados em contrariedade à nova situação
material” 29.

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29
Antecipação da tutela. 9ª ed., cit., p. 65.
CONVIDADOS 65
Freddie Didier Jr.

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68 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

AS DIMENSÕES DA DIGNIDADE DA
PESSOA HUMANA: CONSTRUINDO UMA
COMPREENSÃO JURÍDICO-CONSTITUCIONAL
NECESSÁRIA E POSSÍVEL

Ingo Wolfgang Sarlet.


Doutor em Direito (Universidade de Munique).
Estudos de Pós-Doutorado junto a Universi-
dade de Munique, Instituto Max-Planck de Di-
reito Social Estrangeiro e Internacional, Univer-
sidade de Georgetown (EUA). Professor Titu-
lar de Direito Constitucional da Faculdade de
Direito e dos cursos de Mestrado e Doutorado
em Direito da PUCS e Professor de Direito Cons-
titucional na Escola Superior da Magistratira
(AJURIS). Juiz de Direito em Porto Alegre (RS).

1. CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES

Se de fato há como acolher a lição de Antonio Junqueira de Azevedo1,


no sentido de que o acordo a respeito das palavras “dignidade da pessoa
humana” infelizmente não afasta a grande controvérsia em torno do seu
conteúdo, e se é igualmente correto partir do pressuposto de que a dignida-
de, acima de tudo, diz com a condição humana do ser humano, e, portanto,
guarda íntima relação com as complexas, e, de modo geral, imprevisíveis e
praticamente incalculáveis manifestações da personalidade humana, já se
percebe o quão difícil se torna a busca de uma definição do conteúdo desta
dignidade da pessoa e, portanto, de uma correspondente compreensão (ou
definição) jurídica. Assim, por mais que não seja esta a posição a ser adota-
da, verifica-se que não é inteiramente destituída de qualquer fundamento
racional e razoável a posição dos que refutam a possibilidade de uma defini-
ção, ou, pelo menos, de uma definição jurídica da dignidade.2

1
Cf. A. J. de Azevedo. Caracterização Jurídica da Dignidade da Pessoa Humana, in: Revista
dos Tribunais, v. 797, mar. 2002, p. 12.
2
Como, por exemplo, C. Neirinck, La Dignité de la Personne ou le Mauvais Usage d’une
Notion Philosophique, in: P. Pedrot (Dir). Ethique Droit et Dignité de la Personne, Paris:
Economica, 1999, p. 50, advertindo que as noções filosóficas (como é o caso da
dignidade), não encontram solução no Direito. Na mesma direção, F. Borella, Le
Concept de Dignité de la Personne Humaine, in: P. Pedrot (Dir). Ethique, Droit et Dignité
de la Personne, Paris: Economica, 1999, p. 37, nega que a dignidade seja um conceito de
direito positivo, embora admita que possa ser reconhecida e protegida pelo direito.
CONVIDADOS 69
Ingo Wolfgang Sarlet

De outra parte, tendo em mente que o objetivo do presente estudo é


o de pautar e discutir alguns aspectos ligados à compreensão do conteú-
do e significado, ou melhor, dos conteúdos e significados e, portanto, da-
quilo que se poderia designar de dimensões da dignidade da pessoa hu-
mana, com o enfoque voltado para a ordem jurídica, notadamente pelo
prisma da ordem jurídico-constitucional, é certo que um olhar – ainda que
limitado – sobre algumas das contribuições oriundas do pensamento filo-
sófico, também aqui se revela indispensável. Com efeito, se por vezes a
filosofia posiciona-se, de modo esquivodado, como blindada ao Direito
(embora seja o Direito e não a Filosofia quem acaba por definir – e decidir
– qual a dignidade que será objeto de tutela do Estado e, além disso, qual
a proteção que este pode assegurar àquela), este não deve e nem pode – ou,
pelo menos, não deveria – trilhar o mesmo caminho. Tal já se justifica,
entre outros fatores, pelo fato de que o reconhecimento e proteção da dig-
nidade da pessoa pelo Direito resulta justamente de toda uma evolução
do pensamento humano a respeito do que significa este ser humano e de
que é a compreensão do que é ser pessoa e de quais os valores que lhe são
inerentes que acaba por influenciar ou mesmo determinar o modo pelo
qual o Direito reconhece e protege esta dignidade.
De outra parte, mesmo que o diálogo entre o filósofo e o jurista, bem
como entre estes e as suas circunstâncias (pessoais e sociais)3 seja marca-
do por convergências e divergências de toda ordem, é certo que tal debate,
ainda mais quando travado na esfera pública e pautado pela prática raci-
onal discursiva (necessariamente argumentativa) constitui o melhor meio
de, pelo menos numa sociedade democrática, estabelecer os contornos
nucleares da compreensão das diversas dimensões da dignidade e de sua
possível realização prática para cada ser humano. Assim, não há mais –
ao contrário do que alguns parecem crer – como desconhecer e nem
desconsiderar o papel efetivo do Direito no que diz com a proteção e pro-
moção da dignidade.
Nesta perspectiva, quando aqui se fala em dimensões da dignidade
da pessoa humana, está-se a referir – num primeiro momento – a comple-
xidade da própria pessoa humana e do meio no qual desenvolve sua per-
sonalidade. Para além desta referência, tão elementar quanto relevante, o
que se pretende apontar e sustentar, à luz de toda uma tradição reflexiva,

3
Aqui se tomou emprestada a clássica e de todos conhecida afirmação de José
Ortega y Gasset, no sentido de que o homem é, de certo modo, as suas circunstân-
cias.
70 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

nesta obra coletiva representada (mesmo que de modo limitado e necessa-


riamente ilustrativo) por alguns dos expoentes do pensamento filosófico e
jurídico, é que a noção de dignidade da pessoa humana (especialmente no
âmbito do Direito), para que possa dar conta da heterogeneidade e da
riqueza da vida, integra um conjunto de fundamentos e uma série de ma-
nifestações. Estas, ainda que diferenciadas entre si, guardam um elo co-
mum, especialmente pelo fato de comporem o núcleo essencial da compre-
ensão e, portanto, do próprio conceito de dignidade da pessoa humana.
Cientes de que a eleição aqui efetuada no que diz com as diversas
dimensões da dignidade não afasta evidentemente outras visões sobre o
tema, além de com estas não ser necessariamente incompatível, importa,
acima de tudo, apontar alguns aspectos que julgamos dignos de nota e
que têm sido, em maior ou menor escala, intensamente debatidos também
no âmbito do Direito e da Filosofia. De modo particular, constitui o intuito
do ensaio, demonstrar a necessidade e utilidade deste debate para uma
compreensão adequada da dignidade da pessoa humana pela e para a
ordem jurídica, aparelhando-a com alguns critérios materiais, para
viabilizar uma legítima e eficaz proteção da dignidade de todas as pesso-
as, sem que se vá aqui adentrar a seara (também) altamente controversa,
dos diversos problemas vinculados à sua concretização, notadamente na
sua em geral umbilical – embora sempre variável – conexão com os direi-
tos fundamentais4.
Por fim, convém esclarecer ao leitor que o texto, a despeito de não
ser propriamente novo, já que substancialmente elaborado a partir de tra-
balho monográfico anterior5, foi objeto de uma reestruturação e, portanto,
reconstrução, interna significativa, voltada precisamente ao intuito já anun-
ciado de destacar quais as principais (ou algumas das principais) dimen-
sões da dignidade da pessoa humana, notadamente em termos de com-
preensão de seu conteúdo como princípio (jurídico) e, portanto, como fun-
damento de direitos e deveres fundamentais.

4
Sobre este ponto, considerando particularmente o elenco de direitos fundamentais
reconhecidos pela Constituição do Brasil, remetemos ao nosso Dignidade da Pessoa
Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988, 3. ed., rev., atual. e
ampl., Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, especialmente pp. 78-80 e 84-85,
obra na qual desenvolvemos uma série de aspectos vinculados não apenas à origem
e evolução da noção de dignidade da pessoa humana, mas também da relativos à
condição jurídico-normativa da dignidade, sua conexão com os direitos fundamen-
tais, etc.
5
V. especialmente o segundo capítulo do nosso Dignidade da Pessoa Humana e Direitos
Fundamentais..., notadamente a partir do item 2.2 (pp. 39-60).
CONVIDADOS 71
Ingo Wolfgang Sarlet

2. A DIFICULDADE DE UMA COMPREENSÃO JURÍDICO-


CONSTITUCIONAL A RESPEITO DA DIGNIDADE DA PESSOA
HUMANA

Consoante já anunciado, não há como negar – a despeito da evolu-


ção ocorrida especialmente no âmbito da Filosofia – que uma conceituação
clara do que efetivamente é a dignidade da pessoa humana, inclusive
para efeitos de definição do seu âmbito de proteção como norma jurídica
fundamental, se revela no mínimo difícil de ser obtida. Tal dificuldade,
consoante exaustiva e corretamente destacado na doutrina, decorre certa-
mente (ao menos também) da circunstância de que se cuida de um concei-
to de contornos vagos e imprecisos6 caracterizado por sua “ambigüidade
e porosidade”7 assim como por sua natureza necessariamente polissêmica8,
muito embora tais atributos não possam ser exclusivamente atribuídos à
noção de dignidade da pessoa. Uma das principais dificuldades, todavia
– e aqui recolhemos a lição de Michael Sachs – reside no fato de que no
caso da dignidade da pessoa, diversamente do que ocorre com as demais
normas jusfundamentais, não se cuida de aspectos mais ou menos especí-
ficos da existência humana (integridade física, intimidade, vida, proprie-
dade, etc.), mas, sim, de uma qualidade tida para muitos – possivelmente
a esmagadora maioria – como inerente a todo e qualquer ser humano, de
tal sorte que a dignidade – como já restou evidenciado – passou a ser
habitualmente definida como constituindo o valor próprio que identifica
o ser humano como tal, definição esta que, todavia, acaba por não contri-
buir muito para uma compreensão satisfatória do que efetivamente é o
âmbito de proteção da dignidade,9 pelo menos na sua condição jurídico-
normativa.
Mesmo assim, não restam dúvidas de que a dignidade é algo real,
algo vivenciado concretamente por cada ser humano, já que não se verifi-

6
Neste sentido, dentre tantos, a lição de T. Maunz e R. Zippelius, Deutsches Staatsrecht,
29. ed., München: C. H. Beck, 1994, p. 179.
7
Assim o sustenta C. L. Antunes Rocha, O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana e
a Exclusão Social, in: Revista Interesse Público, n. 04, 1999, p. 24.
8
Cf. F. Delpérée, O Direito à Dignidade Humana, in: S. R. Barros; F. A. Zilveti (Coords.).
Direito Constitucional - Estudos em Homenagem a Manoel Gonçalves Ferreira Filho, São
Paulo: Dialética, 1999, p. 153. Assim também M-L. Pavia, Le Principe de Dignité de
la Persone Humaine: Un Nouveau Principe Constitutionnel in: R. Cabrillac; M.-A. Frison-
Roche; T. Revet. Droits et Libertés Fondamenteaux, 4.ed., Paris: Dalloz, 1997, p. 99.
9
Cf. M. Sachs, Verfassungsrecht II – Grundrechte, Berlin-Heidelberg-New York: Springer-
Verlag, 2000, p. 173.
72 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

ca maior dificuldade em identificar claramente muitas das situações em


que é espezinhada e agredida,10 ainda que não seja possível estabelecer
uma pauta exaustiva de violações da dignidade11. Além disso, verifica-se
que a doutrina e a jurisprudência – notadamente no que diz com a cons-
trução de uma noção jurídica de dignidade12 – cuidaram, ao longo do
tempo, de estabelecer alguns contornos basilares do conceito e concretizar
o seu conteúdo, ainda que não se possa falar, também aqui, de uma defini-
ção genérica e abstrata consensualmente aceita, isto sem falar no já referi-
do ceticismo por parte de alguns no que diz com a própria possibilidade
de uma concepção jurídica da dignidade.
Neste contexto, bem refutando a tese de que a dignidade não cons-
titui um conceito jurídicamente apropriável e que não caberia – como pa-
rece sustentar Habermas13 – em princípio, aos Juízes ingressar na esfera
do conteúdo ético da dignidade, relegando tal tarefa ao debate público

10
Esta a oportuna advertência de J. Tischner, Zur Genese der menschlichen Würde, in: E.-
W. Böckenförde; R. Spaemann (Orgs.), Menschenrechte und Menschenwürde, 1987, p.
317. Na mesma linha de entendimento situa-se a lição de M. Renaud, A Dignidade do
ser Humano como Fundamentação Ética dos Direitos do Homem, in: Brotéria – Revista de
Cultura, v. 148, 1999, p. 36, sustentando, todavia, que, não obstante todos tenha-
mos uma compreensão espontânea e implícita da dignidade da pessoa humana,
ainda assim, em sendo o caso de explicitar em que consiste esta dignidade, teríamos
grandes dificuldades.
11
Cf. J. González Pérez, La Dignidad de la Persona. Madrid: Civitas, 1986, p. 115.
12
Quando aqui se fala em uma noção jurídica de dignidade, pretende-se apenas
clarificar que se está simplesmente buscando retratar como a doutrina e a jurispru-
dência constitucional – e ainda assim de modo apenas exemplificativo – estão
compreendendo, aplicando e eventualmente concretizando e desenvolvendo uma
(ou várias) concepções a respeito do conteúdo e significado da dignidade da pes-
soa. Por outro lado, não se questiona mais seriamente que a dignidade seja também
um conceito jurídico. Neste sentido, por todos e mais recentemente, P. Kunig, Art. 1
(Würde des Menschen, Grundrechtsbindung, in: I. von Münch; P. Kunig (Orgs.).
Grundgesetz – Kommentar, v. 1, 5.ed., München: C. H. Beck, 2000, p. 76.
13
Com efeito, J. Habermas, Die Zukunft der menschlichen Natur. Auf dem Weg zu einer
liberalen Eugenik? Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1987, p. 70 e ss., argumenta, em
síntese, que o Estado secularizado e neutro, quando constituído de modo democrá-
tico e procedendo de modo inclusivo, não pode tomar partido numa controvérsia
ética relacionada com a dignidade da pessoa humana e o direito geral ao livre
desenvolvimento da personalidade (artigos 1º e 2º da Lei Fundamental da Alema-
nha). Além disso – segue argumentando Habermas – quando a pergunta a respeito
do tratamento dispensado à vida humana antes do nascimento envolve questões de
conteúdo ético, o razoável será sempre contar com um fundado dissenso, tal qual
encontrado na esfera do debate parlamentar por ocasião da elaboração das leis (no
caso, Habermas fez referência expressa ao debate no Parlamento da Alemanha,
ocorrido no dia 31.05.2001).
CONVIDADOS 73
Ingo Wolfgang Sarlet

que se processa notadamente na esfera parlamentar, assume relevo a


percuciente observação de Denninger de que – diversamente do filósofo,
para quem, de certo modo, é fácil exigir uma contenção e distanciamento
no trato da matéria – para a jurisdição constitucional, quando provocada
a intervir na solução de determinado conflito versando sobre as diversas
dimensões da dignidade, não existe a possibilidade de recusar a sua ma-
nifestação, sendo, portanto, compelida a proferir uma decisão, razão pela
qual já se percebe que não há como dispensar uma compreensão (ou con-
ceito) jurídica da dignidade da pessoa humana, já que desta – e à luz do
caso examinado pelos órgãos judiciais – haverão de ser extraídas determi-
nadas conseqüências jurídicas,14 muitas vezes decisivas para a proteção
da dignidade das pessoas concretamente consideradas.
Feitas estas considerações, procurar-se-á, na seqüência, destacar
algumas das possíveis e relevantes dimensões da dignidade da pessoa
humana, com o intuito de alcançar uma compreensão suficientemente
abrangente e operacional do conceito também para a ordem juridica, res-
saltando-se que tais dimensões, por sua vez, não se revelam como neces-
sariamente incompatíveis e reciprocamente excludentes. Inicia-se, neste
contexto, pelo que, já de há muito, se pode considerar como uma dimensão
ontológica da dignidade, vinculada à concepção da dignidade como uma
qualidade intrínseca da pessoa humana, e, de modo geral, comum às teo-
rias da dignidade como uma dádiva ou um dom conferido ao ser humano
pela divindidade ou pela própria natureza15.

14
Cf. E. Denninger, Embryo und Grundgesetz. Schutz des Lebens und der Menschenwürde
vor Nidation und Geburt, in: Kritische Vierteljahresschrift für Gesetzgebung und
Rechtswissenschaft (KritV), Baden-Baden: Nomos, 2/2003, pp. 195-196, lembrando,
nesta perspectiva (da necessária intervenção da jurisdição constitucional no plano
das decisões envolvendo a dignidade da pessoa humana), a arguta argumentação
da Ex-Presidente do Tribunal Constitucional Federal da Alemanha, Juíza Jutta
Limbach (extraída de voto proferido em decisão envolvendo a descriminalização do
aborto), no sentido de que assim como é correto afirmar que a ciência jurídica não é
competente para responder à pergunta de quando inicia a vida humana, também é
certo que as ciências naturais não estão em condições de responder desde quando a
vida humana deve ser colocada sob a proteção do direito constitucional (ob.cit., p.
196).
15
Cf. a apresentação das diversas teorias sobre a dignidade levada a efeito por H.
Hofmann, Die versprochene Menschenwürde, in: Archiv des Öffentlichen Rechts (AöR), n.
118, 1993, p. 357 e ss., e, mais recentemente, por J.C.G. Loureiro, O Direito à Identi-
dade Genética do Ser Humano, in: Portugal-Brasil Ano 2000, Boletim da Faculdade de
Direito de Coimbra, Coimbra: Coimbra Editora, 1999, pp. 280-281.
74 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

3. A DIMENSÃO ONTOLÓGICA, MAS NÃO NECESSARIAMENTE


(OU, PELO MENOS, NÃO EXCLUSIVAMENTE) BIOLÓGICA DA
DIGNIDADE

Inicialmente, cumpre salientar – retomando a idéia nuclear que já


se fazia presente até mesmo no pensamento clássico16– que a dignidade,
como qualidade intrínseca da pessoa humana, é irrenunciável e
inalienável, constituindo elemento que qualifica o ser humano como tal e
dele não pode ser destacado, de tal sorte que não se pode cogitar na possi-
bilidade de determinada pessoa ser titular de uma pretensão a que lhe seja
concedida a dignidade.17 Esta, portanto, compreendida como qualidade
integrante e, em princípio, irrenunciável da própria condição humana, 18
pode (e deve) ser reconhecida, respeitada, promovida e protegida, não

16
Sobre o ponto, v, entre nós, as belas páginas de F. K. Comparato, A Afirmação
Histórica dos Direitos Humanos, São Paulo: Saraiva, 1999, especialmente p. 11 e ss.,
retratando a evolução da noção de pessoa humana e sua dignidade. Também bem
discorrendo sobre a evolução da noção de dignidade humana, v., E. R. Rabenhorst,
Dignidade Humana e Moralidade Democrática, Brasília: Brasília Jurídica, 2001, p. 13 e
ss. No mesmo sentido, v. R. Zippelius, Anmerkungen zu Art. 1 Grundgesetz, in: R.
Dolzer (Org), Bonner Kommentar, Heidelberg, 1994, pp. 8-9, referindo-se ao pensa-
mento do filósofo e político romano Cícero. Também M. Renaud, A Dignidade do ser
Humano como Fundamentação Ética dos Direitos do Homem, p. 137, destaca o pensa-
mento de Cícero, informando que este filósofo estóico conferiu à dignidade um
sentido mais amplo, fundado na natureza humana e na posição superior ocupada
pelo ser humano no cosmos. Com efeito, voltando-nos diretamente às formulações
do jurisconsulto, político e filósofo romano, contemporâneo de Pompeu e Júlio
César, bastaria lembrar aqui a passagem em que faz referência ao fato de que é a
natureza quem prescreve que o homem deve levar em conta os interesses de seus
semelhantes, pelo simples fato de também serem homens, razão pela qual todos
estão sujeitos às mesmas leis da natureza, que proíbe que uns prejudiquem aos
outros (M. T. Cícero, Dos Deveres, São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 137). Neste
contexto, O. Höffe. Medizin ohne Ethik? Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2002, p. 60,
lembra que na China, por volta do século IV a.C., o sábio confucionista Meng Zi
afirmava que cada homem nasce com uma dignidade que lhe é própria, atribuída
por Deus, e que é indisponível para o ser humano e os governantes. Também G.Peces-
Barba Martínez, La Dignidad de la Persona desde la Filosofía del Derecho, 2.ed., Madrid:
Dykinson, 2003, p. 21 e ss., oferece uma série de referências demonstrando que a
noção de dignidade da pessoa, ainda que não diretamente referida sob este rótulo,
já se encontrava subjacente a uma série de autores da antiguidade, inclusive além
das fronteiras do mundo clássico greco-romano e cristão ocidental.
17
Esta a lição de G. Dürig, Der Grundsatz der Menschenwürde. Entwurf eines praktikablen
Wertsystems der Grundrechte aus Art. 1 Abs. I in Verbidung mit Art, 19 Abs. II des
Grundgesetzes, in: Archiv des Öffentlichen Rechts (AöR), n. 81, 1956, p. 9.
18
Assim, entre tantos, K. Stern, Das Staatsrecht der Bundesrepublik Deutschland, v.III/1,
München: C. H. Beck, 1988, p. 6.
CONVIDADOS 75
Ingo Wolfgang Sarlet

podendo, contudo (no sentido ora empregado) ser criada, concedida ou


retirada (embora possa ser violada), já que existe – ou é reconhecida como
tal – em cada ser humano como algo que lhe é inerente. Ainda nesta linha
de entendimento, houve até mesmo quem afirmasse que a dignidade re-
presenta “o valor absoluto de cada ser humano, que, não sendo indispen-
sável, é insubstituível”19, o que, por si só, não afasta necessariamente a
possibilidade de uma abordagem de cunho crítico e não inviabiliza, ao
menos não por si só, eventual relativização da dignidade, notadamente
na sua condição jurídico-normativa (ou seja, na condição de princípio
jurídico) e em alguma de suas facetas, temática que, todavia, não será
explorada neste estudo20. Assim, vale lembrar – nesta linha de entendi-
mento - que a dignidade evidentemente não existe apenas onde é reconhe-
cida pelo Direito e na medida que este a reconhece,21 já que – pelo menos
em certo sentido – constitui dado prévio, no sentido de preexistente e an-
terior a toda experiência especulativa.22
Além disso, não se deverá olvidar que a dignidade – ao menos de
acordo com o que parece ser a opinião largamente majoritária – independe
das circunstâncias concretas, já que inerente a toda e qualquer pessoa
humana, visto que, em princípio, todos – mesmo o maior dos criminosos –
são iguais em dignidade, no sentido de serem reconhecidos como pessoas
– ainda que não se portem de forma igualmente digna nas suas relações
com seus semelhantes, inclusive consigo mesmos. Assim, mesmo que se
possa compreender a dignidade da pessoa humana – na esteira do que

19
Cf. J. C. Gonçalves Loureiro, O Direito à Identidade Genética do Ser Humano, p. 280,
citando lição de C. Hodgkinson, filósofo dinamarquês, admitindo, para além disso,
a inequívoca inspiração kantiana desta assertiva.
20
A respeito deste ponto, v., por todos, o paradigmático contributo de M. Kloepfer,
Leben und Würde des Menschen, in: Festschrift 50 Jahre Bundesverfassungsgericht, Tübingen:
J. C. Mohr (Paul Siebeck), 2001, que integra a presente coletânea. Entre nós, remete-
se aqui ao nosso Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais..., p. 124 e ss..
onde desenvolvemos tal problema.
21
Cf. M. A Alegre Martínez, La Dignidad de la Persona como Fundamento del Ordenamiento
Constitucional Español. León: Universidad de León, 1996, p. 21. Entre nós, v. J. Afon-
so da Silva, A Dignidade da Pessoa Humana como Valor Supremo da Democracia, in:
Revista de Direito Administrativo, v. 212, 1998, p. 91, inspirado em Kant, referindo
que a dignidade da pessoa “não é uma criação constitucional, pois ela é um desses
conceitos a priori, um dado preexistente a toda experiência especulativa, tal como a
própria pessoa humana”, lição compartilhada, mais recentemente, também por C.
L. Antunes Rocha, O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana e a Exclusão Social, p.
26.
22
Cf. R. Pereira e Silva, Introdução ao Biodireito. Investigações Político-Jurídicas sobre o
Estatuto da Concepção Humana, São Paulo: LTr, 2002, p. 191.
76 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

lembra José Afonso da Silva23– como forma de comportamento (admitin-


do-se, pois, atos dignos e indignos), ainda assim, exatamente por consti-
tuir – no sentido aqui acolhido – atributo intrínseco da pessoa humana e
expressar o seu valor absoluto, é que a dignidade de todas as pessoas,
mesmo daquelas que cometem as ações mais indignas e infames, não po-
derá ser objeto de desconsideração. Aliás, não é outro o entendimento que
subjaz ao art. 1º da Declaração Universal da ONU (1948), segundo o qual
“todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos.
Dotados de razão e consciência, devem agir uns para com os outros em
espírito e fraternidade”, preceito que, de certa forma, revitalizou e
universalizou – após a profunda barbárie na qual mergulhou a humani-
dade na primeira metade deste século – as premissas basilares da doutri-
na kantiana24.
Nesta linha argumentativa e na feliz formulação de Jorge Miranda25,
o fato de os seres humanos (todos) serem dotados de razão e consciência
representa justamente o denominador comum a todos os homens, expres-
sando em que consiste sua igualdade. Também o Tribunal Constitucional
da Espanha – apenas para referir um exemplo extraído da jurisprudência

23
Cf., entre nós e dentre outros, J. Afonso da Silva A Dignidade da Pessoa Humana como
Valor Supremo da Democracia, p. 93. Registre-se também a lição de J. González Pérez,
La Dignidad de la Persona, p. 25, destacando que a dignidade da pessoa não desapa-
rece por mais baixa que seja a conduta do ser humano, divergindo, nesta linha de
entendimento, de São Tomás de Aquino, já que este – como igualmente bem lem-
brou o autor citado – justificando a pena de morte, sustentava que o homem, ao
delinqüir, decai da dignidade, rebaixando-se à condição de besta. Assim, devem ser
repudiadas todas as concepções que consideram a dignidade como mera prestação,
isto é, algo que depende eminentemente das ações da pessoa humana e algo a ser
conquistado, aspecto sobre o qual voltaremos a nos pronunciar.
24
Apenas a título ilustrativo, a concepção Kantiana de dignidade da pessoa encon-
trou lugar de destaque, entre outros, nos seguintes autores. Entre nós, v., por exem-
plo, as recentes e preciosas contribuições de C.L. Antunes Rocha, O Princípio da
Dignidade da Pessoa Humana e a Exclusão Social, p. 23 e ss., e F. K. Comparato, A
Afirmação Histórica dos Direitos Humanos, p. 19 e ss, assim como os trabalhos de F.
Ferreira dos Santos, Princípio Constitucional da Dignidade da Pessoa Humana. São
Paulo: Celso Bastos, 1999, p. 20 e ss., e J.Afonso da Silva, A Dignidade da Pessoa
Humana como Valor Supremo da Democracia, p. 89 e ss. Na literatura lusitana, v.,
dentre outros, J. Miranda, Manual de Direito Constitucional, v. IV, 3. ed., Coimbra:
Coimbra Editora , 2000, p. 188, bem como, por último, P. Mota Pinto, O Direito ao
Livre Desenvolvimento da Personalidade, in: Portugal-Brasil Ano 2000, Boletim da Fa-
culdade de Direito de Coimbra, Coimbra: Coimbra Editora, 2000, p. 151, sem falar
na expressiva maioria dos autores alemães, alguns dos quais já referidos.
25
Manual de Direito Constitucional, vol. IV. 26 Cf. G. Dürig, Der Grundsatz der
Menschenwürde…, p. 125.
CONVIDADOS 77
Ingo Wolfgang Sarlet

constitucional – igualmente inspirado na Declaração Universal, manifes-


tou-se no sentido de que “a dignidade é um valor espiritual e moral ine-
rente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação cons-
ciente e responsável da própria vida e que leva consigo a pretensão ao
respeito por parte dos demais. No âmbito da doutrina alemã, refere-se
aqui a paradigmática lição de Günter Dürig, para quem a dignidade da
pessoa humana consiste no fato de que “cada ser humano é humano por
força de seu espírito, que o distingue da natureza impessoal e que o capa-
cita para, com base em sua própria decisão, tornar-se consciente de si
mesmo, de autodeterminar sua conduta, bem como de formatar a sua exis-
tência e o meio que o circunda.”26
Assim, à luz do que dispõe a Declaração Universal da ONU, bem
como considerando os entendimentos colacionados em caráter
exemplificativo, verifica-se que o elemento nuclear da noção de dignidade
da pessoa humana parece continuar sendo reconduzido – e a doutrina
majoritária conforta esta conclusão – primordialmente à matriz kantiana,
centrando-se, portanto, na autonomia e no direito de autodeterminação
da pessoa (de cada pessoa)27. Importa, contudo, ter presente a circunstân-
cia de que esta liberdade (autonomia) é considerada em abstrato, como
sendo a capacidade potencial que cada ser humano tem de autodeterminar
sua conduta, não dependendo da sua efetiva realização no caso da pes-
soa em concreto, de tal sorte que também o absolutamente incapaz (por
exemplo, o portador de grave deficiência mental) possui exatamente a
mesma dignidade que qualquer outro ser humano física e mentalmente
capaz,28 aspecto que voltará a ser considerado, ainda que não exatamente
no mesmo contexto.

26
Cf. G. Dürig, Der Grundsatz der Menschenwürde…, p. 125.
27
Cf. A. Bleckmann, Staatsrecht II – Die Grundrechte, 4.ed., Köln-Berlin-Bonn-München:
Carl Heymanns, 1997, p. 541. Neste sentido, dentre tantos, v. também A. Podlech,
Anmerkungen zu Art. 1 Abs. I Grundgesetz in: R. Wassermann (Org.) Kommentar zum
Grundgesetz für die Bundesrepublik Deutschland (Alternativ Kommentar), v. 1, 2. ed.,
Neuwied: Luchterhand, 1989, p. 275, assim como R. Zippelius, Anmerkungen zu Art.
1 Grundgesetz, p. 9. Conforme bem lembra G. Frankenberg, Autorität und Integration.
Zur Gramatik von Recht und Verfassung, Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2003, p. 270,
foi a partir de Kant (embora com desenvolvimentos anteriores) o ponto de
arquimedes da moderna compreensão de dignidade passou a ser a autonomia
ética, evidenciada por meio da capacidade de o homem dar-se as suas próprias leis.
28
Neste sentido, a lição de G. Dürig, Der Grundsatz der Menschenwürde..., p. 125, que,
com base neste ponto de vista, sustenta que mesmo o consentimento do ofendido
não descaracteriza uma efetiva agressão à dignidade da pessoa. Pelo mesmo moti-
vo, também o nascituro (embrião) encontra-se protegido na sua dignidade, admi-
tindo-se até mesmo que os reflexos da proteção da dignidade venham a alcançar a
78 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

Além disso, convém destacar, por oportuno, que com isso não se
está a sustentar a equiparação, mas a intrínseca ligação entre as noções
de liberdade e dignidade, já que a liberdade e, por conseguinte, também
o reconhecimento e a garantia de direitos de liberdade (e dos direitos
fundamentais de um modo geral), constituem uma das principais (mas
não a única) exigências da dignidade da pessoa humana. De qualquer
modo, o que se percebe – e os desenvolvimentos posteriores pretendem
demonstrar isso – é que o reconhecimento da dignidade como valor pró-
prio de cada pessoa não resulta, pelo menos não necessariamente (ou
mesmo exclusivamente), em uma biologização da dignidade, no sentido
de que esta seria como uma qualidade biológica e inata da natureza
humana, geneticamente pré-programada, tal como, por exemplo, a cor
dos olhos ou dos cabelos, tal como, entre tantos outros, bem o sustentou
um Jürgen Habermas, consoante ainda restará melhor demonstrado no
próximo item.

4. DIGNIDADE E INTERSUBJETIVIDADE: A DIMENSÃO


COMUNICATIVA E RELACIONAL DA DIGNIDADE DA PESSOA
HUMANA COMO O RECONHECIMENTO PELO (S) OUTRO (S)

Mesmo sendo possível – na linha dos desenvolvimentos preceden-


tes – sustentar que a dignidade da pessoa encontra-se, de algum modo,
ligada (também) à condição humana de cada indivíduo, não há como
desconsiderar a necessária dimensão comunitária (ou social) desta mes-
ma dignidade de cada pessoa e de todas as pessoas, justamente por serem
todos reconhecidos como iguais em dignidade e direitos (na iluminada

pessoa inclusive após a morte, posicionamento que vai também por nós acolhido.
Sobre este ponto, de resto objeto de aguda polêmica, especialmente no que concerne
ao marco inicial do reconhecimento de uma proteção jurídica da dignidade e da
própria vida, v., entre outros, P.Kunig, “Art. 1 (Würde des Menschen,
Grundrechtsbindung)”, in: I.von Münch; P. Kunig (Org), Grundgesetz – Kommentar,
v. 1, 5.ed., München: C. H. Beck, 2000, pp. 73-75 e, mais recentemente, também na
doutrina constitucional alemã, M. Herdegen, Neuarbeitung von Art. 1 Abs. 1- Schutz
der Menschenwürde, in: T. Maunz; G. Dürig. Grundgesetz Kommentar, München: C. H.
Beck, 2003, p. 29 e ss. Na França, vale conferir, dentre tantos outros, o ensaio de B.
Matieu, La Dignité de la Personne Humaine: Quel Droit? Quel Titulaire?, in: Recueil
Dalloz Sirey, Paris: Éditions Dalloz, 1996, pp. 283-284. De modo particular, parece-
nos oportuno registrar a lição de W. Höfling, Anmerkungen zu Art. 1 Abs. 3 Grundgesetz,
in: M. Sachs (Org.) Grundgesetz – Kommentar, München: C. H. Beck, 1996, p. 117,
apontando para a necessidade de uma interpretação aberta e ampliativa do concei-
to vida, de tal sorte a agasalhar as necessárias respostas normativas às agressões
atuais e potenciais que ameaçam a vida humana.
CONVIDADOS 79
Ingo Wolfgang Sarlet

fórmula da Declaração Universal de 1948) e pela circunstância de nesta


condição conviverem em determinada comunidade. Aliás, consoante já
anunciado, a própria dimensão ontológica (embora não necessariamente
biológica) da dignidade assume seu pleno significado em função no con-
texto da intersubjetividade que marca todas relações humanas e, portan-
to, também o reconhecimento dos valores (assim como princípios e direi-
tos fundamentais) socialmente consagrados pela e para a comunidade de
pessoas humanas.
Neste contexto, assume relevo a lição de Pérez Luño29, que, na estei-
ra de Werner Maihofer e, de certa forma, também retomando a noção
kantiana, sustenta uma dimensão intersubjetiva da dignidade, partindo
da situação básica do ser humano em sua relação com os demais (do ser
com os outros), ao invés de fazê-lo em função do homem singular, limita-
do a sua esfera individual, sem que com isto – importa frisá-lo desde logo
– se esteja a advogar a justificação de sacrifícios da dignidade pessoal em
prol da comunidade, no sentido de uma funcionalização da dignidade.
Seguindo – ao menos assim o parece – esta linha de entendimento, vale
lembrar a lição de Franck Moderne30 , referindo que, para além de uma

29
Cf. A. E. Pérez Luño, Derechos Humanos, Estado de Derecho y Constitución, 5. ed.,
Madrid: Tecnos, 1995, p. 318. Este também parece ser o entendimento de J. Miranda,
Manual de Direito Constitucional, p. 189, ao sustentar que “cada pessoa tem de ser
compreendida em relação com as demais. Por isso, a Constituição completa a
referência à dignidade com a referência à mesma dignidade social que possuem
todos os cidadãos e todos os trabalhadores [arts. 13, nº 1, e 59, nº 1, alínea b],
decorrente da inserção numa comunidade determinada.” No mesmo sentido, v. M.
A. Alegre Martinez, La Dignidad de la Persona..., p. 19, referindo, no âmbito de uma
dimensão social, a necessidade de que a dignidade, como atributo de pessoa indi-
vidual, deve ser acompanhada da necessidade de que as demais pessoas e a comu-
nidade respeitem sua liberdade e seus direitos.
30
Cf. F. Moderne, La Dignité de la Personne comme Principe Constitutionnel dans les
Constitutions Portuguaise et Française, in: J. Miranda (Org.). Perspectivas Constituicionais
– Nos 20 anos da Constituição de 1976, v. I., Coimbra: Coimbra Editora, 1997, pp. 198-
199, em passagem confessadamente influenciada pela obra de Ronald Dworkin.
Note-se, de outra parte, que as assim denominadas concepções ontológica e instru-
mental da dignidade, de certa forma correspondem à já referida classificação pro-
posta por Hofmann (dignidade como dádiva e prestação). Nesta mesma linha de
entendimento, também no âmbito da doutrina francesa, vale mencionar o magisté-
rio de L. Cassiers, La Dignité et l’Embryon Humain, in: Revue Trimmestrielle des Droits
de L’Homme, v. 54, 2003, especialmente pp. 407-413, entre outros aspectos apontan-
do para a circunstância de que – na condição de uma criação da sociedade (como
elaboração cultural e simbólica) – a dignidade adquire uma dimensão coletiva, no
sentido de que a relação do sujeito com ele próprio depende largamente da relação
da pessoa com os seus semelhantes.
80 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

concepção ontológica da dignidade – como qualidade inerente ao ser hu-


mano (que, de resto, não se encontra imune a críticas) – importa conside-
rar uma visão de caráter mais “instrumental”, traduzida pela noção de
uma igual dignidade de todas as pessoas, fundada na participação ativa
de todos na “magistratura moral” coletiva, não restrita, portanto, à idéia
de autonomia individual, mas que – pelo contrário – parte do pressuposto
da necessidade de promoção das condições de uma contribuição ativa
para o reconhecimento e proteção do conjunto de direitos e liberdades
indispensáveis ao nosso tempo.
De qualquer modo, o que importa, nesta quadra, é que se tenha
presente a circunstância, oportunamente destacada por Gonçalves Lou-
reiro31, de que a dignidade da pessoa humana – no âmbito de sua perspec-
tiva intersubjetiva – implica uma obrigação geral de respeito pela pessoa
(pelo seu valor intrínseco como pessoa), traduzida num feixe de deveres e
direitos correlativos, de natureza não meramente instrumental, mas sim,
relativos a um conjunto de bens indispensáveis ao “florescimento huma-
no”. Que tais direitos e deveres correspondem justamente à concepção
aberta, complexa e heterogênea dos direitos e deveres fundamentais da
pessoa humana na sociedade e no Estado contemporâneo, haverá de ser
sempre presente.
Em verdade – e tal aspecto deve ser destacado – a dignidade da
pessoa humana (assim como – na esteira de Hannah Arendt - a própria
existência e condição humana),32 sem prejuízo de sua dimensão ontológica
e, de certa forma, justamente em razão de se tratar do valor próprio de cada

31
Cf. J. C. Gonçalves Loureiro, O Direito à Identidade Genética do Ser Humano, p. 281.
32
Cf. H. Arendt, A Condição Humana, 10.ed., Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002,
p. 15 e ss. (capítulo I), onde discorre, entre outros aspectos (e sem uma referência
direta à noção de dignidade da pessoa humana), sobre o conceito e os pressupostos
da condição e da existência humana, noções que, a despeito de vinculadas, não se
confundem. Assim, para a autora “A ação, única atividade que se exerce entre os
homens sem a mediação das coisas ou da matéria, corresponde à condição humana
da pluralidade, ao fato de que homens, e não o Homem, vivem na Terra e habitam o
mundo. Todos os aspectos da condição humana têm alguma relação com a política;
mas esta pluralidade é especificamente a condição – não apenas a conditio sine qua non,
mas a conditio per quam – de toda a vida política. Assim, o idioma dos romanos –
talvez o povo mais político que conhecemos – empregava como sinônimas as expres-
sões ‘viver’ e ‘estar ente os homens’ (inter homines esse), ou ‘morrer’ e ‘deixar de estar
entre os homens’ (inter homines esse desinere)”. Em suma, ainda para a filósofa (ob. cit.,
p. 16), “a pluralidade é a condição da ação humana pelo fato de sermos todos os mesmos, isto
é, humanos, sem que ninguém seja exatamente igual a qualquer pessoa que tenha existido,
exista ou venha a existir” (grifo nosso).
CONVIDADOS 81
Ingo Wolfgang Sarlet

uma e de todas as pessoas, apenas faz sentido no âmbito da


intersubjetividade e da pluralidade. Aliás, também por esta razão é que se
impõe o seu reconhecimento e proteção pela ordem jurídica, que deve ze-
lar para que todos recebam igual (já que todos são iguais em dignidade)
consideração e respeito por parte do Estado e da comunidade, o que, de
resto, aponta para a dimensão política da dignidade, igualmente
subjacente ao pensamento de Hannah Arendt, no sentido de que a
pluralidade pode ser considerada como a condição (e não apenas como
uma das condições) da ação humana e da política.33 Na perspectiva ora
apontada, vale consignar a lição de Jürgen Habermas34, considerando que
a dignidade da pessoa, numa acepção rigorosamente moral e jurídica,
encontra-se vinculada à simetria das relações humanas, de tal sorte que a
sua intangibilidade (o grifo é do autor) resulta justamente das relações
interpessoais marcadas pela recíproca consideração e respeito, de tal sor-
te que apenas no âmbito do espaço público da comunidade da linguagem,
o ser natural se torna indivíduo e pessoa dotada de racionalidade.35 As-
sim, como bem destaca Hasso Hofmann36, a dignidade necessariamente
deve ser compreendida sob perspectiva relacional e comunicativa, consti-
tuindo uma categoria da co-humanidade de cada indivíduo
(Mitmenschlichkeit des Individuums).
Tais desenvolvimentos em torno da natureza relacional e comuni-
cativa da dignidade da pessoa humana, ao mesmo tempo em que acaba-
ram contribuindo, consoante já referido, para a superação de uma concep-
ção eminentemente especista (biológica) – e, portanto, necessariamente
reducionista e vulnerável – da peculiar e específica dignidade dos seres
humanos (que, por si só, não afasta uma possível consideração da digni-

33
Cf. H. Arendt, A Condição Humana, pp. 15-16, de acordo com trecho já transcrito na
nota anterior.
34
Cf. J. Habermas, Die Zukunft der menschlichen Natur…, p. 62 e ss.
35
Cf. J. Habermas, Die Zukunft der menschlichen Natur…, p. 65.
36
Cf. H. Hofmann, Die versprochene Menschenwürde, p. 364, posicionando-se – ao susten-
tar que a dignidade, na condição de conceito jurídico, assume feições de um conceito
eminentemente comunicativo e relacional – no sentido de que a dignidade da pessoa
humana não poderá ser destacada de uma comunidade concreta e determinada onde
se manifesta e é reconhecida. No mesmo sentido, reconhecendo que a dignidade
também assume a condição de conceito de comunicação, v., no âmbito da doutrina
lusitana, a referência de J. Machado, Liberdade de Expressão. Dimensões Constitucionais
da Esfera Pública no Sistema Social, Coimbra: Coimbra Editora, 2002, p. 360.
82 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

dade da vida de um modo geral37), permitem vincular a igual dignidade


de todas as pessoas humanas (assim como sua igualdade prima facie em
direitos) também à qualidade comum, recentemente apontada com ênfase
também por Francis Fukuyuma, de que como seres humanos “partilha-
mos uma humanidade comum que permite a todo o ser humano se comu-
nicar potencialmente com todos os demais seres humanos no planeta e
entrar numa relação moral com eles”.38
É precisamente com base nesta linha argumentativa, visceralmente
vinculada à dimensão intersubjetiva (e, portanto, sempre relacional) da
dignidade da pessoa humana, que se tem podido sustentar, como alterna-
tiva ou mesmo (se assim se preferir) como tese complementar à tese
ontológico-biológica, a noção da dignidade como produto do reconheci-
mento da essencial unicidade de cada pessoa humana e do fato de esta ser
credora de um dever de igual respeito e proteção no âmbito da comunida-

37
Tais questionamentos, por sua vez, nos remetem à controvérsia em torno da atribui-
ção de dignidade e/ou direitos aos animais e demais seres vivos, que, de resto, já vem
sendo reconhecida por alguma doutrina. Sem que se vá adentrar este campo, desde
logo nos parece que a tendência contemporânea de uma proteção constitucional e
legal da fauna e flora, bem como dos demais recursos naturais, inclusive contra atos
de crueldade praticados pelo ser humano, revela no mínimo que a própria comunida-
de humana vislumbra em determinadas condutas (inclusive praticadas em relação a
outros seres vivos) um conteúdo de indignidade. Da mesma forma, considerando que
nem todas as medidas de proteção da natureza não humana têm por objeto assegu-
rar aos seres humanos sua vida com dignidade (por conta de um ambiente saudável
e equilibrado) mas já dizem com a preservação – por si só – da vida em geral e do
patrimônio ambiental, resulta evidente que se está a reconhecer à natureza um valor
em si, isto é, intrínseco. Se com isso se está a admitir uma dignidade da vida para
além da humana, tal reconhecimento não necessariamente conflita (nem mesmo por
um prisma teológico) com a noção de dignidade própria e diferenciada da pessoa
humana, que, à evidência, somente e necessariamente é da pessoa humana. De qual-
quer modo, consoante já referido, não é aqui que iremos desenvolver tais aspectos.
Dentre a doutrina disponível (e as referências não indiciam concordância com o con-
teúdo dos aportes de cada autor), remetemos – a título exemplificativo – inicialmente
ao clássico e altamente controverso contributo de P. Singer, Ética Prática, São Paulo:
Martins Fontes, 2002, especialmente p. 65 e ss. Dentre os desenvolvimentos mais
recentes, v. o instigante mas equilibrado artigo de C. Sunstein, The Rights of Animals,
in: The University of Chicago Law Review, v. 70, 2003, p. 387 e ss., onde, embora não se
tenha reconhecido propriamente uma dignidade dos animais, admite a possibilidade
de se atribuir certos direitos a determinadas categorias de animais, a depender, espe-
cialmente, de suas capacidades. Revelando seu ceticismo em relação ao reconheci-
mento de uma autonomia dos animais em relação ao próprio ser humano, o autor
prefere enfatizar a idéia de que os animais têm direito a uma vida decente, livre de
sofrimento e maus-tratos, o que, de qualquer modo, não se mostra completamente
incompatível com alguns componentes da própria noção de dignidade.
38
Cf. F. Fukuyama, Nosso Futuro Pós-Humano. Conseqüências da Revolução da Biotecnologia,
Rio de Janeiro: Rocco, 2003, p. 23.
CONVIDADOS 83
Ingo Wolfgang Sarlet

de humana. Neste sentido, há como afirmar que a dignidade (numa acepção


também ontológica, embora definitivamente não biológica) é a qualidade
reconhecida como intrínseca à pessoa humana, ou da dignidade como
reconhecimento39, a teor de uma já expressiva e influente doutrina, que,
contudo, aqui não mais poderá ser inventariada e analisada.

5. A DIGNIDADE COMO CONSTRUÇÃO: A INDISPENSABILIDADE


DE UMA PERSPECTIVA (E, PORTANTO, CONTEXTUALIZAÇÃO)
HISTÓRICO-CULTURAL DA DIGNIDADE

As constatações precedentes, no que diz com uma concepção


ontológica e intersubjetiva da dignidade, não desqualificam (pelo contrá-
rio, reforçam) a observação de que a dignidade da pessoa humana , por
tratar-se, à evidência – e nisto não diverge de outros valores e princípios
jurídicos – de categoria axiológica aberta, não poderá ser conceituada de
maneira fixista, ainda mais quando se verifica que uma definição desta
natureza não harmoniza com o pluralismo e a diversidade de valores que
se manifestam nas sociedades democráticas contemporâneas,40 razão pela
qual correto afirmar-se que (também aqui) – como bem lembra Cármen
Lúcia Antunes Rocha41, nos deparamos com um conceito em permanente
processo de construção e desenvolvimento. Assim, há que reconhecer que
também o conteúdo da noção de dignidade da pessoa humana, na sua
condição de conceito jurídico-normativo, a exemplo de tantos outros con-
ceitos de contornos vagos e abertos, reclama uma constante concretização
e delimitação pela práxis constitucional, tarefa cometida a todos os ór-
gãos estatais.42

39
Sobre as teorias da dignidade como reconhecimento (Annerkennungstheorien) v.
também o já referido H. Hofmann, Die versprochene Menschenwürde, p. 357 e ss. Se em
Kant e Hegel já se encontram elementos importantes para uma compreensão da
dignidade como categoria relacional e comunicativa, que acima de tudo faz sentido
no âmbito da intersubjetividade das relações humanas, mediante o reconhecimento
recíproco do ser pessoa (aspecto igualmente explorado pelo texto de Kurt Seelman,
que compõe esta coletâna), é em autores contemporâneos, tais como Charles Taylor
e Axel Honneth – para citar dois dos mais destacados nesta seara – que a noção de
dignidade (da pessoa) humana como reconhecimento acabou por ocupar um espa-
ço privilegiado na esfera da discussão política, sociológica e filosófica, não sendo o
caso, aqui, de desenvolver este aspecto.
40
Cf., entre nós, E. Pereira de Farias, Colisão de Direitos. A Honra, a Intimidade, a Vida
Privada e a Imagem versus a Liberdade de Expressão e Informação, Porto Alegre: Fabris,
1996, p. 50, por sua vez arrimado nas lições de Gomes Canotilho e de Celso Lafer.
41
Cf. C.L. Antunes Rocha, O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana..., p. 24.
42
Cf. averba R. Zippelius, Anmerkungen zu Art. 1 Grundgesetz, p. 14.
84 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

Já por esta razão, há quem aponte para o fato de que a dignidade da


pessoa não deve ser considerada exclusivamente como algo inerente à
natureza humana (no sentido de uma qualidade inata pura e simples-
mente), isto na medida em que a dignidade possui também um sentido
cultural, sendo fruto do trabalho de diversas gerações e da humanidade
em seu todo, razão pela qual as dimensões natural e cultural da dignida-
de da pessoa se complementam e interagem mutuamente,43 guardando,
além disso, relação direta com o que se poderá designar de dimensão
prestacional (ou positiva) da dignidade.
Além do mais, tal linha de aproximação (histórico-cultural), impor-
ta consignar, foi recepcionada por expressiva jurisprudência constitucio-
nal, destacando-se aqui precedente do Tribunal Constitucional de Portu-
gal, que, no âmbito do Acórdão nº 90-105-2, de 29.03.1990, assentou que
“a idéia de dignidade da pessoa humana, no seu conteúdo concreto – nas
exigências ou corolários em que se desmultiplica – não é algo puramente
apriorístico, mas que necessariamente tem de concretizar-se histórico-cul-
turalmente”.44 Ainda a respeito deste ponto, vale registrar a lição de Ernst
Benda ,45 de acordo com o qual, para que a noção de dignidade não se
desvaneça como mero apelo ético, impõe-se que seu conteúdo seja deter-
minado no contexto da situação concreta da conduta estatal e do compor-
tamento de cada pessoa humana.
É também nesta perspectiva que há, de fato, como traçar uma distin-
ção entre dignidade humana (aqui no sentido da dignidade reconhecida a
todos os seres humanos, independentemente de sua condição pessoal,
concreta) e dignidade da pessoa humana, concretamente considerada, no

43
Cf. P. Häberle, Die Menschenwürde als Grundlage der staatlichen Gemeinschaft, in: J.
Isensee; P. Kirchhof (Orgs.). Handbuch des Staatsrechts der Bundesrepublik Deutschland,
v. I, Heidelberg: C. F. Müller, 1987, p. 860, destacando-se que a despeito da referida
dimensão cultural, a dignidade da pessoa mantém sempre sua condição de valor
próprio, inerente a cada pessoa humana, podendo falar-se assim de uma espécie de
“constante antropológica”, de tal sorte que a dignidade possui apenas uma dimen-
são cultural relativa (no sentido de estar situada num contexto cultural), apresen-
tando sempre também traços tendencialmente universais (ob. cit., p. 842-843).
44
Acórdão nº 90-105-2, de 29.03.90, Relator Bravo Serra, onde, para além do aspecto já
referido, entendeu-se ser do legislador “sobretudo quando, na comunidade jurídica,
haja de reconhecer-se e admitir-se como legítimo um pluralismo mundividencial ou
de concepções” a tarefa precípua de “em cada momento histórico, ‘ler’, traduzir e
verter no correspondente ordenamento aquilo que nesse momento são as decorrênci-
as, implicações ou exigências dos princípios ‘abertos’ da Constituição.”
45
Cf. E. Benda, Die Menschenwürde ist Unantastbar, in: Archiv für Rechts-und Sozialphilosophie
(ARSP), Beiheft n. 22, 1984, p. 23.
CONVIDADOS 85
Ingo Wolfgang Sarlet

contexto de seu desenvolvimento social e moral. Em caráter ilustrativo, é


possível referir aqui uma série de situações que, para determinada pessoa
(independentemente aqui de uma vinculação a certo grupo cultural espe-
cífico) não são consideradas como ofensivas à sua dignidade, ao passo
que para outros, trata-se de violação intensa inclusive do núcleo essencial
da dignidade da pessoa. O mesmo ocorre com a evolução da natureza das
penas em matéria criminal ao longo do tempo, já que na mesma sociedade
ocidental, que já reconhecia a dignidade da pessoa como um valor até
mesmo para o Direito, determinadas penas inicialmente aceitas como le-
gítimas, foram proscritas em função de representarem violações da digni-
dade da pessoa humana.46
Desde logo, percebe-se (ao menos assim se espera) que com o reco-
nhecimento de uma dimensão cultural e, em certo sentido, também
prestacional47 da dignidade não se está a aderir à concepção da dignida-
de como prestação 48, ao menos não naquilo em que se nega ser a

46
A título de exemplo, no que diz com a dimensão histórico-cultural da dignidade e seu
reconhecimento pela própria jurisprudência constitucional, vale tanscrever aqui texto
livremente traduzido, extraído de decisão do Tribunal Federal Constitucional da
Alemanha (v. BverfGE v. 45, p. 229), ora objeto de livre tradução, “não se pode perder
de vista que a dignidade da pessoa humana é algo irrenunciável, mas o reconhecimen-
to daquilo que é exigido pelo postulado que impõe a sua observância e respeito não
pode ser desvinculado da evolução histórica. A história das políticas criminais revela
que penas cruéis foram sendo gradativamente substituídas por penas mais brandas.
Da mesma forma a evolução de penas gravosas para penas mais humanas e de
formas simples para formas mais diferenciadas de penalização tem prosseguido,
permitindo que se vislumbre o quanto ainda deve ser superado. Por tal razão, o
julgamento sobre o que corresponde à dignidade da pessoa humana, repousa neces-
sariamente sobre o estado vigende do conhecimento e compreensão e não possui uma
pretensão de validade indeterminada”.
47
A respeito da dignidade como limite e tarefa v., dentre tantos e mais recentemente, no
contexto de uma dúplice função defensiva (negativa) e prestacional (positiva) a lição
de M. Sachs, Verfassungsrecht II – Grundrechte, p. 178 e ss.
48
Nesta quadra convém lembrar que, de modo geral e de acordo com a influente lição de
H. Hofmann, Die versprochene Menschenwürde, p. 357 e ss., as diversas teorias sobre a
dignidade da pessoa, notadamente no que diz com o seu conteúdo e fundamentação,
podem ser agrupadas em torno de duas concepções, quais sejam, as teorias que
compreendem a dignidade como dádiva (Mitgifttheorien), no sentido de que a digni-
dade constitui uma qualidade ou propriedade peculiar e distintiva da pessoa huma-
na (inata, ou fundada na razão ou numa dádiva divina), bem como as teorias assim
denominadas de prestacionais (Leistungstheorien), que vêem na dignidade o produto
(a prestação) da subjetividade humana. Sem que se vá aqui arrolar e dissecar as
principais concepções elaboradas no âmbito destas duas correntes e lembrando que
mesmo esta classificação não se encontra imune à controvérsia, parece-nos – tal como
lembra o próprio Hofmann (ob. cit., p. 358), que, em verdade, não se verifica uma
86 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

dignididade (também) o valor intrínseco reconhecido ao ser humano, mas


sim, eminentemente uma condição conquistada pela ação concreta de cada
indivíduo, não sendo tarefa dos direitos fundamentais assegurar a digni-
dade, mas sim, as condições para a realização da prestação49. Com efeito,
não há como aceitar neste ponto a lição de Niklas Luhmann50, para quem
a pessoa alcança (conquista) sua dignidade a partir de uma conduta
autodeterminada e da construção exitosa da sua própria identidade. Tal
concepção, que chegou a ser qualificada – talvez até de modo exagerado –
como um equívoco sociológico (ein soziologisches Missverständnis),51 tam-
bém não corresponde às exigências do estado constitucional e de sua cul-
tura, já que também aquele que nada “presta” para si próprio ou para os
outros (tal como ocorre com o nascituro, o absolutamente incapaz, etc.)
evidentemente não deixa de ter dignidade e, para além disso, não deixa de
ter o direito de vê-la respeitada e protegida 52.

oposição fundamental entre ambas as teorias (dádiva e prestação), já que ambas


repousam, em última análise, no postulado da subjetividade e autonomia do indiví-
duo. A despeito disso, que ambas as concepções apresentam aspectos passíveis de
crítica, é ponto que já obteve e voltará a obter alguma atenção ao longo deste ensaio.
Também mencionando a classificação proposta por Hofmann, v., em língua portu-
guesa, a recente e importante contribuição de J. C. Gonçalves Loureiro, O Direito à
Identidade Genética ..., p, 280-81, referindo uma terceira concepção teórica extraída do
texto de Hofmann, e que visualiza a dignidade como reconhecimento (Annerkennung).
Muito embora tal aspecto careça de maior digressão, parece-nos que Hofmann, após
apresentar e discutir criticamente as duas concepções da dignidade como dádiva e
prestação, passa a propor uma noção de dignidade como reconhecimento, no sentido
de que “a dignidade significa reconhecimento recíproco do outro no que diz com a sua
especifidade e suas peculiaridades como indivíduo...” (ob. cit., p. 370).
49
Cf. a leitura de P. Häberle, Die Menschenwürde als Grundlage..., p. 836, referindo-se
especificamente ao pensamento de Luhmann.
50
Para Luhmann, Grundrechte als Instituition, 2. ed., Berlin: Duncker & Humblot, 1974,
p. 60 e ss., adotando nitidamente uma perspectiva Hegeliana, assim como a liberda-
de, a dignidade é o resultado e condição de uma exitosa auto-re- presentação. Além
disso, os conceitos de liberdade e dignidade constituem condições fundamentais para
a auto-representação do Homem como pessoa individual, o que, de resto, se processa
apenas no contexto social, de tal sorte que a dignidade e a liberdade referem-se a
problemas específicos de comunicação.
51
Cf. a crítica de C. Starck, Das Bonner Grundgesetz, 4.ed., v.1, München: Verlag Franz
Vahlen, 1999, p. 46, destacando que a dignidade não se restringe aos que logram
construí-la pessoalmente, pois, em sendo assim, poderá acabar sendo justificado –
como a história já demonstrou – o sacrifício dos deficientes mentais, pessoas com
deformidades físicas e até mesmo dos “monstros espirituais” (os traidores da
pátria e inimigos da classe).
52
Cf. a ponderação de P. Häberle, Die Menschenwürde als Grundlage..., p. 838.
CONVIDADOS 87
Ingo Wolfgang Sarlet

Justamente no que diz com este ponto, resulta evidente a conexão


com a necessariamente dupla dimensão negativa (defensiva) e positiva
(prestacional) da dignidade da pessoa humana, que justamente merecerá
atenção mais detida no próximo segmento.

6. A DIGNIDADE COMO LIMITE E COMO TAREFA: A DUPLA


DIMENSÃO NEGATIVA E PRESTACIONAL DA DIGNIDADE

Partindo do citado “equívoco de Luhmann”, sustenta-se que a dig-


nidade possui uma dimensão dúplice, que se manifesta enquanto simulta-
neamente expressão da autonomia da pessoa humana (vinculada à idéia
de autodeterminação no que diz com as decisões essenciais a respeito da
própria existência), bem como da necessidade de sua proteção (assistên-
cia) por parte da comunidade e do Estado, especialmente quando fragilizada
ou até mesmo – e principalmente – quando ausente a capacidade de auto-
determinação. Assim, de acordo com Martin Koppernock, a dignidade, na
sua perspectiva assistencial (protetiva) da pessoa humana, poderá, dadas
as circunstâncias, prevalecer em face da dimensão autonômica, de tal sorte
que, todo aquele a quem faltarem as condições para uma decisão própria e
responsável (de modo especial no âmbito da biomedicina e bioética) pode-
rá até mesmo perder – pela nomeação eventual de um curador ou submis-
são involuntária a tratamento médico e/ou internação – o exercício pesso-
al de sua capacidade de autodeterminação, restando-lhe, contudo, o direi-
to a ser tratado com dignidade (protegido e assistido).53
Tal concepção encontra-se, de resto, embasada na doutrina de
Dworkin54, que, demonstrando a dificuldade de se explicar um direito a
tratamento com dignidade daqueles que, dadas as circunstâncias (como

53
Cf. M. Koppernock, Das Grundrecht auf bioethische Selbstbestimmung, Baden-Baden:
Nomos, 1997, pp. 19-20, salientando – na esteira de outros doutrinadores, que mes-
mo presente, em sua plenitude, a autonomia da vontade (dignidade como capacida-
de de autodeterminação) esta poderá ser relativizada em face da dignidade na sua
dimensão assistencial (protetiva), já que, em determinadas circunstâncias, nem mes-
mo o livre consentimento autoriza determinados procedimentos, tal como ocorre,
v.g., com a extração de todos os dentes de um paciente sem qualquer tipo de indica-
ção médica, especialmente quando o consentimento estiver fundado na ignorância
técnica. Até que ponto, nesta e em outras hipóteses até mesmo mais gravosas, é
possível falar na presença de uma plena autonomia, é, de resto, aspecto que refoge ao
âmbito destas considerações, mas que, nem por isso, deixa de merecer a devida
atenção.
54
Cf. R. Dworkin, El Dominio de la Vida. Una Discusión acerca del Aborto, la Eutanasia y la
Liberdad Individual, Barcelona: Ariel, 1998, pp. 306-307.
88 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

ocorre nos casos de demência e das situações nas quais as pessoas já não
logram sequer reconhecer insultos a sua auto-estima ou quando já perde-
ram completamente sua capacidade de autodeterminação), ainda assim
devem receber um tratamento digno. Dworkin, portanto, parte do pressu-
posto de que a dignidade possui “tanto uma voz ativa quanto uma voz
passiva e que ambas encontram-se conectadas”, de tal sorte que é no valor
intrínseco (na “santidade e inviolabilidade”) da vida humana55 de todo e
qualquer ser humano, que encontramos a explicação para o fato de que
mesmo aquele que já perdeu a consciência da própria dignidade merece
tê-la (sua dignidade) considerada e respeitada56. Que essa assertiva não

55
Embora – importa destacá-lo já neste momento – não se possa concordar com uma
noção exclusivamente biológica da dignidade, não sendo poucas as críticas que têm
sido assacadas no âmbito da produção doutrinária, ao tematizar a assim designada
“biologização” da dignidade, também é certo que a desvinculação total entre vida e
dignidade igualmente se revela incompatível com uma concepção suficientemente pro-
dutiva da dignidade e capaz de abarcar os inúmeros e diversificados desafios que lhe
são direcionados. Posicionando-se contrariamente a uma biologização, v., entre outros,
U. Neumann, Die Tyrannei der Würde, in: Archiv für Rechts-und Sozialphilosophie (ARSP),
v. 84, 1998, p. 156 e ss., especialmente no contexto da problemática das manipulações
genéticas, assim como, mais recentemente, E. Denninger, Embryo und Grundgesetz..., p.
201 e ss., este aderindo à concepção de Habermas, no sentido de que a dignidade não
decorre da natureza humana (não sendo, portanto, um atributo inato e natural, tal
como a cor dos olhos, etc.), mas sim do reconhecimento do valor intangível de cada
pessoa no âmbito da reciprocidade das relações humanas. A despeito dos diversos
problemas vinculados à discussão ora retratada, deixaremos de desenvolver, pelo me-
nos por ora, este ponto, que, de resto, será em parte retomado mais adiante, quando do
comentário a respeito das relações entre a dignidade e o direito à vida. Em sentido
diverso, criticando enfaticamente a tendência a uma desconexão entre vida e dignidade,
v., dentre tantos, J. Isensee, Der Grundrechtliche Status des Embryos. Menschewürde und
Recht auf Leben als Determinanten der Gentechnik, in: O. Höffe; L. Honnefelder; J. Isensee.
Gentechnik und Menschenwürde. An den Grenzen von Ethik und Recht, Köln: Du Mont, 2002,
p. 62 e ss. Da mesma forma, aproximando-se aqui de Habermas, mas sem deixar de
reconhecer uma vinculação entre os atributos naturais da pessoa, registre-se o entendi-
mento de O. Höffe, Menschenwürde als ethisches Prinzip, in: O. Höffe; L. Honnefelder; J.
Isensee. Gentechnik und Menschenwürde. An den Grenzen von Ethik und Recht, Köln: Du
Mont, 2002, p. 115, ao afirmar que se, por um lado, a dignidade consiste em um
axioma, no sentido de um princípio diretivo da moral e do direito, também é certo que
a dignidade se refere a características biológicas da pessoa, sem contudo ser ela própria
(dignidade) uma destas características.
56
Cf. R. Dworkin, El Dominio de la Vida..., pp. 306-309. Sobre a distinção (autonomia), mas
mesmo assim íntima conexão entre dignidade e da vida (pois dignidade e vida, como
princípios e direitos fundamentais, referem-se, em primeira linha, à pessoa humana,
sendo esta o elo comum) bem como a respeito das relações entre ambos os valores, v.
especialmente os desenvolvimentos de Michael Kloepfer, Leben und Würde des Menschen,
especialmente p. 78 e ss, texto que integra a presente coletânea.
CONVIDADOS 89
Ingo Wolfgang Sarlet

conduz necessariamente à refutação da possível distinção entre as noções


de pessoa e dignidade, vai aqui afirmado, ainda que não desenvolvido,
muito embora se cuide de um dos principais aspectos do pensamento de
Hegel (o texto de Kurt Seelman, que integra a coletânea, bem o demonstra,
ao referir a diferença entre o ser pessoa e o ter dignidade)57 e, mais recente-
mente, Habermas, sobre o tema, de tal sorte que este último traça uma
linha distintiva entre o que chama de dignidade da pessoa e dignidade da
vida humana58.
Assim, seguindo uma tendência que parece estar conduzindo a
uma releitura e recontextualização da doutrina de Kant (ao menos naqui-
lo em que aparentemente se encontra centrada exclusivamente na noção
de autonomia da vontade e racionalidade), vale reproduzir a lição de Dieter
Grimm59, eminente publicista e Magistrado germânico, ao sustentar que a

57
Com efeito, de acordo com K. Seelmann, Person und Menschenwürde in der Phliosophie
Hegels, in: H. Dreier (Org.). Philosophie des Rechts und Verfassungstheorie.
Geburtstagsympoion für Hasso Hofmann, Berlin: Duncker & Humblot, 2000, p. 141,
destaca que o mais apropriado seria falar que, ao pensamento de Hegel (e não estri-
tamente na sua Filosofia do Direito), encontra-se subjacente uma teoria da dignidade
como viabilização de determinadas prestações. Tal teoria, além de não ser incompa-
tível com uma concepção ontológica da dignidade (vinculada a certas qualidades
inerentes à condição humana), significa que uma proteção jurídica da dignidade
reside no dever de reconhecimento de determinadas possibilidades de prestação,
nomeadamente, a prestação do respeito aos direitos, do desenvolvimento de uma
individualidade e do reconhecimento de um auto-enquadramento no processo de
interação social. Além disso, como, ainda, bem refere o autor, tal conceito de dignida-
de não implica a desconsideração da dignidade (e sua proteção) no caso de pessoas
portadoras de deficiência mental ou gravemente enfermos, já que a possibilidade de
proteger determinadas prestações não significa que se esteja a condicionar a proteção
da dignidade ao efetivo implemento de uma dada prestação, já que também aqui (de
modo similar – como poderíamos acrescentar – ao que se verificou relativamente ao
pensamento Kantiano, centrado na capacidade para a autodeterminação inerente a
todos os seres racionais) o que importa é a possibilidade de uma prestação (ob. cit.,
p. 142). A respeito das diversas dimensões da dignidade encontradas no pensamento
de Hegel, v., ainda, a breve referência de O. Höffe, Menschenwürde als ethisches Prinzip,
p. 133.
58
Cfr. Jürgen Habermas, Die Zukunft der menschlichen Natur..., p. 57 e ss.
59
Cf. D. Grimm, apud M. Koppernock, Das Grundrecht auf bioethische Selbstbestimmung,
pp. 21-22, muito embora posicionando-se de forma crítica em relação ao reconheci-
mento da dignidade exclusivamente com base na pertinência biológica a uma espécie
e centrando a noção de dignidade no reconhecimento de direitos ao indivíduo, sem os
quais este acaba não sendo levado a sério como tal. Nesta mesma linha, já havia
decidido o Tribunal Federal Constitucional da Alemanha (in: BverfGE 39, 1 [41]),
considerando que onde existe vida humana esta deve ter assegurada a proteção de
sua dignidade, não sendo decisivo que o titular tenha consciência de sua dignidade
ou que saiba defender-se a si próprio, bastando, para fundamentação da dignidade,
as qualidades potenciais inerentes a todo o ser humano.
90 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

dignidade, na condição de valor intrínseco do ser humano, gera para o


indivíduo o direito de decidir de forma autônoma sobre seus projetos exis-
tenciais e felicidade e, mesmo onde esta autonomia lhe faltar ou não puder
ser atualizada, ainda assim ser considerado e respeitado pela sua condi-
ção humana.
É justamente neste sentido que assume particular relevância a
constatação de que a dignidade da pessoa humana é simultaneamente
limite e tarefa dos poderes estatais e, no nosso sentir, da comunidade em
geral, de todos e de cada um, condição dúplice esta que também aponta
para uma paralela e conexa dimensão defensiva e prestacional da digni-
dade. Como limite, a dignidade implica não apenas que a pessoa não
pode ser reduzida à condição de mero objeto da ação própria e de tercei-
ros, mas também o fato de a dignidade gera direitos fundamentais (nega-
tivos) contra atos que a violem ou a exponham a graves ameaças. Como
tarefa, da previsão constitucional (explícita ou implícita) da dignidade da
pessoa humana, dela decorrem deveres concretos de tutela por parte dos
órgãos estatais, no sentido de proteger a dignidade de todos, asseguran-
do-lhe também por meio de medidas positivas (prestações) o devido res-
peito e promoção.
Em caráter complementar e evidentemente não exaustivo, recolhe-
se aqui a lição de Adalbert Podlech60, segundo o qual é possível afirmar
que, na condição de limite da atividade dos poderes públicos, a dignidade
necessariamente é algo que pertence a cada um e que não pode ser perdido
ou alienado, porquanto, deixando de existir, não haveria mais limite a ser
respeitado (este sendo considerado o elemento fixo e imutável da dignida-
de). Como tarefa (prestação) imposta ao Estado, a dignidade da pessoa
reclama que este guie as suas ações tanto no sentido de preservar a digni-
dade existente, quanto objetivando a promoção da dignidade, especial-
mente criando condições que possibilitem o pleno exercício e fruição da
dignidade, sendo portanto dependente (a dignidade) da ordem comunitá-
ria, já que é de se perquirir até que ponto é possível ao indivíduo realizar,
ele próprio, parcial ou totalmente, suas necessidades existenciais básicas
ou se necessita, para tanto, do concurso do Estado ou da comunidade; este
seria, portanto (segundo o mesmo Podlech), o elemento mutável da digni-
dade.

60
Cf. A. Podlech, Anmerkungen zu Art. 1 Abs. I Grundgesetz, pp. 280-281.
CONVIDADOS 91
Ingo Wolfgang Sarlet

7. DA FÓRMULA MINIMALISTA DO HOMEM-OBJETO PARA UMA


CONCEITUAÇÃO ANALÍTICA (NECESSARIAMENTE ABERTA E
COMPLEXA) POSSÍVEL DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

Com base no que até agora foi exposto, verifica-se que reduzir a
uma fórmula abstrata e genérica tudo aquilo que constitui o conteúdo
possível da dignidade da pessoa humana, em outras palavras, alcançar
uma definição precisa do seu âmbito de proteção ou de incidência (em se
considerando sua condição de norma jurídica), não parece ser possível, o
que, por sua vez, não significa que não se possa e não se deva buscar uma
definição, que, todavia, acabará alcançando pleno sentido e
operacionalidade apenas em face do caso concreto, como, de resto, é o que
ocorre de modo geral com os princípios e direitos fundamentais.
Com efeito, para além dos aspectos ventilados, a busca de uma
definição necessariamente aberta mas minimamente objetiva (no sentido
de concretizável) impõe-se justamente em face da exigência de um certo
grau de segurança e estabilidade jurídica, bem como para evitar – como
bem lembra Béatrice Maurer, no seu contributo publicado nesta coletânea
– que a dignidade continue a justificar o seu contrário.61
Como ponto de partida nesta empreitada, inclusive por se tratar
daquilo que pode ser até mesmo considerado como um elemento nuclear
da dignidade, vale citar a fórmula desenvolvida por Günter Dürig, na
Alemanha, para quem (na esteira da concepção kantiana) a dignidade da
pessoa humana poderia ser considerada atingida sempre que a pessoa
concreta (o indivíduo) fosse rebaixada a objeto, a mero instrumento, trata-
da como uma coisa, em outras palavras, sempre que a pessoa venha a ser
descaracterizada e desconsiderada como sujeito de direitos.62 Como bem

61
Cf. B. Maurer, Notes sur le Respect de la Dignité Humaine... ou Petite Fugue Inacheveé
Autour d’un Thème Central, in: A. Sérieux et allii. Le Droit, Le Médicine et L’être Humain,
Aix-En-Provence: Presses Universitaires D’Aix-Marseille, 1996, p. 186.
62
Cf. G. Dürig, Der Grundsatz der Menschenwürde..., p. 127. No direito brasileiro, a
fórmula do homem-objeto, isto é, o enunciado de que tal condição é justamente a
negação da dignidade, encontra-se – ao menos assim nos parece – formulada ex-
pressamente na Constituição, notadamente quando o nosso Constituinte, no art. 5º,
inciso III, da Constituição de 1988, estabelece de forma enfática que “ninguém será
submetido à tortura e a tratamento desumano ou degradante.” Neste contexto,
vale, ainda, lembrar a lição de P. Häberle, Menschenwürde als Grundlage..., p. 842,
quando afirma que a concepção de Dürig (a fórmula do “objeto”) acaba por trans-
formar-se também numa “fórmula-sujeito”, já que o estado constitucional efetiva
a dignidade da pessoa, na medida em que reconhece e promove o indivíduo na
condição de sujeito de suas ações.
92 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

consignou Michael Sachs63, tal fórmula parte de uma definição da digni-


dade considerando seu âmbito de proteção, traduzindo uma opção por
uma perspectiva que prefere determinar este âmbito de proteção a partir
de suas violações no caso concreto. Esta concepção, muito embora larga-
mente (mas não exclusivamente) acolhida e adotada também – ao menos
em expressivo número de decisões – pelo Tribunal Federal Constitucional
da Alemanha,64 por evidente não poderá oferecer uma solução global para
o problema, já que não define previamente o que deve ser protegido, mas
permite a verificação, à luz das circunstâncias do caso concreto, da exis-
tência de uma efetiva violação da dignidade da pessoa humana, fornecen-
do, ao menos, um caminho a ser trilhado, de tal sorte que, ao longo do
tempo, doutrina e jurisprudência encarregaram-se de identificar uma sé-
rie de posições que integram a noção de dignidade da pessoa humana e
que, portanto, reclamam a proteção pela ordem jurídica.65 O que se perce-
be, em última análise, é que onde não houver respeito pela vida e pela

63
Cf. M. Sachs, Verfassungsrecht II – Grundrechte, p. 174.
64
Apenas pinçando uma das diversas decisões onde tal concepção foi adotada, verifi-
ca-se que, para o Tribunal Federal Constitucional da Alemanha, a dignidade da
pessoa humana está vinculada ao valor social e pretensão de respeito do ser humano,
que não poderá ser reduzido à condição de objeto do Estado ou submetido a trata-
mento que comprometa a sua qualidade de sujeito (v. BverfGE 96, p. 399). Convém
lembrar, todavia (a despeito de outras críticas possíveis) que a fórmula do homem-
objeto não afasta a circunstância de que, tanto na vida privada quando na esfera
pública, as pessoas constantemente se colocam a si próprias na condição de objeto da
influência e ação alheias, sem que com isto se esteja colocando em dúvida a sua
condição de pessoa (Cf. a observação de H. Hofmann, Die versprochene Menschenwürde,
p. 360. Igualmente não se deve desconsiderar a precoce objeção de N. Luhmann,
Grundrechte als Institution, p. 60, que considerou a fórmula-objeto vazia, já que não
afasta a necessidade de decidir quando e sob que circunstâncias alguém estará sendo
tratado como objeto, a ponto de restar configurada uma violação da sua dignidade.
65
Assim, por exemplo, não restam dúvidas de que a dignidade da pessoa humana
engloba necessariamente o respeito e a proteção da integridade física do indivíduo, do
que decorrem a proibição da pena de morte, da tortura, das penas de cunho corporal,
utilização da pessoa humana para experiências científicas, estabelecimento de nor-
mas para os transplantes de órgãos, etc., tudo conforme refere Höfling, Anmerkungen
zu Art. 1 Abs. 3 Grundgesetz, pp. 107-109. De outra parte, percebe-se que os exemplos
citados demonstram a existência de uma íntima relação entre os direitos fundamen-
tais e a dignidade da pessoa, aspecto que ainda será objeto de análise mais aprofundada
e que aqui foi apenas referido com o objetivo de demonstrar algumas das dimensões
concretas desenvolvidas a partir da noção da dignidade da pessoa humana. Registre-
se, ademais, que o próprio Tribunal Federal Constitucional da Alemanha, tal como
refere M. Sachs, Verfassungsrecht II – Grundrechte, p. 174, tem relativizado a fórmula
do “homem-objeto”, reconhecendo ser a mesma insuficiente para apreender todas as
violações e assegurar, por si só, a proteção eficiente da dignidade da pessoa humana.
CONVIDADOS 93
Ingo Wolfgang Sarlet

integridade física e moral do ser humano, onde as condições mínimas


para uma existência digna não forem asseguradas, onde não houver limi-
tação do poder, enfim, onde a liberdade e a autonomia, a igualdade (em
direitos e dignidade) e os direitos fundamentais não forem reconhecidos e
minimamente assegurados, não haverá espaço para a dignidade da pes-
soa humana e esta (a pessoa), por sua vez, poderá não passar de mero
objeto de arbítrio e injustiças.
É neste contexto que, igualmente buscando uma concretização da
dignidade da pessoa humana na perspectiva do Direito, poder-se-á acom-
panhar, em linhas gerais, a lição de Maria Celina Bodin de Moraes66, para
quem do substrato material da dignidade decorrem quatro princípios jurí-
dicos fundamentais, nomeadamente os da igualdade (que, em suma, veda
toda e qualquer discriminação arbitrária e fundada nas qualidades da
pessoa), da liberdade (que assegura a autonomia ética e, portanto, a capa-
cidade para a liberdade pessoal) , da integridade física e moral (que, no
nosso sentir inclui a garantia de um conjunto de prestações materiais que
asseguram uma vida com dignidade) e da solidariedade (que diz com a
garantia e promoção da coexistência humana, em suas diversas manifes-
tações). Que tais princípios concretizadores da dignidade, por sua vez,
encontram-se vinculados a todo um conjunto de direitos fundamentais,
vai aqui assumido como pressuposto e não será, dados os limites do pre-
sente estudo, objeto de desenvolvimento67.
A partir do exposto, verifica-se que também para a ordem jurídico-
constitucional a concepção do homem-objeto (ou homem-instrumento),
com todas as conseqüências que daí podem e devem ser extraídas, consti-
tui justamente a antítese da dignidade da pessoa humana, embora esta, à
evidência, não possa ser, por sua vez, exclusivamente formulada no sen-
tido negativo (de exclusão de atos degradantes e desumanos), já que as-
sim se estaria a restringir demasiadamente o âmbito de proteção da digni-
dade,68 razão pela qual imperiorsa a sua concretização por meio de outros

66
Cf. M.C. Bodin de Moraes, O Conceito de Dignidade Humana: Substrato Axiológico e
Conteúdo Normativo, in: I. W. Sarlet (Org.). Constituição, Direitos Fundamentais e Direi-
to Privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 116 e ss.
67
Aqui remetemos ao nosso Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais..., p.
84 e ss.
68
Neste sentido, parece situar-se o entendimento de M. Sachs, Verfassungsrecht II –
Grundrechte, p. 174 e ss., sugerindo que o âmbito de proteção da garantia da digni-
dade da pessoa humana restaria melhor definido em se perquirindo, em cada caso
concreto, se à luz da fórmula do homem-objeto a suposta conduta violadora efeti-
vamente desconsidera o valor intrínseco da pessoa. Por sua vez, U. Di Fabio, Der
94 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

princípios e direitos fundamentais, de natureza negativa e positiva. Isto,


por sua vez, remete-nos ao delicado problema de um conceito minimalista
ou maximalista (ótimo) de dignidade, que aqui não será desenvolvido,
mas que se encontra subjacente ao problema da universalização da pró-
pria dignidade e dos direitos fundamentais que lhe são inerentes, objeto
do próximo segmento.
O próprio Dworkin69, ao tratar do conteúdo da dignidade da pes-
soa humana, acaba reportando-se direta e expressamente à doutrina de
Kant, ao relembrar que o ser humano não poderá jamais ser tratado como
objeto, isto é, como mero instrumento para realização dos fins alheios,
destacando, todavia, que tal postulado não exige que nunca se coloque
alguém em situação de desvantagem em prol de outrem, mas sim, que as
pessoas nunca poderão ser tratadas de tal forma que se venha a negar a
importância distintiva de suas próprias vidas.70 Neste contexto, vale re-
gistrar, ainda, que mesmo Kant nunca afirmou que o homem, num certo
sentido, não possa ser “instrumentalizado” de tal sorte que venha a ser-
vir, espontaneamente e sem que com isto venha a ser degradado na sua
condição humana, à realização de fins de terceiros, como ocorre, de certo
modo, com todo aquele que presta um serviço a outro. Com efeito, Kant
refere expressamente que o Homem constitui um fim em si mesmo e não
pode servir “simplesmente como meio para o uso arbitrário desta ou da-
quela vontade”.71 Ainda nesta perspectiva, já se apontou – com razão,
assim o parece – para o fato de que o desempenho das funções sociais em
geral encontra-se vinculado a uma recíproca sujeição, de tal sorte que a
dignidade da pessoa humana, compreendida como vedação da
instrumentalização humana, em princípio proíbe a completa e egoística
disponibilização do outro, no sentido de que se está a utilizar outra pes-

Schutz der Menschenwürde durch allgemeine Programmgrundsetze, München: Reinhard


Fischer Verlag, 1999, p. 22 e ss., destaca que não é possível definir a dignidade como
bem juridicamente protegido para além da fórmula-objeto (que reconhece ser vaga
e indeterminada), sem que se acabe invadindo a seara nebulosa da autodefinição do
ser humano, de tal sorte que apenas uma determinação do âmbito de proteção com
base no critério da conduta ofensiva se revela juridicamente controlável.
69
Cf. R. Dworkin, El Dominio de la Vida..., pp. 307-10.
70
Cf. R. Dworkin, El Dominio de la Vida..., p. 310, referindo, com base no exemplo dos
presos, que tal concepção impõe que, apesar das razões que levaram ao
encarceramento, que poderão exigir e justificar esta ofensa (a prisão), estas não
autorizam que se venha a tratar o preso como mero objeto, à disposição dos de-
mais, como se apenas importasse a utilidade da prisão.
71
Cf. I. Kant, Fundamentação da Metafísica dos Costumes, in: Os Pensadores – Kant (II),
Trad. Paulo Quintela. São Paulo: Abril Cultural, 1980, pp. 134-135.
CONVIDADOS 95
Ingo Wolfgang Sarlet

soa apenas como meio para alcançar determinada finalidade, de tal sorte
que o critério decisivo para a identificação de uma violação da dignidade
passa a ser (pelo menos em muitas situações, convém acrescer) o do obje-
tivo da conduta, isto é, a intenção de instrumentalizar (coisificar) o ou-
tro.72
Por derradeiro, é possível encerrar esta etapa reproduzindo, a título
de sugestão, proposta pessoal de conceituação (jurídica) da dignidade da
pessoa humana73 que, além de abranger (mas não se restringir) a vedação
da coisificação e, portanto, degradação da pessoa por conta da tradicio-
nal fórmula-objeto, busca reunir a dupla perspectiva ontológica e instru-
mental referida, procura destacar tanto a sua necessária faceta
intersubjetiva e, portanto, relacional, quanto a sua dimensão simultanea-
mente negativa (defensiva) e positiva (prestacional).
Assim sendo, tem-se por dignidade da pessoa humana a qualidade
intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do
mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando,
neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a
pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como
venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudá-
vel,74 além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos
destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres huma-
nos.

8. À GUISA DE CONCLUSÃO: A NECESSÁRIA SECULARIZAÇÃO E


UNIVERSALIZAÇÃO DA DIGNIDADE NUM CONTEXTO
MULTICULTURAL – POR UMA CONCEPÇÃO NÃO
“FUNDAMENTALISTA” DA DIGNIDADE

Em face da já referida contextualização histórico-cultural da digni-


dade da pessoa humana é de perguntar-se até que ponto a dignidade não
está acima das especifidades culturais, que, muitas vezes, justificam atos
que, para a maior parte da humanidade são considerados atentatórios à

72
Cf. U. Neumann, Die Tyrannei der Würde, p. 161.
73
Cf. o nosso Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais..., pp. 59-60.
74
Como critério aferidor do que seja uma vida saudável, parece-nos apropriado
utilizar os parâmetros estabelecidos pela Organização Mundial da Saúde, quando
se refere a um completo bem-estar físico, mental e social, parâmetro este que, pelo
seu reconhecimento amplo no âmbito da comunidade internacional, poderia igual-
mente servir como diretriz mínima a ser assegurada pelos Estados.
96 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

dignidade da pessoa humana, mas que, em certos quadrantes, são tidos


por legítimos, encontrando-se profundamente enraizados na prática soci-
al e jurídica de determinadas comunidades. Em verdade, ainda que se
pudesse ter o conceito de dignidade como universal, isto é, comum a todas
as pessoas em todos os lugares, não haveria como evitar uma disparidade
e até mesmo conflituosidade sempre que se tivesse de avaliar se uma de-
terminada conduta é, ou não, ofensiva da dignidade.75 Nesta linha de
entendimento parece situar-se o pensamento de Dworkin que, ao susten-
tar a existência de um direito das pessoas de não serem tratadas de forma
indigna, refere que qualquer sociedade civilizada tem seus próprios pa-
drões e convenções a respeito do que constitui esta indignidade, critérios
que variam conforme o local e a época.76
Ainda que não se possa aqui avançar muito na discussão em torno
de um concepção universalmente aceita de dignidade da pessoa e direitos
fundamentais, vale registrar, todavia, a lição de Boaventura Santos77, ao

75
Cf. M. A. Alegre Martínez, La Dignidad de la Persona..., p. 26. No mesmo sentido,
frisando que a despeito da dignidade ser um valor constante, o que assegura digni-
dade às pessoas acaba sendo definido por fatores históricos e sociais, v. C. Gearty,
Principles of Human Rights Adjudication, Oxford: Oxford University Press, 2004, p.
87.
76
Cf. R. Dworkin, El Dominio de la Vida..., p. 305. Neste contexto, a respeito da
diversidade de tratamento da dignidade da pessoa, mesmo pelo ordenamento jurí-
dico, vale lembrar, entre outros, o exemplo da Constituição Iraniana de 1980 (refe-
rido por B. Mathieu, La Dignité de la Personne Humaine..., p. 286), que, no seu artigo
22, dispõe que “a dignidade dos indivíduos é inviolável...salvo nos casos autoriza-
dos por lei”, o que demonstra igualmente que – ao menos para algumas ordens
jurídicas – nem mesmo a dignidade encontra-se imune a restrições pelo legislador,
aspecto do qual voltaremos a nos pronunciar. Da mesma forma, vale lembrar aqui,
dentre outros tantos exemplos que poderiam ser colacionados, a prática da tortura,
das mutilações genitais, da discriminação sexual e religiosa, ainda toleradas (inclu-
sive pelo direito positivo) em alguns Estados.
77
Cf. B. Sousa Santos, Por uma Concepção Multicultural de Direitos Humanos, in: Revista
Crítica de Ciências Sociais, n. 48, 1997, especialmente p. 18 e ss., onde o festejado
sociólogo lusitano sustenta que o conceito de direitos humanos e a própria noção de
dignidade da pessoa assentam num conjunto de pressupostos tipicamente ociden-
tais, quando, em verdade, todas as culturas possuem concepções de dignidade
humana, muito embora nem todas elas a concebam em termos de direitos humanos,
razão pela qual se impõe o estabelecimento de um diálogo intercultural, no sentido
de uma troca permanente entre diferentes culturas e saberes, que será viabilizada
pela aplicação daquilo que o autor designou de uma “hermenêutica diatópica”,
que, por sua vez, não pretende alcançar uma completude em si mesma inatingível,
mas sim, ampliar ao máximo a consciência da incompletude mútua entre as diver-
sas culturas por meio do diálogo. Mais recentemente, também enfrentando a ques-
CONVIDADOS 97
Ingo Wolfgang Sarlet

sustentar que o conceito corrente de direitos humanos78 e a própria noção


de dignidade da pessoa assentam num conjunto de pressupostos tipica-
mente ocidentais, quando, em verdade, todas as culturas possuem con-
cepções de dignidade humana, muito embora nem todas elas a concebam
em termos de direitos humanos, razão pela qual se impõe o estabelecimen-
to de um diálogo intercultural, no sentido de uma troca permanente entre
diferentes culturas e saberes, que será viabilizado pela aplicação de uma
“hermenêutica diatópica”, que, por sua vez, não pretende alcançar uma
completude em si mesma inatingível, mas sim, ampliar ao máximo a cons-
ciência da incompletude mútua entre diversas culturas por meio do diálo-
go. Neste mesmo contexto, acrescenta-se a observação de Otfried Höffe79,
no sentido de que uma vinculação da noção de dignidade da pessoa à
tradição judaico-cristã80 ou mesmo à cultura européia, poderia justificar a

tão da dignidade à luz da globalização e do multiculturalismo, v., entre outros,


D.N. Weisstub, Honor, Dignity, and the Framing of Multiculturalist Values, in: D.
Kretzmer; E. Klein (Ed.), The Concept of Human Dignity in Human Rights Discourse,
The Hague: Kluwer Law International, 2002, pp. 263-293. Demonstrando não ape-
nas a necessidade, mas algumas das possibilidades vinculadas a um diálogo entre
as diversas fontes normativas (no caso, enfrentando o tema da dignidade da pessoa
humana) v. o estudo de V. Jackson, Constitutional Dialogue and Human Dignity:
States and Transnational Constitutional Discourse, in: Montana Law Review, v. 65, 2004,
pp. 15-40, propondo, em síntese, uma abertura para os aportes do direito compa-
rado e, de resto, o diálogo produtivo entre as fontes de direito constitucional, espe-
cialmente no caso dos EUA, onde, a despeito da ausência de previsão expressa na
Constituição (muito embora o reconhecimento da dignidade – ainda que de modo
não unânime e carente de uma série de desenvolvimentos – como valor subjacente
ao sistema constitucional) existe previsão explícita do princípio na esfera estadual.
78
Neste sentido, vale averbar a lição de M. Kriele, Einführung in die Staatslehre, 5.ed.,
Opladen: Westdeutscher Verlag, 1994, p. 214, apontando para a circunstância de
que foi justamente a idéia de que o homem, por sua mera natureza humana, é
titular de direitos possibilitou o reconhecimento dos direitos humanos e a proteção
também dos fracos e excluídos, e não apenas dos que foram contemplados com
direitos pela lei, por contratos, em virtude de sua posição social e econômica.
79
Cf. O. Höffe, Medizin ohne Ethik?, p. 49, afirmando que para assegurar a validade
intercultural do princípio da dignidade da pessoa humana, de tal sorte a alcançar
vinculatividade mundial, o próprio conteúdo e significado do princípio deve ser
necessariamente compreendido como interculturalmente válido e secularizado, por-
tanto, mediante renúncia a qualquer específica mundovisão ou concepção religiosa.
80
Com efeito, vale recordar, com C. Starck, Das Bonner Grundgesetz, pp. 34-35, que a
despeito de não existir na Bíblia um conceito de dignidade, nela encontramos uma
concepção do ser humano que serviu e até hoje tem servido como pressuposto
espiritual para o reconhecimento e construção de um conceito e de uma garantia
jurídico-constitucional da dignidade da pessoa, que, de resto, acabou passando por
um processo de secularização, notadamente no âmbito do pensamento Kantiano.
98 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

crítica de que a dignidade não constitui um conceito e postulado


intercultural e secularizado, o que, por sua vez, acabaria sendo um obstá-
culo à própria universalização e – neste sentido – um fator impeditivo de
uma globalização da dignidade num contexto multicultural.
De outra parte, em se tomando por referencial as diversas dimen-
sões da dignidade da pessoa humana na sua dimensão jurídico-normativa,
tal qual sumariamente expostas, constata-se o quanto não se pode aceitar,
a crítica genérica de que o conceito de dignidade da pessoa é algo como
um cânone perdido e vazio, que se presta a todo e qualquer tipo de abusos
e interpretações equivocadas, já que, a partir da lição de Lênio Streck81, se
está convicto de que também e acima de tudo em matéria de dignidade da
pessoa humana não se deve e nem se pode legitimamente dizer e aceitar
qualquer coisa, pois mesmo que se venha a oscilar entre uma hermenêutica
pautada pela melhor resposta possível ou única resposta correta, qual-
quer uma das alternativas repudia um voluntarismo hermenêutico arbi-
trário e, portanto, também constitucionalmente ilegítimo.
Para além disso, não se poderá olvidar – também nesta perspectiva
– que a dignidade da pessoa humana (assim como os direitos fundamen-
tais que lhe são inerentes) aponta – de acordo com a lapidar lição de
Gomes Canotilho82 – para a idéia de uma comunidade constitucional (re-
publicana) inclusiva, necessariamente pautada pelo multiculturalismo
mundividencial, religioso ou filosófico e, portanto, contrária a qualquer
tipo de “fixismo” nesta seara, e, para além disso, incompatível com uma
compreensão reducionista e até mesmo “paroquial” da dignidade. Certa-
mente um dos papéis centrais do Direito e da Filosofia do Direito é o de
assegurar, por intermédio de uma adequada construção e compreensão
da noção de dignidade da pessoa humana, a superação de qualquer visão
unilateral e reducionista e a promoção e proteção da dignidade de todas
as pessoas em todos os lugares.

8. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARENDT, Hannah. A Condição Humana, 10.ed., Rio de Janeiro: Forense


Universitária, 2002.

81
Cf. L.L. Streck, Hermenêutica Jurídica e(m) Crise – Uma Exploração Hermenêutica da
Construção do Direito, 5. ed., Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p. 310 e ss.
82
J.J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7.ed., Coimbra:
Almedina, 2004, pp. 225-226.
CONVIDADOS 99
Ingo Wolfgang Sarlet

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CONVIDADOS 105
João Daniel Jacobina Brandão de Carvalho

ALGUMAS INCONGRUÊNCIAS DECORRENTES DO


ART. 60, PARÁGRAFO ÚNICO, DA LEI Nº. 9.099/95, COM
A REDAÇÃO ATRIBUÍDA PELA LEI Nº. 11.313/06.

João Daniel Jacobina Brandão de Carvalho


Bacharel em Direito pela Universidade Católica
do Salvador, Especialista em Direito Público
pelo JusPodivm, Pós-Graduando lato sensu em
Direito Eleitoral pelo TRE/FABAC, Assessor
Jurídico do Ministério Público da Bahia, Profes-
sor de Direito Penal das Faculdades Jorge Ama-
do.

Discutia-se na doutrina qual a solução mais adequada quando uma


infração penal de menor potencial ofensivo estivesse ligada à outra que
não se inserisse naquele conceito estabelecido pela Lei 9.099/95, em virtu-
de das regras de conexão e de continência.
Parte da doutrina entendia não ser possível deslocar para o Juízo
Comum, por se tratar de competência absoluta em razão da matéria, defi-
nida pela Constituição. Aliás, com esse argumento, além de outros, há
quem sustente que a Lei nº. 11.313/06 é tanto formal quanto materialmen-
te inconstitucional1.
Para tantos outros, como Damásio de Jesus, antes mesmo do referi-
do diploma legal, deveria prevalecer o Juízo Comum2.
Objetivando por termo a esta discussão, a Lei 11.313/06 alterou a
redação do art. 60, p. único da Lei 9.099/95 para determinar a observân-
cia das regras de conexão e continência, ressalvando a aplicação da tran-
sação e da composição civil.
Portanto, diante da nova disposição legal, a reunião dos processos
provocada pela conexão ou continência conduz uma infração de menor
potencial ofensivo ao Juízo Comum, porém naquela seara os institutos
despenalizantes são de observância obrigatória.

1
Pela doutrina: Juizados Especiais Criminais. Rômulo de Andrade Moreira. Salvador:
Edições Juspodivm, 2007.
2
Apud Moreira, op.cit., pg. 24.
106 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

Assim, no caso de uma lesão corporal grave ser praticada em con-


junto com uma lesão leve, para esta, será possível a transação ou mesmo a
composição civil, seguindo o processo com relação à lesão grave.
Primeira incoerência: se conexo um crime de menor potencial ofensivo
com outro de “maior” potencial ofensivo, em relação àquele será cabível as
medidas despenalizantes. Porém, se duas infrações de menor potencial ofen-
sivo forem praticadas em concurso material, com a elevação das penas em
razão do cúmulo material, o processamento das mesmas fugirá da competên-
cia dos Juizados, porém em nenhuma delas aplicar-se-ão os institutos
despenalizantes3. Ora, como se admite aplicar tais institutos benéficos ao réu
quando se tratarem de duas infrações, sendo uma de “maior” potencial ofen-
sivo e outra de menor potencial, e não se aplicar as medidas despenalizantes
quando apenas coexistirem as duas de menor potencial ofensivo? Vê-se, pois,
a primeira incoerência. Estar-se atribuindo tratamento mais complacente a
uma situação mais grave em face de uma mais branda.
Cite-se como exemplo a situação daquele que comete crime de de-
sobediência (art. 330, CP) e, ao mesmo tempo, porte ilegal de arma de fogo
(art. 14 da Lei 10.826/03). Eventual inquérito policial será remetido à
Justiça Comum para que, com relação à desobediência, pactue-se a tran-
sação penal. Em contraponto, imagine-se o crime de desobediência em
concurso material com o crime de inutilização de edital (art. 336, CP).
Apesar de serem duas infrações de menor potencial ofensivo, em razão
da cumulação das penas máximas, como preconiza o STJ, não tramitará
perante os Juizados além de não lhes servirem os institutos
despenalizantes.
Não obstante a primeira situação ser, sem dúvida, mais grave, tendo
em vista as penas máximas culminadas em abstrato (já que este foi o

3
Informativo nº 0296
Período: 11 a 15 de setembro de 2006
CC. NATUREZA. INFRAÇÃO. COMPETÊNCIA. JUSTIÇA COMUM.
O conflito versa sobre a competência para processar e julgar o recurso de apelação
interposto pelo acusado pela prática dos crimes previstos nos arts. 10, caput, da Lei n.
9.437/1997 e 180 do CP, que estabelecem penas máximas, respectivamente, de dois
anos de detenção e quatro anos de reclusão. O Min. Relator entendeu que, na hipótese
de concurso de crimes, a pena considerada para fins de fixação de competência será
o resultado da soma, no caso de concurso material, ou a exasperação, na hipótese de
concurso formal ou crime continuado, das penas máximas cominadas aos delitos. A
absolvição em relação a um ou a alguns dos crimes, a desclassificação ou mesmo a
não-incidência de causa de aumento de pena por ocasião da sentença não afastam a
competência da Justiça comum delineada pela pretensão, mesmo subsistindo a con-
denação apenas em relação ao crime abrangido pelo conceito de menor potencial
ofensivo. Assim, a Seção conheceu do conflito para declarar a competência do TJDF.
STJ - CC 51.537-DF, Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, julgado em 13/9/2006.
CONVIDADOS 107
João Daniel Jacobina Brandão de Carvalho

parâmetro adotado pelo legislador), será possível a aplicação da transa-


ção, o mesmo não ocorrendo na segunda situação, seguindo a orientação
prevalente aqui criticada.
Continuando, se praticada uma infração de menor potencial ofen-
sivo e sobre ela recair uma causa de aumento, como, por exemplo, a conti-
nuidade delitiva, o concurso formal ou mesmo a causa de aumento previs-
ta para os crimes contra a honra (art. 141, CP), igualmente, segundo o
entendimento jurisprudencial e doutrinário4, será excluída a competência
dos Juizados, sem que, aonde quer que tramitem, aplique-se a transação
ou a composição. Ora, é evidente que duas infrações, uma de menor e
outra de “maior” potencial ofensivo, são muito “mais ofensivas” do que
apenas uma de menor, onde há uma simples majoração da pena em razão
de uma circunstância acidental.
Não é compatível com a definição estabelecida na Constituição que
uma circunstância afaste a competência dos Juizados, enquanto que a
prática de outro crime não culminará na mesma solução.
Mais uma incongruência verifica-se na interpretação
costumeiramente atribuída no micro-sistema dos Juizados. A Lei 9.099/
95 conferiu uma hipótese de incidência da suspensão do processo muito
mais ampla do que em relação à transação e a composição civil. Isto por-
que o sursis processual poderá ser aplicado às infrações de menor potenci-
al ofensivo, mas não somente, pois suspenderá o curso de ações penais
cujo objeto seja delito com pena mínima de um ano.
Ocorre que o art. 60, p. único, refere-se expressamente à transação e
à composição civil, não mencionando a suspensão do processo, o que é
outra flagrante incoerência legislativa, tendo em vista que a própria Lei
9.099/95 conferiu tratamento mais amplo ao sursis processual, prevendo
hipótese de aplicação muito mais ampla do que a transação e a composi-
ção. Portanto, seguindo a lógica da Lei dos Juizados, para que o mencio-
nado dispositivo legal possa falar em transação e composição, pressupõe,
obrigatoriamente, que a suspensão do processo também foi incluída, em-
bora implicitamente.
Assim, ao se ler o parágrafo único do art. 60, necessariamente, deve-
se ler o instituto da suspensão condicional do processo, sob pena de sub-
verter a essência da Lei 9.099/95, invertendo a relação que há entre os
institutos despenalizantes.

4
Rômulo de Andrade Moreira, op. cit. Pg. 23.
108 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

Exemplificando, imagine-se crimes recíprocos (conexão – art. 76, I,


CPP5), sendo um de menor potencial ofensivo, porém com uma causa de
aumento a impedir a transação ou a composição (seguindo entendimento
prevalente). Entender ausente o instituto da suspensão do processo no
art. 60, p. único, criaria o óbice a tal direito pelo simples fato de estar
ligado a outro crime que, diga-se, em verdade o beneficiário da suspensão
teria sido vítima.
Estabelecida a premissa de que a suspensão do processo foi um
mero silêncio do legislador ante a obviedade da situação em face do trata-
mento conferido pela Lei 9.099/95, observa-se, ainda, mais uma impro-
priedade: se praticadas em concurso uma de menor potencial ofensivo e
uma de “maior”, para a de menor poderá ser cabível a suspensão condici-
onal do processo, seguindo o processo apenas com relação à outra. Por
outro lado, se o acusado responde a duas ações penais, uma relativa a
infração de menor potencial ofensivo e outra não, não poderá naquela
ação ter deferido o sursis processual, porquanto possui outra ação em cur-
so (art. 89, Lei 9.099/95). Ora, essencialmente trata-se da mesma situação,
porém soluções distintas são atribuídas.
Duas ações autônomas equivalem a apenas uma, reunidas por co-
nexão ou continência. Em verdade é o caminho inverso proposto pela
separação de processos, disciplinadas no art. 80 do CPP.
Diante deste raciocínio, perde o sentido o enunciado da súmula nº.
243 do STJ 6, que, aliás, foi aprovada em 2001, muito antes da Lei nº.
11.313/06.
É necessário haver uma reformulação no entendimento
jurisprudencial, analisando o micro-sistema dos Juizados com unidade e
coerência. Portanto, chega-se as seguintes conclusões.
Quando praticadas duas infrações de menor potencial ofensivo em
concurso material7, sugere-se que, para pelo menos uma dessas, pactue-se
a transação ou a composição civil.

5
Art.76. A competência será determinada pela conexão: I – se, ocorrendo duas ou
mais infrações, houverem sido praticadas, ao mesmo tempo, por várias pessoas
reunidas, ou por várias pessoas em concurso, embora diverso o tempo e o lugar, ou
por várias pessoas, umas contra as outras;
6
O benefício da suspensão do processo não é aplicável em relação às infrações penais
cometidas em concurso material, concurso formal ou continuidade delitiva, quan-
do a pena mínima cominada, seja pelo somatório, seja pela incidência da majorante,
ultrapassar o limite de um (01) ano.
7
Interessante a posição de Rômulo de Andrade Moreira, para quem, por analogia do
art. 119 do CP e da súmula 497 do STF, nas hipóteses de crime continuado, concur-
so material e formal, cada crime deve ser considerado isoladamente (op. cit. pg. 23).
CONVIDADOS 109
João Daniel Jacobina Brandão de Carvalho

Para a situação da infração de menor potencial ofensivo que refoge


à competência dos Juizados em razão da existência de uma causa de au-
mento (que, via de regra, tal circunstância, isoladamente, sequer é consi-
derada crime) deverão incidir os institutos despenalizantes, como se tal
causa de aumento não existisse.
Por fim, duas infrações de menor potencial ofensivo em concurso
material, ou mesmo para uma de menor com uma de “maior”, por qual-
quer razão não logrando êxito a transação ou a composição civil, será
cabível, obrigatoriamente, para apenas uma, a suspensão do processo,
seguindo a ação penal com relação à outra, o que facilitará a sua ampla
defesa, porquanto reduzirá a acusação e, devido a correlação, a possibili-
dade de vir a ser condenado.
Em tempo, dentre duas de menor potencial ofensivo, dever-se-á es-
colher para incidir os institutos despenalizantes aquela que comine, em
abstrato, a maior pena privativa de liberdade.
Tudo isso porque, como afirma JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, es-
quecimentos, lacunas, deficiência de regulamentação ou de redacção funcionam
por isso sempre contra o legislador e a favor da liberdade8. Arremata o
penalista luso invocando a expressão consagrada de Von Lizst, segundo a
qual a lei penal constitui a “magna Charta do criminoso” 9.

8
Direito Penal: Parte Geral: Tomo I – questões fundamentais; a doutrina geral do crime. São
Paulo: Editora Revista dos Tribunais. Portugal: Coimbra Editora, 2007, pg. 180.
9
Op. cit. pg. 181.
110 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

DIFERENTES, MAS IGUAIS:


O RECONHECIMENTO JURÍDICO DAS RELAÇÕES
HOMOAFETIVAS NO BRASIL1

Luís Roberto Barroso


Professor titular de direito constitucional da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro –
UERJ. Doutor livre-docente. Mestre em Direito
pela Universidade de Yale.

Introdução
I. Apresentação do problema
II. A progressiva superação do preconceito

Parte I
Pré-compreensão do tema e panorama do direito comparado
III. Orientação sexual, relações homoafetivas e o papel do Direito e do Estado
IV. A união estável entre pessoas do mesmo sexo no direito comparado

Parte II
A Constituição de 1988 e o reconhecimento jurídico das relações entre pessoas
do mesmo sexo
V. Uniões homoafetivas e princípios constitucionais
1. Princípio da igualdade
2. Princípio da liberdade pessoal, do qual decorre a autonomia privada
3. Princípio da dignidade da pessoa humana
4. Princípio da segurança jurídica
VI. O primado da afetividade: a união homoafetiva como entidade familiar

Parte III
Extensão do regime jurídico das uniões estáveis às uniões homoafetivas
VII. Uniões homoafetivas e a regra constitucional do art. 226, § 3º
VIII. Lacuna normativa e mecanismos de integração da ordem jurídica
1. Os princípios constitucionais na interpretação e na integração da or-
dem jurídica
2. O recurso à analogia na integração da ordem jurídica

Conclusões

1
Trabalho desenvolvido com a colaboração de Cláudio Pereira de Souza Neto, Eduardo
Mendonça e Nelson Nascimento Diz, que participaram da pesquisa e da discussão
de idéias e de teses.
CONVIDADOS 111
Luís Roberto Barroso

I. APRESENTAÇÃO DO PROBLEMA

1. Nas últimas décadas, culminando um processo de superação


do preconceito e da discriminação, inúmeras pessoas passaram a viver a
plenitude de sua orientação sexual e, como desdobramento, assumiram
publicamente suas relações homoafetivas. No Brasil e no mundo, milhões
de pessoas do mesmo sexo convivem em parcerias contínuas e duradou-
ras, caracterizadas pelo afeto e pelo projeto de vida em comum. A aceita-
ção social e o reconhecimento jurídico desse fato são relativamente recen-
tes e, conseqüentemente, existem incertezas acerca do modo como o Direi-
to deve lidar com o tema.
2. No direito positivo brasileiro, inexiste regra específica sobre a
matéria. A Constituição de 1988, que procurou organizar uma sociedade
sem preconceito e sem discriminação, fundada na igualdade de todos,
não contém norma expressa acerca da liberdade de orientação sexual.
Como conseqüência natural, também não faz menção às uniões
homoafetivas. Faz referência, no entanto, às uniões heterossexuais, reco-
nhecendo como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher2.
O Código Civil, por sua vez, ao disciplinar o tema da união estável, seguiu
a mesma linha3.
3. Diante da ausência de disciplina própria para essas questões,
impõem-se algumas indagações e linhas de investigação, dentre as quais:
a) a Constituição considera legítima a discriminação das pessoas
em função de sua orientação sexual?
b) a referência feita à união estável entre homem e mulher significa
uma proibição da extensão de tal regime jurídico às uniões homoafetivas?
c) inexistindo a vedação constitucional referida na alínea anteri-
or, cumpre determinar, ainda assim, qual regime jurídico deve ser aplica-
do às uniões homoafetivas:
(i) o das sociedades de fato; ou
(ii) o da união estável.
4. O presente estudo desenvolve uma tese central e uma tese aces-
sória. A tese principal é a de que um conjunto de princípios constitucio-

2
CF/88, art. 226, § 3º: “Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união
estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua
conversão em casamento”.
3
Código Civil, art. 1723: “É reconhecida como entidade familiar a união estável entre
o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e
estabelecida com o objetivo de constituição de família”.
112 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

nais impõe a inclusão das uniões homoafetivas no regime jurídico da


união estável, por se tratar de uma espécie em relação ao gênero. A tese
acessória é a de que, ainda quando não fosse uma imposição do texto
constitucional, a equiparação de regimes jurídicos decorreria de uma re-
gra de hermenêutica: na lacuna da lei, deve-se integrar a ordem jurídica
mediante o emprego da analogia. Como as características essenciais da
união estável previstas no Código Civil estão presentes nas uniões está-
veis entre pessoas do mesmo sexo, o tratamento jurídico deve ser o mesmo.

II. A PROGRESSIVA SUPERAÇÃO DO PRECONCEITO

5. Na década de 70, nos Estados Unidos, um soldado que havia


sido condecorado por bravura na Guerra do Vietnã escreveu ao Secretário
da Força Aérea declinando sua condição de homossexual. Foi imediata-
mente expulso da corporação, com desonra. Ao comentar o episódio, o
militar produziu uma frase antológica: “Deram-me uma medalha por matar
dois homens, e uma expulsão por amar outro”4. Na década de 90, no
Brasil, quando se debatia a questão das relações homoafetivas, uma eleva-
da autoridade religiosa declarou: “Os cachorros que me desculpem, mas o
projeto de casamento gay é uma cachorrada”5. Vem de longe essa visão
depreciativa. Antigüidade, medievo, iluminismo, modernidade: em épo-
cas sucessivas da evolução do pensamento humano, a condição homosse-
xual foi tratada com intolerância, truculência e desapreço.
6. Os tempos, no entanto, estão mudando. Progressivamente, as
relações homoafetivas vêm conquistando aceitação e respeito. Na esfera
privada, é crescente o número de pessoas que assumem publicamente e
sem temor a sua orientação homossexual. No espaço público, concorridas
passeatas e manifestações, em diferentes capitais do país, simbolizam a
vitória pessoal de homens e mulheres que derrotaram séculos de opressão
para poderem ostentar sua identidade sexual, desfrutar seus afetos e bus-
car a própria felicidade. É certo que ainda ocorrem manifestações ocasio-
nais de homofobia, inclusive com o emprego de violência. Mas já não
contam com a cumplicidade silenciosa da opinião pública. Aos poucos se
consolida uma cultura capaz de aceitar e de apreciar a diversidade.

4
In: http://www.rainbowuniverse.com/newenglandGLBTVets/pressreleases/2003/
pr02.htm. Acesso em: 6 nov. 2006. O fato foi amplamente divulgado na ocasião e a
frase citada pode ser encontrada em diversos outros sítios.
5
In: <http://www.nossomundoeassim.hpg.ig.com.br/canais/menu/frases.htm>.
Acesso em: 6 nov. 2006.
CONVIDADOS 113
Luís Roberto Barroso

7. Nesse ambiente, é natural que se coloque, com premência, o tema


do regime jurídico das uniões homoafetivas. A despeito da ausência de
normatização expressa, a postura do Estado em relação ao assunto tem sido
de crescente reconhecimento. Certas manifestações do Poder Público já atri-
buem às uniões entre pessoas do mesmo sexo, para determinados fins6, status
semelhante ao das uniões entre homem e mulher. Não se pode dizer, contu-
do, que esta seja uma posição dominante ou incontroversa. Pelo contrário,
um lance de olhos pela jurisprudência dos diversos tribunais revela a exis-
tência de pronunciamentos judiciais divergentes sobre o tema. A título de
exemplo, confiram-se duas decisões recentes, uma em cada sentido:

“Constitui união estável a relação fática entre duas mulheres, confi-


gurada na convivência pública, contínua, duradoura e estabelecida
com o objetivo de constituir verdadeira família, observados os deve-
res de lealdade, respeito e mútua assistência. Superados os precon-
ceitos que afetam ditas realidades, aplicam-se os princípios constitu-
cionais da dignidade da pessoa, da igualdade, além da analogia e dos
princípios gerais do direito, além da contemporânea modelagem das
entidades familiares em sistema aberto argamassado em regras de
inclusão. Assim, definida a natureza do convívio, opera-se a partilha
dos bens segundo o regime da comunhão parcial. Apelações despro-
vidas”7.
“Apelação Cível. Ação declaratória. União homoafetiva. Impossibili-
dade jurídica do pedido. Carência de ação. Sentença mantida. A im-
possibilidade jurídica do pedido ocorre quando a ordem jurídica não
permite a tutela jurisdicional pretendida; Na esteira da jurisprudên-
cia deste Tribunal de Justiça, diante da norma expressa, contida no
art. 226, §3º, da Constituição da República, somente entidade fami-
liar pode constituir união estável, através de relacionamento afetivo
entre homem e mulher; revela-se manifestamente impossível a pre-
tensão declaratória de existência de união estável entre duas pessoas
do mesmo sexo”8.

6
De que é exemplo a matéria previdenciária. No âmbito federal, destaca-se a Instrução
Normativa INSS/DC nº 25, de 7 jun. 2000, editada por força de decisão judicial ainda
não transitada em julgado (Ação Civil Pública nº 2000.71.00.009347-0), que estipula
procedimentos a serem adotados para a concessão de benefícios previdenciários ao
companheiro ou companheira homossexual.
7
TJ/RS, j. 25 jun. 2003, AC 70005488812, Rel. Des. José Carlos Teixeira Giorgis. No
mesmo sentido: TJ/RS, j. 17 nov. 2004, AC 70009550070, Rel. Des. Maria Berenice Dias;
TJ/RJ, j. 21 mar. 2006, AC 2005.001.34933, Rel. Des. Letícia Sardas.
8
TJ/MG, j. 24 mai. 2006, AC 1.0024.04.537121-8/002, Rel. Des. Domingos Coelho. No
mesmo sentido: TJ/RJ, j. 7 fev. 2006, AC 2006.001.00660, Rel. Des. Bernardo Moreira
Garcez Neto; TJ/SP, j. 7 jun. 2005, AI 388.800-4/7, Rel. Des. José Joaquim dos Santos.
114 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

8. As uniões estáveis heterossexuais também percorreram caminhos


feitos de idas e vindas, acolhimentos e rejeições. Com a Constituição de
1988, no entanto, obtiveram reconhecimento institucional pleno, passan-
do a ser caracterizadas como verdadeiras entidades familiares. Na presen-
te investigação sustenta-se a tese de que o mesmo regime deve ser reconhe-
cido às uniões entre pessoas do mesmo sexo, seja por aplicação direta dos
princípios constitucionais, seja por integração de lacuna legal existente.

PARTE I
PRÉ-COMPREENSÃO DO TEMA E PANORAMA DO DIREITO
COMPARADO

III. ORIENTAÇÃO SEXUAL, RELAÇÕES HOMOAFETIVAS E O PAPEL


DO DIREITO E DO ESTADO

9. A interpretação constitucional, como a interpretação jurídica


em geral, não é um exercício abstrato de busca de verdades universais e
atemporais. Toda interpretação é produto de uma época, de um momento
histórico, e envolve as normas jurídicas pertinentes, os fatos a serem
valorados, as circunstâncias do intérprete e o imaginário social. A identi-
ficação do cenário, dos atores, das forças materiais atuantes e da posição
do sujeito da interpretação constitui o que a doutrina denomina de pré-
compreensão9. É hoje pacífico que o papel do intérprete não é – porque não
pode ser – apenas o de descobrir e revelar a solução que estaria abstrata-
mente contida na norma. Diversamente, dentro das possibilidades e limi-
tes oferecidos pelo ordenamento, a ele caberá fazer, com freqüência,
valorações in concreto e escolhas fundamentadas.
10. Porque assim é, há um dever ético do intérprete de declinar a
sua pré-concepção a propósito da matéria que está sendo interpretada, o
que significa dizer, explicitar o seu ponto de observação e os valores e
fatores que influenciam sua argumentação10. Tal atitude de honestidade

9
V. Hans-Georg Gadamer, Verdade e método, 1997, p. 320 e ss.; Karl Larenz, Metodologia
da ciência do direito, 1997, p. 285 e ss.; Luís Roberto Barroso, “Fundamentos teóricos e
filosóficos do novo direito constitucional brasileiro”. In: Temas de direito constitucional,
t. II, 2003, p. 3 e ss.; Jane Reis Gonçalves Pereira, Interpretação constitucional e direitos
fundamentais, 2006, p. 30 e ss..
10
Nesse sentido, v. Karl Larenz, Metodologia da ciência do direito, 1997, p. 293: “É tão
certo que ninguém é imune a estes pré-juízos como também seria errôneo ver neles
uma barreira absoluta e intransponível. Mas a sua superação não é de todo em todo
possível senão mediante um processo permanente de auto-exame e a preocupação
constante com a ‘questão em si mesma’. Uma disponibilidade para tal é a primeira
exigência que se tem de colocar tanto ao juiz como ao cientista do Direito”.
CONVIDADOS 115
Luís Roberto Barroso

intelectual e transparência permite a compreensão correta da fundamen-


tação adotada, bem como o controle e a crítica do processo interpretativo.
Nessa linha, cabe declinar, ao início, que o presente estudo se funda nas
seguintes visões de mundo:
a) a homossexualidade é um fato da vida;
b) as relações homoafetivas são fatos lícitos e relativos à esfera pri-
vada de cada um;
c) o intérprete constitucional deve ser movido por argumentos de
razão pública e não por concepções particulares, sejam religiosas, políti-
cas ou morais;
d) o papel do Estado e do Direito é o de acolher – e não o de rejeitar
– aqueles que são vítimas de preconceito e intolerância.
11. Não há consenso acerca das razões que determinam a orienta-
ção sexual dos indivíduos. Existem estudos dotados de seriedade científi-
ca que certificam que a orientação sexual é decorrente de fatores genéti-
cos11. Segundo outros estudos, igualmente sérios, os fatores determinantes
seriam sociais. Não é importante tomar partido nesse debate, salvo para
deixar claro que a homossexualidade não é uma opção, mas um fato da
vida. Deve-se destacar, ademais, que o fato do homossexualismo não vio-
la qualquer norma jurídica12, nem é capaz, por si só, de afetar a vida de
terceiros. Salvo, naturalmente, quando esses terceiros tenham a pretensão
de ditar um modo de vida “correto” – o seu modo de vida – para os outros
indivíduos.
12. As concepções religiosas dogmáticas, as ideologias cerradas e
as doutrinas abrangentes em geral fazem parte da vida contemporânea. E,
nos limites da Constituição e das leis, têm o direito de participar do debate
público e de expressar os seus pontos de vista, que, em alguns casos,
traduzem intolerância ou dificuldade de compreender o outro, o diferente,

11
Em estudo realizado nos EUA, chegou-se aos seguintes resultados: entre gêmeos
univitelinos, se um dos irmãos era homossexual, em 52% dos casos o outro também
era; entre gêmeos bivitelinos, o percentual ficava em 22%; entre irmãos adotivos, se
restringia a 11%. A pesquisa demonstra que a orientação sexual é influenciada pelo
ambiente familiar, mas é influenciada também, e decisivamente, por fatores genéti-
cos. A pesquisa é reportada por Maria Berenice Dias, União homossexual: o preconceito
e a justiça, 2001, p. 43.
12
Essa afirmação é inquestionavelmente válida para o Brasil, assim como para a
maioria dos países. Nem mesmo a Suprema Corte norte-americana, em sua atual
tendência conservadora, ousou dizer o contrário. No julgamento do caso Lawrence
et. al. v. Texas, que será comentado adiante, declarou-se a inconstitucionalidade da
criminalização da chamada sodomia.
116 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

o homossexual. Mas a ordem jurídica em um Estado democrático não deve


ser capturada por concepções particulares, sejam religiosas, políticas ou
morais. Como assinalado, o intérprete constitucional deve ser consciente
de suas pré-concepções, para que possa ter autocrítica em relação à sua
ideologia e auto-conhecimento no tocante a seus desejos e frustrações13.
Seus sentimentos e escolhas pessoais não devem comprometer o seu papel
de captar o sentimento social e de inspirar-se pela razão pública14.
13. As uniões afetivas entre pessoas do mesmo sexo são uma conse-
qüência direta e inevitável da existência de uma orientação homossexual.
Por isso mesmo, também são um fato da vida, que não é interditado pelo
Direito e diz respeito ao espaço privado da existência de cada um. As
relações homoafetivas existem e continuarão a existir, independentemente
do reconhecimento jurídico positivo do Estado. Se o direito se mantém
indiferente, de tal atitude emergirá uma indesejada situação de inseguran-
ça. O assunto será aprofundado mais adiante.
14. Porém, mais do que isso, a indiferença do Estado é apenas
aparente e revela, na verdade, um juízo de desvalor. Tendo havido – como
houve – uma decisão estatal de dar reconhecimento jurídico às relações
afetivas informais, a não-extensão desse regime às uniões homoafetivas

13
Luís Roberto Barroso, “Fundamentos teóricos e filosóficos do novo direito constitu-
cional brasileiro: pós-modernidade, teoria crítica e pós-positivismo”. In: Temas de
direito constitucional, t. II, 2003, p. 10: “A neutralidade, entendida como um
distanciamento absoluto da questão a ser apreciada, pressupõe um operador jurí-
dico isento não somente das complexidades da subjetividade pessoal, mas também
das influências sociais. Isto é: sem história, sem memória, sem desejos. Uma ficção.
O que é possível e desejável é produzir um intérprete consciente de suas circunstân-
cias: que tenha percepção da sua postura ideológica (auto-crítica) e, na medida do
possível, de suas neuroses e frustrações (auto-conhecimento). E, assim, sua atua-
ção não consistirá na manutenção inconsciente da distribuição de poder e riquezas
na sociedade nem na projeção narcísica de seus desejos ocultos, complexos e cul-
pas”.
14
O uso da razão pública importa em afastar dogmas religiosos ou ideológicos – cuja
validade é aceita apenas pelo grupo dos seus seguidores – e utilizar argumentos
que sejam reconhecidos como legítimos por todos os grupos sociais dispostos a um
debate franco, ainda que não concordem quanto ao resultado obtido em concreto. O
contrário seria privilegiar as opções de determinados segmentos sociais em detri-
mento das de outros, desconsiderando que o pluralismo é não apenas um fato
social inegável, mas também um dos fundamentos expressos da República Federa-
tiva do Brasil, consagrado no art. 1º, inciso IV, da Constituição. Sobre esta temática,
v. especialmente a obra de John Rawls, notadamente: Uma teoria de justiça, Liberalis-
mo político e Direito dos povos. Na literatura nacional, v. Cláudio Pereira de Souza
Neto, Teoria constitucional e democracia deliberativa, 2005; e Nythamar de Oliveira,
Rawls, 2005.
CONVIDADOS 117
Luís Roberto Barroso

traduz menor consideração a esses indivíduos. Tal desequiparação é


inconstitucional, pelos motivos que serão apresentados ao longo do pre-
sente estudo. A história dos diferentes países registra exemplos trágicos
de discriminação fundada em fatores inatos ou inelutáveis, como raça,
deficiência física ou homossexualidade. Foi assim na Alemanha nazis-
ta15, na África do Sul do apartheid16 e nos Estados Unidos até o final dos
anos 6017. Todas essas diferenciações, que vigoraram no século passado –
há poucas décadas, portanto – são hoje em dia consideradas odiosas.
15. Na verdade, sequer é preciso citar exemplos tão extremos.
Poucas matérias têm sofrido mutação tão acelerada quanto as relações
familiares. Até pouco tempo, aceitava-se como normal a superioridade
jurídica dos homens sobre as mulheres. Esse entendimento era consagra-
do, e.g., no Código Civil brasileiro de 1916, em dispositivos que atribuíam
ao homem a chefia da família e a primazia na educação dos filhos. O
avanço do processo civilizatório se encarregou de condenar essas mani-
festações autoritárias e assentar a igual dignidade das diferentes etnias e
confissões religiosas, assim como a paridade jurídica entre homem e mu-
lher. O mesmo processo tem atuado para repelir a discriminação dos ho-
mossexuais, no que se inclui naturalmente o reconhecimento jurídico de
suas uniões afetivas.
16. O Estado inimigo das minorias, protagonista da repressão e da
imposição da moral dominante, como se fosse a única legítima, tem cedi-
do passo, historicamente, ao Estado solidário, agente da tolerância e da
inclusão social. Alguns exemplos da experiência internacional ilustram o
ponto.

15
A Alemanha nazista proibia casamentos entre judeus e alemães da chamada raça
ariana, atribuindo competência aos promotores públicos para anulá-los, além de
cominar pena de trabalhos forçados para aqueles que violassem a norma. As rela-
ções extraconjugais também eram proibidas, tudo para proteger a pureza do san-
gue alemão. As normas em questão encontravam-se na Lei para a proteção do
sangue alemão e da honra alemã, de 15 set. 1935.
16
O casamento inter-racial (entre brancos e não-brancos) era considerado ilegal. V.
Prohibition of Mixed Marriages Act (No. 55), de 1949. Posteriormente, relações sexu-
ais entre brancos e não-brancos passaram a ser igualmente vedadas. V. Immorality
Act (No. 21), de 1950, que alterava o Immorality Act (No. 5), de 1927, que já proibia
relações sexuais entre brancos e negros.
17
Nos Estados-Unidos, o casamento inter-racial também chegou a ser proibido em
alguns Estados, como Alabama, Arizona, Geórgia, Montana, Oklahoma, Texas, e
Virginia, o que somente veio a ser declarado inconstitucional pela Suprema Corte
em 1967, no julgamento do caso Loving v. Virginia (388 U.S. 1).
118 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

IV. A UNIÃO ESTÁVEL ENTRE PESSOAS DO MESMO SEXO NO


DIREITO COMPARADO

17. A discussão sobre o tratamento jurídico das uniões entre pesso-


as do mesmo sexo tem lugar não apenas no Brasil, mas em todo o mundo,
observando-se uma tendência ao reconhecimento, tanto por meio de atos
normativos, quanto por decisões judiciais18. Em muitos casos, observa-se
nítida superposição entre essas duas esferas, de modo que manifestações
judiciais disseminam o debate e atribuem direitos que acabam sendo for-
malmente incorporados pelo legislador. Observe-se, por exemplo, o caso
europeu.
18. Na década de 1990, vários países concederam proteção jurídica às
uniões homoafetivas, ganhando destaque o regime de parceria registrada. A
vanguarda foi assumida pela Dinamarca, que promulgou a lei de regência
em 198919. Noruega20, Suécia21 e Islândia22 seguiram o exemplo dinamarqu-
ês, aprovando leis referentes à convivência registrada, reconhecendo direi-
tos e obrigações mútuas entre pessoas do mesmo sexo. Na Holanda23, a
convivência registrada não se dirige somente aos homossexuais, mas a to-
dos os que não querem ou não podem se casar24. Em 2001, o legislador holan-
dês foi o primeiro a autorizar o casamento entre pessoas do mesmo sexo, com
iguais direitos e deveres, bem como conseqüências jurídicas idênticas às do
casamento heterossexual25. A Bélgica seguiu o caminho, permitindo igual-
mente, em 2003, o casamento entre pessoas do mesmo sexo26.

18
A exposição da jurisprudência estrangeira beneficiou-se de pesquisa gentilmente
cedida pelo Professor Daniel Sarmento.
19
Lei nº 372/89.
20
Lei nº 40/93.
21
Esta lei entrou em vigor em 1 jan. 1995, estabelecendo que a convivência registrada
tem as mesmas conseqüências de um casamento, com exceção da possibilidade de
adoção. Uma ressalva também é feita quando as leis sobre inseminação e fertilização
in vitro, as quais não se aplicam aos conviventes.
22
Trata-se da Lei nº 564/96, bastante similar à lei sueca.
23
Esta lei entrou em vigor em 1 jan. 1998, estabelecendo que a parceria civil é considera-
da como equivalente ao casamento civil, sendo suas conseqüências virtualmente
idênticas.
24
A professora Maria Celina Bodin de Moraes (A união entre pessoas do mesmo sexo:
uma análise sob a perspectiva civil-constitucional, Revista Trimestral de Direito Civil
1:89, 2000, p. 100) atenta para outra possibilidade permitida pelo legislador holan-
dês: o contrato de coabitação para a formalização de relação com um parceiro, o qual
serve apenas para regular o que as partes acordam entre sim, sendo válido somente
entre elas, sem conseqüências perante terceiros.
25
Esta lei entrou em vigor em 1 abr. 2001.
26
Esta lei entrou em vigor em 30 jan. 2003.
CONVIDADOS 119
Luís Roberto Barroso

19. A legislação catalã27 também é bastante avançada no que diz


respeito à paridade de direitos entre casais homossexuais e heterossexu-
ais. Há uma única lei, de 1998, para regular as uniões estáveis, indepen-
dente da orientação sexual dos pares. Na França, em outubro de 1999, foi
aprovado o Projeto de Lei nº 207 sobre o Pacte Civil de Solidarité, conhecido
como PaCS, possibilitando a união entre casais não ligados pelo matrimô-
nio e atribuindo-lhes um conjunto abrangente de direitos e deveres recí-
procos. Este pacto pode ser estabelecido por duas pessoas físicas maiores,
de sexo diferente ou do mesmo sexo, com o objetivo de organizar a sua
vida em comum. Em 15 de março de 2001, o Parlamento português apro-
vou o Decreto nº 56/VIII28, adotando medidas de proteção às uniões de
fato. A lei regula as situações jurídicas de duas pessoas, independente do
sexo, que vivem em união de fato há mais de dois anos. Na Alemanha,
também em 2001, entrou em vigor lei reconhecendo as uniões homoafetivas,
permitindo que os envolvidos regulem sua vida em comum por meio de
um contrato.
20. Essa tendência de reconhecimento das relações homoafetivas
caracteriza não só os Estados europeus, separadamente, mas também a
União Européia, em seu conjunto. É importante mencionar a Resolução do
Parlamento Europeu29, de 8 de fevereiro de 1994, sobre a paridade de direi-
tos dos homossexuais da Comunidade Européia, estabelecendo o dever
de se respeitar o princípio da igualdade no tratamento das pessoas, inde-
pendente de sua orientação sexual.
21. Nas Américas, destacam-se Canadá, Argentina e Estados Uni-
dos. O Canadá protege o casamento entre pessoas do mesmo sexo, com
base no Civil Marriage Act30, de 2005. Antes que a lei entrasse em vigor,
houve consulta à Suprema Corte acerca da sua constitucionalidade, pos-
sibilidade admitida na ordem jurídica canadense. O Tribunal não apenas
declarou que a lei não violava dispositivos constitucionais, como afirmou

27
Trata-se da Ley sobre uniones estables de parejas da Cataluña, de 30 jun. 1998.
28
Resultou na Lei nº 7/01, de 11 de maio, que adotou medidas de proteção às uniões
de fato, revogando a Lei nº 135/99.
29
A recomendação sobre a Paridade de Direitos de Homossexuais consta do Doc. A3-
0028/94, sendo as Resoluções de 17 set. 1996; 8 abr. 1997; 17 fev.1998; e 17 set.1998
também relativas à paridade de direitos para os homossexuais.
30
Diz a ementa: Este ato estende, para efeitos civis, a capacidade legal de casamento
a casais formados por pessoas de mesmo sexo, de modo a refletir valores de tole-
rância, respeito e igualdade, de acordo com a Carta canadense de Direitos e Liber-
dades. Emendas em outros atos são conseqüentemente feitas por este ato para
garantir igual acesso aos efeitos civis do casamento e divórcio a casais formados
por pessoas de mesmo sexo. (tradução livre)
120 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

que a medida realizava o princípio da igualdade31. Tal resposta era até


previsível, considerando que a edição da referida lei ocorreu após um
conjunto de decisões judiciais que reconheciam às uniões homoafetivas
proteção similar à conferida aos casais heterossexuais. A principal deci-
são partira justamente da Suprema Corte, que declarou inconstitucional
lei que permitia a concessão de alimentos em razão de união estável ape-
nas no caso de casais do sexo oposto, excluindo os homossexuais32.
22. Em relação à Argentina, a legislação da Cidade Autônoma de
Buenos Aires reconhece, desde 2002, a união civil entre pessoas do mes-
mo sexo. A ordem jurídica daquela província considera união civil aquela
formada livremente por duas pessoas, independentemente do gênero ou
orientação sexual33.
23. Nos Estados Unidos, alguns tribunais estaduais já decidiram,
com base na cláusula da equal protection, não ser possível excluir uniões
homoafetivas dos benefícios e das proteções previstas pela legislação aos
cônjuges heterossexuais34. Vale também mencionar o julgamento, pela
Suprema Corte, do caso Romer V. Evans35, que declarou inconstitucional
uma emenda à Constituição do Estado do Colorado, aprovada em referen-
do estadual, que impedia toda e qualquer autoridade estadual de praticar

31
Manifestações semelhantes já foram realizadas por supremas cortes ou tribunais
constitucionais de outros países. É o caso da África do Sul, cujo Tribunal Constitu-
cional declarou incompatível com a Constituição a proibição do casamento
homoafetivo, concedendo prazo de um ano ao legislador para que suprima o vício
sob pena de se considerar automaticamente estendida aos homossexuais a possibi-
lidade do casamento (Caso CCT 60/04, Minister of Home Affairs and Another V. Marie
Adriaana Fourie and Another). No mesmo sentido, vale mencionar o caso da Hungria,
cuja Corte Constitucional proferiu decisão semelhante no âmbito da união estável
(Decisão 14/95). Por fim, destaca-se a Suprema Corte de Israel, que considerou
inconstitucional a prática de determinada empresa que concedia benefícios aos
parceiros de seus funcionários heterossexuais, mas os negava no caso de uniões
homoafetivas (Caso El-Al Israel Airlines V. Danilowitz, julgado em 1994). Após a
manifestação da Corte, verificou-se uma modificação na ordem jurídica israelense,
baseada no common law, que passou a reconhecer esse tipo de união.
32
Trata-se do Caso M. v. H. (142 D.L.R 4th), julgado em 1996.
33
Trata-se da Lei da cidade autônoma de Buenos Aires (Ley CABA) nº 1.004/02, que
cria o registro público de uniões civis, de 12 dez. 2002.
34
A decisão mais incisiva foi proferida pela Suprema Corte do Estado de
Massachusets, no caso Goodridge v. Department of Public Health, julgado em 2003. O
Tribunal assentou que a não-extensão do casamento aos casais do mesmo sexo
violava a igualdade e o devido processo legal, afirmando que os argumentos apon-
tados para justificar a discriminação não seriam capazes de justificar a quebra da
isonomia.
35
Romer v. Evans, 517 U.S 620 (1996).
CONVIDADOS 121
Luís Roberto Barroso

atos que resultassem em proteção às pessoas de orientação homossexual


em face de qualquer tipo de discriminação. Na ocasião, a Corte afirmou
que desequiparações até seriam possíveis, desde que tivessem fundamen-
to razoável, diferente do mero propósito de demonstrar animosidade con-
tra aquelas pessoas36. Na mesma linha foi a decisão da Suprema Corte no
caso Lawrence et. al. v. Texas37, no qual foi declarada a inconstitucionalidade
de lei estadual que criminalizava a sodomia38. Embora não diga respeito
ao tratamento jurídico das uniões homossexuais, tal decisão afastou qual-
quer dúvida sobre a licitude das relações homossexuais naquele país.
24. Feitas essas notas sobre a pré-compreensão do tema e sobre o
direito comparado, passa-se à exposição dos fundamentos extraídos da
Constituição de 1988 que impõem a extensão do regime da união estável
às relações homoafetivas.

PARTE II
A CONSTITUIÇÃO DE 1988 E O RECONHECIMENTO JURÍDICO DAS
RELAÇÕES ENTRE PESSOAS DO MESMO SEXO

V. UNIÕES HOMOAFETIVAS E PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS

25. O ambiente filosófico do direito constitucional contemporâneo


é o do pós-positivismo, que se caracteriza pela reaproximação entre o Direi-
to e a Ética. No conjunto de idéias ricas e heterogêneas que procuram
abrigo nesse paradigma em construção, incluem-se (i) a reentronização
dos valores na interpretação jurídica, (ii) o reconhecimento de
normatividade aos princípios e (iii) o desenvolvimento de uma teoria dos
direitos fundamentais edificada sobre a dignidade da pessoa humana. Os
princípios são a expressão jurídica dos valores e dos fins de uma socieda-
de. Neles estão contidos os direitos fundamentais, não apenas como direi-
tos subjetivos, mas, igualmente, como uma ordem objetiva de valores que
deve inspirar a compreensão e a aplicação do Direito.
26. Em meio a esses princípios e direitos fundamentais encon-
tram-se alguns que são decisivos para o enquadramento ético e jurídico

36
Uma descrição e análise do caso encontra-se em Ronald Dworkin, Sovereign virtue –
The theory and practice of equality, 2000, p. 456-65.
37
Lawrence et. Al. v. Texas, 539 U.S. 558 (2003).
38
Os principais Estados que proibiam a sodomia homossexual eram Texas, Oklahoma,
Kansas, e Missouri.
122 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

da questão aqui enfrentada. Em primeiro lugar, o mandamento magno da


igualdade, a virtude soberana39, manifestado em inúmeras disposições cons-
titucionais. Ao lado dele, o princípio da liberdade, que se colhe nos princí-
pios da livre-iniciativa (cuja dimensão, relembre-se, não é apenas a de
liberdade econômica) e da legalidade, bem como em referências expressas
em todo o texto constitucional40. Acrescente-se, ainda, o princípio da dig-
nidade da pessoa humana, que ilumina o núcleo essencial dos direitos fun-
damentais e do qual se irradiam, também, na esfera privada, os direitos da
personalidade, tanto na sua versão de integridade física como moral41. E,
por fim, o princípio da segurança jurídica, que procura dar ao Direito
previsibilidade e estabilidade, bem como proteção à confiança legítima
dos indivíduos42.
27. Todas as pessoas, a despeito de sua origem e de suas caracte-
rísticas pessoais, têm o direito de desfrutar da proteção jurídica que estes
princípios lhes outorgam. Vale dizer: de serem livres e iguais, de desenvol-
verem a plenitude de sua personalidade e de estabelecerem relações pesso-
ais com um regime jurídico definido e justo. E o Estado, por sua vez, tem o
dever jurídico de promover esses valores, não apenas como uma satisfação
dos interesses legítimos dos beneficiários diretos, como também para asse-
gurar a toda a sociedade, reflexamente, um patamar de elevação política,
ética e social. Por essas razões, a Constituição não comporta uma leitura
homofóbica, deslegitimadora das relações de afeto e de compromisso que
se estabelecem entre indivíduos do mesmo sexo. A exclusão dos homosse-
xuais do regime de união estável significaria declarar que eles não são

39
A expressão é de Ronald Dworkin, Sovereign virtue, 2000.
40
V. Luís Roberto Barroso, “Eficácia e efetividade do direito à liberdade”. In: Temas de
direito constitucional, 2006 (1ª. ed. 1999), p. 75 e ss..
41
Ingo Wolfgang Sarlet, Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constitui-
ção brasileira de 1988, 2001; Ana Paula de Barcellos, A eficácia jurídica dos princípios
constitucionais. O princípio da dignidade da pessoa humana, 2001; Maria Celina Bodin
de Moraes, “O conceito de dignidade humana: substrato axiológico e conteúdo
normativo”. In: Ingo Wolfgang Sarlet, Constituição, direitos fundamentais e direito
privado, 2003; Gustavo Tepedino, “Tutela da personalidade no ordenamento civil-
constitucional brasileiro”. In: Temas de direito civil, 1998; Cristiano Chaves de Farias,
Direito civil: teoria geral, 2005.
42
V. Almiro do Couto e Silva, O princípio da segurança jurídica (proteção à confian-
ça) no direito público brasileiro e o direito da administração pública de anular seus
próprios atos administrativos: o prazo decadencial do art. 54 da Lei do processo
administrativo da União (Lei nº 9.784/99), Revista de Direito Administrativo 237:271,
2004.
CONVIDADOS 123
Luís Roberto Barroso

merecedores de igual respeito, que seu universo afetivo e jurídico é de “me-


nos-valia”: menos importante, menos correto, menos digno43.

1. PRINCÍPIO DA IGUALDADE

“As pessoas e os grupos sociais têm o direito de ser iguais quando a


diferença as inferioriza, e o direito a ser diferentes quando a igualda-
de as descaracteriza”.
Boaventura de Souza Santos44

28. A Constituição Federal de 1988 consagra o princípio da igual-


dade e condena de forma expressa todas as formas de preconceito e discri-
minação. A menção a tais valores vem desde o preâmbulo da Carta, que
enuncia o propósito de se constituir uma “sociedade fraterna, pluralista e sem
preconceitos”. O art. 3º renova a intenção e lhe confere inquestionável
normatividade, enunciando serem objetivos fundamentais da República
“construir uma sociedade livre, justa e solidária” e “promover o bem de todos, sem
preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discri-
minação”. O caput do art. 5º reafirma que “todos são iguais perante a lei, sem
distinção de qualquer natureza”. O constituinte incluiu, ainda, menções ex-
pressas de rejeição ao racismo45 e à discriminação contras as mulheres46.
29. Tal conjunto normativo é explícito e inequívoco: a Constituição
é refratária a todas as formas de preconceito e discriminação, binômio no
qual hão de estar abrangidos o menosprezo ou a desequiparação fundada
na orientação sexual das pessoas47. O desenvolvimento do tema, para os
fins aqui visados, remete a algumas categorias conceituais tradicionais
no estudo dessa matéria.

43
V. Luiz Edson Fachin, Aspectos jurídicos da união de pessoas do mesmo sexo,
Revista dos Tribunais 732:47, 1996, p. 53: “Em momento algum pode o Direito fechar-
se feito fortaleza para repudiar ou discriminar. O medievo jurídico deve sucumbir à
visão mais abrangente da realidade, examinando e debatendo os diversos aspectos
jurídicos que emergem das parcerias de convívio e de afeto. Esse é um ponto de
partida para desatar alguns ‘nós’ que ignoram os fatos e desconhecem o sentido de
refúgio qualificado prioritariamente pelo compromisso sócio-afetivo”.
44
Boaventura de Souza Santos, As tensões da modernidade. Texto apresentado no Fórum
Social Mundial, Porto Alegre, 2001.
45
CF/88, art. 5º, XLII: “a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível,
sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei”.
46
CF/88, art. 5º, I: “homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos
desta Constituição”.
47
Nesse sentido, v. José Afonso da Silva, Comentário contextual à Constituição, 2005, p.
48.
124 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

1.1. IGUALDADE FORMAL E MATERIAL. IGUALDADE NA LEI E


PERANTE A LEI

30. A igualdade formal, que está na origem histórica liberal do


princípio, impede a hierarquização entre pessoas, vedando a instituição
de privilégios ou vantagens que não possam ser republicanamente
justificadas. Todos os indivíduos são dotados de igual valor e dignidade.
O Estado, portanto, deve agir de maneira impessoal, sem selecionar
indevidamente a quem beneficiar ou prejudicar. A igualdade material, por
sua vez, envolve aspectos mais complexos e ideológicos, de vez que é
associada à idéia de justiça distributiva e social: não basta equiparar as
pessoas na lei ou perante a lei, sendo necessário equipará-las, também,
perante a vida, ainda que minimamente48.
31. Pois bem: a questão aqui estudada resolve-se no plano da
igualdade puramente formal, sem envolver quaisquer das dificuldades te-
óricas e práticas presentes na concretização da igualdade material. A não
desequiparação onde não exista um motivo relevante e legítimo que a jus-
tifique deve ser a conduta de todos os órgãos e agentes públicos e, dentro de
certa medida, deve ser imposta até mesmo aos particulares49. Há preceden-
tes, inclusive, sancionando a discriminação contra homossexuais50.

48
Sobre o tema, v. Ricardo Lobo Torres, “A cidadania multidimensional na era dos
direitos”. In: Teoria dos direitos fundamentais , 1999.
49
A jurisprudência do STF fornece o seguinte exemplo: “(...) I. - Ao recorrente, por não
ser francês, não obstante trabalhar para a empresa francesa, no Brasil, não foi aplica-
do o Estatuto do Pessoal da Empresa, que concede vantagens aos empregados, cuja
aplicabilidade seria restrita ao empregado de nacionalidade francesa. Ofensa ao prin-
cípio da igualdade: C.F., 1967, art. 153, § 1º; C.F., 1988, art. 5º, caput). II. - A
discriminação que se baseia em atributo, qualidade, nota intrínseca ou extrínseca do
indivíduo, como o sexo, a raça, a nacionalidade, o credo religioso, etc., é inconstitucional
(...)”. (STF, DJU 19 dez. 1997, RE 161243/DF, Rel. Min. Carlos Velloso). Na doutrina,
acerca da eficácia privada dos direitos fundamentais, v. Daniel Sarmento, Direitos
Fundamentais e Relações Privadas, 2004.
50
A título de exemplo, em matéria trabalhista, v. TRT 02ª Reg., DJU 14 out. 2005,
Acórdão nº 20050694159 (processo nº 00742-2002-019-02-00-9), Rel. Juiz Valdir
Florindo: “OPÇÃO SEXUAL. DEMISSÃO. DANO MORAL CONFIGURADO (...) O
homossexual não pode ser marginalizado pelo simples fato de direcionar sua atenção
para outra pessoa do mesmo sexo, já que sequer pode-se precisar o que define a
opção sexual do ser humano: se fatores biológicos, psicológicos ou até mesmo ambos.
De todo acerto e procedência é a decisão de primeiro grau, que censurou a atitude da
recorrente. Não há razão alguma ou argumento que possa retirar a condenação”. No
mesmo sentido, v. TRT 15ª Reg., DJU 1 out. 2004, Decisão 038178/2004-PATR
(processo nº 01673-2001-096-15-00-8 ROPS), Rel. Juíza Rita de Cássia Penkal
Bernardino de Souza.
CONVIDADOS 125
Luís Roberto Barroso

32. A noção de igualdade formal projeta-se tanto para o âmbito da


igualdade na lei – comando dirigido ao legislador – quanto para a igualdade
perante a lei, mandamento voltado para o intérprete do Direito. A lei não
deve dar tratamento diferenciado a pessoas e situações substancialmente
iguais, sendo inconstitucionais as distinções caprichosas e injustificadas.
Já os intérpretes – doutrinários, administrativos ou judiciais – devem atri-
buir sentido e alcance às leis de modo a evitar que produzam, concreta-
mente, efeitos inequalitários. Em certas situações, respeitado o limite se-
mântico dos enunciados normativos, deverão proceder de forma corretiva,
realizando a interpretação das leis conforme a Constituição.
33. É certo que, apesar da linguagem peremptória dos diversos
dispositivos constitucionais, não é fato que toda e qualquer desequiparação
seja inválida. Pelo contrário, legislar nada mais é do que classificar e dis-
tinguir pessoas e fatos, com base nos mais variados critérios51. Aliás, a
própria Constituição institui distinções com base em múltiplos fatores,
que incluem sexo, renda, situação funcional e nacionalidade, dentre ou-
tros. O que o princípio da isonomia impõe é que o fundamento da
desequiparação seja razoável e o fim por ela visado seja legítimo52. No
caso concreto, cuida-se de saber se a orientação sexual é um fator aceitável
de discrímen para se negar às relações homoafetivas regime jurídico
equiparável ao das uniões estáveis.
34. Cumpre investigar, assim, a razoabilidade e a legitimidade da
negação de direitos que tem por fator de diferenciação a homossexualida-
de das partes. Note-se que a Constituição é expressa ao considerar suspei-
tas desequiparações baseadas na origem, no gênero e na cor da pele (art.
3º, IV). No item gênero, por certo, está implícita a orientação sexual. No
caso de uma classificação suspeita, agrava-se o ônus argumentativo de
quem vai sustentá-la. A este propósito, os autores que defendem a exclu-
são das relações homoafetivas do regime da união estável procuram justi-
ficar sua posição com base em três fundamentos, a seguir analisados: a
impossibilidade de procriação, a violação dos padrões de “normalidade
moral” e a incompatibilidade com os valores cristãos. Nenhum deles re-
siste ao crivo da razão pública.

51
V. Celso Antônio Bandeira de Mello, O conteúdo jurídico do princípio da igualdade,
1993 (1ª. ed. 1978), p. 11; e Carlos Roberto de Siqueira Castro, O princípio da isonomia
e a igualdade da mulher no direito constitucional, 1983, p. 44.
52
Luís Roberto Barroso, “Razoabilidade e isonomia no direito brasileiro”. In: Temas de
direito constitucional, 2006 (1ª. ed. 1999), p. 161.
126 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

1.2. FUNDAMENTOS INVOCADOS PARA A DESEQUIPARAÇÃO

35. A impossibilidade de procriação não é uma justificativa razo-


ável para o tratamento desigual. Em primeiro lugar porque esta não é,
obviamente, a única função da família. No cerne da noção contemporânea
de família está a afetividade, o projeto de comunhão de vidas, indepen-
dentemente da sexualidade53. O próprio Código Civil impõe como requisi-
to para a caracterização de união estável apenas a convivência pública,
contínua e duradoura, estabelecida com o objetivo de constituir família.
Não há qualquer referência à procriação. Além disso, o reconhecimento
constitucional da família monoparental54 afasta definitivamente o argu-
mento de que a impossibilidade de procriação seja um óbice à atribuição
do status familiae55. À vista de tais elementos, não se legitima a exclusão de
pessoas do mesmo sexo da categoria entidade familiar nem do regime
jurídico da união estável, se o que as une é a mesma afetividade e o mesmo
projeto de vida comum que ligam as pessoas de sexos opostos.
36. Outro argumento encontrado na doutrina é o de que as rela-
ções entre pessoas do mesmo sexo não podem ser reconhecidas como fa-
miliares porque escapariam aos padrões de “normalidade moral”. Não é
o caso de se enveredar aqui pela discussão acerca do que é normal, lem-
brando apenas que em épocas e lugares diferentes já foram ou são nor-
mais a tortura, a escravidão e a mutilação. O que cabe discutir aqui – e
rejeitar – é a imposição autoritária da moral dominante à minoria, sobre-
tudo quando a conduta desta não afeta terceiros. Em uma sociedade de-
mocrática e pluralista, deve-se reconhecer a legitimidade de identidades
alternativas ao padrão majoritário. O estabelecimento de standards de

53
Enézio de Deus Silva Júnior, Adoção por casais homossexuais, Revista Brasileira de
Direito de Família 30:124, 2005, p. 143: “Com razão, se o afeto é o que justifica o
respeito mútuo, a durabilidade e a solidez, indispensáveis para que as uniões
formem uma estrutura familiar (independente do sexo biológico e da orientação de
desejo dos seus membros), as relações homossexuais evidenciam todas as nuanças
distintivas do fenômeno humano, ora juridicizado pelo Direito de Família”. No
mesmo sentido, v. tb. Cristiano Chaves de Farias, Reconhecer a obrigação alimentar
nas uniões homoafetivas: uma questão de respeito à Constituição da República,
Revista Brasileira de Direito de Família 28:26, 2005, p. 33; Ana Carla Harmatiuk
Matos, União entre pessoas do mesmo sexo – Aspectos jurídicos e sociais, p. 27, 2004; e
Taísa Ribeiro Fernandes, Uniões homossexuais e seus efeitos jurídicos, 2004, p. 80-1.
54
CF/88, art 226, § 4º: “Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade
formada por qualquer dos pais e seus descendentes”.
55
V. Ana Carla Harmatiuk Matos, União entre pessoas do mesmo sexo – Aspectos jurídicos
e sociais, p. 33, 2004.
CONVIDADOS 127
Luís Roberto Barroso

moralidade já justificou, ao longo da história, variadas formas de exclu-


são social e política, valendo-se do discurso médico, religioso ou da re-
pressão direta do poder56. Não há razão para se reproduzir o erro.
37. Uma terceira e última corrente que procura justificar a discri-
minação em relação às uniões homoafetivas baseia-se na seguinte linha: a
de não ser possível atribuir status familiar a tais relações, por serem elas
contrárias aos valores cristãos57. Este argumento pode ter importância no
debate que se instaure no interior das confissões religiosas. Mas, como
intuitivo, não pode prevalecer no espaço público de um Estado laico58.
Evita-se aqui o desvio – apesar do seu fascínio – de discutir se os valores
cristãos não seriam realizados de forma melhor pela compreensão, pela
tolerância e pelo amparo, em lugar da negação.
38. Um último comentário. O conteúdo do princípio da igualdade
sofreu uma importante expansão nas últimas décadas. No contexto do
embate entre capitalismo e socialismo, os temas centrais de discussão
gravitavam em torno da promoção de igualdade material e da redistribuição
de riquezas. Com o fim da guerra fria, entraram na agenda pública outros
temas, sobretudo os que envolvem as denominadas políticas de reconheci-

56
Márcia Arán e Marilena V. Corrêa, Sexualidade e política na cultura contemporâ-
nea: o reconhecimento social e jurídico do casal homossexual, Physis 14(2):329, 2004.
57
Quanto ao ponto, v. Luiz Roldão de Freitas Gomes, Da sociedade entre homossexu-
ais, Revista de direito do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro 59:26, 2004, p.
30: “Esta [a convivência de pessoas do mesmo sexo], como visto, sem desviar de
aspectos psicológicos e humanos que as possam envolver, não passam de meras
situações de fato, com repercussões apenas no plano patrimonial, como se uma
sociedade de fato houvera, o que jamais pode converter-se em casamento, diante de
sua concepção agasalhada no ordenamento jurídico brasileiro, a partir de suas
raízes históricas e em face dos valores cristãos, que informam o matrimônio”.
58
Como se sabe, a Igreja Católica sequer reconhece as uniões estáveis entre homens e
mulheres. Em discurso recente (19 out. 2006), o Papa reafirmou a posição: “Hoje
uma atenção especial e um compromisso extraordinário são exigidos daqueles
grandes desafios em que vastas porções da família humana estão em maior perigo:
as guerras e o terrorismo, a fome e a sede, e algumas epidemias terríveis. Mas é
necessário também enfrentar, com iguais determinação e clareza de intenções, o
risco de opções políticas e legislativas que contradizem valores fundamentais e
princípios antropológicos e éticos radicados na natureza do ser humano, de modo
particular no que se refere à tutela da vida humana em todas as suas fases, desde
a concepção até à morte natural, e à promoção da família fundada no matrimônio,
evitando introduzir no ordenamento público outras formas de união que contribui-
riam para a desestabilizar, obscurecendo o seu caráter peculiar e o seu papel social
insubstituível.”. In: <http://www.vatican.va/holy_father/benedict_xvi/speeches/
2006/october/documents/hf_ben xvi_spe_20061019_convegno-verona_po.html>.
Acesso em: 9 nov. 2006.
128 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

mento, designação sob a qual se travam as discussões acerca de etnia,


gênero e orientação sexual. Sob o influxo do princípio da dignidade da
pessoa humana, passou-se a enfatizar a idéia de que devem ser respeita-
dos todos os projetos pessoais de vida e todas as identidades culturais,
ainda quando não sejam majoritários.

2. PRINCÍPIO DA LIBERDADE PESSOAL, DO QUAL DECORRE A


AUTONOMIA PRIVADA

“Se nascemos numa sociedade que nos ensina certos valores


morais – justiça, igualdade, veracidade, generosidade, cora-
gem, amizade, direito à felicidade – e, no entanto, impede a
concretização deles porque está organizada e estruturada de
modo a impedi-los, o reconhecimento da contradição entre o
ideal e a realidade é o primeiro momento da liberdade e da
vida ética como recusa da violência. O segundo momento é a
busca das brechas pelas quais possa passar o possível, isto é,
uma outra sociedade que concretize no real aquilo que a nos-
sa propõe no ideal”.
Marilena Chauí59

39. Duas concepções de liberdade se contrapõem historicamente.


No sentido aristotélico, ela traduz o poder de auto-determinação, de deli-
beração sem interferências externas. Liberdade, assim, é um ato de deci-
são e escolha entre várias alternativas possíveis. Na concepção oposta, a
liberdade não é um ato de escolha do indivíduo, mas o produto de um
contexto externo a ele, seja a natureza ou uma infra-estrutura econômica.
É preciso que a realidade concreta lhe dê condições para ser livre.
Modernamente, uma terceira concepção tem prevalecido, reunindo ele-
mentos de uma e de outra. A liberdade, efetivamente, tem um conteúdo
nuclear que se situa no poder de decisão, de escolha entre diversas possi-
bilidades. Mas tais escolhas são condicionadas pelas circunstâncias na-
turais, psíquicas, culturais, econômicas e históricas. Portanto, trata-se de
uma capacidade que não é apenas subjetiva, mas consiste na possibilida-
de objetiva de decidir60.
40. Passando da filosofia para a teoria do Direito e para a teoria
democrática, é de se consignar que um Estado democrático de direito deve
não apenas assegurar ao indivíduo o seu direito de escolha entre várias

59
Marilena Chauí, Convite à filosofia, 1999, p. 365.
60
Marilena Chauí, Convite à filosofia, 1999, p. 360-2.
CONVIDADOS 129
Luís Roberto Barroso

alternativas possíveis, como, igualmente, deve propiciar condições objeti-


vas para que estas escolhas possam se concretizar61. As pessoas devem ter
o direito de desenvolver a sua personalidade e as instituições políticas e
jurídicas devem promover esse desenvolvimento, e não dificultá-lo. Certas
manifestações da liberdade guardam conexão ainda mais estreita com a
formação e o desenvolvimento da personalidade, merecendo proteção re-
dobrada62. É o caso, por exemplo, da liberdade religiosa, de pensamento e
de expressão. E também da liberdade de escolher as pessoas com quem
manter relações de afeto e companheirismo. De maneira plena, com todas
as conseqüências normalmente atribuídas a esse status63. E não de forma
clandestina.
41. Do princípio da liberdade decorre a autonomia privada de cada
um. Não reconhecer a um indivíduo a possibilidade de viver sua orientação
sexual em todos os seus desdobramentos é privá-lo de uma das dimensões
que dão sentido a sua existência. Tal como assinalado, a exclusão das rela-
ções homoafetivas do regime da união estável não daria causa, simplesmen-
te, a uma lacuna, a um espaço não-regulado pelo Direito. Esta seria, na ver-
dade, uma forma comissiva de embaraçar o exercício da liberdade e o desen-
volvimento da personalidade de um número expressivo de pessoas, depreci-
ando a qualidade dos seus projetos de vida e dos seus afetos. Isto é: fazendo
com que sejam menos livres para viver as suas escolhas.

61
Registre-se que para um indivíduo de orientação homossexual, a escolha não é entre
estabelecer relações com pessoas do mesmo sexo ou de sexo diferente, mas entre
abster-se de sua orientação sexual ou vivê-la clandestinamente. As pessoas devem
ter liberdades individuais que não podem ser cerceadas pela maioria, pela imposi-
ção de sua própria moral. Sobre o tema, v. Ronald Dworkin, Sovereign virtue, 2000,
p. 453 e ss..
62
Daniel Sarmento, Direitos fundamentais e relações privadas, 2004, p. 241: “Em relação
às liberdades existenciais, como a privacidade, as liberdades de comunicação e
expressão, de religião, de associação e de profissão, dentre tantas outras, existe
uma proteção constitucional reforçada, porque sob o prisma da Constituição, estes
direitos são indispensáveis para a vida humana com dignidade. Tais liberdades não
são meros instrumentos para a promoção de objetivos coletivos, por mais valiosos
que sejam”.
63
Nesse sentido, v. Érika Harumi Fugie, Inconstitucionalidade do art. 226, §3º, da
CF?, Revista dos Tribunais 813:64, 2003, p. 76: “De modo que a liberdade de expres-
são sexual, como direito de personalidade, é direito subjetivo que tem como objeto
a própria pessoa. Assim, é dotado de uma especificidade e se insere no minimum
necessário e imprescindível ao conteúdo do indivíduo. De maneira que o aniquila-
mento de um direito de personalidade ofusca a pessoa como tal. A esses direitos
mais preciosos relativos à pessoa se atribui a denominação de medula da persona-
lidade. Assim, o direito à orientação sexual, em sendo um direito de personalidade,
é atributo inerente à pessoa humana”.
130 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

42. A autonomia privada pode certamente ser limitada, mas não


caprichosamente. A imposição de restrições deve ser justificada pela pro-
moção de outros bens jurídicos de mesma hierarquia, igualmente tutelados
pela ordem jurídica. Essa é uma exigência do princípio da razoabilidade
ou proporcionalidade, mais especificamente do sub-princípio da
proporcionalidade em sentido estrito64. No caso, por se tratar da dimensão
existencial da autonomia privada, apenas razões de especial relevância –
como a necessidade de conciliação com o núcleo de outro direito funda-
mental – poderiam justificar uma ponderação para o fim de compatibilizar
os interesse em conflito.
43. Ocorre, porém, que o não-reconhecimento das uniões estáveis
entre pessoas do mesmo sexo não promove nenhum bem jurídico que mere-
ça proteção em um ambiente republicano. Ao contrário, atende apenas a
uma determinada concepção moral, que pode até contar com muitos adep-
tos, mas que não se impõe como juridicamente vinculante em uma socieda-
de democrática e pluralista, regida por uma Constituição que condena
toda e qualquer forma de preconceito. Esta seria uma forma de perfeccionismo
ou autoritarismo moral65, próprio dos regimes totalitários, que não se limi-
tam a organizar e promover a convivência pacífica, tendo a pretensão de
moldar indivíduos adequados66. Em suma, o que se perde em liberdade não
reverte em favor de qualquer outro princípio constitucionalmente protegi-
do.

64
Sobre o princípio da razoabilidade ou proporcionalidade, v. Luís Roberto Barroso,
Interpretação e aplicação da Constituição, 2004, p. 244; Humberto Ávila, Teoria dos
princípios, 2003, p. 116-7; e Wilson Antônio Steinmetz, Colisão de direitos fundamentais
e princípio da proporcionalidade, 2001, p. 152-3.
65
Carlos Santiago Nino, Ética y derechos humanos, 2005, p. 205: “La concepción opuesta al
principio de autonomía tal como lo he presentado se suele denominar ‘perfeccionismo’. Esta
concepción sostiene que lo que es bueno para un individuo o lo que satisface sus intereses es
independiente de sus propios deseos o de su elección de forma de vida y que el Estado pude,
a través de distintos medios, dar preferencia a aquellos intereses y planes de vida que son
objetivamente mejores”.
66
Reinhold Zippelius, Teoria geral do Estado, 1997, p. 370-1: “O moderno Estado tota-
litário, que intervém em todos os sectores da vida e para o qual servem como
exemplo a Rússia estalinista e a Alemanha nazi, reclama realizar as suas idéias
políticas, econômicas e sociais mesmo na esfera privada (...). No moderno Estado
totalitário pretende-se subordinar aos objetivos de Estado e colocar ao seu serviço
não só a economia, o mercado de trabalho e a actividade profissional, mas também
a vida social, os tempos livres, a família, todas as convicções e toda a cultura e os
costumes do povo”.
CONVIDADOS 131
Luís Roberto Barroso

3. PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

44. O princípio da dignidade da pessoa humana migrou da reli-


gião e da filosofia para o Direito nas últimas décadas, tendo sido incluído
em documentos internacionais e em Constituições democráticas. A Consti-
tuição brasileira de 1988 abrigou-o expressamente, dando início a uma
fecunda produção doutrinária que procura dar-lhe densidade jurídica e
objetividade67. A dignidade humana identifica um espaço de integridade a
ser assegurado a todas as pessoas por sua só existência no mundo. É um
respeito à criação, independente da crença que se professe quanto à sua
origem. Expressão nuclear dos direitos fundamentais, a dignidade abriga
conteúdos diversos, que incluem condições materiais mínimas de existên-
cia, integridade física e valores morais e espirituais. As coisas têm preço; as
pessoas têm dignidade68. Do ponto de vista moral, ser é muito mais do que
ter.

67
A partir do final da década de 90, a produção nacional passou a voltar-se para o
tema. Confiram-se alguns trabalhos representativos: José Afonso da Silva, Dignida-
de da pessoa humana como valor supremo da democracia, Revista de Direito Admi-
nistrativo 212:89, 1998; Carmen Lúcia Antunes Rocha, O princípio da dignidade da
pessoa humana e a exclusão social, Anais da XVII Conferência Nacional da Ordem dos
Advogados do Brasil, 1999; Ingo Wolfgang Sarlet, Dignidade da pessoa humana e direitos
fundamentais na Constituição brasileira de 1988, 2001; Cleber Francisco Alves, O prin-
cípio constitucional da dignidade da pessoa humana, 2001; Ana Paula de Barcellos, A
eficácia jurídica dos princípios constitucionais. O princípio da dignidade da pessoa humana,
2001; Maria Celina Bodin de Moraes, “O conceito de dignidade humana: substrato
axiológico e conteúdo normativo”. In: Ingo Wolfgang Sarlet (org.), Constituição,
direitos fundamentais e direito privado, 2003.
68
Immanuel Kant, Fundamentação à metafísica dos costumes, 2005 (edição original de
1785), p. 77-8: “No reino dos fins tudo tem um preço ou uma dignidade. Quando
uma coisa tem um preço, pode-se pôr em vez dela qualquer outra como equivalente;
mas quando uma coisa está acima de todo o preço, e portanto não permite equiva-
lente, então tem ela dignidade. (...) Ora a moralidade é a única condição que pode
fazer de um ser racional um fim em si mesmo, pois só por ela lhe é possível ser
membro legislador no reino dos fins. Portanto, a moralidade, e a humanidade en-
quanto capaz de moralidade, são as únicas coisas que têm dignidade”. Explicitando
o pensamento de Kant, com remissão a B. Freitag, averbou Maria Celina Bodin de
Moraes, “O conceito de dignidade humana: substrato axiológico e conteúdo
normativo”. In: Ingo Wolfgang Sarlet (org.), Constituição, direitos fundamentais e direi-
to privado, 2003: “De acordo com Kant, no mundo social existem duas categorias de
valores: o preço (preis) e a dignidade (Würden). Enquanto o preço representa um
valor exterior (de mercado) e manifesta interesses particulares, a dignidade repre-
senta um valor interior (moral) e é de interesse geral. As coisas têm preço; as
pessoas, dignidade”.
132 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

45. É impossível deixar de reconhecer que a questão aqui tratada


envolve uma reflexão acerca da dignidade humana69. Dentre as múltiplas
possibilidades de sentido da idéia de dignidade, duas delas são reconhe-
cidas pelo conhecimento convencional: i) ninguém pode ser tratado como
meio, devendo cada indivíduo ser considerado sempre como fim em si
mesmo70; e ii) todos os projetos pessoais e coletivos de vida, quando razo-
áveis, são dignos de igual respeito e consideração, são merecedores de
igual “reconhecimento”71. A não atribuição de reconhecimento à união
entre pessoas do mesmo sexo viola simultaneamente essas duas dimen-
sões nucleares da dignidade humana.
46. Em primeiro lugar, tal exclusão funcionaliza as relações afetivas
a um projeto determinado de sociedade, que é majoritário, por certo, mas
não juridicamente obrigatório. As relações afetivas são vistas como meio
para a realização de um modelo idealizado, estruturado à imagem e seme-
lhança de concepções morais ou religiosas particulares. O indivíduo é
tratado, então, como meio para a realização de um projeto de sociedade.
Só é reconhecido na medida em que se molda ao papel social que lhe é
designado pela tradição: o papel de membro da família heterossexual,
dedicada à reprodução e à criação dos filhos.
47. Em segundo lugar, a discriminação das uniões homoafetivas
equivale a não atribuir igual respeito a uma identidade individual, a se
afirmar que determinado estilo de vida não merece ser tratado com a mes-
ma dignidade e consideração atribuída aos demais. A idéia de igual respei-

69
Ana Carla Harmatiuk Matos, União de pessoas do mesmo sexo – Aspectos jurídicos e
sociais, 2004, p. 148: “Há de se conhecer a dignidade existente na união homoafetiva.
O conteúdo abarcado pelo valor da pessoa humana informa poder cada pessoa
exercer livremente sua personalidade, segundo seus desejos de foro íntimo. A sexu-
alidade está dentro do campo da subjetividade, representando uma fundamental
perspectiva do livre desenvolvimento da personalidade, e partilhar a cotidianidade
da vida em parcerias estáveis e duradouras parece ser um aspecto primordial da
experiência humana”.
70
Esta é, como se sabe, uma das máximas do imperativo categórico kantiano, proposi-
ções éticas superadoras do utilitarismo. V. Immanuel Kant, Fundamentación de la
metafísica de las costumbres, 1951. V. tb. Ted Honderich (editor), The Oxford companion
to Philosophy, 1995, p. 589; Ricardo Lobo Torres, Tratado de direito constitucional
financeiro e tributário: Valores e princípios constitucionais tributários, 2005; e Ricardo
Terra, Kant e o direito, 2005.
71
V. Charles Taylor, “A política do reconhecimento”. In: Argumentos Filosóficos, 2000;
José Reinaldo de Lima Lopes, “O direito ao reconhecimento de gays e lésbicas”. In:
Celio Golin; Fernando Altair Pocahy e Roger Raupp Rios (org.), A Justiça e os direitos
de gays e lésbicas, 2003.
CONVIDADOS 133
Luís Roberto Barroso

to e consideração se traduz no conceito de “reconhecimento”. As identida-


des particulares, ainda que minoritárias, são dignas de reconhecimento.
48. Atualmente já se sabe que o reconhecimento do outro exerce
importante papel na constituição da própria identidade (do self72) e no
desenvolvimento de auto-estima. A formação dessa identidade, do modo
como cada um se autocompreende, depende do olhar do outro; é um pro-
cesso dialógico. O não reconhecimento se converte em desconforto, levan-
do muitos indivíduos a negarem sua própria identidade à custa de gran-
de sofrimento pessoal. A distinção ora em exame, ao não atribuir igual
respeito às relações homoafetivas, perpetua a dramática exclusão e
estigmatização a que os homossexuais têm sido submetidos no ocidente.
Cuida-se, portanto, de patente violação à dignidade da pessoa humana.

4. PRINCÍPIO DA SEGURANÇA JURÍDICA

49. A segurança jurídica constitui um elemento importante para a


paz de espírito e para a paz social. Ao contrário dos princípios anteriores,
este não incide diretamente para reger a hipótese, mas sim como vetor
interpretativo do quadro normativo existente. O princípio da segurança
jurídica envolve a tutela de valores como a previsibilidade das condutas,
a estabilidade das relações jurídicas e a proteção da confiança. Para
promovê-los, o Estado e o Direito são dotados de instituições e de institu-
tos que incluem o próprio Poder Judiciário – que tem por fim precípuo
assegurar o primado da Constituição e das leis – e categorias como a
anterioridade, a continuidade e a irretroatividade das leis, assim como
mecanismos de tutela das expectativas legítimas e da preservação de efei-
tos de atos que venham a ser invalidados73. A exclusão das relações
homoafetivas do regime jurídico da união estável, sem que exista um ou-
tro regime específico aplicável, é inequivocamente geradora de inseguran-
ça jurídica.
50. As uniões entre pessoas do mesmo sexo são lícitas e continua-
rão a existir, ainda que persistam as dúvidas a respeito do seu
enquadramento jurídico. Esse quadro de incerteza – alimentado por ma-

72
Charles Taylor, “A política do reconhecimento”. In: Argumentos Filosóficos, 2000.
73
V. Almiro do Couto e Silva, O princípio da segurança jurídica (proteção à confian-
ça) no direito público brasileiro e o direito da administração pública de anular seus
próprios atos administrativos: o prazo decadencial do art. 54 da Lei do processo
administrativo da União (Lei nº 9.784/99), Revista de Direito Administrativo 237:271,
2004.
134 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

nifestações díspares do Poder Público, inclusive decisões judiciais


conflitantes – afeta o princípio da segurança jurídica, tanto do ponto de
vista das relações entre os parceiros quanto das relações com terceiros.
Vale dizer: criam-se problemas para as pessoas diretamente envolvidas e
para a sociedade.
51. Os primeiros afetados são, por certo, os partícipes das relações
homoafetivas. O desenvolvimento de um projeto de vida comum tende a
produzir reflexos existenciais e patrimoniais. Diante disso, é natural que
as partes queiram ter previsibilidade em temas envolvendo herança, par-
tilha de bens, deveres de assistência recíproca e alimentos, dentre outros.
Todos esses aspectos encontram-se equacionados no tratamento que o
Código Civil dá às uniões estáveis74. Sua extensão às relações homoafetivas
teria o condão de superar a insegurança jurídica na matéria.
52. De fora parte isto, a indefinição sobre o regime aplicável pode
afetar, igualmente, terceiros que venham a estabelecer relações negociais
com algum dos envolvidos na parceria homoafetiva75. É que, como regra,
pessoas que vivem em união estável necessitam de anuência do compa-
nheiro, por exemplo, para alienar bens e conceder garantia. Dúvida have-
rá, também, sobre a responsabilidade patrimonial por dívidas individu-
ais ou dívidas comuns aos companheiros. Há incertezas jurídicas, por-
tanto, quanto a formalidades e quanto a aspectos de direito material en-
volvendo as relações entre parceiros homoafetivos e terceiros.
53. Dessa forma, se é possível interpretar o direito posto de modo
a prestigiar o princípio da segurança jurídica, e inexistindo outro valor de
estatura constitucional que a ele se oponha, será contrária à Constituição
a interpretação que frustre a concretização de tal bem jurídico.

VI. O PRIMADO DA AFETIVIDADE: A UNIÃO HOMOAFETIVA


COMO ENTIDADE FAMILIAR

54. Uma das principais conseqüências da extensão do regime da


união estável às relações compromissadas entre pessoas do mesmo sexo

74
Código Civil, art. 1.725: “Na união estável, salvo contrato escrito entre os compa-
nheiros, aplica-se às relações patrimoniais, no que couber, o regime da comunhão
parcial de bens”.
75
Sobre o tema, vejam-se Hélio Borghi, União estável & casamento – Aspectos polêmicos,
2003, p. 60, e Zeno Veloso, União estável, 1997, p. 86-7. Vale notar que os autores
tratam da união estável heterossexual. No entanto, uma vez reconhecidas as uniões
homoafetivas, a mesma lógica lhes seria aplicável.
CONVIDADOS 135
Luís Roberto Barroso

reside na sua caracterização como entidade familiar. Longe de configurar


uma aproximação artificial, parece possível identificar nas uniões
homoafetivas todos os elementos que têm sido considerados determinantes
para o reconhecimento de entidades familiares. Como já foi adiantado, o
conceito de família tem sofrido importantes mudanças. A
constitucionalização do direito deslocou a ênfase do instituto para os as-
pectos existenciais, em substituição às questões patrimoniais. Mais im-
portante ainda é a caracterização que tem sido feita da família como meio
de promoção – ambiente privilegiado – para o desenvolvimento da perso-
nalidade de seus membros, e não mais como um fim em si mesmo ou um
mero símbolo de tradição76.
55. A família é um fenômeno sócio-cultural institucionalizado pelo
Direito. Refletindo fatores psíquicos, materializados no âmbito da
afetividade e da sexualidade, o tratamento dispensado pelo direito à famí-
lia precisa acompanhar as transformações que têm lugar na sociedade.
Para além da família formada pelo casamento, reunindo homem, mulher e
filhos, o direito vem progressivamente reconhecendo novas modalidades
de entidade familiar. O desafio hoje apresentado ao direito de família é
incorporar o pluralismo e corresponder aos objetivos que lhe são confia-
dos77.
56. No cerne da concepção contemporânea de família, situa-se a
mútua assistência afetiva, a chamada affectio maritalis, conceituada como

76
Quanto ao ponto, v. Luiz Edson Fachin, Direito de Família – elementos críticos à luz do
novo Código Civil brasileiro, 2003, p. 306: “Da superação do antigo modelo da ‘gran-
de-família’, na qual avultava o caráter patriarcal e hierarquizado da família, uma
unidade centrada no casamento, nasce a família moderna, com a progressiva elimi-
nação da hierarquia, emergindo uma restrita liberdade de escolha; o casamento fica
dissociado da legitimidade dos filhos. Começam a dominar as relações de afeto, de
solidariedade e de cooperação. Proclama-se a concepção eudemonista da família:
não é mais o indivíduo que existe para a família e para o casamento, mas a família
e o casamento existem para o seu desenvolvimento pessoal, em busca de sua aspi-
ração à felicidade”.
77
Vejam-se: Caio Mário da Silva Pereira, Instituições de Direito Civil, vol. V, 2004, p. 2-
3; e Maria Claudia Crespo Brauner, Reinventando o Direito de Família: novos
espaços de conjugalidade e parentalidade, Revista Trimestral de Direito Civil 18:79,
2004, p. 81: “O desafio lançado consiste em aceitar o princípio democrático do
pluralismo na formação de entidades familiais e, respeitando as diferenças intrínse-
cas de cada uma delas, efetivar a proteção e prover os meios para resguardar os
interesses das partes, conciliando o respeito à dignidade humana, o direito à intimi-
dade e à liberdade com os interesses sociais e, somente quando indispensável,
recorrer à intervenção estatal para coibir abusos”.
136 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

a vontade específica de firmar uma relação íntima e estável de união, en-


trelaçando as vidas e gerenciando em parceria os aspectos práticos da
existência78. A afetividade é o elemento central desse novo paradigma,
substituindo a consangüinidade79 e as antigas definições assentadas em
noções como normalidade e capacidade de ter filhos. A nova família, en-
tendida como “comunidade de afeto”, foi consagrada pelo texto constitu-
cional de 198880.
57. Essa nova família foi resultado de um importante processo de
evolução, impulsionado pela jurisprudência. Na vigência da Constituição
de 1967, considerava-se que apenas através do casamento era possível
ocorrer formação da família. Nenhuma outra forma de união era contem-
plada pelo texto, que dispunha: “A família é constituída pelo casamento e terá
direito à proteção dos Poderes Públicos” (art. 16781). Apesar da literalidade
do dispositivo, a jurisprudência passou a reconhecer efeitos jurídicos às
uniões livres, à medida em que avançavam as concepções culturais e

78
Neste sentido, v. Enézio de Deus Silva Júnior, Adoção por Casais Homossexuais,
Revista Brasileira de Direito de Família 30:124, 2005, p. 132: “Por tal razão, rompem-
se conceitos e reformulam-se posturas doutrinárias, na seara jurídico-familiar, subs-
tituindo a ideologia tradicional e estatal da família, por outra, mais coerente com a
realidade social sustentada pelo afeto. Neste diapasão, o casamento deixou de ser
considerado único legitimador da família, e a sociedade conjugal tende a ser vis-
lumbrada como estrutura de amor e de respeito, independente do sexo biológico e
da orientação afetiva dos que a integram”. V. tb. Érika Harumi Fugie,
Inconstitucionalidade do art. 226, § 3º, da CF?, Revista dos Tribunais 813:64, 2003, p.
67.
79
V. Luiz Edson Fachin, Direito de Família – elementos críticos à luz do novo Código Civil
brasileiro, 2003, p. 49: “A retomada do valor jurídico da affectio maritalis por si só
denuncia a ratio apenas formal do casamento. A afetividade assume dimensão
jurídica. Migram para a ‘constitucionalização’ princípios e normas básicos do Direi-
to de Família, espraiados na igualdade, na neutralidade e na dimensão da inocência
quanto à filiação”. V. tb. Ana Carla Harmatiuk Matos, União entre pessoas do mesmo
sexo – Aspectos jurídicos e sociais, 2004, p. 27. V. ainda Maria Claudia Crespo Brauner,
Reinventando o Direito de Família: novos espaços de conjugalidade e parentalidade,
Revista Trimestral de Direito Civil 18:79, 2004, p. 83.
80
V. Luiz Edson Fachin, Direito de Família – Elementos críticos à luz do novo Código Civil
brasileiro, 2003, p. 317-8: “Na transformação da família e de seu Direito, o transcur-
so apanha uma ‘comunidade de sangue’ e celebra, ao final deste século, a possibi-
lidade de uma ‘comunidade de afeto’. Novos modos de definir o próprio Direito de
Família. Direito esse não imune à família como refúgio afetivo, centro de intercâm-
bio pessoal e emanador da felicidade possível”.
81
Após a Emenda Constitucional nº 1, de 1969, a previsão passou a ser feita no art.
175, mantendo-se redação idêntica.
CONVIDADOS 137
Luís Roberto Barroso

sociais. Verificou-se, ainda na vigência desse texto, uma verdadeira muta-


ção constitucional do conceito de família82, que seguiu as seguintes etapas
principais83:
a) Primeiramente, negava-se eficácia jurídica ao concubinato, estig-
matizado pelo Código Civil de 1916 como relação insuscetível de qual-
quer proteção;
b) Em uma segunda etapa, parte dos dissídios começa a ser resolvi-
da no plano do direito a um salário ou indenização por serviços domésti-
cos prestados a seu par;
c) Em seguida, insere-se este tipo de relação no direito obrigacional,
de modo a impedir o enriquecimento injustificado de um dos concubinos
em detrimento do outro. Reconhece-se, então, a existência de sociedade de
fato84;

82
V. Guilherme Calmon Nogueira da Gama, A união civil entre pessoas do mesmo
sexo, Revista de Direito Privado 2:30, 2000, p. 32: “O conceito de família para o
Direito é relativo, alterando-se continuamente, como reflexo da própria evolução
histórica da sociedade e dos seus costumes. O certo é que uma das notas peculi-
ares do final do século XX consiste na verificação de que as famílias devem se
fundar, cada vez mais, em valores existenciais e psíquicos, próprios do convívio
próximo, afastando as uniões de valores autoritários, materialistas,
patrimonialistas e individualistas que notabilizaram o modelo de família
oitocentista do Código de Napoleão. E, no âmbito jurídico, não se pode deixar de
considerar o relevante e inestimável papel da Constituição Federal, mormente a de
1988, no direito brasileiro: como já se pôde perceber, o Direito Civil passa pelo
fenômeno de constitucionalização dos bens e valores fundantes do ordenamento
jurídico, com atribuição de maior relevância à pessoa humana (o ser) do que ao
seu patrimônio (o ter). Como observa Giselda Hironaka, o legislador brasileiro, ao
formular a Carta Maior, foi obrigado, diante da realidade da vida, a
constitucionalizar ‘relevantes inovações, entre elas, e principalmente (...)
desmistificação de que a família só se constituísse a partir do casamento civil-
mente celebrado’”.
83
Para um panorama da evolução jurisprudencial e legislativa sobre o tema, v.
Gustavo Tepedino, “Novas formas de entidades familiares: efeitos do casamento
e da família não fundada no casamento”. In: Gustavo Tepedino, Temas de direito
civil, 2004, p. 373 e ss..
84
STF, j. 20 out. 1964, AI 30422, Rel. Min. Luis Galotti: “Sociedade de fato entre
pessoas não casadas. Reconhecimento dela, para efeitos patrimoniais”; STF, j. 20
nov. 1970, RE 60657/GO, Rel. Min. Adalicio Nogueira: “Concubinato. Convivên-
cia ‘more uxorio’, por muitos anos, constitui sociedade de fato. Indenização devi-
da à companheira. Dissídio jurisprudencial superado. Súmula 380"; Súmula 380,
STF: ”Comprovada a existência de sociedade de fato entre os concubinos, é cabí-
vel a sua dissolução judicial, com a partilha do patrimônio adquirido pelo esforço
comum”. (Sessão Plenária de 3 abr. 1964).
138 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

d) Num momento posterior, passou-se a reconhecer verdadeira


união-de-fato entre companheiros85, prevendo-se efeitos jurídicos na esfe-
ra assistencial, previdenciária, locatícia etc.86;
e) Por fim, a Constituição de 1988 recepciona e aprofunda essa evo-
lução, prevendo expressamente a figura da união estável como entidade
familiar e afastando qualquer resquício de hierarquização entre tais uni-
ões e o casamento.
58. É certo que a Constituição de 1988 faz menção apenas à união
estável entre homem e mulher, no que foi seguida pela legislação ordiná-
ria. Em capítulo subseqüente será examinado este ponto, onde se procura-
rá demonstrar que o constituinte não exercitou um silêncio eloqüente, mas
deixou o tema aberto à evolução dos costumes e do Direito. Por ora cui-
dou-se apenas de destacar que as relações entre pessoas do mesmo sexo
apresentam os requisitos apontados por toda a doutrina contemporânea
como essenciais para a caracterização de entidade familiar, que consis-
tem na afetividade e na comunhão de vida.

85
STF, j. 10 mai. 1977, RE 83.930-SP, Rel. Min. Antonio Neder: ”Todavia, em jurídi-
ca linguagem é de se admitir a diferenciação, porque, na verdade, o cônjuge adúl-
tero pode manter convívio no lar com a esposa e, fora, ter encontros amorosos com
outra mulher, como pode também separar-se de fato da esposa, ou desfazer desse
modo a sociedade conjugal, para conviver more uxorio com a outra parte. Na
primeira hipótese o que se configura é um concubinato segundo o seu conceito
moderno, e obviamente a mulher é concubina; mas, na segunda hipótese, o que se
caracteriza é uma união-de-fato (assim chamada por lhe faltarem as justas nuptiae)
e a mulher merece a vida como companheira; precisando melhor a diferenciação, é
de se reconhecer que, no primeiro caso, o homem tem duas mulheres, a legítima e
a outra; no segundo, ele convive apenas com a companheira, porque se afastou da
mulher legítima, rompeu de fato a vida conjugal”.
86
Súmula 35, STF: “em caso de acidente do trabalho ou de transporte, a concubina
tem direito de ser indenizada pela morte do amásio, se entre eles não havia impe-
dimento para o matrimônio”. (Sessão Plenária de 13 dez. 1963); STF, j. 12 mar.
1974, AI 59650/SP, Rel. Min. Alimoar Baleeiro: “Concubina - inscrição para previ-
dência. Não nega vigência a direito federal, nem discrepa de jurisprudência predo-
minante do Supremo Tribunal Federal, o acórdão que mandou inscrever, a pedido
do concubinário, em instituições de previdência, como beneficiaria, a concubina”;
Súmula 122, TFR: “A companheira, atendidos os requisitos legais, faz jus a pensão
do segurado falecido, quer em concorrência com os filhos do casal, quer em suces-
são a estes, não constituindo obstáculo a ocorrência do óbito antes da vigência do
Decreto-lei 66, de 1966”. (Decisão: 29 set. 1982); Súmula 159, TFR: “é legítima a
divisão da pensão previdenciária entre a esposa e a companheira, atendidos os
requisitos exigidos”. (Decisão: 6 jun. 1984); Súmula 253, TFR: “A companheira
tem direito a concorrer com outros dependentes a pensão militar, sem observância
da ordem de preferências”. (Decisão: 2 mar. 1988).
CONVIDADOS 139
Luís Roberto Barroso

59. Por fim, vale a ressalva de que a defesa do modelo tradicional


de família não pressupõe a negação de outras formas de organização fa-
miliar. Não há incompatibilidade entre a união estável entre pessoas do
mesmo sexo e a união estável entre pessoas de sexos diferentes, ou entre
estas e o casamento. O não-reconhecimento jurídico das uniões
homoafetivas não beneficia, em nenhuma medida, as uniões convencio-
nais e tampouco promove qualquer valor constitucionalmente protegido.

PARTE III
EXTENSÃO DO REGIME JURÍDICO DAS UNIÕES ESTÁVEIS ÀS
UNIÕES HOMOAFETIVAS

VII. UNIÕES HOMOAFETIVAS E A REGRA CONSTITUCIONAL DO


ART. 226, § 3º

60. No capítulo anterior procurou-se deixar assentado que os


princípios constitucionais e a nova concepção de família delineada na
Constituição impunham uma conclusão: a de que o regime jurídico das
uniões estáveis deve ser aplicado também às relações homoafetivas. Essa
extensão deve ser imediata, sem que isso importe em violação do art. 226,
§ 3º, como se demonstra a seguir. No próximo tópico será explorada uma
via alternativa de argumentação, geradora das mesmas conseqüências.
61. Como já visto anteriormente, não há regra constitucional ex-
pressa prescrevendo a aplicação do regime da união estável às uniões
homoafetivas. Em sua textualidade, assim dispõe o § 3º do art. 226 da
Constituição Federal:
Art. 226, § 3º: “Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a
união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo
a lei facilitar sua conversão em casamento”.
62. É certo, por outro lado, que a referência a homem e mulher não
traduz uma vedação da extensão do mesmo regime às relações
homoafetivas. Nem o teor do preceito nem o sistema constitucional como
um todo contêm indicação nessa direção. Extrair desse preceito tal conse-
qüência seria desvirtuar a sua natureza: a de uma norma de inclusão. De
fato, ela foi introduzida na Constituição para superar a discriminação
que, historicamente, incidira sobre as relações entre homem e mulher que
não decorressem do casamento. Não se deve interpretar uma regra consti-
tucional contrariando os princípios constitucionais e os fins que a justifi-
caram.
140 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

63. Insista-se, para que não haja margem a dúvida: não tem
pertinência a invocação do argumento de que o emprego da expressão
“união estável entre o homem e a mulher” importa, a contrario sensu, em
proibição à extensão do mesmo regime a uma outra hipótese. Tal norma
foi o ponto culminante de uma longa evolução que levou à equiparação
entre companheira e esposa. Nela não se pode vislumbrar uma restrição –
e uma restrição preconceituosa – de direito. Seria como condenar alguém
com base na lei de anistia. O Código Civil, por sua vez, contém apenas
uma norma de reprodução, na parte em que se refere a homem e mulher, e
não uma norma de exclusão. Exclusão que, de resto, seria inconstitucional.
64. Admita-se, assim, para argumentar, que a Constituição não im-
ponha nem proíba a extensão do regime jurídico da união estável às uni-
ões homoafetivas. O Código Civil, por sua vez, tampouco provê a respeito.
Sendo assim, na ausência de um regime jurídico específico, ditado pelo
constituinte ou pelo legislador, como deve agir o intérprete?

VIII. LACUNA NORMATIVA E MECANISMOS DE INTEGRAÇÃO DA


ORDEM JURÍDICA

65. Divulga o conhecimento convencional que não existem lacunas


no Direito, mas apenas na lei. A omissão, lacuna ou silêncio da lei consis-
te na falta de regra jurídica positiva para regular determinado caso. A
ordem jurídica, todavia, tem uma pretensão de completude, e não se con-
cebe a existência de nenhuma situação juridicamente relevante que não
encontre uma solução dentro do sistema. O processo de preenchimento de
eventuais vazios normativos recebe o nome de integração. Nela não se
cuida, como na interpretação, de revelar o sentido de uma norma existente
e aplicável a dada espécie, mas de pesquisar no ordenamento uma norma
capaz de reger adequadamente uma hipótese que não foi especificamente
disciplinada pelo legislador.
66. A Constituição de 1934 impunha ao intérprete e aplicador do
Direito o dever de integrar a ordem jurídica, na letra expressa do art. 113,
inciso 37: “Nenhum juiz deixará de sentenciar por motivo de omissão na
lei”. As Constituições subseqüentes não reeditaram a regra, que, todavia,
ganhou assento na Lei de Introdução ao Código Civil87 e no Código de

87
Lei de Introdução ao Código Civil, art. 4º: ”Quando a lei for omissa, o juiz decidirá
o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito”.
CONVIDADOS 141
Luís Roberto Barroso

Processo Civil88. Na omissão ou lacuna da lei, deve o juiz recorrer à analo-


gia, aos costumes e aos princípios gerais do Direito. Para os fins aqui relevan-
tes, abre-se uma nota acerca dos princípios e da analogia como mecanis-
mos de integração da ordem jurídica.

1. OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS NA INTERPRETAÇÃO E NA


INTEGRAÇÃO DA ORDEM JURÍDICA

67. Nas últimas décadas houve profunda mutação no papel dos


princípios jurídicos, como já assinalado em outra parte deste estudo. Os
princípios, notadamente os princípios constitucionais, passaram a funci-
onar como a porta pela qual os valores passam do plano ético para o
mundo jurídico. Em sua trajetória ascendente, os princípios deixaram de
ser fonte secundária do Direito para serem alçados ao centro do sistema
jurídico. De lá irradiam-se por todo o ordenamento, influenciado a inter-
pretação e aplicação das normas jurídicas em geral, permitindo a leitura
moral do Direito89.
68. Ora bem: em parte anterior do presente trabalho sustentou-se
que sequer existe lacuna normativa, de vez que os princípios da igualda-
de, dignidade da pessoa humana, liberdade e segurança jurídica impu-
nham a extensão do regime jurídico da união estável às relações
homoafetivas. Considerando-se, para argumentar, que exista de fato omis-
são normativa na matéria, hipótese é de se aplicar os mesmos princípios
para saná-la, produzindo-se como resultado a equiparação, em tudo que
couber, das uniões estáveis entre homem e mulher e as uniões estáveis
entre pessoas do mesmo sexo.

2. O RECURSO À ANALOGIA NA INTEGRAÇÃO DA ORDEM


JURÍDICA

69. A analogia consiste na aplicação de uma norma jurídica con-


cebida para uma dada situação de fato a uma outra situação semelhante,
mas que não fora prevista pelo legislador. Diz-se tratar-se de analogia

88
Código de Processo Civil, art. 126: “O juiz não se exime de sentenciar ou despachar
alegando lacuna ou obscuridade da lei. No julgamento da lide caber-lhe-á aplicar as
normas legais; não as havendo, recorrerá à analogia, aos costumes e aos princípios
gerais de direito”.
89
V. Ronald Dworkin, Freedom’s law, 1996, p. 2: “A leitura moral propõe que todos nós
– juízes, advogados, cidadãos – interpretemos e apliquemos estas cláusulas abs-
tratas (da Constituição) na compreensão de que elas invocam princípios de decên-
cia política e de justiça”.
142 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

legis quando é possível recorrer a uma regra específica apta a incidir sobre
a hipótese, e de analogia iuris quando a solução precisa ser buscada no
sistema como um todo, por não haver nenhuma regra diretamente perti-
nente. A hipótese em exame é, como intuitivo, de analogia legis.
70. De fato, os elementos essenciais da união estável, identificados
pelo próprio Código Civil – convivência pacífica e duradoura com o intuito
de constituir família – estão presentes tanto nas uniões heterossexuais, quan-
to nas uniões homoafetivas. Os elementos nucleares do conceito de entidade
familiar – afetividade, comunhão de vida e assistência mútua, emocional e
prática – são igualmente encontrados nas duas situações. Diante disso, nada
mais natural do que o regime jurídico de uma ser estendido à outra.
71. Admitida a analogia, chegar-se-ia à seguinte conclusão: a Cons-
tituição teria reconhecido expressamente três tipos de família: a decorren-
te de casamento (art. 226, §§ 1º e 2º); a decorrente de união estável entre
pessoas de sexos diferentes (art. 226, §3º); e a família monoparental, ou
seja, aquela formada por apenas um dos pais e seus descendentes (art.
226, § 4º). Haveria, contudo, um tipo comum de família não expressamen-
te reconhecido: a união homoafetiva. Apesar da falta de norma específica, o
reconhecimento dessa quarta modalidade seria imposto pelo conjunto da
ordem jurídica e pela presença dos elementos essenciais que caracterizam
as uniões estáveis e as entidades familiares90.

90
Nesse sentido: TJ/RS, j. 17 nov. 2004, AC 70009550070, Rel. Des. Maria Berenice Dias:
“Inconteste que o relacionamento homoafetivo é um fato social que se perpetuou
através dos séculos, não podendo o Judiciário se olvidar de prestar a tutela jurisdicional
a uniões que, enlaçadas pelo afeto, assumem feição de família. A união pelo amor é
que caracteriza a entidade familiar e não a diversidade de gêneros. E, antes disso, é o
afeto a mais pura exteriorização do ser e do viver, de forma que a marginalização das
relações mantidas entre pessoas do mesmo sexo constitui forma de privação do
direito à vida, em atitude manifestamente preconceituosa e discriminatória. Deixe-
mos de lado as aparências e vejamos a essência. (...) A Constituição Federal proclama
o direito à vida, à liberdade, à igualdade e à intimidade (art. 5º, caput) e prevê como
objetivo fundamental, a promoção do bem de todos, ‘sem preconceitos de origem,
raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação’ (art. 3º, IV). Dis-
põe, ainda, que ‘a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberda-
des fundamentais’ (art. 5º, XLI). Portanto, sua intenção é a promoção do bem dos
cidadãos, que são livres para ser, rechaçando qualquer forma de exclusão social ou
tratamento desigual.” V. também: TJ/RJ, j. 21 mar. 2006, AC 2005.001.34933, Rel.
Des. Letícia Sardas: “Dado o princípio constitucional da dignidade da pessoa huma-
na e da expressa proscrição de qualquer forma de discriminação sexual, não há
impedimento jurídico ao reconhecimento de união estável entre pessoas do mesmo
sexo, com os efeitos patrimoniais aludidos pela Lei 8.971/94 e 9.278/96. 2. Interpre-
tação sistemática do disposto no § 3° do art. 226 da Constituição Federal revela que
a expressão homem e mulher referida na dita norma está vinculada à possibilidade de
conversão da união estável em casamento, nada tendo a ver com o receito de convi-
vência que, de resto, é fato social aceito e reconhecido, até mesmo fins previdenciários”.
CONVIDADOS 143
Luís Roberto Barroso

72. Não bastaria, portanto, o reconhecimento de meras sociedades


de fato, tal como tem prevalecido na jurisprudência brasileira91. Embora
esta seja uma forma de reconhecimento, ainda precário, é preciso destacar
que a sociedade de fato é um instituto jurídico do direito das obrigações, ao
contrário da união estável, que se insere no direito de família. A fórmula da
sociedade de fato já marca uma evolução da jurisprudência – lembrando o
caminho percorrido em relação às uniões estáveis entre homem e mulher –
mas ainda equivale à negação de natureza familiar às relações
homoafetivas: para o direito, os homossexuais estariam impedidos de,
mantendo sua identidade, constituírem famílias. Disso resulta negar a
um grande conjunto de pessoas uma das dimensões básicas da afetividade,
caracterizando manifesto preconceito e sendo incompatível com a tábua
de valores da Constituição.
73. A solução descrita neste tópico já foi acolhida em diversas
decisões judiciais. Abaixo se destaca uma delas, pela precisão com que
enfrentou os pontos relevantes, justificando-se a longa transcrição:

“A exclusão dos benefícios previdenciários, em razão da orientação


sexual, além de discriminatória, retira da proteção estatal pessoas
que, por imperativo constitucional, deveriam encontrar-se por ela
abrangidas. Ventilar-se a possibilidade de desrespeito ou prejuízo a
alguém, em função de sua orientação sexual, seria dispensar trata-
mento indigno ao ser humano. Não se pode, simplesmente, ignorar a
condição pessoal do indivíduo, legitimamente constitutiva de sua
identidade pessoal (na qual, sem sombra de dúvida, se inclui a orien-
tação sexual), como se tal aspecto não tivesse relação com a dignidade
humana. As noções de casamento e amor vêm mudando ao longo da
história ocidental, assumindo contornos e formas de manifestação e
institucionalização plurívocos e multifacetados, que num movimento
de transformação permanente colocam homens e mulheres em face
de distintas possibilidades de materialização das trocas afetivas e
sexuais. A aceitação das uniões homossexuais é um fenômeno mun-
dial – em alguns países de forma mais implícita – com o alargamento
da compreensão do conceito de família dentro das regras já existen-
tes; em outros de maneira explícita, com a modificação do ordenamento

91
A título de exemplo, v. STJ, DJU 6 abr. 1998, REsp 148.897/MG, Rel. Min. Ruy
Rosado de Aguiar; STJ, DJU 14 mar. 2005, REsp 323.370/RS, Rel. Min. Barros de
Monteiro; e STJ, DJU 16 mai. 2005, REsp 502.995/RN, Rel. Min. Fernando Gonçal-
ves.
144 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

jurídico feita de modo a abarcar legalmente a união afetiva entre


pessoas do mesmo sexo. O Poder Judiciário não pode se fechar às
transformações sociais, que, pela sua própria dinâmica, muitas vezes
se antecipam às modificações legislativas. Uma vez reconhecida, numa
interpretação dos princípios norteadores da constituição pátria, a
união entre homossexuais como possível de ser abarcada dentro do
conceito de entidade familiar e afastados quaisquer impedimentos de
natureza atuarial, deve a relação da Previdência para com os casais
de mesmo sexo dar-se nos mesmos moldes das uniões estáveis entre
heterossexuais, devendo ser exigido dos primeiros o mesmo que se
exige dos segundos para fins de comprovação do vínculo afetivo e
dependência econômica presumida entre os casais (art. 16, I, da Lei
n.º 8.213/91), quando do processamento dos pedidos de pensão por
morte e auxílio reclusão”92.

74. Por todo o conjunto de fundamentos expostos nas Partes II e


III, afigura-se fora de dúvida que as uniões estáveis homoafetivas consti-
tuem entidade familiar e, à falta de disciplina específica, devem reger-se
pelas mesmas regras da união estável entre homem e mulher.

CONCLUSÃO

75. É possível compendiar as principais idéias desenvolvidas ao


longo do presente estudo nas seguintes proposições:
A. As uniões homoafetivas são fatos lícitos e relativos à vida
privada de cada um. O papel do Estado e do Direito, em relação a elas
como a tudo mais, é o de respeitar a diversidade, fomentar a tolerância e
contribuir para a superação do preconceito e da discriminação.
B. A Constituição de 1988 não contém regra expressa acerca de
orientação sexual ou de relações homoafetivas.
C. A regra do art. 226, § 3º da Constituição, que se refere ao reco-
nhecimento da união estável entre homem e mulher, representou a supe-
ração da distinção que se fazia anteriormente entre o casamento e as rela-
ções de companheirismo. Trata-se de norma inclusiva, de inspiração anti-
discriminatória, que não deve ser interpretada como norma excludente e
discriminatória, voltada a impedir a aplicação do regime da união estável
às relações homoafetivas.

92
TRF 4ª Reg., DJU 10 ago. 2005, AC 2000.71.00.009347-0, Rel. João Batista Pinto
Silveira.
CONVIDADOS 145
Luís Roberto Barroso

D. Justamente ao contrário, os princípios constitucionais da igual-


dade, da dignidade da pessoa humana e da liberdade impõem a extensão
do regime jurídico da união estável às uniões homoafetivas. Igualdade
importa em política de reconhecimento; dignidade em respeito ao desen-
volvimento da personalidade de cada um; e liberdade no oferecimento de
condições objetivas que permitam as escolhas legítimas. Ademais, o prin-
cípio da segurança jurídica, como vetor interpretativo, indica como compre-
ensão mais adequada do Direito aquela capaz de propiciar previsibilidade
nas condutas e estabilidade das relações.
E. Admitindo-se para argumentar, sem conceder, que a conclusão
anterior não devesse prevalecer – isto é, que os princípios enunciados não
incidissem diretamente, produzindo a solução indicada – ter-se-ia como
conseqüência a existência de lacuna normativa, à vista do fato de que
tampouco existe regra expressa sobre o ponto.
F. Nesse caso, a forma adequada de integração da lacuna normativa
seria a analogia. A situação mais próxima à da união estável entre pesso-
as do mesmo sexo é a da união estável entre homem e mulher, por terem
ambas como características essenciais a afetividade e o projeto de vida
comum. A figura da sociedade de fato não contém esses elementos e a
opção por uma analogia mais remota seria contrária ao Direito.
146 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

BUSCA DA VERDADE PROCESSUAL E TEORIA


DINÂMICA DO ÔNUS DA PROVA: BREVES E
SINGELAS CONSIDERAÇÕES.

Luiz Alberto Ferreira de Vasconcelos Junior


Bacharel em Direito pela UCSAL. Especializan-
do em Direito Processual Civil pelo
JUSPODIVM. Advogado.

Via de regra, todo processo se apresenta como instrumento que per-


mite ao julgador conhecer a verdade sobre os fatos alegados pelas partes1,
formando o seu convencimento acerca do bem da vida buscado.
Sucede, no entanto, que a descoberta da verdade pura e absoluta é
utópica, pois se afigura impossível formular um critério seguro de verda-
de acerca de uma tese jurídica, visto que a verdade certa, objetiva ou abso-
luta representa sempre expressão de um ideal inalcançável. Pensar-se o
contrário, isto é, que se pode, de fato, na seara do conhecimento humano,
conseguir e asseverar uma verdade objetiva ou absolutamente certa é, na
realidade, uma ingenuidade epistemológica.
Neste passo, colhe pertinência a opinião de Rogério Lauria Tucci2
acerca da procura da verdade:

Tenha-se presente, para logo, na consecução de tal mister, que, como


correntemente asseverado, a verdade, de modo absoluto, objetiva-
mente considerada, não pertence ao homem, mas, tão só, a Deus. Daí
porque, na arguta observação de PASQUALE TUOZZI, sua
perquirição, como em toda forma de conhecimento humano, restrin-
ge-se à probabilidade de conceber uma idéia, mais ou menos exata,
sobre a ocorrência de prática tida como delituosa; vale dizer, uma
idéia constitutiva de certeza.

Arremata, linhas à frente, o ilustre doutrinador3:

1
Por óbvio, nas ações em que a controvérsia se apresenta exclusivamente de direito,
ou quando os fatos debatidos são incontroversos ou notórios, tal situação não se
coloca, pois não se busca uma verdade, mas, tão só, uma afirmação do direito já
certificado, ao menos no campo fático.
2
TUCCI, Rogério Lauria. Do Corpo de Delito no Direito Processual Penal Brasileiro. São
Paulo: Saraiva, 1978, p.91.
3
TUCCI, Rogério Lauria. Do Corpo de Delito no Direito Processual Penal Brasileiro. São
Paulo: Saraiva, 1978, p.93.
CONVIDADOS 147
Luiz Alberto Ferreira de Vasconcelos Júnior

Em suma, e como observa, outrossim, UBALDO FERRARI, já que a


verdade, como tal, e superiormente concebida, não pode ser conheci-
da do homem, cumpre estabelecer-se a verdade possível, por inteiro,
em seus mínimos e peculiares detalhes, como se a própria verdade
fosse pelo juiz pesquisada e, afinal, descoberta. Essa a verdade pro-
cessual, cuja perquirição, assim realizada, constitui objeto da prova
(...).

Em assim sendo, forçoso é reconhecer que, no processo, a verdade se


afigura sempre de forma relativa, que se aflora a partir do confronto da
afirmação, pelas partes, da ocorrência de um fato controvertido, com a
demonstração da sua efetiva ocorrência, através das provas produzidas
no processo.
Tal verdade se torna ainda mais relativa se tivermos em conta que a
própria convicção do julgador tem de se bastar com um juízo de suficiente
probabilidade ou verossimilhança, inerente ao recurso às presunções judi-
ciais, que, no entanto, não dispensa a máxima investigação para atingir,
nesse juízo, o máximo de convicção, o mais próximo possível da “verdade
real”.
E, como sabido, no nosso sistema processual civil, a busca da verda-
de vem substancialmente calcada na idéia das provas que são produzidas
nos autos do processo.
Contudo, não se pode, naturalmente, fingir que o processo vive do
contributo desinteressado de todos, ancorados ou não num quimérico prin-
cípio da cooperação.
E é justamente por se saber que as partes filtram os fatos de acordo
com os respectivos interesses que o julgador deve ter um papel ativo e
diretamente participativo na aquisição da prova, assegurando a igualda-
de de armas e a aplicação do princípio do contraditório, procurando fazer
uma justiça certamente relativa, em nome da existência de um interesse
público na sua administração4.

4
Enfraquece-se, progressivamente, a noção dispositiva do processo civil; o juiz não é
mais um mero espectador do combate, assumindo uma postura mais ativa, dirigin-
do o processo de modo a tornar efetivo o acesso à justiça. Como afirma José Roberto
dos Santos Bedaque “As partes podem perfeitamente manter o pleno domínio sobre
os interesses em litígio; mas jamais sobre o desenvolvimento técnico e formal do
processo. A maneira como a jurisdição realiza seu mister não pertence à esfera de
disponibilidade das partes, pois o processo não pode ser visto apenas como um
instrumento de composição de conflitos, de pacificação, mas meio pelo qual se
busca a justiça substancial.” (BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Poderes Instrutórios
do Juiz. 2ª edição. São Paulo: RT, 1991, p. 110)
148 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

Nada disto colide com o princípio da imparcialidade do juiz, desde


que atuem plenamente as garantias do contraditório e que a motivação de
fato da decisão seja criteriosa e completa, racionalmente estruturada, de
forma a permitir o seu controle.
Tanto é assim que o CPC, em consonância com as diretrizes
prevalentes à época de sua edição, concebia e ainda concebe o magistrado
como único destinatário da prova, a qual servia apenas e tão-somente
para a formação do seu convencimento, fato este que lhe impunha a deci-
são particular de admissão ou não de certo meio probatório, a teor do
quanto ainda prescreve o art. 130, para o qual caberá ao juiz, de ofício ou a
requerimento da parte, determinar as provas necessárias à instrução do processo,
indeferindo as diligências inúteis ou meramente protelatórias.5
Vale dizer, a admissão (das provas) é ato do juiz, exclusivamente seu.
Como o é a avaliação ou estimação da prova6, cabendo às partes, muita das
vezes, fiscalizar eventual abuso cometido pela autoridade judiciária, quan-
do esta, de forma arbitrária, indeferisse ou deferisse determinado pedido
de produção de prova específica.
Nessa perspectiva, o juiz, exercendo um juízo estritamente pessoal,
escolhendo, discricionariamente, quais meios seriam utilizados para com-
provar as alegações lançadas pelas partes, as provas não se afiguram
como direito subjetivo da parte, mas sim como mera disposição de con-
vencimento do magistrado.
Tal concepção, no entanto, evoluiu sob a influência do moderno
alcance das garantias constitucionais do contraditório e da ampla defesa,
conferindo às partes o direito de se defenderem provando, vale dizer, o
direito de não só requerer a produção de provas a serem discricionariamente
admitidas ou não pelo magistrado, mas também de efetivamente produzir
todas as provas que possam ser úteis à defesa de seus interesses e preten-
sões.
Para tal, o juiz não mais deve analisar a pertinência e utilidade da
prova a partir da sua própria perspectiva, mas sim da utilidade e relevân-
cia da mesma à luz da perspectiva probatória ou da linha argumentativa
da parte que a requereu, assumindo esta, definitivamente, a posição jurí-
dica de direito subjetivo da parte que a necessita para certificar direito que
alega possuir.

5
No mesmo sentido, as prescrições contidas nos arts. 342, 355, 418, 437 e 440, todos
do CPC.
6
AMARAL SANTOS, Moacyr. Primeiras Linhas de Direito Processual Civil, v.2, 3. Ed.,
São Paulo: Saraiva, 1977, p. 241.
CONVIDADOS 149
Luiz Alberto Ferreira de Vasconcelos Júnior

De fato, como no sistema do processo civil o litigante assume o risco


de perder a causa se não provar os fatos alegados e dos quais depende a
existência do direito subjetivo que pretende resguardar através da tutela
jurisdicional, a produção das provas requeridas pelas partes assume pa-
pel fundamental para a consecução da justiça perquirida.
Sucede que, tal como não há, na sistemática jurídica, um dever de
contestar, não existe para a parte um dever de se provar o fato, possuindo
ela apenas e tão somente o ônus da produção da prova, pois não é dever
jurídico, mas sim uma chance que tem a parte de convencer o julgador da
veracidade de suas alegações.
Esse ônus, todavia, é imperfeito, pois, conquanto quem não produ-
za a prova assuma o risco pela sua falta, tal omissão não implica, necessa-
riamente, a perda do direito que se pretende ver tutelado, pois ainda que a
parte não tenha se desincumbido do ônus da prova, o juiz pode acatar o
seu pleito, por motivos dos mais diversos extraídos dos autos.
Nesse ponto, como sabido, o Código de Processo Civil pátrio aco-
lheu a teoria estática de distribuição do ônus da prova, pela qual o onus
probandi está distribuído de forma apriorística e abstrata, cabendo, segun-
do prescreve o seu art. 333, ao autor provar os fatos constitutivos do seu
direito e ao réu provar a existência de fatos impeditivos, modificativos ou
extintivos do direito daquele.
Ocorre que, muitas vezes, as partes do processo (autor e réu) não
têm condições de atender a esse ônus probatório que lhes foi atribuído
prévia e abstratamente, pois a produção da prova do fato alegado mostra-
se excessivamente difícil, senão impossível para uma delas, o que pode
ocasionar a prolação de decisão injusta, pois o magistrado tem que deci-
dir desfavoravelmente à parte que não se desincumbiu de provar o que
alegou.
Daí porque um senso mais acurado de justiça faz aflorar no meio
jurídico a necessidade de se atribuir maior mobilidade ao ônus probatório,
cabendo este à parte que tiver maiores condições de provar os fatos contro-
vertidos postos em juízo7.
Neste ponto, há de se ter em mente que a tônica da nova ciência
processual tem por fundamento a idéia de acesso à justiça. O direito de

7
Exemplo de situação onde esta inversão se faz necessária é na prova de fato nega-
tivo, pois a sua alegação, inicialmente, transfere o ônus da prova para à parte
contrária, presumindo-se, por exemplo, que a afirmação de inadimplemento é de
difícil prova para o credor, mas o seu contrário, ou seja, o adimplemento, é facil-
mente provável pelo devedor.
150 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

ação passou a ser visto não mais apenas como o direito ao processo, mas,
principalmente, como a garantia cívica de justiça, assumindo o direito pro-
cessual a missão de assegurar resultados práticos e efetivos que não só
permitissem a realização da vontade da lei, mas que dessem a essa vontade
o melhor sentido, aquele que pudesse se aproximar ao máximo da aspira-
ção de justiça.
O processo visto dessa forma assumiu o compromisso de ultrapas-
sar a noção de devido processo legal para atingir o plano do processo justo,
realizador da justiça concreta e não instrumento puro de realização
procedimental e técnica.
Nesse diapasão, as velhas barreiras da imparcialidade8 e do ônus
da prova tiveram de ser revistas, a fim de que os novos valores de ordem
pública inspiradores do processo justo pudessem ocupar seu lugar de
inconteste valor e relevância.
Eis que surge na ciência jurídica a denominada Teoria da Distribui-
ção Dinâmica do Ônus da Prova ou Teoria das Cargas Dinâmicas Proces-
suais, desenvolvida aprioristicamente na Argentina, pelos doutrinadores
Jorge W. Peryrano e Augusto M. Morello.
Tal teoria rompe com a clássica distribuição prévia e estática do
ônus da prova, não importando, para ela, a posição da parte, se autora ou
ré, nem, muito menos, a espécie do fato a ser provado, se constitutivo,
impeditivo, modificativo ou extintivo de direitos.
O que vale, na verdade, é a apreciação e valoração, pelo julgador, em
cada caso concretamente concebido, da aptidão, disponibilidade e possi-
bilidade que cada parte possui para suportar o ônus da prova, impondo,
por conseguinte, o encargo de provar os fatos àquela que possa produzir a
prova com menos pesar e dificuldade, ainda que não tenha ela alegado tal
fato.
A flexibilização do ônus da prova há de ser, também, aplicada em
casos de relações assimétricas ou fatos onde, não obstante seja o ônus, via
de regra, determinado a uma das partes, esteja a parte contrária em melho-
res condições de produzir a prova, prestigiando, assim, a busca da verda-
de real, impedindo que questões formais superem as questões de fundo.

8
O que a preservação da imparcialidade do juiz exige é a sua permanência longe da
iniciativa de instaurar o processo e definir o seu objeto, pois somente às partes cabe
a iniciativa de colocar em juízo o conflito jurídico e de dar-lhe os necessários contor-
nos. Em contrapartida, a investigação do direito subjetivo controvertido, tanto nos
aspectos de direito como de fato, não pode ficar na dependência da exclusiva
vontade e diligência das partes, podendo o juiz influir no particular, o que não
significa que ele se torna parcial apenas por se ocupar da apuração da verdade,
diligenciando provas por iniciativa própria.
CONVIDADOS 151
Luiz Alberto Ferreira de Vasconcelos Júnior

Tal apreciação feita pelo magistrado, contudo, deve ser sempre pau-
tada pela razoabilidade e proporcionalidade da medida, evitando, assim,
que a modificação da regra de distribuição do ônus da prova implique uma
verdadeira pena a quem o juiz atribuir o ônus.
Como explicita Marinoni9, a modificação do ônus da prova só deve
acontecer quando ao autor é impossível, ou muito difícil, provar o fato
constitutivo, mas ao réu é viável, ou muito mais fácil, provar a sua inexistência.
O Brasil, apesar de facultar ao juiz, à vista de alguns critérios subje-
tivos descritos em lei, a possibilidade de inverter o ônus da prova nas
relações de consumo10, ainda não positivou, de forma absoluta, tal Teoria
em seu ordenamento jurídico, não obstante ser a mesma amplamente acei-
ta pela doutrina e considerada em diversas decisões dos Tribunais pátrios11.
Todavia, o Anteprojeto do Código Brasileiro de Processos Coleti-
vos, em seu art. 11, § 1º, adota clara e expressamente o critério dinâmico do
ônus da prova, valendo a pena transcrevê-lo, in verbis:

9
MARINONI, Luiz Guilherme. Formação da convicção e inversão do ônus da prova segundo
as peculiaridades de caso concreto. Disponível em: http://www.professormarinoni.com.br/
artigos.php. Acessado em 29/11/2007.
10
A legislação consumeirista (CDC – Código de Defesa do Consumidor) estabelece
como pressuposto para inversão do ônus da prova a hipossuficiência técnico-probatória
da parte, pois não basta a verificação da vulnerabilidade econômico-financeira do
consumidor, sendo necessária, ainda, a observação de superioridade técnica com
relação a capacidade de produção de provas na demanda.
11
“RESPONSABILIDADE CIVIL. MÉDICO. CLÍNICA. CULPA. PROVA. 1. Não viola
regra sobre a prova o acórdão que, além de aceitar implicitamente o princípio da carga dinâmica
da prova, examina o conjunto probatório e conclui pela comprovação da culpa dos réus. 2.
Legitimidade passiva da clínica, inicialmente procurada pelo paciente. 3. Juntada de textos
científicos determinada de ofício pelo juiz. Regularidade. 4. Responsabilização da clínica e do
médico que atendeu o paciente submetido a uma operação cirúrgica da qual resultou a secção da
medula. 5. Inexistência de ofensa à lei e divergência não demonstrada. Recurso Especial não
conhecido.” (STJ. REsp 69309 / SC; Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar. Quarta Turma.
DJ 26.08.1996 p. 29688)
“PROCESSUAL CIVIL - APELAÇÃO - AÇÃO DE COBRANÇA - GRATIFICAÇÃO
DEVIDA A TÍTULO DE DEDICAÇÃO EXCLUSIVA - PROFESSOR DA REDE DE
ENSINO MUNICIPAL - ONUS DA PROVA - PRINCÍPIO DA CARGA DINÂMICA -
PARTE QUE POSSUI O CONTROLE DA RELAÇÃO JURÍDICA - HONORÁRIOS
ADVOCATÍCIOS - APRECIAÇÃO EQÜITATIVA - 1) Se o requerido não se desincumbiu
de demonstrar a inverossimilhança do direito do autor, correta a sentença que o condenou a
pagar os atrasados, a título de dedicação exclusiva, porque lhe cabia o ônus, tendente a impedir,
modificar ou extinguir tal direito, particularmente incidindo o princípio da carga dinâmica da
prova, onde à parte que possui ou deveria possuir o controle da relação jurídica, cabe apresentar
em Juízo os documentos a ela atinentes. A verificação dos requisitos, se cumpridos ou não, para
o recebimento de gratificação, cabia ao recorrente, e este não logrou apresentá-los. 2) Em termos
152 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

“Art. 11. Provas – São admissíveis em juízo todos os meios de


prova, desde que obtidos por meios lícitos, incluindo a prova
estatística ou por amostragem.
§ 1o Sem prejuízo do disposto no artigo 333 do Código de
Processo Civil, o ônus da prova incumbe à parte que detiver
conhecimentos técnicos ou informações específicas sobre os
fatos, ou maior facilidade em sua demonstração.
(...)” 12

Igual disposição veio contida no Anteprojeto de Código Brasileiro


de Processo Coletivo, elaborado conjuntamente pelos programas de pós-
graduação em Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e Uni-
versidade Estácio de Sá, coordenado pelo Prof. Aluísio Gonçalves Men-
des13.
Por final, cumpre transcrever, porque pertinente, a observação feita
por Fredie Didier14, para o qual:

de verba honorária, esta fixada no valor de R$ 800,00 (oitocentos reais), havendo apreciação
eqüitativa por parte do Magistrado, conforme a regra contida no § 4° do art. 20 do CPC, não
há que falar em valores excessivos. 3) Apelo a que se nega provimento.” (TJAP - APELAÇÃO
CÍVEL Nº 2.528/05; Rel. Desembargador DÔGLAS EVANGELISTA. Julgamento
31/01/2006)
“ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA GRATUITA. IMPUGNAÇÃO JULGADA PROCEDEN-
TE. AUSÊNCIA DE PROVA DA HIPOSSUFICIÊNCIA. ALUSÃO À GARANTIA CONS-
TITUCIONAL. APLICAÇÃO DA TEORIA DA DISTRIBUIÇÃO DINÂMICA DA PRO-
VA. Mantém-se o decreto judicial que acolhe a impugnação à gratuidade judiciária, quando o
impugnado deixa de comprovar com suficiência sua impossibilidade em atender os ônus do
processo e os elementos colacionados aos autos evidenciam a potencia financeira dos litigantes.
A garantia constitucional que assegura o benefício da assistência jurídica integral e gratuita
exige, além da simples “afirmação” da pobreza”, também a “comprovação” da hipossuficiência
de recursos (CF, art. 5º, LXXIV), o que enseja a discricionariedade judicial em sua avaliação.
Cabe ao requerente, assim, como parte mais habilitada, cumprir a demonstração, em respeito à
“teoria da distribuição dinâmica da prova”, fornecendo todos os elementos de convicção que
persuadam sobre alegada hipossuficiência. APELO DESPROVIDO.” (TJRS – Ap. Cível nº
70010284180, Sétima Câmara Cível, Relator José Carlos Teixeira Giorgis, Julgado em
16/03/2005)
12
Anteprojeto do Código Brasileiro de Processos Coletivos. Disponível em: http://
www.direitoprocessual.org.br/site/index.php?m=enciclopedia&categ= 16&t=
QW50ZXByb2pldG9zIGRvIElCRFAg LSBBbnRlcHJvamV0b3M=. Acessado em 03/
12/2007.
13
V. DIDIER JR., Fredie, BRAGA, Paulo Sarno, OLIVEIRA, Rafael. Curso de Direito
Processual Civil. Vol. 2, Salvador: Editora Jus Podivm, 2007, p. 64.
14
DIDIER JR., Fredie, BRAGA, Paulo Sarno, OLIVEIRA, Rafael. Curso de Direito
Processual Civil. Vol. 2, Salvador: Editora Jus Podivm, 2007, p. 65.
CONVIDADOS 153
Luiz Alberto Ferreira de Vasconcelos Júnior

“(...) essa repartição casuística e dinâmica do ônus da prova deve ser


feita pelo magistrado antes da fase instrutória, em tempo de a parte
onerada desincumbir-se do encargo, sob pena de se comprometer a
segurança jurídica das partes e o seu direito fundamental à prova,
como já salientado no estudo da inversão do ônus da prova. Trata-se
de regra de atividade e, não, de julgamento. (...).”

Como se pode constatar, a mobilidade da repartição probatória fez


com que rigores formais, historicamente justificados por anseios rotinei-
ros de segurança, fossem revistos e flexibilizados, para que não se subver-
ta a função do processo e não se corra o risco de o instrumental de promo-
ção do direito material se transformar no seu algoz, e na barreira impeditiva
de sua verdadeira realização prática.
Embora a verdade real, em sua substância absoluta, seja um ideal
inatingível pelo conhecimento limitado do homem, o compromisso com
sua ampla busca é o farol que, no processo, estimula a superação das
deficiências do sistema procedimental. E é com o espírito de servir à causa
da verdade, que o juiz contemporâneo assumiu o comando oficial do pro-
cesso integrado nas garantias fundamentais do Estado Democrático e So-
cial de Direito.
Tem que se ter em mira, antes de tudo, as novas (?) diretrizes
principiológicas estabelecidas pela Constituição de 1988, que, numa pers-
pectiva democrática e instrumental, mostra-se incompatível com a visão
tradicional e estática da prova, limitada às molduras da situação jurídica
do onus probandi.
Na atual fase da processualística, cabe à doutrina e jurisprudência,
no calar da lei, buscar estabelecer fundamentos, limites e possibilidades
para compreensão da prova como genuíno direito público subjetivo, per-
tencente à parte, utilizado ele como meio de efetividade jurisdicional.
O que é inegável, no atual estágio da dogmática processual, é que
não mais se pode atribuir previamente o encargo probatório de cada parte.
De fato, caberá ao julgador, sensível às peculiaridades de cada processo
que lhe é apresentado, e guiado pelo princípio da efetividade da tutela
jurisdicional, determinar a quem cabe o onus probandi, atento à possibili-
dade e disponibilidade de cada parte em produzir a prova dos fatos con-
trovertidos postos a julgamento, sempre na busca da verdade real.

BIBLIOGRAFIA

AMARAL SANTOS, Moacyr. Primeiras Linhas de Direito Processual Civil,


v.2, 3ed, São Paulo: Saraiva, 1977.
154 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

DIDIER JR., Fredie, BRAGA, Paulo Sarno, OLIVEIRA, Rafael. Curso de


Direito Processual Civil. Vol. 2, Salvador: Editora Jus Podivm, 2007.

MARINONI, Luiz Guilherme. Formação da convicção e inversão do ônus da


prova segundo as peculiaridades de caso concreto. Disponível em: http://
www.professormarinoni.com.br/artigos.php. Acessado em 29/11/2007.

TUCCI, Rogério Lauria. Do Corpo de Delito no Direito Processual Penal Brasi-


leiro. São Paulo: Saraiva, 1978.
CONVIDADOS 155
Maria Berenice Dias

O DIREITO À HOMOAFETIVIDADE

Maria Berenice Dias


Desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio
Grande do Sul
Vice-Presidente Nacional do Instituto Brasilei-
ro de Direito das Famílias-IBDFAM
www.mariaberenice.com.br

SUMÁRIO: 1. O direito |à igualdade – 2. Os direitos chamados humanos – 3. O


direito desdobrado em gerações – 4. O direito humano à sexualidade – 5. O
direito a uma família – 6. O direito à homoafetividade – 7. As uniões
homoafetivas – 8. A homoafetividade na justiça - 9 – A homoparentalidade.

O jurista que não identifica a justiça com o que é dado avali-


ará o direito desigual como direito injusto. Se procurar atin-
gir com seu trabalho a justiça, deverá procurar dar o que é de
direito aos que não carecem de ajuda e, aos que dela carecem,
o que lhes falta.
Friedrich Muller1

1 – O DIREITO À IGUALDADE

A igualdade é almejada por todos e em todos os tempos. Está pro-


clamada nas Declarações de Direitos Humanos no mundo ocidental. No
Brasil, é consagrada no limiar do ordenamento jurídico pela Constituição
Federal, que assegura, já em seu preâmbulo, o exercício dos direitos sociais e
individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualda-
de e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem
preconceitos (...).
Erigido o respeito à dignidade da pessoa humana como cânone
fundamental de um Estado Democrático de Direito,2 é a igualdade o prin-
cípio mais reiteradamente invocado na nossa Carta Magna. De modo ex-
presso,3 é outorgada específica proteção a todos, vedando discriminação e

1
Revista Brasileira de Direito Constitucional, n. 1, jan/jun. – 2003, p. 12.
2
inc. III do art. 1º da Constituição Federal.
3
CF, art. 3º, inc. IV: promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça,
sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
156 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

preconceitos por motivo de origem, raça, sexo ou idade. Também ao elencar


os direitos e garantias fundamentais, é a igualdade a primeira referência
da Constituição Federal. O art. 5º começa dizendo: Todos são iguais perante
a lei, sem distinção de qualquer natureza (...). Esse verdadeiro dogma é repeti-
do já no seu primeiro inciso,4 ao proibir qualquer desigualdade em razão
do sexo.
No entanto, de um fato não se pode escapar: ainda que buscada de
maneira incansável, a igualdade não existe. De nada adianta a Lei Maior
assegurar iguais direitos a todos perante a lei, dizer que os homens e as
mulheres são iguais, que não se admitem preconceitos ou qualquer forma
de discriminação. Enquanto houver tratamento desigualitário em razão
do gênero e a homossexualidade for vista como crime, castigo ou pecado,
não se estará vivendo em um Estado que respeita a dignidade humana,
tendo a igualdade e a liberdade como princípios fundamentais.
Mesmo tendo havido uma acentuada evolução da sociedade, a igual-
dade formal ainda não se tornou igualdade material, real. Como bem
explicita Konrad Hesse,

Igualdade jurídica formal é igualdade diante da lei (artigo 3º, alínea 1,


Lei Fundamental). Ela pede a realização, sem exceção, do direito
existente, sem consideração da pessoa: cada um é, em forma igual,
obrigado e autorizado pelas normalizações do direito, e, ao contrário,
é proibido a todas as autoridades estatais não aplicar direito existente
em favor ou à custa de algumas pessoas. Nesse ponto, o mandamento
de igualdade jurídica deixa-se fixar, sem dificuldades, como postula-
do fundamental do estado de direito.5

As normas constitucionais que consagram o direito à igualdade


proíbem discriminar a conduta afetiva no que respeita à inclinação sexu-
al. Com efeito, a discriminação de um ser humano em virtude de sua orientação
sexual constitui, precisamente, uma hipótese (constitucionalmente vedada) de dis-
criminação sexual.6 Rejeitar a existência de uniões homossexuais é afastar o
princípio insculpido no inc. IV do art. 3º da Constituição Federal, segundo

4
CF, art. 5º, inc. I: homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos
desta Constituição.
5
HESSE, Konrad. Elementos de Direito Constitucional da República Federal da Alemanha.
Tradução de Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1998. p.
330.
6
RIOS, Roger Raupp. Direitos Fundamentais e Orientação Sexual: o Direito Brasileiro e a
Homossexualidade. Revista CEJ do Centro de Estudos Judiciários do Conselho da
Justiça Federal. Brasília. dez. 1998. nº 6. p. 29.
CONVIDADOS 157
Maria Berenice Dias

o qual é dever do Estado promover o bem de todos, vedada qualquer dis-


criminação, não importa de que ordem ou tipo seja.

A relação entre a proteção da dignidade da pessoa humana e a orien-


tação homossexual é direta, pois o respeito aos traços constitutivos de
cada um, sem depender da orientação sexual, é previsto no artigo 1º,
inciso III, da Constituição, e o Estado Democrático de Direito prome-
te aos indivíduos, muito mais que a abstenção de invasões ilegítimas
de suas esferas pessoais, a promoção positiva de suas liberdades.7

2 – OS DIREITOS CHAMADOS HUMANOS

O incessante processo de socialização por que passou o estado con-


temporâneo ensejou um crescimento contínuo e a ampliação subjetiva e
objetiva dos direitos. A igualdade juntamente com a liberdade são os prin-
cípios fundantes dos direitos humanos.
A sociedade politicamente organizada assegura direitos subjetivos
gerais. A busca de realização integral de todo o direito subjetivo sofre os
reflexos da convivência social. Para que melhor se assegurem direitos a
certos sujeitos ativos contra um, alguns ou todos os sujeitos passivos, em
função de um objeto, valor ou bem, existem critérios didáticos que buscam
sistematizar a evolução contínua dos direitos do homem e do cidadão, aos
quais hoje se prefere chamar direitos humanos. 8
Os direitos humanos revestem as relações jurídicas por elas enlaçadas de
condições teleológicas e axiológicas específicas, para realizar nos sujeitos dessas
relações a humanidade comum de todos os sujeitos: a comunidade humana. 9
Cabe lembrar que a divisão dos direitos em gerações não quer dizer
que se trata de uma sucessão de direitos em conflito, nem revela incompa-
tibilidade de sujeitos e objetos.

3 – O DIREITO DESDOBRADO EM GERAÇÕES

A doutrina, na tentativa de classificar os direitos humanos, desdo-


bra-os em gerações. Ainda que se deva pôr em xeque a existência de gera-
ções de direitos, a separar direitos que tiveram uma evolução contínua,

7
GIORGIS, José Carlos Teixeira. A Natureza Jurídica da Relação Homoerótica. Revista da
AJURIS, nº 88 – Tomo 1. Porto Alegre: dezembro de 2002. p. 244.
8
Foi a grande pressão do movimento feminista que acabou por alterar essa termino-
logia, face à carga de discriminação contida na expressão “direitos do homem e do
cidadão”.
9
BARROS, Sérgio Resende de. Direitos Humanos: Paradoxo da Civilização. Belo Ho-
rizonte: Del Rey, 2003. p. 40.
158 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

não há dúvida de que a história dos direitos humanos começou com a


afirmação da liberdade como valor fundamental da sociedade política,
obra do liberalismo, na passagem do século 18 para o 19.
Os direitos consagrados pela Declaração francesa de 1789 passa-
ram a ser considerados a primeira geração de direitos. Voltada para as
relações sociais em geral, busca garantir o próprio indivíduo, libertando
todos e cada um do absolutismo de um ou de alguns. Originariamente,
foram os súditos que buscaram se libertar do absolutismo do monarca e
seus agentes. São direitos individuais quanto à titularidade, tendo por
objeto a liberdade. A tentativa foi de, estritamente em função do interesse
comum, admitir restrições aos direitos subjetivos tão-só por meio da lei,
por ser expressão da vontade geral. Buscando a preservação da liberdade
individual, caracterizam-se os direitos chamados de primeira geração como
imposição de limites ao Estado, gerando-lhe obrigações de não-fazer.
Já os direitos de segunda geração têm por objeto assegurar o direito
à igualdade, no sentido de equalizar a sociedade. Surgiram a partir da
Constituição de Weimar, de 1919. São chamados direitos sociais,
positivados como direitos econômicos, sociais e culturais, visando a igua-
lar os desiguais na medida em que se desigualam. Objetivam o
adimplemento de obrigações de fazer pelo Estado, atitudes positivas para
superar a mera igualdade formal de todos perante a lei, herança da pri-
meira geração. É a busca da igualdade material, igualdade de oportunida-
des, ações e resultados, entre partes ou categorias sociais desiguais, para
assegurar a participação efetiva da cidadania, por meio do implemento de
políticas públicas, e ações afirmativas.
Na passagem do estado liberal para o estado social de direito, cuja
plenitude jurídica é o estado democrático de direito, surgem os direitos de
terceira geração. Sobrevindos à Segunda Guerra Mundial, quando o gêne-
ro humano se mostrou técnica e moralmente capaz de se autodestruir, tal
suscitou a solidariedade de todos os indivíduos e categorias da sociedade
humana diante de uma possível destruição das condições necessárias à
vida do próprio ser humano. Os direitos de solidariedade querem garantir
não só o indivíduo contra o indivíduo, mas a humanidade contra a pró-
pria humanidade, genericamente considerada. Têm por finalidade asse-
gurar a dignidade humana pelo implemento de todas as condições gerais
e básicas que lhe são necessárias, postas como direitos difusos de toda a
humanidade. Na busca de um estado de direito pleno, produzido pela
conversão de todos os direitos fundamentais em direitos humanos difusos
e integrais, cuja titularidade sujeite todos os indivíduos da espécie huma-
na e cujo objeto compreenda todos os valores da dignidade humana.
CONVIDADOS 159
Maria Berenice Dias

Nessa terceira era, aparecem direitos difusos quanto à titularidade


subjetiva e, quanto ao objeto, direitos de solidariedade. Com eles, a evolu-
ção dos direitos humanos atinge o seu ápice, a sua plenitude subjetiva e
objetiva: são direitos humanos plenos, de todos os sujeitos contra todos os
sujeitos, para proteger todos os objetos que condicionam a vida humana,
fixados em valores ou bens humanos, patrimônio da humanidade, segun-
do padrões de avaliação que lhe garantam a existência com a dignidade
que lhe é própria. São os direitos humanos por excelência, integrais, a
promover a integração de todos os sujeitos e objetos da humanidade. Tra-
duzem o humanismo íntegro: a humanidade, em toda a sua plenitude,
subjetiva e objetiva, individual e social, segundo Sérgio Resende de Bar-
ros.10

4 — O DIREITO HUMANO À SEXUALIDADE

Os temas da sexualidade são envoltos em uma aura de silêncio, des-


pertando sempre enorme curiosidade e profundas inquietações, com
lenta maturação por gravitarem na esfera comportamental, existindo
tendência a conduzir e controlar seu exercício, acabando por emitir-
se um juízo moral voltado exclusivamente à conduta sexual. 11

A sexualidade integra a própria condição humana. Ninguém pode


realizar-se como ser humano, se não tiver assegurado o respeito ao exercí-
cio da sexualidade, conceito que compreende tanto a liberdade sexual
como a liberdade da livre orientação sexual.
Ao serem visualizados os direitos de forma desdobrada em gera-
ções, evidencia-se que a sexualidade é um direito do primeiro grupo, pois
compreende o direito à liberdade sexual, aliado ao direito de tratamento
igualitário e independente da tendência sexual. Trata-se, assim, de uma
liberdade individual, um direito do indivíduo, sendo, como todos os direi-
tos de primeira geração, inalienável e imprescritível. É um direito natural,
que acompanha o ser humano desde o seu nascimento, pois decorre de
sua própria natureza, do mesmo modo que a liberdade e a igualdade.
De outro lado, não se pode deixar de considerar a livre orientação
sexual como um direito de segunda geração, dando origem a uma catego-
ria social merecedora de proteção diferenciada. A hipossuficiência não

10
BARROS, Sérgio Resende de. Direitos Humanos: Paradoxo da Civilização. Belo Ho-
rizonte: Del Rey, 2003. p. 406.
11
DIAS, Maria Berenice. União Homossexual: o Preconceito e a Justiça. 3. ed. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 17.
160 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

cabe identificada somente pelo viés econômico. Devem assim ser reconhe-
cidos todos os segmentos alvo do preconceito ou discriminação social. A
hipossuficiência social leva, por reflexo, à deficiência de normação jurídi-
ca, deixando à margem ou à míngua do Direito certos grupos sociais.
Como a homossexualidade é pressuposto e causa de um especial trata-
mento dispensado pelo Direito, não se pode deixar de reconhecer como
juridicamente hipossuficiente essa categoria por ser socialmente e, por
reflexo preconceituoso marginalizada.
Igualmente o direito à sexualidade avança para ser inserido como
um direito de terceira geração. Esta compreende os direitos decorrentes da
natureza humana, mas não tomados individualmente, porém generica-
mente, solidariamente, a fim de realizar toda a humanidade, de maneira
integral, abrangendo todos os aspectos necessários à preservação da dig-
nidade humana. Impositivo enxergar o direito de todo ser humano de
exigir o respeito ao livre exercício da sexualidade. É um direito de todos e
de cada um, que deve ser garantido a cada indivíduo por todos os indiví-
duos. Portanto, é um direito de solidariedade, cuja exclusão não permite
que a condição humana se realize, se integralize.
A sexualidade é um elemento da própria natureza humana, seja
individualmente, seja genericamente considerada. Sem liberdade sexual,
sem o direito ao livre exercício da sexualidade, o próprio gênero humano
não se realiza, do mesmo modo que ocorre quando lhe falta qualquer ou-
tra das chamadas liberdades ou direitos fundamentais.
Aída Kemelmajer de Carlucci comunga do mesmo entendimento.

El derecho a la livre determinación de cada uno es considerado hoy um


derecho humano. La circunstancia de que no este mencionado em el
catálogo que contienen los tratados nacionales e internacionales sobre
derechos humanos no significa que no exista. Así como existe um
derecho a la livre determinación de los pueblos, existe um derecho a la
livre determinación del individuo. El derecho a la orientación sexual
como derecho a la livre determinación de cada uno aparece, cronologi-
camente, dentro de estos derechos de la tercera generación, cuando
después de la segunda guerra mundial se toma conciencia de las
discriminaciones contra estos grupo de personas; sin embargo, desde
el punto de vista de su esencia, es um derecho que puede ser ubicado
entre los derechos de la primera generación porque:
- Está intimamente conectado a los derechos a la privacidad, a la libertad
individual, al derecho de asociación, etc.
- No tiene costo econômico (inexpensive): cuesta mey pouco permitir
que las personas capaces decidam ellos mismos com quien compartir
CONVIDADOS 161
Maria Berenice Dias

sus sentimientos y deseos: permitirles el derecho a expresarse y a


organizarse, etc.
- Es esencialmente justiciable; permitir que alguien no sea discrimi-
nado por su orientación sexual no es uma acción extravagante, exó-
tica.
Por esto se ha dicho que, em realidad, el derecho a la orientación
sexual no es algo revolucionário, sino estrictamente conservador.12

5 – O DIREITO A UMA FAMÍLIA

No âmbito das relações familiares, é onde mais se evidencia a ten-


dência de engessar os vínculos afetivos segundo os valores culturais domi-
nantes em cada época. Por influência da religião, o Estado limitou o exercí-
cio da sexualidade ao casamento, como uma instituição inicialmente
indissolúvel, que regula não só seqüelas de ordem patrimonial, mas a pró-
pria postura dos cônjuges, impondo-lhes deveres e assegurando direitos
de natureza pessoal. O vínculo que nasce por vontade dos nubentes é man-
tido após a solenização do matrimônio independente e até contra a vonta-
de dos cônjuges. Mesmo com o advento da Lei do Divórcio, a separação e o
divórcio são deferidos somente após o decurso de determinado prazo ou
mediante a identificação de um culpado. Quem não tem motivo para atri-
buir ao outro a culpa pelo fim do casamento não pode tomar a iniciativa do
processo de separação, o que evidencia a intenção do legislador de punir
quem simplesmente não mais quer manter o casamento.
A família consagrada pela lei tinha um modelo conservador, era
uma entidade matrimonializada, patriarcal, patrimonializada,
indissolúvel, hierarquizada e heterossexual. Pelas regras do Código Civil
de 1916, os relacionamentos que fugissem ao molde legal, além de não
adquirirem visibilidade, estavam sujeitos a severas sanções. Chamados de
marginais, os vínculos afetivos extramatrimoniais nunca foram reconheci-
dos como família. Primeiro se procurou identificá-los com uma relação de
natureza trabalhista, e só se via labor onde existia amor. Depois, a jurispru-
dência passou a permitir a partição do patrimônio, considerando uma
sociedade de fato o que nada mais era do que uma sociedade de afeto.
Mesmo quando a Constituição Federal albergou no conceito de enti-
dade familiar o que chamou de união estável, resistiram os juízes em inse-
rir o instituto no âmbito do Direito das Famílias, mantendo no campo do
Direito das Obrigações, apesar dos protestos da doutrina.

12
CARLUCCI, Aída Kemelmajer de. Derecho y homosexualismo en el derecho com-
parado. In: Instituto Interdisciplinar de Direito de família – IDEF. Homossexualidade
– Discussões Jurídicas e Psicológicas. Curitiba: Juruá, 2001, p. 24.
162 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

Os conflitos decorrentes das entidades familiares explícitas ou implí-


citas devem ser resolvidos à luz do Direito de Família e não do Direito
das Obrigações, tanto os direitos pessoais quanto os direitos
patrimoniais e os direitos tutelares. Não há necessidade de degradar
a natureza pessoal de família convertendo-a em fictícia sociedade de
fato, como se seus integrantes fossem sócios de empreendimento
lucrativo.13

A dificuldade de identificar as relações extramatrimoniais como


verdadeiras famílias revelava a sacralização do conceito de família. Mes-
mo inexistindo qualquer diferença estrutural com os relacionamentos ofi-
cializados, a negativa sistemática de estender a estes novos arranjos os
regramentos do direito familial, nem sequer por analogia, mostrava a ten-
tativa de preservação da instituição da família dentro dos padrões con-
vencionais.
O Direito das Famílias, ao receber o influxo do Direito Constitucio-
nal, foi alvo de uma profunda transformação. O princípio da igualdade
ocasionou uma verdadeira revolução ao banir as discriminações que exis-
tiam no campo das relações familiares. Num único dispositivo o constituinte
espancou séculos de hipocrisia e preconceito.14 Além de alargar o conceito de
família para além do casamento, foi derrogada toda a legislação que
hierarquizava homens e mulheres, bem como a que estabelecia diferencia-
ções entre os filhos pelo vínculo existente entre os pais.
A Constituição Federal ao outorgar a proteção à família, indepen-
dentemente da celebração do casamento, vincou um novo conceito, o de
entidade familiar, albergando vínculos afetivos outros. Mister reconhecer
que é meramente exemplificativo o enunciado constitucional ao fazer refe-
rência expressa à união estável entre um homem e uma mulher e às rela-
ções de um dos ascendentes com sua prole. Conforme afirma Paulo Luiz
Lôbo, o caput do art. 226 é, conseqüentemente, cláusula geral de inclusão, não
sendo admissível excluir qualquer entidade que preencha os requisitos de
afetividade, estabilidade e ostensibilidade.15

13
LÔBO, Paulo Luiz Netto. Entidades Familiares Constitucionalizadas: para além do
numerus clausus. Anais do III Congresso Brasileiro de Direito das Famílias. Família e
cidadania – o novo CCB e a vacatio legis. Belo Horizonte: Del Rey, 2002. p. 101
14
VELOSO, Zeno. Homossexualidade e Direito. Jornal O Liberal, de Belém do Pará, em
22.5.1999.
15
LÔBO, Paulo Luiz Netto. Entidades Familiares Constitucionalizadas: para além do
numerus clausus. Anais do III Congresso Brasileiro de Direito das Famílias. Família e
cidadania – o novo CCB e a vacatio legis. Belo Horizonte: Del Rey, 2002. p. 95.
CONVIDADOS 163
Maria Berenice Dias

Pluralizou-se o conceito de família, que não mais se identifica pela


celebração do matrimônio. Assim, não há como afirmar que o § 3º do art.
226 da Constituição Federal, ao mencionar a união estável formada entre
um homem e uma mulher, reconheceu somente esta convivência como
digna da proteção do Estado. O que existe é mera recomendação em
transformá-la em casamento. Não é dito que não existem entidades famili-
ares formadas por pessoas do mesmo sexo. Exigir a diferenciação de sexos
do casal para merecer a proteção do Estado é fazer distinção odiosa16, postu-
ra nitidamente discriminatória que contraria o princípio da igualdade
ignorando a vedação de diferenciar pessoas em razão de seu sexo.
O impedimento de postura discriminatória não tem exclusivamen-
te assento constitucional. Está posto na Convenção Internacional dos Di-
reitos Civis e Políticos, na Convenção Americana de Direitos Humanos e
no Pacto de San Jose, dos quais o Brasil é signatário. Como preceitua os §§
2º e3º do art. 5º da Constituição Federal, são recepcionados por nosso
ordenamento jurídico os tratados e convenções internacionais objeto de
referendo, sendo equivalentes às emendas constitucionais. Ante tais
normatizações, a ONU tem entendido como ilegítima qualquer interferên-
cia na vida privada de homossexuais adultos, seja com base no princípio
de respeito à dignidade humana, seja pelo princípio da igualdade. 17

6 – O DIREITO À HOMOAFETIVIDADE

Afirmando a Constituição a existência de um Estado Democrático


de Direito consagra como núcleo do sistema jurídico o respeito à dignida-
de humana. Esse valor implica dotar os princípios da igualdade e da
isonomia de potencialidade transformadora na configuração de todas as
relações jurídicas. A dignidade humana é a versão axiológica da natureza hu-
mana.18 A proibição da discriminação sexual, eleita como cânone funda-
mental, alcança a vedação à discriminação da homossexualidade, pois
diz com a conduta afetiva da pessoa e o direito à livre orientação sexual.
No entanto, a sociedade que se proclama defensora da igualdade é
a mesma que ainda mantém uma posição discriminatória nas questões da

16
SUANNES, Adauto. As Uniões Homossexuais e a Lei 9.278/96. COAD. Ed. Especial
out/nov. 1999. p. 32.
17
RIOS, Roger Raupp. Direitos Fundamentais e Orientação Sexual: o Direito Brasileiro e a
Homossexualidade. Revista CEJ do Centro de Estudos Judiciários do Conselho da
Justiça Federal. Brasília. dez. 1998. nº 6. p. 35.
18
BARROS, Sérgio Resende de. Direitos Humanos: Paradoxo da Civilização. Belo Ho-
rizonte: Del Rey, 2003. p. 418.
164 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

sexualidade. Nítida é a rejeição social à livre orientação sexual. A homos-


sexualidade existe e sempre existiu, mas é marcada por um estigma social,
sendo renegada à marginalidade por se afastar dos padrões de comporta-
mento convencional. Por ser fato diferente dos estereótipos, o que não se encaixa
nos padrões, é tido como imoral ou amoral, sem buscar-se a identificação de suas
origens orgânicas, sociais ou comportamentais.19
Em virtude do próprio preconceito, tenta-se excluir a homossexuali-
dade do mundo do direito. Mas, à intolerância social, deve-se contrapor a
higidez dos conceitos jurídicos. Imperativa sua inclusão no rol dos direitos
humanos fundamentais, como expressão de um direito subjetivo que se
insere em todas as suas categorias, pois ao mesmo tempo é direito indivi-
dual, social e difuso.
O direito à homoafetividade,20 além de estar amparado pelo princí-
pio fundamental da isonomia, cujo corolário é a proibição de discrimina-
ções injustas, também se alberga sob o teto da liberdade de expressão. Como
garantia do exercício da liberdade individual, cabe ser incluída entre os
direitos de personalidade, precipuamente no que diz com a identidade
pessoal e a integridade física e psíquica. Acresce ainda lembrar que a segu-
rança da inviolabilidade da intimidade e da vida privada é a base jurídica
para a construção do direito à orientação sexual, como direito personalíssimo,
atributo inerente e inegável da pessoa humana.21
Qualquer discriminação baseada na orientação sexual do indiví-
duo configura claro desrespeito à dignidade humana, a infringir o princí-
pio maior imposto pela Constituição Federal. Infundados preconceitos não
podem legitimar restrições a direitos, o que fortalece estigmas sociais que
acabam por causar sentimento de rejeição e sofrimentos.

Ventilar-se a possibilidade de desrespeito ou prejuízo a um ser hu-


mano, em função da orientação sexual, significa dispensar tratamen-
to indigno a um ser humano. Não se pode, simplesmente, ignorar a
condição pessoal do indivíduo (na qual, sem sombra de dúvida, in-
clui-se a orientação sexual), como se tal aspecto não tivesse relação
com a dignidade humana. 22

19
DIAS, Maria Berenice. União Homossexual: o Preconceito e a Justiça. 3. ed.Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2006. p. 17.
20
Expressão por mim cunhada na obra intitulada União Homossexual: o preconceito
e a Justiça. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000.
21
FACHIN, Luiz Edson. Elementos Críticos do Direito das Famílias: Curso de Direito
Civil, Rio De Janeiro: Renovar, 1999. p. 95.
22
RIOS, Roger Raupp. Direitos Fundamentais e Orientação Sexual: o Direito Brasileiro e a
Homossexualidade. Revista CEJ do Centro de Estudos Judiciários do Conselho da
Justiça Federal. Brasília. dez. 1998. nº 6. p. 34.
CONVIDADOS 165
Maria Berenice Dias

A identificação da orientação sexual está condicionada à identifi-


cação do sexo da pessoa escolhida em relação a quem escolhe, e essa
escolha não pode ser alvo de tratamento diferenciado. Se todos são iguais
perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, aí está incluída, por
óbvio, a orientação sexual que se tenha.
As normas legais precisam adequar-se aos princípios e garantias
que identificam o modelo consagrado pela Carta Política que retrata a
vontade geral do povo. O núcleo do sistema jurídico, que sustenta a pró-
pria razão de ser do Estado, deve garantir muito mais liberdades do que
promover invasões ilegítimas na esfera pessoal do cidadão.

7 – A S UNIÕES HOMOAFETIVAS

A dimensão metajurídica de respeito à dignidade humana impõe


que se tenham como protegidos pela Constituição Federal os relaciona-
mentos afetivos independentemente da identificação do sexo do par: se
formados por homens e mulheres ou só por mulheres ou só por homens. A
orientação sexual integra esfera de privacidade e não admite restrições, o
que configura afronta a liberdade fundamental, a que faz jus todo ser
humano, no que diz com sua condição de vida. Ainda que, quase intuiti-
vamente, se conceitue a família como uma relação interpessoal entre um
homem e uma mulher tendo por base o afeto, necessário reconhecer que há
relacionamentos que, mesmo sem a diversidade de sexos, são cunhados
também por um elo de afetividade.
Preconceitos de ordem moral ou ética não podem levar à omissão
do Estado. Nem a ausência de leis nem o medo do Judiciário servem de
justificativa para negar direitos aos vínculos afetivos que não tenham a
diferença de sexo como pressuposto. É absolutamente discriminatório afas-
tar a possibilidade de reconhecimento de uniões estáveis homossexuais.
São relacionamentos que surgem de um vínculo afetivo, gerando o
enlaçamento de vidas com desdobramentos de caráter pessoal e
patrimonial, estando a reclamar um regramento legal.
Reconhecer como juridicamente impossíveis ações que tenham por
fundamento uniões homossexuais é condenar situações existentes à
invisibilidade, é ensejar a consagração de injustiças e o enriquecimento
sem causa. Nada justifica, por exemplo, deferir uma herança a parentes
distantes em prejuízo de quem muitas vezes dedicou uma vida a outrem,
participando da formação do acervo patrimonial. Descabe ao juiz julgar
as opções de vida das partes, pois deve se cingir às questões que lhe são
postas, centrando-se exclusivamente na apuração dos fatos para encon-
trar uma solução que não se afaste de um resultado justo.
166 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

As uniões homoafetivas são uma realidade que se impõe e não podem


ser negadas, estando a reclamar tutela jurídica, cabendo ao Judiciá-
rio solver os conflitos trazidos. Incabível que as convicções subjeti-
vas impeçam seu enfrentamento e vedem a atribuição de efeitos,
relegando à marginalidade determinadas relações sociais, pois a mais
cruel conseqüência do agir omissivo é a perpetração de grandes in-
justiças. 23

Descabido estabelecer como pressuposto a distinção de sexos para a


identificação da união estável. Dita desequiparação, arbitrária e aleatória,
é exigência nitidamente discriminatória. O próprio legislador constituinte
reconheceu como entidade familiar, merecedora da proteção do Estado,
também a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descenden-
tes. Ante essa abertura conceitual, nem o matrimônio nem a diferenciação
dos sexos ou a capacidade procriativa servem de elemento identificador da
família. Por conseqüência, não há como só ver como entidade familiar a
união estável entre pessoas de sexos opostos.
Hoje não mais se diferencia a família pela ocorrência do casamento.
Também a existência de prole não é essencial para que a convivência mere-
ça reconhecimento e proteção constitucional, pois a falta de filhos não
enseja sua desconstituição. Se prole ou capacidade procriativa não são
essenciais para que a convivência de duas pessoas mereça a proteção le-
gal, não se justifica deixar de abrigar, sob o conceito de família, as relações
homoafetivas. Excepcionar onde a lei não distingue é forma perversa de
excluir direitos.
Passando duas pessoas ligadas por um vínculo afetivo a manter
uma relação duradoura, pública e contínua, como se casados fossem, for-
mando um núcleo familiar à semelhança do casamento, independente-
mente do sexo a que pertencem, não há como deixar de identificar ambas as
situações como geradoras de efeitos jurídicos. Em face do silêncio do cons-
tituinte e da omissão do legislador, deve o juiz cumprir o comando legal e
atender à determinação constante do art. 4º da Lei de Introdução ao Código
Civil. Na lacuna da lei, ou seja, na falta de normatização, há que se valer da
analogia, costumes e princípios gerais de direito. Nada diferencia as uni-
ões hétero e homossexuais de modo a impedir que sejam ambas definidas
como família. Enquanto não existir um regramento legal específico,
impositiva a aplicação analógica das regras jurídicas que regulam as rela-
ções que têm o afeto por causa, ou seja, o casamento e as uniões estáveis.

23
DIAS, Maria Berenice. União Homossexual: o Preconceito e a Justiça. 3. ed. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 17.
CONVIDADOS 167
Maria Berenice Dias

A equiparação das uniões homossexuais à união estável, pela via


analógica, implica a atribuição de um regime normativo destinado
originariamente a situação diversa, ou seja, comunidade formada por
um homem e uma mulher. A semelhança aqui presente, autorizadora
da analogia, seria a ausência de vínculos formais e a presença subs-
tancial de uma comunidade de vida afetiva e sexual duradoura e
permanente entre os companheiros do mesmo sexo, assim como ocor-
re entre os sexos opostos.24

A aversão da doutrina dominante e da jurisprudência majoritária a


socorrerem-se das leis que regem a união estável ou o casamento tem leva-
do singelamente ao reconhecimento de uma sociedade de fato. Sob o fun-
damento de se evitar enriquecimento injustificado, invoca-se o Direito das
Obrigações, o que acaba subtraindo a possibilidade da concessão de um
leque de direitos que só existem na esfera do Direito das Famílias.
O exercício da sexualidade, a prática da conjunção carnal ou a
identidade sexual não é o que distingue os vínculos afetivos. A identidade
ou diversidade do sexo do par gera espécies diversas de relacionamento.
Assim, melhor é falar em relações homoafetivas ou heteroafetivas do que
em relações homossexuais ou heterossexuais. Desimporta a identificação
do sexo do par, se igual ou diferente, para emprestar efeitos jurídicos aos
vínculos afetivos, no âmbito do Direito das Famílias. Atendidos os requi-
sitos legais para a configuração da união estável, necessário conferir di-
reitos e impor obrigações mútuas, independentemente da identidade ou
diversidade de sexo dos conviventes. Presentes os requisitos legais, vida
em comum, coabitação, laços afetivos, divisão de despesas, não se pode
deixar de conceder às uniões homoafetivas os mesmos direitos deferidos
às relações heterossexuais que tenham idênticas características.
O tratamento diferenciado a situações análogas acaba por gerar
profundas injustiças. Como bem adverte Rodrigo da Cunha Pereira, em
nome de uma moral sexual dita civilizatória, muita injustiça tem sido cometida.
O Direito, como instrumento ideológico e de poder, em nome da moral e dos bons
costumes, já excluiu muitos do laço social.25

Uma dimensão dúplice da dignidade manifesta-se enquanto simulta-


neamente expressão da autonomia da pessoa humana, vinculada à

24
RIOS, Roger Raupp. A Homossexualidade no Direito. Porto Alegre: Livraria do Advo-
gado / Esmafe, 2000. p. 122.
25
PEREIRA, Rodrigo da Cunha Pereira. A Sexualidade Vista pelas Tribunais, Belo Hori-
zonte: Del Rey, 2000. p. 281.
168 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

idéia de autodeterminação no que diz com as decisões essenciais à


respeito da própria existência, bem como da necessidade de sua pro-
teção (assistência) por parte da comunidade e do Estado, especial-
mente quando fragilizada ou até mesmo quando ausente a capacidade
de autodeterminação.26

Totalmente descabido continuar pensando a sexualidade com pre-


conceitos, isto é, “pré-conceitos”, ou seja, com conceitos fixados pelo
conservadorismo do passado. As relações sociais são dinâmicas. Não
compactuam com preconceitos que ainda se encontram encharcados da
ideologia machista e discriminatória, própria de um tempo já totalmente
ultrapassado pela história da sociedade humana. Necessário é pensar com
conceitos jurídicos atuais, que estejam à altura de nosso tempo.
A homossexualidade é um fato que se impõe e não pode ser negado,
estando a merecer a tutela jurídica, ser enlaçado no conceito de entidade
familiar. Para isso, é necessário mudar valores, abrir espaços para novas
discussões, revolver princípios, dogmas e preconceitos.
O estigma do preconceito não pode ensejar que um fato social não se
sujeite a efeitos jurídicos. Não se pode impor a mesma trilha percorrida
pela doutrina e pela jurisprudência nas relações entre um homem e uma
mulher fora do casamento, que levou 60 anos até o alargamento do concei-
to de família por meio da constitucionalização da união estável. Se duas
pessoas passam a ter vida em comum, cumprindo os deveres de assistên-
cia mútua, em um verdadeiro convívio estável caracterizado pelo amor e
respeito mútuo, com o objetivo de construir um lar, inquestionável que tal
vínculo, independentemente do sexo de seus participantes, gera direitos e
obrigações que não podem ficar à margem da lei. Não é ignorando a reali-
dade, deixando-a à margem da sociedade e fora do Direito, que irá desapa-
recer a homossexualidade. Impositivo é visualizar a possibilidade do reco-
nhecimento de uma união estável entre pessoas do mesmo sexo. Como diz
George Teixeira Giorgis:

De fato, ventilar-se a possibilidade de desrespeito ou prejuízo de


alguém, em função de sua orientação sexual, seria dispensar trata-
mento indigno ao ser humano, não se podendo ignorar a condição
pessoal do indivíduo, legitimamente constitutiva de sua identidade
pessoal, em que aquela se inclui.27

26
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2001. p. 46.
27
GIORGIS, José Carlos Teixeira. A Natureza Jurídica da Relação Homoerótica. In Revista
da AJURIS, nº 88 – Tomo 1. Porto Alegre: dezembro de 2002. p. 244.
CONVIDADOS 169
Maria Berenice Dias

Mais do que uma sociedade de fato, trata-se de uma sociedade de


afeto, o mesmo liame que enlaça os parceiros heterossexuais. Bem questi-
ona Paulo Luiz Lobo: Afinal, que “sociedade de fato” mercantil ou civil é essa
que se constitui e se mantém por razões de afetividade, sem interesse de lucro?28
Enquanto a lei não acompanha a evolução dos usos e costumes, as
mudanças de mentalidade, a evolução do conceito de moralidade, nin-
guém pode muito menos os aplicadores do Direito, fechar os olhos, assu-
mindo uma postura preconceituosa ou discriminatória, confundindo as
questões jurídicas com questões morais e religiosas.
A nenhuma espécie de vínculo que tenha por base o afeto se pode
deixar de conferir status de família, merecedora da proteção do Estado,
pois a Constituição Federal (art. 1º, III) consagra, em norma pétrea, o res-
peito à dignidade da pessoa humana.29

8 – A HOMOAFETIVIDADE E A JUSTIÇA

A garantia da justiça é o dever maior do Estado, que tem o compro-


misso de assegurar o respeito à dignidade da pessoa humana, dogma que
se assenta nos princípios da liberdade e da igualdade.
O fato de não haver previsão legal para específica situação não signi-
fica inexistência de direito à tutela jurídica. Ausência de lei não quer dizer
ausência de direito, nem impede que se extraiam efeitos jurídicos de determi-
nada situação fática. A falta de previsão específica nos regramentos
legislativos não pode servir de justificativa para negar a prestação
jurisdicional ou de motivo para deixar de reconhecer a existência de direito
merecedor da tutela jurídica. O silêncio do legislador deve ser suprido pelo
juiz, que cria a lei para o caso que se apresenta a julgamento. Clara, a deter-
minação do art. 4º da Lei de Introdução ao Código Civil. Na omissão legal,
deve o juiz se socorrer da analogia, costumes e princípios gerais de direito.
O movimento libertário que transformou a sociedade e mudou o
conceito de família também emprestou visibilidade aos relacionamentos
homossexuais, ainda que o preconceito faça com que essas relações rece-
bam o repúdio de segmentos conservadores. Mas a homossexualidade exis-
te, sempre existiu; e em nada se diferenciam os vínculos heterossexuais e os
homossexuais que tenham o afeto como elemento estruturante.

28
LÔBO, Paulo Luiz Netto. Entidades Familiares Constitucionalizadas: para além do
numerus clausus. Anais do III Congresso Brasileiro de Direito das Famílias. Família e
cidadania – o novo CCB e a vacatio legis. Belo Horizonte: Del Rey, 2002. p. 100.
29
Maria Berenice Dias. Manual do Direito das Famílias, 45.
170 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

O legislador intimida-se na hora de assegurar direitos às minorias


alvo da exclusão social. A omissão da lei dificulta o reconhecimento de
direitos, sobretudo frente a situações que se afastam de determinados pa-
drões convencionais, o que faz crescer a responsabilidade do juiz. No
entanto, preconceitos e posições pessoais não devem fazer da sentença
meio de punir comportamentos que se afastam dos padrões aceitos como
normais. Igualmente não pode ser invocado o silêncio da lei para negar
direitos àquele que escolheu viver fora do padrão imposto pela moral con-
servadora, mas que não agride a ordem social e merece a tutela jurídica.
As uniões de pessoas com a mesma identidade sexual, ainda que
sem lei, foram ao Judiciário reivindicar direitos. Mais uma vez a Justiça foi
chamada a exercer a função criadora do direito. O caminho que lhes foi
imposto já é conhecido. As uniões homossexuais tiveram que trilhar o
mesmo iter imposto às uniões extramatrimoniais. Em face da resistência
de ver a afetividade nas relações homossexuais, foram elas relegadas ao
campo obrigacional e rotuladas de sociedades de fato a dar ensejo a mera
partilha dos bens amealhados durante o período de convívio, mediante a
prova da efetiva participação na sua aquisição.30
O receio de comprometer o sacralizado conceito do casamento, li-
mitado à idéia da procriação e, por conseqüência, à heterossexualidade
do casal, não permitia que se inserissem as uniões homoafetivas no âmbi-
to do Direito das Famílias. Havia dificuldade de reconhecer que a convi-
vência está centrada no vínculo de afeto, o que impedia fazer a analogia
dessas uniões com o instituto da união estável, que tem as mesmas carac-
terísticas e a mesma finalidade que a família. Afastada a identidade fami-
liar, nada mais era concedido além de uma pretensa repartição do
patrimônio comum. Alimentos, pretensão sucessória, eram rejeitados sob
a alegação de impossibilidade jurídica do pedido.
As uniões homossexuais, quando reconhecida sua existência, eram
relegadas ao Direito das Obrigações. Chamadas de sociedades de fato,
limitava-se a Justiça a conferir-lhes seqüelas de ordem patrimonial. Lo-
grando um dos sócios provar sua efetiva participação na aquisição dos
bens amealhados durante o período de convívio, era determinada a parti-
ção do patrimônio, operando-se verdadeira divisão de lucros. Reconheci-
das como relações de caráter comercial, as controvérsias eram julgadas
pelas varas cíveis. Os recursos igualmente eram distribuídos às câmaras
cíveis que detêm competência para o julgamento de matérias cíveis não
especificadas.

30
Maria Berenice Dias. Homoafetividade: o que diz a Justiça, p. 17
CONVIDADOS 171
Maria Berenice Dias

A mudança começou pela Justiça gaúcha, que, ao definir a compe-


tência dos juizados especializados da família para apreciar as uniões
homoafetivas, as inseriu no âmbito do Direito das Famílias e as reconheceu
como entidades familiares. Cabe lembrar que o Poder Judiciário do Rio
Grande do Sul possui uma estrutura diferenciada. A divisão de competên-
cia por matérias existe também no segundo grau de jurisdição entre os
órgãos colegiados do Tribunal de Justiça. Essa peculiaridade evidencia o
enorme significado do deslocamento das ações sobre uniões de pessoas do
mesmo sexo das varas cíveis para os juízos de família. A definição da
competência das varas de família para o julgamento das ações envolvendo
as uniões homossexuais provocou a remessa de todas as demandas que
tramitavam nas varas cíveis para a jurisdição de família. Também os recur-
sos migraram para as câmaras que detêm competência para apreciar essa
matéria. Esse, com certeza, foi o primeiro grande marco que ensejou a mu-
dança de orientação da jurisprudência rio-grandense.31
Proposta a ação trazendo por fundamento jurídico as normas de
Direito das Famílias, a tendência era o indeferimento da petição inicial.
Decantada a impossibilidade jurídica do pedido, era decretada a carência
de ação. O processo era extinto em seu nascedouro, por ser considerado
impossível o pedido do autor. Esta foi a decisão proferida em ação de peti-
ção de herança que trazia como fundamento a legislação que regulou o § 6º
do art. 226 da Constituição Federal assegurando direitos sucessórios às
uniões estáveis. Era buscada a aplicação da Lei nº 8.971/94, invocando os
princípios constitucionais que vedam a discriminação entre os sexos. O
recurso32 foi acolhido por unanimidade de votos, reformando a sentença.

31
Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, AI nº 599 075 496, Oitava Câmara Cível,
Relator: Des. Breno Moreira Mussi, Data do julgamento: 17/6/1999, Ementa: RELA-
ÇÕES HOMOSSEXUAIS. COMPETÊNCIA PARA JULGAMENTO DE SEPARA-
ÇÃO DE SOCIEDADE DE FATO DOS CASAIS FORMADOS POR PESSOAS DO
MESMO SEXO. Em se tratando de situações que envolvem relações de afeto, mostra-
se competente para o julgamento da causa uma das varas de família, à semelhança
das separações ocorridas entre casais heterossexuais. Agravo provido.
32
HOMOSSEXUAIS. UNIÃO ESTAVÉL. POSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO.
É possível o processamento e o reconhecimento de união estável entre homossexuais,
ante princípios fundamentais insculpidos na Constituição Federal que vedam qual-
quer discriminação, inclusive quanto ao sexo, sendo descabida discriminação quanto
à união homossexual. E é justamente agora, quando uma onda renovadora se estende
pelo mundo, com reflexos acentuados em nosso país, destruindo preceitos arcaicos,
modificando conceitos e impondo a serenidade científica da modernidade no trato
das relações humanas, que as posições devem ser marcadas e amadurecidas, para
que os avanços não sofram retrocesso e para que as individualidades e coletividades
possam andar seguras na tão almejada busca da felicidade, direito fundamental de
todos. Sentença desconstituída para que seja instruído o feito. Apelação provida.
(TJRS AC 598 362 655, 8ª C.Cív., Rel,: Des. José S. Trindade, j. 01/3/2000)
172 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

Reconhecendo que a inicial descrevia a existência de um vínculo familiar,


foi afirmada a possibilidade jurídica do pedido e determinado o prosse-
guimento da ação, para que as partes trouxessem as provas de suas alega-
ções.
Esta decisão, de forma clara, sinaliza o caminho para a inserção, no
âmbito do Direito das Famílias, das uniões homoafetivas como entidade
familiar, invocando a vedação constitucional de discriminação em razão
do sexo.
A primeira decisão da Justiça brasileira que deferiu herança ao par-
ceiro do mesmo sexo também é da justiça do Rio Grande do Sul.33 A mu-
dança de rumo foi de enorme repercussão, pois retirou o vínculo afetivo
homossexual do Direito das Obrigações, em que era visto como simples
negócio, como se o relacionamento tivesse objetivo exclusivamente comer-
cial e fins meramente lucrativos. Esse equivocado enquadramento eviden-
ciava postura conservadora e discriminatória, pois não conseguia ver a
existência de um vínculo afetivo na origem do relacionamento.
Fazer analogia com o Direito das Famílias que se justifica pela
afetividade, significa reconhecer a semelhança entre as relações familia-
res e as homossexuais. Assim, pela primeira vez, a Justiça emprestou rele-
vância ao afeto o elegendo como elemento de identificação para reconhe-
cer a natureza familiar das uniões homoafetivas. O Relator, Desembargador
José Carlos Teixeira Giorgis, em longo e erudito voto, invocou os princípi-
os constitucionais da dignidade humana e da igualdade, concluindo que
o respeito à orientação sexual é aspecto fundamental para a seu reconhe-
cimento. Na esteira dessa decisão, encorajaram-se outros tribunais e, com
significativa freqüência, se tem notícias de novos julgamentos adotando
posicionamento idêntico.

33
UNIÃO HOMOSSEXUAL. RECONHECIMENTO. PARTILHA DO PATRIMÔNIO.
MEAÇÃO. PARADIGMA. Não se permite mais o farisaísmo de desconhecer a
existência de uniões entre pessoas do mesmo sexo e a produção de efeitos jurídicos
derivados dessas relações homoafetivas. Embora permeadas de preconceitos, são
realidades que o Judiciário não pode ignorar, mesmo em sua natural atividade
retardatária. Nelas remanescem conseqüências semelhantes às que vigoram nas
relações de afeto, buscando-se sempre a aplicação da analogia e dos princípios
gerais do direito, relevados sempre os princípios constitucionais da dignidade hu-
mana e da igualdade. Desta forma, o patrimônio havido na constância do relacio-
namento deve ser partilhado como na união estável, paradigma supletivo onde se
debruça a melhor hermenêutica. Apelação provida, em parte, por maioria, para
assegurar a divisão do acervo entre os parceiros. (TJRS – AC 70001388982, 7ª C.
Civ. – Rel. Des. José Carlos Teixeira Giorgis, j., 14/3/2001).
CONVIDADOS 173
Maria Berenice Dias

Mesmo inexistindo controvérsia sobre a existência da união, pas-


sou a ser reconhecido o interesse de agir, mediante medida cautelar de
justificação,34 bem como admitido o uso de ação declaratória da existên-
cia da relação homossexual, sob o fundamento que a prova da convivên-
cia efetiva seria da maior importância na eventualidade de ruptura da
vida em comum, com vista à apuração do resultado patrimonial.35
A ação mais emblemática foi a que levou o companheiro sobrevi-
vente a disputar a herança que, na iminência de ser declarada vacante, em
face da ausência de herdeiros sucessíveis, seria recolhida ao município.
Em sede de embargos infringentes foram reconhecidos direitos sucessórios
ao companheiro pelo voto de Minerva do Vice-Presidente do Tribunal.36
Desta decisão o Ministério Público opôs recurso tanto ao Superior Tribu-

34
JUSTIFICAÇÃO JUDICIAL. CONVIVÊNCIA HOMOSSEXUAL. COMPETÊNCIA.
POSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO. 1. É competente a Justiça Estadual
para julgar a justificação de convivência entre homossexuais, pois os efeitos preten-
didos não são meramente previdenciários, mas também patrimoniais. 2. São com-
petentes as Varas de Família, e também as Câmaras Especializadas em Direito das
Famílias, para o exame das questões jurídicas decorrentes da convivência homosse-
xual, pois, ainda que não constituam entidade familiar, mas mera sociedade de
fato, reclamam, pela natureza da relação, permeada pelo afeto e peculiar carga de
confiança entre o par, um tratamento diferenciado daquele próprio do direito das
obrigações. Essas relações encontram espaço próprio dentro do Direito das Famíli-
as, na parte assistencial, ao lado da tutela, curatela e ausência, que são relações de
cunho protetivo, ainda que também com conteúdo patrimonial. 2. É viável juridica-
mente a justificação pretendida, pois a sua finalidade é comprovar o fato da convi-
vência entre duas pessoas homossexuais, seja para documentá-la, seja para uso
futuro em processo judicial, onde poderá ser buscado efeito patrimonial ou até
previdenciário. Inteligência do art. 861 do CPC. Recurso conhecido e provido. (TJRS
– AC 70002355204, 7ª C. Cív. – Rel. Des. Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves,
j. 11/4/2001).
35
APELAÇÃO CÍVEL. DECLARATÓRIA DE RECONHECIMENTO DE UNIÃO
ESTÁVEL. PESSOAS DO MESMO SEXO. Afastada carência de ação. Sentença
desconstituída para o devido prosseguimento do feito. (TJRS – AC 70005733845,
2ª C.Cív.Esp. Rel. – Dr. Luiz Roberto Imperatore de Assis Brasil, j. 20/3/2003).
36
UNIÃO ESTÁVEL HOMOAFETIVA. DIREITO SUCESSÓRIO. ANALOGIA.
Incontrovertida a convivência duradoura, pública e contínua entre parceiros do
mesmo sexo, impositivo que seja reconhecida a existência de uma união estável,
assegurando ao companheiro sobrevivente a totalidade do acervo hereditário, afas-
tada a declaração de vacância da herança. A omissão do constituinte e do legislador
em reconhecer efeitos jurídicos às uniões homoafetivas impõe que a Justiça colmate
a lacuna legal fazendo uso da analogia. O elo afetivo que identifica as entidades
familiares impõe que seja feita analogia com a união estável, que se encontra devi-
damente regulamentada. Embargos infringentes acolhidos, por maioria. (TJRS – EI
70003967676, 4º Grupo de C.Cív. – Rel. Des. Sérgio Fernando de Vasconcelos Cha-
ves, j. 09/5/2003).
174 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

nal de Justiça como ao Supremo Tribunal Federal, que ainda não foram
alvo de julgamento.
Porém, como o Tribunal Superior Eleitoral 37 já proclamou a
inelegibilidade (CF 14 § 7º) nas uniões homossexuais, está reconhecido
que a união entre duas pessoas do mesmo sexo é uma entidade familiar,
tanto que sujeita à vedação que só existe no âmbito das relações familia-
res. Ora, se estão sendo impostos ônus aos vínculos homoafetivos, mister
que sejam assegurados também todos os direitos e garantias a essas uni-
ões, no âmbito do Direito das Famílias e do Direito Sucessório.
Há que reconhecer a coragem de ousar quando se ultrapassam os
tabus que rondam o tema da sexualidade e se rompe o preconceito que
persegue as entidades familiares homoafetivas. Houve um verdadeiro
enfrentamento a toda uma cultura conservadora e uma oposição à juris-
prudência ainda apegada a um conceito sacralizado de família. Essa nova
orientação mostra que o Judiciário tomou consciência de sua missão de
criar o direito. Não é ignorando certos fatos, deixando determinadas situ-
ações a descoberto do manto da juridicidade, que se faz justiça. Condenar
à invisibilidade é a forma mais cruel de gerar injustiças e fomentar a dis-
criminação, afastando-se o Estado de cumprir com sua obrigação de con-
duzir o cidadão à felicidade.
A postura da jurisprudência, juridicizando e inserindo no âmbito
do Direito das Famílias as relações homoafetivas, como entidades famili-
ares, é um marco significativo. Inúmeras outras decisões despontam no
panorama nacional a mostrar a necessidade de se cristalizar uma orienta-
ção que acabe por motivar o legislador a regulamentar situações que não
mais podem ficar à margem da juridicidade. Consagrar os direitos em
regras legais talvez seja a maneira mais eficaz de romper tabus e derrubar
preconceitos. Mas, enquanto a lei não vem, é o Judiciário que deve suprir
a lacuna legislativa, mas não por meio de julgamentos permeados de pre-
conceitos ou restrições morais de ordem pessoal.38
O caminho está aberto, e imperioso que os juízes cumpram com sua
verdadeira missão, que é fazer Justiça. Acima de tudo precisam ter sensi-

37
REGISTRO DE CANDIDATO. Candidata ao cargo de prefeito. Relação estável
homossexual com a prefeita reeleita do município. Inelegibilidade. (CF 14 § 7º). Os
sujeitos de uma relação estável homossexual, à semelhança do que ocorre com os de
relação estável, de concubinato e de casamento, submetem-se à regra de
inelegibilidade prevista no art. 14, § 7º, da Constituição Federal. Recurso a que se dá
provimento. (TSE – Resp Eleitoral 24564 – Viseu/PA – Rel. Min. Gilmar Mendes, j.
1º/10/2004).
38
DIAS, Maria Berenice. Homoafetividade: o que diz a Justiça. 3. ed. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2003. p. 18.
CONVIDADOS 175
Maria Berenice Dias

bilidade para tratar de temas tão delicados como as relações afetivas, cujas
demandas precisam ser julgadas com mais sensibilidade e menos precon-
ceito. Ou seja, com mais atenção aos princípios de justiça, de igualdade e
de humanismo, que devem presidir as decisões judiciais. Necessário ter
visão plural das estruturas familiares e inserir no conceito de família os
vínculos afetivos que, por envolverem mais sentimento do que vontade,
merecem a especial proteção que só o Direito das Famílias consegue asse-
gurar.

9 – A HOMOPARENTALIDADE

Não só a família, mas também a filiação foi alvo de profunda trans-


formação, o que levou a repensar as relações paterno-filiais e os valores
que as moldam.39 Das presunções legais se chegou à plena liberdade de
reconhecimento de filhos e à imprescritibilidade da investigação dos pais.
Tais foram as mudanças, que a Constituição acabou com a perversa clas-
sificação dos filhos, diferenciação hipócrita e injustificável, enfatiza Zeno
Veloso, como se as crianças inocentes fossem mercadorias expostas em
prateleiras de mercadorias, umas de primeira, outras de segunda, haven-
do, ainda, as mais infelizes, de terceira classe ou categoria.40
Se o afeto passou a ser o elemento identificador das entidades fami-
liares é este o sentimento que serve de parâmetro para a definição dos
vínculos parentais, levando ao surgimento da família eudemonista, espa-
ço que aponta o direito à felicidade como núcleo formador do sujeito.41
De outro lado, a facilidade de descobrir a verdade genética, com
significativo grau de certeza, desencadeou verdadeira corrida na busca
da verdade real, atropelando a verdade jurídica, definida muitas vezes
por meras presunções legais. À Justiça coube a tarefa de definir o vínculo
paterno-filial quando a estrutura familiar não reflete o vínculo de
consangüinidade. No confronto entre a verdade biológica e a realidade
vivencial, a jurisprudência passou a atentar ao melhor interesse de quem
era disputado por mais de uma pessoa. Prestigiando o comando constitu-
cional, que assegura com absoluta prioridade o interesse de crianças e
adolescentes, regra exaustiva e atentamente regulamentada pelo Estatuto

39
ALMEIDA, Maria Cristina de. DNA e estado de filiação à luz da dignidade humana.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 179.
40
VELOSO, Zeno. Direito brasileiro da filiação e paternidade. São Paulo: Malheiros, 1997,
p. 90.
41
CARBONERA, Silvana Maria. O papel jurídico do afeto nas relações de família.
Anais do I Congresso de Direito das Famílias, Belo Horizonte, 1988, p. 486.
176 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

da Criança e do Adolescente, passaram os juízes a investigar quem a cri-


ança considera pai e quem a ama como filho. O prestígio à afetividade fez
surgir uma nova figura jurídica, a filiação socioafetiva, que acabou se
sobrepondo à realidade biológica.
A moderna doutrina não mais define o vínculo de parentesco em
função da identidade genética. A valiosa interação do Direito com as ciên-
cias psico-sociais ultrapassou os limites do direito normatizado e permi-
tiu a investigação do justo buscando mais a realidade psíquica do que a
verdade eleita pela lei. Para dirimir as controvérsias que surgem – em
número cada vez mais significativo – em decorrência da manipulação
genética, prevalece a mesma orientação. Popularizaram-se os métodos
reprodutivos de fecundação assistida, cessão do útero, comercialização
de óvulos ou espermatozóides, locação de útero, e todos viram a possibili-
dade de realizar o sonho de ter filhos.
Nesse caleidoscópio de possibilidades, os vínculos de filiação não
podem ser buscados nem na verdade jurídica nem na realidade biológica.
A definição da paternidade está condicionada à identificação da posse do
estado de filho, reconhecida como a relação afetiva, íntima e duradoura,
em que uma criança é tratada como filho, por quem cumpre todos os deve-
res inerentes ao poder familiar: cria, ama, educa e protege.42
Para evitar confronto ético, acabou sendo imposto o anonimato às
concepções heterólogas, o que veda identificar a filiação genética. Mas
essa verdade não interessa, pois o filho foi gerado pelo afeto, e não são os
laços bioquímicos que indicam a figura do pai, mas, sim, o cordão umbili-
cal do amor. A paternidade é reconhecida pelo vínculo de afetividade,
fazendo nascer a filiação socioafetiva. Ainda segundo Fachin, a verdadei-
ra paternidade não é um fato da Biologia, mas um fato da cultura, está
antes no devotamento e no serviço do que na procedência do sêmen.43
Se a família, como diz João Baptista Villela, deixou de ser unidade
de caráter econômico, social e religioso para se afirmar fundamentalmen-
te como grupo de afetividade e companheirismo, o que imprimiu conside-
rável reforço ao esvaziamento biológico da paternidade,44 imperioso ques-
tionar os vínculos parentais nas estruturas familiares formadas por pes-
soas do mesmo sexo.

42
NOGUEIRA, Jacqueline Filgueras. A filiação que se constrói: o reconhecimento do
afeto como valor jurídico. São Paulo: Memória Jurídica, 2001, p. 85.
43
FACHIN, Luiz Edson. Família hoje. A nova família: problemas e perspectivas. Vicente
Barreto (Org.), Rio de Janeiro: Renovar, 1997, p. 85.
44
VILLELA. João Baptista. Desbiologização da Paternidade. Revista da Faculdade de
Direito da Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, nº 21, 1979, p.404.
CONVIDADOS 177
Maria Berenice Dias

Não se pode fechar os olhos e tentar acreditar que as famílias


homoparentais, por não disporem de capacidade reprodutiva, simples-
mente não possuem filhos. Está-se à frente de uma realidade cada vez mais
presente: crianças e adolescentes vivem em lares homossexuais. Gays e
lésbicas buscam a realização do sonho de estruturarem uma família com a
presença de filhos. Não ver essa verdade é usar o mecanismo da
invisibilidade para negar direitos, postura discriminatória com nítido ca-
ráter punitivo, que só gera injustiças.
As situações são várias, cabendo lembrar as que surgem com mais
freqüência. Após a separação com prole, o pai ou a mãe que tem a guarda
dos filhos resolve assumir sua orientação sexual e passa a viver com
alguém do mesmo sexo. O companheiro do genitor não é nem pai nem
mãe dos menores, mas não se pode negar que a convivência gera um
vínculo de afinidade e afetividade. Não raro o parceiro participa da cria-
ção, desenvolvimento e educação das crianças, passando a exercer a fun-
ção parental.
Outra opção cada vez mais comum é um do par se submeter à repro-
dução assistida. Este será o pai ou a mãe. O parceiro ou parceira, que não
participou do processo reprodutivo, fica excluído da relação de parentes-
co, ainda que o filho tenha sido concebido por vontade de ambos. Os gays
utilizam esperma de um ou de ambos, e, realizada a fecundação in vitro, a
gestação é levada a termo por meio do que se passou a chamar de barriga
de aluguel. As lésbicas muitas vezes optam pela utilização do óvulo de
uma, que, fecundado em laboratório, é introduzido no útero da outra, que
leva a gestação a termo. Nessas hipóteses, o pai ou a mãe biológica é so-
mente um deles, ainda que o filho tenha sido concebido por amor, processo
do qual participaram os dois.
A adoção vem sendo incentivada por campanhas, como modalida-
de de amenizar o grave problema social das crianças abandonadas ou
institucionalizadas. A esse apelo só pode responder um dos parceiros. No
entanto, mesmo sendo adotada por um, a criança vai ter dois pais ou duas
mães.
Em todas essas hipóteses, permitir que exclusivamente o pai (bioló-
gico ou adotante) tenha um vínculo jurídico com o filho é olvidar tudo que
a doutrina vem sustentando e a Justiça vem construindo: a tutela jurídica
dos vínculos afetivos, pois não é requisito indispensável para haver famí-
lia que haja homem e mulher, pai e mãe.45

45
BARROS, Sérgio Resende de. A ideologia do afeto. Revista Brasileira de Direito das
Famílias. Porto Alegre: Síntese, Jul-Ago-Set. 2002, v. 14, p. 9.
178 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

A maior visibilidade e melhor aceitabilidade das famílias


homoafetivas torna impositivo o estabelecimento do vínculo jurídico pa-
terno-filial com ambos os genitores, ainda que sejam dois pais ou duas
mães. Vetar a possibilidade de juridicizar a realidade só traz prejuízo ao
filho, que não terá qualquer direito com relação a quem exerce o poder
familiar, isto é, desempenha a função de pai ou de mãe. Presentes todos os
requisitos para o reconhecimento de uma filiação socioafetiva, negar sua
presença é deixar a realidade ser encoberta pelo véu do preconceito.
Existindo um núcleo familiar, estando presente o elo de afetividade
a envolver pais e filhos, a identificação da união estável do casal torna
imperioso o reconhecimento da dupla paternidade. Para assegurar a pro-
teção do filho, os dois pais precisam assumir os encargos do poder famili-
ar. Como lembra Zeno Veloso, o princípio capital norteador do movimento
de renovação do Direito das Famílias é fazer prevalecer, em todos os casos,
o bem da criança; valorizar e perseguir o que melhor atender aos interesses
do menor.46
A enorme resistência em aceitar a homoparentalidade decorre da
falsa idéia de que são relações promíscuas, não oferecendo um ambiente
saudável para o bom desenvolvimento de uma criança. Também é alegado
que a falta de referências comportamentais pode acarretar seqüelas de or-
dem psicológica e dificuldades na identificação sexual do filho. Mas estu-
dos realizados a longo tempo mostram que essas crenças são falsas. O
acompanhamento de famílias homoafetivas com prole não registra a pre-
sença de dano sequer potencial no desenvolvimento, inserção social e sa-
dio estabelecimento de vínculos afetivos. Ora, se esses dados dispõem de
confiabilidade, a insistência em rejeitar a regulamentação de tais situações
só tem como justificativa uma indisfarçável postura homofóbica.
Está na hora de acabar com a hipocrisia.
Negar a realidade, não reconhecer direitos só tem uma triste seqüe-
la: os filhos são deixados a mercê da sorte, sem qualquer proteção jurídica.
Livrar os pais da responsabilidade pela guarda, educação e sustento da
criança é deixá-la em total desamparo. Há que reconhecer como atual e
adequada a observação de Clovis Bevilaqua47 ao visualizar um misto de
cinismo e de iniqüidade, chamando de absurda e injusta a regra do Códi-
go Civil de 1916 que negava reconhecimento aos filhos adulterinos e in-
cestuosos.

46
VELOSO, ZENO. Direito brasileiro da filiação e paternidade. São Paulo: Malheiros,
1997, p. 180.
47
BEVILAQUA, Clovis. Código Civil, Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1941, v. II, p.
329.
CONVIDADOS 179
Maria Berenice Dias

Outra não é a adjetivação que merecem os dispositivos do Projeto


de Lei da Parceria Civil Registrada, de nº 1.151/95, e do Pacto de Solidari-
edade, de nº 5.252/2002, que vedam quaisquer disposições sobre adoção,
tutela ou guarda de crianças ou adolescentes em conjunto, mesmo que
sejam filhos de um dos parceiros ou pactuantes. Cabe repetir as palavras
indignadas de Cimbali: Estranha, em verdade, a lógica desta sociedade e
a justiça destes legisladores, que, com imprudente cinismo, subvertem,
por completo, os mais sagrados princípios da responsabilidade huma-
na.48
Agora, pelo jeito, se está chamando de espúrio o filho pelo simples
fato de, em vez de um pai e uma mãe, ter dois pais ou duas mães. Quem
sabe a intenção é arrancá-lo de sua família, que, como toda família, é ama-
da, sonhada e desejada por homens, mulheres e crianças de todas as ida-
des, de todas as orientações sexuais e de todas as condições.49
Para o estabelecimento do vínculo de parentalidade, basta que se
identifique quem desfruta da condição de pai, quem o filho considera seu
pai, sem perquirir a realidade biológica, presumida, legal ou genética.
Também a situação familiar dos pais em nada influencia na definição da
paternidade, pois família, como afirma Lacan, não é um grupo natural,
mas um grupo cultural, e não se constitui apenas por um homem, mulher
e filhos, conforme bem esclarece Rodrigo da Cunha Pereira: a família é
uma estruturação psíquica, onde cada um de seus membros ocupa um
lugar, desempenha uma função, sem estarem necessariamente ligados bi-
ologicamente. Assim, nada significa ter um ou mais pais, serem eles do
mesmo ou de sexos diferentes.50
Mais uma vez o critério deve ser a afetividade, elemento estruturante
da filiação socioafetiva, pois, como diz Giselle Groeninga, a criança ne-
cessita de pais que transmitam a verdade dos afetos.51 Não reconhecer a
paternidade homoparental é retroagir um século, ressuscitando a perver-
sa classificação do Código Civil de 1916, que, em boa hora, foi banida em
1988 pela Constituição Federal.
Além de retrógrada, a negativa de reconhecimento escancara fla-
grante inconstitucionalidade, pois é expressa a proibição de quaisquer

48
In BEVILAQUA, op. loc. cit.
49
ROUDINESCO, Elisabeth. A família em desordem. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. 2003,
p. 198.
50
PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Direito de Família: uma abordagem psicanalítica. 2.
ed. Belo Horizonte: Del Rey, 1999, p. 47.
51
GROENINGA, Giselle. O secreto dos afetos – a mentira. Boletim do IBDFAM, nº 19,
mar/abr 1993, p. 7.
180 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

designações discriminatórias relativas à filiação. As relações familiares


são funcionalizadas em razão da dignidade de cada partícipe,52 e a nega-
tiva de reconhecimento da paternidade afronta um leque de princípios,
direitos e garantias fundamentais, como o respeito à dignidade, à igual-
dade, à identidade.
Recente julgamento do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Gran-
de do Sul,53 por decisão unânime, reconheceu o direito à adoção a um
casal formado de pessoas do mesmo sexo. Os filhos haviam sido adotados
por uma das parceiras vindo à outra a pleitear a adoção em juízo. Com
certeza esta decisão selou de vez o reconhecimento de que a divergência
de sexo é indiferente para a configuração de uma família.
Não se pode esquecer que crianças e adolescentes têm, com absolu-
ta prioridade, direito à vida, à saúde, à alimentação, à convivência famili-
ar, e negar o vínculo de filiação é vetar o direito à família: lugar idealizado
onde é possível, a cada um, integrar sentimentos, esperanças e valores
para a realização do projeto pessoal de felicidade.54

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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BARROS, Sérgio Resende de. A ideologia do afeto. Revista Brasileira de Di-


reito das Famílias. Porto Alegre: Síntese, Jul-Ago-Set. 2002, v. 14.

52
GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Direito das Famílias e o novo Código Civil.
Belo Horizonte: Del Rey, 2ª ed. 2001, p. 93.
53
ADOÇÃO. CASAL FORMADO POR DUAS PESSOAS DE MESMO SEXO. POSSI-
BILIDADE. Reconhecida como entidade familiar, merecedora da proteção estatal,
a união formada por pessoas do mesmo sexo, com características de duração,
publicidade, continuidade e intenção de constituir família, decorrência inafastável é
a possibilidade de que seus componentes possam adotar. Os estudos especializados
não apontam qualquer inconveniente em que crianças sejam adotadas por casais
homossexuais, mais importando a qualidade do vínculo e do afeto que permeia o
meio familiar em que serão inseridas e que as liga aos seus cuidadores. É hora de
abandonar de vez preconceitos e atitudes hipócritas desprovidas de base científica,
adotando-se uma postura de firme defesa da absoluta prioridade que constitucio-
nalmente é assegurada aos direitos das crianças e dos adolescentes (art. 227 da
Constituição Federal). Caso em que o laudo especializado comprova o saudável
vínculo existente entre as crianças e as adotantes. Negaram provimento. Unânime.
(TJRS, 7.ª C.Cív. AC 70013801592, rel. Des. Luiz Felipe Brasil Santos, j. 5.5.2006).
54
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Maria Berenice Dias

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CONVIDADOS 183
Paulo Queiroz

O CONCEITO DE DIREITO - UMA INTRODUÇÃO


CRÍTICA

Paulo Queiroz
Doutor em Direito pela PUC-SP. Professor da
UNICEUB. Procurador Regional da República
em Brasília

“Uma ‘coisa em si’ tão errada quanto um ‘sentido em si’, uma


‘significação em si’. Não há nenhum ‘estado de coisas em si’,
contudo um sentido precisa sempre ser primeiro projetado
lá dentro para que possa haver um estado de coisas. O ‘o que
é isso?’ constitui uma postulação de sentido a partir da pers-
pectiva de algo outro. A ‘essência’, a ‘essencialidade’ é algo
perspectivístico e já pressupõe uma multiplicidade. Subjacente
está sempre ‘o que é isso para mim?’ (para nós, para tudo o
que vive etc.). Uma coisa estaria designada somente quando
todos os entes tivessem perguntado e respondido ao seu ‘o
que é isso?’. Digamos que falte um único ente com as suas
relações e perspectivas peculiares em relação a todas as coi-
sas: e tal coisa não estaria ainda bem ‘definida’. 2(149) Em
suma, a essência de uma coisa também é apenas uma opinião
sobre a ‘coisa’. Ou melhor: o ‘ela vale’ é o autêntico ‘isso é’, o
único ‘isto é’”. 2(150) (Nietzsche, Friedrich. Framentos finais.
Brasília: Editora UnB, 2002, p.159).

A definição do que seja o Direito depende, necessariamente, do ponto


de vista adotado1. Não obstante, certo é que o que chamamos Direito não é

1
Conforme se infere de alguns conceitos: “o direito é, pois, o conjunto de condições sob
as quais o arbítrio de um se pode harmonizar com o arbítrio do outro, segundo uma
lei universal da liberdade” (Kant, Metafísica dos Costumes, Parte I, p. 36, edições 70);
“o domínio do direito é o espírito em geral; aí, a sua base própria, o seu ponto de
partida está na vontade livre, de tal modo que a liberdade constitui a sua substância
e o seu destino e que o sistema do direito é o império da liberdade realizada, o mundo
do espírito produzido como uma segunda natureza a partir de si mesmo” (Hegel,
Princípios de Filosofia do Direito, p.12, Ed. Martins Fontes, trad. Orlando Vitorino,
Martins Fontes, S. Paulo, 1997); “Direito é, pois, a realidade que possui o sentido de
estar ao serviço do valor jurídico, da Idéia de direito” (Gustav Radbruch, Filosofia do
Direito, p. 86, Armênio Amado Editor, Coimbra, 1997, 6ª edição, tradução de L.
Cabral de Moncada); “Direito é a ordenação heterônoma, coercível e bilateral atributiva
das relações de convivência, segundo uma integração normativa de fatos segundo
valores” (Miguel Reale, Lições Preliminares de Direito, p. 67, Saraiva, S. Paulo, 2005).
184 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

uma coisa, isto é, não tem uma essência, uma substância; não existe
ontologicamente, independentemente da representação que fazemos a seu
respeito, porque constitui uma criação humana, que nasce e morre com o
homem, ou seja, o direito não é sólido, nem líquido, nem gasoso, nem
animal, nem vegetal2.
Com efeito, “aquilo que uma teoria do direito objetiva como Direi-
to”, são palavras de François Ewald, “como natureza do direito, como
essência do direito, não tem existência real. O Direito – demos-lhe maiús-
culas – não existe. Ou antes, não existe a não ser como um nome que
reenvia a um objeto, mas serve para designar uma multiplicidade de obje-
tos históricos possíveis – que, como realidades, não têm os mesmos atribu-
tos, e que podem mesmo ter atributos irredutíveis”3, de sorte que, assim
como não existem fenômenos morais, mas apenas interpretação moral dos
fenômenos4, tampouco existem fenômenos jurídicos, mas só interpretação
jurídica dos fenômenos, pois nada é onticamente jurídico, lícito ou ilícito,
mas socialmente construído.
Conclusivamente, o direito é o que dizemos que ele é, porque o direi-
to, como de resto tudo que diz respeito ao homem, não está no fato ou na
norma em si, mas na cabeça das pessoas, de modo que podemos afirmar,
parafraseando o evangelho (Lucas, 17:21), que o reino do direito está den-
tro de nós, e que nós o criamos e recriamos permanentemente, dando-lhe
distintos significados a cada momento de sua produção segundo um dado
contexto histórico-cultural. Dito de outra forma: o direito e o não direito,

2
Calmon de Passos, Direito, Poder, Justiça e Processo, p. 67/68, Ed. Forense, Rio,
1999.
3
Foucault, a Norma e o Direito, p. 160, Vega, Lisboa, 1993. De modo similar, Calmon
de Passos afirma que o Direito “enquanto apenas formulação teórica, enunciado
normativo, proposição ou juízo, ainda não é o Direito”, pois “o Direito é o que dele faz
o processo de sua produção. Isso nos adverte de que nunca é algo dado, pronto, pré-
estabelecido ou pré-produzido, cuja aplicação é possível mediante simples utilização
de determinadas técnicas e instrumentos, com segura previsão das conseqüências”,
razão pela qual “O Direito, em verdade, é produzido a cada ato de sua produção,
concretiza-se com sua aplicação e somente é enquanto está sendo produzido ou
aplicado”, Direito, Poder, Justiça e Processo, p. 67/68, Ed. Forense, Rio, 1999. Não
por outra razão, afirmava Oliver Wendell Holmes que dizer o que o direito realmente
significa é fazer profecias sobre o que os tribunais farão de fato. Textualmente: “the
prophecies of what the courts will do in fact, and nothing more pretentious, are what
I mean by th law”, apud Alexy, el concepto de derecho, cit., p. 23.
4
Nietzsche, Para além do bem e do mal, n° 108, p.92, trad.Alex Marins, S. Paulo,
Martin Claret, 2002.
CONVIDADOS 185
Paulo Queiroz

tal qual o justo e o injusto, o moral e o imoral, o ético e o estético, é em nós


que ele existe5!
É que, afinal, graças à escrita, o discurso se liberta da tutela de inten-
ção do autor, das circunstâncias e da orientação voltada para o leitor pri-
mitivo, sendo que a autonomia semântica que resulta dessa tríplice liberta-
ção assegura uma carreira independente do texto e abre para a interpreta-
ção um campo de exercício considerável6.
Daí que o direito, como o poder, não é uma coisa, mas relações/
interações/interpretações, que é algo que se exerce, que se efetua, que fun-
ciona como uma máquina social que não está situada em um lugar privile-
giado ou exclusivo, mas se dissemina por toda a estrutura social7. Consti-
tui, por isso, uma grande simplificação supor que o Estado seja a única
fonte de direito ou que o direito se esgote no direito legislado8, já que cada

5
Só assim se explica, por exemplo, que, interpretando a Constituição americana, que
vigora há mais de duzentos anos sem alteração no particular, tenha a Suprema Corte
entendido, inicialmente, que o racismo era constitucional; mais tarde (década de 50),
passou-se a considerar parcialmente inconstitucional; e, finalmente, a partir da déca-
da de 70, prevaleceu o entendimento de que o racismo é inteiramente inconstitucional.
O que mudou, se o texto da lei é o mesmo desde então? A resposta é simples: o
homem que o interpreta!
6
Paul Ricouer, in o justo e a essência da justiça, Instituto Piaget, Lisboa, 1995. Afirma-
ção idêntica faz Umberto Eco, para quem “um texto, uma vez separado do seu
emissor (bem como da intenção do seu emissor) e das circunstâncias concretas da sua
emissão (e conseqüentemente de seu referente implícito), flutua (por assim dizer) no
vácuo de um espaço potencialmente infinito de interpretações possíveis. Conseqüen-
temente, texto algum pode ser interpretado segundo a utopia de um sentido autori-
zado fixo, original e definitivo. A linguagem sempre diz algo mais do que o seu
inacessível sentido literal, o qual já se perdeu a partir do início da emissão textual, in
os limites da interpretação. S. Paulo: Editora Perspectiva, 2000, p. XIV.
7
Roberto Machado, por uma genealogia do poder, p. XIV, introdução a Microfísica do
Poder, de Michel Foucault, Rio de Janeiro, Graal, 1995.
8
Não sem razão, Boaventura de Souza Santos refere, além do direito estatal ou
territorial, o direito doméstico, o direito de proteção, o direito da comunidade e o
direito sistêmico, classificação que não é exaustiva. O direito doméstico – grandemente
informal – é o direito do espaço doméstico, o conjunto de regras, de padrões normativos
e de mecanismos de regulação de conflitos que resulta da, e na, sedimentação das
relações sociais do agregado doméstico; o direito da produção é o direito da fábrica
ou da empresa, o conjunto de regulamentos e padrões normativos que organizam o
quotidiano das relações do trabalhado assalariado: códigos de fábrica, regulamentos
da linha de produção, códigos de condutas dos empregados etc.; o direito da comu-
nidade, como sucede com o espaço da comunidade, é uma das fontes de direito mais
complexas, na medida em que cobre situações extremamente diversas, podendo ser
invocado tanto pelos grupos hegemônicos como pelos grupos oprimidos; finalmente,
o direito territorial ou do estatal é o direito do espaço da cidadania e, nas sociedades
modernas, é o direito central na maioria das constelações de ordens jurídicas, sendo
que ao longo dos últimos duzentos anos, foi construído pelo liberalismo político e
pela ciência jurídica como a única forma de direito existente na sociedade, in Crítica
da razão indolente, p. 290 e ss, Cortez Editora, S. Paulo, 2000.
186 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

um carrega dentro de si seus micro-sistemas jurídicos, e os faz, ou tenta


fazê-los prevalecer, nos seus espaços de interação/exercício de poder.
Dizemos, por exemplo, o direito penal, primeiro, por meio dos pro-
cessos de criminalização primária que vão culminar na edição de uma lei
que diga o que é e não é crime, porque assim o exige o princípio da reserva
legal (CF, art. 5°, XXXIX 9); segundo, por meio dos processos de
criminalização secundária, isto é, através das ações e reações das pessoas
e instituições direta ou indiretamente relacionadas com o crime (Judiciá-
rio, Ministério Público, Polícia, advogados, imprensa, autor, vítima, pa-
rentes etc)10.
Assim, se não há crime nem pena sem lei anterior que o defina,
segue-se que, por mais que uma conduta humana seja moralmente repro-
vável (v.g., o incesto), se não houver lei que a declare criminosa, criminosa
não é, sendo jurídico-penalmente irrelevante. É a lei, portanto, que cria o
crime, é a lei que cria o criminoso. Numa palavra: crime é só o que o legis-
lador disser que é11.

9
Prescreve o aludido artigo que “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena
sem prévia cominação legal”.
10
Como observa Vera Andrade, “a lei penal configura tão-só um marco abstrato de
decisão, no qual os agentes do controle social formal desfrutam de ampla margem de
discricionariedade na seleção que efetuam, desenvolvendo uma atividade criadora
proporcionada pelo caráter “definitorial” da criminalidade (...) “pois entre a seleção
abstrata, potencial e provisória operada pela lei penal e a seleção efetiva e definitiva
operada pelas instâncias de criminalização secundária, medeia um complexo e dinâ-
mico processo de refração”, in a Ilusão de Segurança Jurídica, p. 260, Livraria do
Advogado Editora, Porto Alegre, 1997.
11
Apesar disso, tem razão Niklas Luhmann quando, de uma perspectiva distinta,
assinala que “o direito não se origina da pena do legislador. A decisão do legislador
(e o mesmo é válido, como hoje se reconhece, para a decisão do juiz) se confronta com
uma multiplicidade de projeções normativas já existentes, entre as quais ele opta com
um grau maior ou menor de liberdade. Se não fosse assim, ela não seria uma decisão
jurídica. Sua função, portanto, não reside na criação do direito, mas na seleção e na
dignificação simbólica de normas enquanto direito vinculativo. Ele envolve um filtro
processual, pelo qual todas as idéias jurídicas têm que passar para se tornarem
socialmente vinculativas enquanto direito. Esses processos não geram o direito pro-
priamente dito, mas sim sua estrutura em termos de inclusões e exclusões; aí se
decide sobre a vigência ou não, mas o direito não é criado do nada. É importante ter
em mente essa diferença, pois de outra forma a concepção do direito estatuído atra-
vés de decisões pode ser ligada à noção totalmente errônea da onipotência de fato ou
moral do legislador. É necessário, em outras palavras, diferenciar entre atribuição e
causalidade. A proeminência especial do processo decisório (por instâncias legislativas
ou por juízes) e sua relevância na positivação na vigência do direito não podem levar
à interpretação como algo criativo ou causal; o direito resulta de estruturas sistêmicas
que permitem o desenvolvimento de possibilidades e sua redução a uma decisão,
consistindo na atribuição de vigência jurídica a tais decisões”, Sociologia do Direito
II, p. 8, Biblioteca Tempo Universitário 80, Rio de Janeiro, 1985.
CONVIDADOS 187
Paulo Queiroz

Mas esse discurso aí não cessa, porque prossegue por meio dos
processos de definição e reação social, isto é, os processos de criminalização
secundária, que nada mais são do que continuum daquele. É que a rigor a
lei nada prescreve, nada proíbe, nada autoriza ou permite, pois a lei pres-
creve ou não prescreve, proíbe ou não proíbe, autoriza ou não autoriza,
permite ou não permite, o que dizemos que ela proíbe, autoriza ou permite,
de modo que a lei diz o que dizemos que ela diz12.
Explicando melhor: prescreve a lei que o crime de estupro consiste
em “constranger mulher à conjunção carnal, mediante violência ou grave
ameaça” (CP, art. 213); parece óbvio saber em que reside o crime, pois. No
entanto, o que vem a ser “mulher” para efeitos penais? Transexual, por
exemplo, pode ser considerada mulher para fins penais, e, portanto, víti-
ma de estupro? Há algum tempo uma conhecida judoca brasileira foi
impedida de participar de competição por não ser mulher segundo as
regras desportivas: não seria ela então passível de estupro? Práticas sado-
masoquistas podem ser consideradas criminosas? Não faz muito tempo,
autores importantes afirmavam que o marido não podia responder por
crime de estupro contra a esposa, pois, diziam, entre os direitos inerentes
ao casamento estava o de o marido poder dela dispor sexualmente, razão
pela qual não lhe era dado oferecer resistência lícita13. Não bastasse isso,

12
Por isso afirma Lênio Luiz Streck,que, em rigor, não existem julgamentos de acordo
com a lei ou em desacordo com ela, porque o texto normativo não contém imedia-
tamente a norma (Muller), a qual é construída pelo intérprete no decorrer do proces-
so de concretização do direito, de sorte que, quando o juiz profere um julgamento
considerado contrário à lei, na realidade está proferindo um julgamento contra o
que a doutrina e a jurisprudência estabelecem como arbitrário. Conclui, então,
Lênio, que “é necessário ter em conta que o Direito deve ser entendido como uma
prática dos homens que se expressa em um discurso que é mais que palavras, é
também comportamentos, símbolos, conhecimentos, expressados (sempre) na e pela
linguagem. É o que a lei manda, mas também o que os juízes interpretam, os advo-
gados argumentam, as partes declaram, os teóricos produzem, os legisladores
criticam. É, enfim, um discurso constitutivo, uma vez que designa/atribui signifi-
cado a fatos e palavras”, in Hermenêutica jurídica em crise, Porto Alegre: Livraria
do Advogado Editora, 1999, p. 210/211.
13
Assim, Nélson Hungria: “questiona-se sobre se o marido pode ser, ou não, conside-
rado réu no estupro, quando, mediante violência, constrange a esposa à prestação
sexual. A solução justa é no sentido negativo. O estupro pressupõe cópula ilícita
(fora do casamento). A cópula intra matrimonium é recíproco dever dos cônjuges
(...). O marido violentador, salvo excesso inescusável, ficará isento até mesmo da
pena correspondente à violência física em si mesma (excluído o crime de exercício
arbitrário das próprias razões, porque a prestação corpórea não é exigível judicial-
mente), pois é lícita a violência necessária para o exercício regular de um direito”,
Comentários ao Código Penal, p. 125/126, v.VIII, Forense, Rio, 1959. Assim tam-
188 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

o Código equipara a estupro violento o “estupro” com “violência presumi-


da”, isto é, praticado contra menores de catorze anos (CP, art. 22414) ou mu-
lher que padeça de alienação mental, o que significa dizer que muitos “na-
moros” poderão ser interpretados como autênticos estupros (crime hedion-
do).
Tomemos um outro exemplo. A Constituição veda, expressamente,
as “pena de morte” e “cruéis” (CF, art. XLVII15). Mas o que vem a ser pena
de morte ou pena cruel? A resposta não é tão óbvia como parece.
É evidente que haverá pena de morte sempre que um juiz ou um
tribunal proclamar a culpa de um réu e condená-lo criminalmente à pena
capital, seja com um tiro de fuzil, seja por qualquer outro meio. A pena de
morte é, enfim, um homicídio levado a cabo pelo Estado, legalmente. Mas
veja: o art. 303, §2°, da Lei 7.565, de 19 de dezembro de 1986 (Código
Brasileiro de Aeronáutica), alterada pela Lei n° 9.614/98, bem assim o
Decreto n° 5.144, de 16 de julho de 2004, que o regulamentou, previu a
destruição de aeronaves “hostis ou suspeitas de tráfico de substâncias
entorpecentes e drogas afins”. Pergunta-se: não seria isso pena de morte/
cruel por juízo de exceção, constitucionalmente vedada? Apesar disso,
apreciando petição que argüia a inconstitucionalidade da aludida lei, o
Procurador Geral da República, contrariamente, assinalou que “a medida
de destruição não guarda relação com a pena de morte. Aliás, sequer pode
ser considerada uma penalidade, porquanto não se busca, com sua apli-
cação, a expiação por crime cometido. Em realidade constitui, essencial-
mente, medida de segurança, extrema e excepcional, que só reclama apli-
cação na hipótese de ineficácia das medidas coercitivas precedentes. É
importante frisar que tal medida tem por objeto a preservação da seguran-

bém, Magalhães Noronha: “as relações sexuais são pertinentes à vida conjugal,
constituindo direito e dever recíproco dos que casam. O marido tem direito à posse
sexual da mulher, ao qual ela não pode se opor. Casando-se, dormindo sob o
mesmo teto, aceitando a vida em comum, a mulher não se pode furtar ao congresso
sexual, cujo fim mais nobre é o da perpetuação da espécie. A violência por parte do
marido não constituiria, em princípio, crime de estupro, desde que a razão da
esposa para não aceder à união sexual seja mero capricho ou fútil motivo, podendo,
todavia, ele responder por excesso cometido”, Direito Penal, p. 70, V. 3, Saraiva, S.
Paulo, 27ª edição, 2003.
14
Diz o referido art. 224 do Código Penal que “presume-se a violência, se a vítima:
a)não é maior de 14(catorze) anos; b)é alienada mental, e o agente conhecia esta
circunstância; c)não pode, por qualquer outra causa, oferecer resistência”.
15
Diz o artigo: “não haverá penas: a)de morte, salvo no caso de guerra declarada, nos
termos do art. 84, XIX; e)cruéis”.
CONVIDADOS 189
Paulo Queiroz

ça nacional e a defesa do espaço aéreo brasileiro”16. Esse exemplo também


demonstra, claramente, que o direito é, em última análise, realização/ma-
nifestação de poder.
Aliás, a própria pena privativa da liberdade, que consiste, em geral,
no encarceramento do sujeito por anos a fio num ambiente antinatural
(artificial), em espaço físico minúsculo, superlotado, sem salubridade,
areação, privado quase que integralmente de contato com o mundo exteri-
or, não seria, ela mesma, pena cruel?
Ademais, nenhum comportamento é criminoso em si mesmo, tudo
dependendo das reações que desencadeia ou não desencadeia. Assim, se
um pai sabe que um seu filho lhe subtraiu valores, provavelmente não
tomará isso como um fato criminoso (“furto”), por isso não procurará a
polícia, não fará funcionar a máquina estatal; tudo não passará de um
problema de família e resolvido em família17. O próprio Código (CP, art.
181, II) prevê isenção de pena sempre que o crime for praticado contra
“ascendente ou descendente”. Certamente, reações diversas teriam lugar
se, ao invés de um filho, fosse autora do fato a empregada doméstica ou um
estranho. De modo similar, o tráfico ilícito pressupõe que a droga seja “subs-
tância entorpecente ou capaz de produzir dependência física ou psíquica”
(Lei 6.368/76, art. 12), que são as substâncias (ilícitas) assim definidas
pelo Ministério da Saúde, um tanto arbitrariamente, dentro de um universo

16
Processo PGR nº 1.00.000.000836/2005-71, pronunciamento subscrito por Cláudio
Lemos Fonteles, então Procurador Geral da República, datado de 14/03/2005. Na
representação formulada, os autores sustentaram a violação dos seguintes princípi-
os: a)inviolabilidade da vida (art. 5°, caput); b)proibição da pena de morte em tempo
de paz (art. 5°, XLVII, a); c)presunção de inocência (art. 5°, LVII); d)proibição de juízo
ou tribunal de exceção (art. 5°, XXXVII); e)devido processo legal (art. 5°); f)prevalência
dos direitos humanos (art. 4°, II); g)defesa da paz (art. 4°, VI); h)solução pacífica dos
conflitos (art. 4°, VII); i)repúdio ao terrorismo (art. 4°, VII); j)legalidade; l)
proporcionalidade (art. 5°); e m) inviolabilidade da propriedade (art. 5°, caput).
17
Um caso real bem ilustra isso: A foi flagrada por abusar sexualmente de sua filha (B),
de dois anos, e por isso foi presa, processada e condenada a 7 anos e seis meses de
reclusão por crime de atentado violento ao pudor (CP, art. 214), crime hediondo (Lei
8.072/90). O exame criminológico assim a diagnosticou: “personalidade primitiva, com
nível mental baixo e conseqüente imaturidade intelectual e afetiva, que motivam os comporta-
mentos regressivos que emite e que demonstram a dificuldade de adaptação ao meio social.
Evidencia baixo nível de tolerância às frustrações, às quais reage com atitudes oposicionistas e
agressivas, manifestadas através de descargas emocionais intensas, que refletem a dificuldade de
controle sobre os impulsos. Em conseqüência, o processo de Inter-relação social torna-se difícil,
sobretudo quando adota atitudes de supervalorização de si mesmo como uma forma de compen-
sar o sentimento de inferioridade que procura dissimular”. Ora, tivesse essa história se
passado numa família de classe média ou alta e outro seria o desfecho: certamente, a
família submeteria A a tratamento psicológico/psiquiátrico, a sessões de análise ou
semelhante, e, no máximo, lhe tiraria, provisória ou definitivamente, a guarda da
criança (B). Assim, não haveria polícia, nem crime, nem pena, nem prisão; tudo não
passaria de um “problema de família” e resolvido em família.
190 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

vastíssimo de drogas ou substâncias capazes de produzir dependência


física ou psíquica, estando excluídos, por exemplo, tabaco, álcool etc. Mais:
o assédio sexual (CP, art. 216-A), embora praticável por qualquer pessoa
(crime comum), é um típico crime masculino, pois mui raramente um ho-
mem interpreta o assédio feminino como algo ofensivo ou criminoso.
Convém repetir, portanto: o direito é, antes de tudo, relações,
interações, interpretações, decisões.
Naturalmente que o mesmo deve ser dito de todas as demais formas
de ilícito (civil, trabalhista, administrativo), pois não há diferença rele-
vante (ontológica) quanto ao que seja “violação contratual”, “esbulho
possessório”, “justa causa” etc. O direito é um só, e, por conseqüência, a
violação ao direito18 (o ilícito).
O direito não é, por conseguinte, somente o que o legislador diz que
é; é também o que os juízes dizem que é, a partir e segundo múltiplos
discursos de atores sociais múltiplos; é, pois, um discurso, uma prática
(social) discursiva, socialmente construída, variável no tempo e no espa-
ço, mais ou menos previsível e, no caso penal (mas não só nele), arbitrari-
amente seletiva, pois o sistema penal recruta sua clientela, quase sempre,
sobre os grupos mais vulneráveis, notadamente autores de crimes
patrimoniais (furto, roubo, estelionato), típica “criminalidade de rua”,
própria de sujeitos socialmente excluídos.
Por isso que o direito não é apenas o que as normas dizem, mas
também, e principalmente, o que dizemos que as normas dizem; não é só o
dever ser, mas o ser. Tem razão, portanto, Arthur Kaufmann, quando assi-
nala que “só quando a norma e situação de vida, dever e ser, são postos em
relação, em correspondência um com o outro, surge o direito real: o direito
é a correspondência entre o dever e o ser. O direito é uma correspondência, não
tem um caráter substancial, mas sim relacional, o direito no seu todo não é,
portanto, o complexo de artigos da lei, um conjunto de normas, mas sim
um conjunto de relações”19.

18
Como escreve Hungria, na diversidade de tratamento dos fatos antijurídicos, a lei não
obedece a um critério de rigor científico ou fundado numa distinção ontológica entre
tais fatos, mas, simplesmente, a um ponto de vista de conveniência política, variável
no tempo e no espaço, Comentários, v.1., t.2, p. 29.
19
Filosofia do Direito, p. 219, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2004. Diz Del
Vecchio, no entanto, a partir de postulados kantianos, que a noção universal do
direito é anterior à experiência jurídica, aos fenômenos jurídicos singulares, sendo a
experiência apenas a aplicação ou verificação daquela forma. Assim, “uma proposi-
ção só é jurídica na medida em que participar da forma lógica (universal) do Direito.
Fora desta forma, indiferente ao conteúdo, nenhuma experiência jurídica é possível.
Sem ela, falta a qualidade que permite adscrevê-la a esta espécie de experiência. A
forma lógica do Direito é um dado a priori – ou seja, não empírico – e constitui,
precisamente, a condição da experiência jurídica em geral”, in Lições de Filosofia do
Direito, p. 344/345, Coimbra, 1979.
CONVIDADOS 191
Paulo Queiroz

Assim, supor que a lei é o próprio direito seria confundir, v.g., o


mapa com o território, o cardápio com a refeição; seria confundir, enfim,
discurso e realidade, teoria e práxis, dever ser e ser, mesmo porque o direito
constitui uma idéia, um conceito, que reenvia a outros tantos conceitos,
que, à semelhança de compartimentos vazios, tem seus conteúdos preen-
chidos mais ou menos arbitrariamente pelas pessoas e autoridades que
participam da sua construção social.
Exatamente por isso, editar uma legislação democrática ou laica
não significa, necessariamente, adotar um direito democrático ou laico,
sob pena de se confundir discurso e prática, teoria e práxis. É que o direito,
uma prática social discursiva, não é só o que as leis dizem, mas, sobretudo,
o que dizemos que as leis dizem, ou seja, o direito não é fato, mas interpre-
tação, de sorte que, em última análise, o direito não está nos fatos ou nas
normas, mas na cabeça das pessoas, motivo pelo qual, com ou sem altera-
ção dos textos legais, está em permanente transformação.
Aliás, mesmo no âmbito jurídico-penal, ramo do direito em que a
dogmática parece ter atingido maior nível de sofisticação, o recurso às
categorias da tipicidade, ilicitude e culpabilidade não é capaz de desmen-
tir o que se vem de afirmar. É que, se sob o aspecto material, o delito não
existe, segue-se, logicamente, que também o seu conceito formal ou analíti-
co – crime como fato típico, ilícito e culpável – é socialmente construído, de
sorte que uma dada conduta será criminosa somente quando dissermos
(aceitarmos) que é, um vez que tais categorias remetem a conceitos os mais
variados: dolo, culpa, significância/insginificância, causalidade, legíti-
ma/ilegítima defesa, estado de necessidade/desnecessidade, coação físi-
ca/moral/resistível/irresistível, obediência hierárquica, erro de proibição
vencível/invencível, embriaguez voluntária/involuntária etc., os quais
reenviam, por sua vez, a uma infinidade de conceitos outros, como vida,
honra, patrimônio, agressão justa/injusta, intenção, previsão, consciência/
inconsciência, boa/má-fé, prova lícita/ilícita, exigível/inexigível, valores,
princípios etc. Não bastasse isso, o manuseio de tais conceitos se faz, não
raro, de modo francamente arbitrário, como sói ocorrer, por exemplo, nos
julgamentos pelo Tribunal do Júri, formado que é por leigos. De um certo
modo, portanto, o direito não passa de uma constelação de metáforas20.

20
Como disse Nietzsche, se houvesse uma escola para legisladores, seria importante
ensinar que palavras como lei, direito, dever, propriedade e crime constituem em si
mesmas uma abstração sem valor e à espera de conteúdo, cor e significado de
acordo com as circunstâncias particulares que as incrementam, in a minha irmã e
eu. Editora Moraes: S. Paulo, 1992, p. 42/43. Convém advertir que se trata de um
texto um tanto apócrifo, cuja autoria atribuída a Nietzsche não foi reconhecida por
Walter Kaufmann, um de seus maiores estudiosos.
192 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

Releva notar, finalmente, que o conceito de direito, como de resto


todo conceito, nada diz sobre o seu conteúdo, isto é, nada diz sobre as
múltiplas formas que ele pode histórica e concretamente assumir, até por-
que todo conceito expressa em última análise uma previsão sobre o futuro
a partir de uma experiência passada, a demonstrar que definir algo é de um
certo modo legislar sobre o desconhecido, afinal, todo conceito é sempre
um modo de apreensão formal da realidade; diz respeito às formas, e não
aos conteúdos que pode assumir, os quais são variáveis no tempo e no
espaço. Numa palavra: o conceito não é a própria coisa conceituada, mas
sua representação abstrata, até porque toda forma de conhecimento é sem-
pre uma forma de simplificação da realidade, uma apreensão sempre par-
cial do mundo e, pois, finita, dentro de um universo de representações
possíveis. Talvez se possa dizer inclusive, à maneira de Nietzsche, que “o
homem supõe possuir a verdade, mas o que faz é produzir metáforas que
de modo algum correspondem ao real: são transposições, substituições,
figurações”21.
É que todo conceito, por mais elaborado, tem, dentre outros, os se-
guintes limites, inevitavelmente: 1)outros conceitos, mais ou menos exa-
tos, mais ou menos amplos, são igualmente possíveis; 2)todo conceito re-
mete a outros conceitos, que remetem a experiências; 3)todo conceito, que
é socialmente construído, só é compreensivo num espaço e tempo determi-
nados, motivo pelo qual está em permanente mutação, ainda quando seus
termos não são alterados; 4)todo conceito pretende valer para o futuro,
mas é pensando e construído a partir de experiências passadas; 5)todo
conceito, como expressão da linguagem, é estruturalmente aberto; 6)todo
conceito é uma classificação e, portanto, uma simplificação, uma redução;
7)todo conceito está condicionado por pré-conceitos ou pré-juízos; 8)todo
conceito é uma convenção.
Em conclusão, podemos afirmar, com Günter Abel, que não é mais
a interpretação que depende da verdade (leia-se o direito), mas justamente
o contrário, que a verdade depende da interpretação, pois nos processos
de interpretação não se trata, primariamente, de descobrir uma verdade
preexistente e pronta (leia-se um direito preexistente e pronto), uma vez
que não é possível pensar que haja um mundo pré-fabricado e um sentido
prévio que simplesmente estejam à nossa disposição aguardando por sua
representação e espelhamento em nossa consciência22.

21
Roberto Machado. Nietzsche e a verdade. S.Paulo: graal, 2ª edição, 2002.
22
Verdade e intepretação, in Nietzsche na Alemanha, org. Scarlett Merton, discurso
editorial, S. Paulo, 2005, p. 179/199.
CONVIDADOS 193
Pedro Milton de Brito

JUDICIÁRIO: ALGUMAS REFLEXÕES

Pedro Milton de Brito


Advogado, ex-presidente da Ordem dos Advo-
gados do Brasil, Seção da Bahia e Conselheiro
Federal.

Entre os temas que, na atualidade, mais esquentam os debates da


imprensa e do Parlamento, se sobressaem as questões que dizem respeito
ao Poder Judiciário, e isso se deve sobretudo à criação e instalação da
Comissão Parlamentar de Inquérito, no Senado, e à retomada, na Câmara
dos Deputados, da discussão sobre a sua reforma, que vem de longe.
A CPI do Senado, apesar de sua, no mínimo, duvidosa
constitucionalidade – tanto assim que encontra vedação no seu próprio
Regimento Interno -, teve a virtude, não obstante isso, de chamar a atenção
para as mazelas que grassam nesse ramo do poder público e, em conseqü-
ência, para a imperiosa necessidade de sua reforma, sobre o que, em prin-
cípio, não há controvérsia. Mas, a despeito disso, as divergências existem,
e muitas, quando se trata de saber o quê, como e até onde introduzir alte-
rações. Idéias circulam ao gosto de qualquer um: algumas manifestamen-
te estaparfúdias, outras sensatas, algumas inexeqüíveis, outras ao menos
inconvenientes, diante dos problemas culturais e políticos que o País ain-
da não conseguiu superar.
A discussão parece continuar a girar essencialmente em torno dos
problemas da cúpula e não das bases do Poder Judiciário, onde eles são
mais graves, pois as causas da maioria dos que buscam ou poderiam
buscar a prestação jurisdicional nem em sonho chegarão aos tribunais
superiores em Brasília. Apesar da preocupação com a instituição e o forta-
lecimento de juizados de pequenas causas e especiais, isso só não bastará,
desde quando o importante é que a justiça, tradicional ou não, possa res-
ponder à demanda dos que lhe batem às portas, tornando-se indispensá-
vel, para tanto, que existam ou se criem tantos juízes, juizados ou tribu-
nais que se tornem necessários, dotados de condições materiais e huma-
nas, para assegurar a prestação jurisdicional de modo eficaz, em prazo
razoável. Aliás, ao contrário do que muitos sustentam, os prazos e os
recursos previstos na legislação vigente, salvo os privilégios concedidos à
Fazenda Pública, são razoáveis, desde quando o que não há é disposição
194 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

ou condições materiais de cumpri-los: se cumpridos, rigorosamente, em


todas as instâncias, não pesaria sobre o Poder Judiciário a pecha mais
grave que lhe é imputada, a de ser excessivamente lento. Aqui, entram a
questão do número de juízes por habitantes, com adequada formação moral
e intelectual, e a do volume atual e potencial da demanda de natureza
jurisdicional.
Mas, como a discussão se desenvolve mesmo, com maior largueza,
em torno dos problemas das cúpulas, não seria demasiado tecer algumas
ligeiras considerações a respeito, a começar pelo chamado quinto consti-
tucional, que deveria ser extinto, porque quem tem vocação ou deseja ser
juiz deve se submeter a concurso público, de provas e títulos, para ingres-
sar na carreira em condições de igualdade com os demais que também
façam essa escolha.
A Constituição de 1934 (art. 104, parágrafo 6º) previu o quinto a
partir da presunção de que a participação de advogados e de membros do
Ministério Público nos tribunais lhes permitiria tirar proveito da experi-
ência da atuação de profissionais de áreas diversas. Justificativas podem
existir e até razoáveis, mas a verdade é que aquela presunção não resistiu
à prática. Primeiro, porque o quinto constitui minoria inexpressiva, de
modo que não pode influir na orientação da cortes, salvo na hipótese de
algum de seus integrantes assumir liderança notável, mas seria outra his-
tória. Além disso, o ingresso na magistratura, por essa forma, salvo as
exceções de praxe, fica na dependência das boas graças que o candidato
consiga conquistar, por alguma razão, junto ao poder público dominante
ou junto às parcialidades dominantes que se também formam nos própri-
os tribunais, razão porque, logo, logo, muitos parecem esquecer que foram
advogados ou procuradores de Justiça. Se é aquela a experiência que se
quer, melhor será que se condicione o ingresso na magistratura à militância
efetiva na advocacia ou no Ministério Público, durante cinco ou até dez
anos, no mínimo.
A questão do acesso aos tribunais, pelo menos aos de segunda ins-
tância, é outro tema que merece reflexão. Hoje, esse acesso se dá por anti-
güidade e por merecimento. A promoção, ou acesso, por merecimento, não
premia, muitas vezes, os que realmente merecem, pois constitui um prê-
mio, não raro, que não se conquista, mas que é outorgado pelo poder do-
minante, dentro ou fora dos tribunais. A solução mais conveniente, talvez,
seja o concurso público, de provas e títulos para o acesso, tal como ocorre,
atualmente, no magistério superior: o candidato ingressa na carreira me-
diante concurso público, como professor assistente e progride até profes-
sor adjunto IV. Se deseja alcançar o último estágio – o de professor titular,
CONVIDADOS 195
Pedro Milton de Brito

antigo catedrático -, há de submeter-se a novo concurso. Quais as vanta-


gens? Aquele que desejasse alcançar o topo da carreira na magistratura
haveria de se manter atualizado, para se submeter a concurso público
rigoroso e, por isso, não deveria a sua promoção, ou acesso, a ninguém,
senão ao próprio mérito, tendo condições, assim, de melhor preservar a
sua independência. Esse concurso teria o prazo de validade de dois anos,
prorrogável por outros dois, abertos a juiz de qualquer entrância ou ins-
tância, com mais de dez anos de judicatura e a nomeação obedeceria à
ordem de classificação. Não haveria promoção por antigüidade. Aliás
assim já foi, p. ex., na Bahia, durante a República Velha, por força da
Constituição estadual de 2 de julho de 1891 (art. 67) e das várias leis de
organização judiciária promulgadas naquele período (Lei nº 15, de 1982,
art. 40; Lei nº 94, de 1895, art. 61; Lei nº 636, de 1906, art. 3º; Lei nº 1.119, de
1915, art. 93, art. 104 e art. 117).
Esse concurso, para evitar ou minimizar qualquer risco de proteci-
onismo, seria realizado por bancas constituídas, majoritariamente, por
docente de universidades de outros Estados.
Não parece sensata, entre as idéias que circulam, a extinção da
Justiça do Trabalho, ou a sua incorporação à Justiça Federal comum. Afi-
nal, a Justiça do Trabalho é, ainda, um dos ramos mais atuantes do Poder
Judiciário, de modo que merece correções, como a extinção dos juízes
classistas, a redução do número dos tribunais regionais, sem que se obste
a possibilidade de criação de novos no futuro, mas nada justifica a sua
extinção.
A Súmula vinculante também não se afigura ideal, pois fere a inde-
pendência jurídica do magistrado. A proposta da Ordem dos Advogados,
que prevê a súmula impeditiva de recursos, concilia melhor os interesses
e os princípios em causa: decidindo o juiz de acordo com a súmula, não
caberia qualquer recurso; se vier a decidir contra, caberá.
A avocatória, por força da qual os tribunais superiores podem levar
a seu julgamento qualquer ação em curso nas instâncias inferiores, ainda
não decididas ou submetidas a recurso, lembra o famoso pacote de abril
(1977) e viola o princípio do juiz natural, só favorecendo os poderosos.
Por igual, a argüição de relevância, também já experimentada aqui, tendo
a mesma origem da avocatória, transformará o Supremo Tribunal Federal
e o Superior Tribunal de Justiça em órgãos que consumarão a maior parte
do seu tempo em decidir se julgam, ou não, a causa, quando o ideal é que
julguem todas as que lhes cheguem, sem estabelecer discriminação de
qualquer ordem. Aqueles que sustentam o restabelecimento desse meca-
nismo – que, enquanto prevaleceu entre nós (1977 a 1988), se revelou inú-
196 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

til – se esquecem de que a solução adotada pela Suprema Corte dos Esta-
dos Unidos, onde o direito material e o direito processual são predomi-
nantemente estaduais, e não federais, não ode ser aplicada aqui, onde se
dá o inverso, de modo que há necessidade de tribunais nacionais para
uniformizar a aplicação do direito, sob pena de, sendo único na sua ori-
gem, tornar-se diverso em cada Estado. Afinal, os tribunais devem existir
pra julgar e não para dizer que não julgam, porque, se assim for, melhor
será extingui-los, pura e simplesmente.
Tema polêmico ainda é o relativo, não à criação do Conselho Naci-
onal da Magistratura – que se tornou mais ou menos pacífico -, mas quan-
to à sua composição, no qual não deve haver qualquer influência de or-
dem política, como a eleição da maioria de seus membros pelo Congresso
Nacional, da mesma forma que se afigura absurdo se pensar em impeachment
de juízes, sobretudo nos Estados politicamente mais atrasados, onde o
mandonismo que neles impera não admite a contrariedade de seus inte-
resses.
Mas de qualquer sorte, é importante acreditar no aperfeiçoamento
das instituições judiciárias, cujas deformações muito têm a ver, na prática,
com as deficiências da formação política, social e econômica do País que
se encontra ainda em estágio insatisfatório.
CONVIDADOS 197
Teresa Arruda Alvim Wambier

ANOTAÇÕES SOBRE PRINCÍPIO DO


CONTRADITÓRIO COMO UM DOS FUNDAMENTOS
DO PROCESSO CIVIL CONTEMPORÂNEO

Teresa Arruda Alvim Wambier


Mestre, Doutora e Livre-Docente em Direito pela
PUC-SP. Professora nos cursos de graduação,
especialização, mestrado e doutorado da PUC-
SP. Membro da diretoria do IBDP. Advogada.

O tema defesa/princípio do contraditório foi escolhido proposita-


damente em virtude de duas razões: a primeira é que este princípio vem,
nos últimos tempos, assumindo feições diferentes, extremamente interes-
santes. A segunda é a de que, em nome de uma espécie de obsessão pela
celeridade, muito perigosa quando é capaz de comprometer garantias e
princípio simbólicos de conquistas da civilização, o princípio do contra-
ditório vem sendo disfarçadamente desrespeitado, sob pretextos talvez
não muito legítimos.
Por isso é que me pareceu bastante oportuno lançar bases para
algumas reflexões em torno do assunto.
Vale a pena a inclusão, aqui, de algumas brevíssimas reflexões so-
bre o que seriam os tais fundamentos (e princípios fundamentais) do pro-
cesso.
A noção de fundamento supõe a idéia de sistema. De fato, um con-
junto de regras, dentre as quais certas podem ser reconhecidas como fun-
damentais, pretende, pelo menos em princípio, ser um sistema.
Saber se o direito é um sistema e, portanto, se o processo pode ser
considerado um subsistema (no sentido de ser um sistema menor, dentro
de um maior que o abrange) nos remete à indagação filosófica que consiste
em saber se somos nós que impomos a forma sistemática ao direito ou se
o direito é um sistema, em si mesmo.
Penso que, embora isso possa soar como surpreendente, a ambas
estas indagações deve-se responder positivamente.
Foi publicada na Folha de São Paulo uma entrevista com o regente
italiano Ricardo Muti, em que este, com extrema sensibilidade, fala sobre
como é reger uma orquestra, com base em regras objetivas, que não podem
ser deixadas de lado e com base em outras, que envolvem doses de subjeti-
198 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

vidade, consistindo, todas elas, em comandos para a orquestra. Fala tam-


bém de sua percepção final, no sentido de que foi a orquestra que o ensi-
nou a reger.
É como se existisse uma certa interação entre realidade e pensa-
mento.
E, mais filosoficamente, isto equivale a se saber se as coisas são o
que são, ou se o são, porque nós entendemos que o sejam.
Mas o fato é que o processo tem fundamentos: regras e institutos
mais importantes que os outros; de que, por assim dizer, todo o resto do
sistema deriva. E isto, se se considerar que o processo é um sistema. Mas
também se se considerar que o direito, mesmo não sendo um sistema, é
uma criação humana, um produto cultural, que vem acompanhando o
homem na sua evolução histórica. Durante esta trajetória, estes funda-
mentos vêm-se revelando como efetivamente relevantes para cristalização
(fixação) de conquistas civilizatórias de que não se quer abrir mão e, por
isso, vêm se tornando razoavelmente constantes.
Parece que se pode fazer referência a três institutos fundamentais
do processo civil: jurisdição, ação e defesa.
Institutos são unidades sistemáticas, que se compõem de uma figu-
ra e de sua disciplina jurídica. Institutos fundamentais são grandes cate-
gorias jurídicas, a que todas as outras estão ligadas, pois têm tal grau de
generalização que se tem a impressão de que, antes deles, nada há.
Desempenhando papel de base do sistema processual, há também
alguns princípios. Alguns, têm os contornos já bem delineados, e geram
uma espécie de apego por parte da comunidade jurídica, por já terem sido
testados ao longo do tempo; outros são apenas contingenciais, e estão
conquistando seu espaço e ganhando solidez.
Oportuno observar-se que os institutos fundamentais do processo
correspondem à imagem do triângulo que vem representando, ao longo do
tempo, a relação processual: petição inicial (ação), jurisdição, defesa (cita-
ção). Há quem inclua, nestes fundamentos, o próprio processo, em si mes-
mo considerado.
Ação, jurisdição, defesa e processo podem conceitualmente ser iso-
lados, para serem estudados, mas na EXPERIÊNCIA JURÍDICA se encon-
tram indissociavelmente ligados.
Tudo que antes se disse se aplica perfeitamente à defesa e ao princí-
pio do contraditório.
A análise deste fundamento e deste princípio não será feita de for-
ma exclusivamente abstrata, mas sempre com referência ao sistema positi-
vo vigente, em que muitas vezes este fundamento se revela com nitidez em
CONVIDADOS 199
Teresa Arruda Alvim Wambier

seu papel de fundamento. Imprescindível menção e crítica de algumas


alterações do CPC.
A partir a relevância que, na minha opinião, se deve atribuir a fun-
damentos (e princípios fundamentais) do processo, pretendo sugerir in-
terpretações que me parecem as mais adequadas, tendo em vista a necessi-
dade de harmonia que existe, se se supõe o direito (e o processo) como um
sistema, em que o tom é dado justamente pelos fundamentos.
A defesa em si mesma – ao lado da Ação, da Jurisdição e do Proces-
so – tem sido considerada um dos fundamentos do processo civil contem-
porâneo, como se observou antes.
O princípio do contraditório, versão processual do principio cons-
titucional da ampla defesa, está por detrás da idéia de que há necessidade
de que o réu tenha oportunidade de manifestar-se, defendendo-se.
Mas o princípio do contraditório, com certeza, pode ser visto hoje
também sob outra dimensão. A doutrina vem afirmando que o juiz tam-
bém participa do contraditório. Como se dá exatamente esta participação?
O processo pode ser visto como método para o correto exercício do
poder.
O contraditório, necessidade umbilicalmente ligada ao Estado de
direito, ganha relevância neste contexto.
Habitualmente, liga-se a idéia de contraditório à oportunidade que
DEVE NECESSARIAMENTE SER CONFERIDA ÀS PARTES para que es-
tas peçam, façam alegações e produzam provas ligadas ao direito que
afirmam ter. Assim, para que se entenda ter sido respeitado o contraditó-
rio num processo, numa visão mais tradicional, basta que às partes te-
nham sido dadas estas chances ou oportunidades, ainda que não tenham
sido utilizadas.
É oportuno mencionar-se aqui posição predominante da doutrina,
com ressonância na jurisprudência, no sentido de que não se forma coisa
julgada, sendo, portanto prescindível a ação rescisória, quando há sen-
tença de mérito, proferida apesar de não ter havido citação ou de ter havi-
do citação nula, situações estas a que se deve somar a revelia (pois que o
comparecimento do réu terá sanado o vício).
Inegavelmente, dispensar a parte do uso da ação rescisória neste
caso é extremamente significativo da importância que se dá ao contraditó-
rio.
É relevantíssimo observar-se a existência de atual tendência de se
considerar necessário o estabelecimento de contraditório anterior à deci-
são, mesmo que se esteja diante de matéria de ordem pública. Basta ter-
se presente o art. 243 do CPC ,dispositivo segundo o qual quando o réu
200 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

alega preliminares, o autor deve ter a oportunidade de se manifestar, an-


tes de o juiz extinguir o processo sem julgar o mérito. As preliminares são
quase todas matéria de ordem pública.
Recentemente, rompendo-se com antiqüíssima tradição, a lei criou
a possibilidade de que o juiz conheça de ofício da prescrição. É necessário,
porém, que se frise com veemência que, antes de a decretar, deva dar o juiz
oportunidade ao réu de se manifestar para que, se quiser, renuncie (art.
191 do CC).
Também recentemente o legislador da reforma incluiu no CPC o art.
285 A. Este dispositivo, em meu sentir, além de não ser capaz, por si só, de
gerar os efeitos desejados, no que diz respeito à agilização dos feitos, ain-
da traz consigo uma série de problemas. Um deles é dispensar,
indevidamente, o contraditório.
O dispositivo legal ora analisado, inserido pela Lei 11.277/2006,
permite ao juiz proferir sentença de improcedência, independentemente
de citação do réu, nos casos em que a controvérsia diga respeito a questão
de direito, quando o mesmo juízo já houver proferido sentença de “total
improcedência” em outros “casos idênticos”. Trata-se de fórmula que pre-
tende “racionalizar” o “julgamento de processos repetitivos”, consoante
consta da exposição de motivos do projeto que deu origem à referida lei.
Impõe-se, aqui, observar que o novo art. 285-A é uma demonstração
eloqüente e lamentável da tentativa de resolver os grandes problemas es-
truturais do País (inclusive do processo) pela via da negativa de fruição de
garantias constitucionais. Diz esse dispositivo que poderá o juiz, na hipóte-
se de se tratar de matéria exclusivamente de direito e de já existir, no juízo,
julgamentos de casos idênticos, no mesmo sentido, prolatar sentença de
improcedência, sem a citação do réu, que somente será citado na hipótese
de retratação ou para manifestar-se no recurso de apelação interposto
pelo autor.
Parece que essa iniciativa tenderia a desafogar o juízo de primeiro
grau, evitando o contraditório, que se daria através da citação, e a sobre-
carga de trabalho, portanto. Parece não se ter pensado em que o Tribunal
certamente será sobrecarregado com apelações, e terá que cumprir, de certo
modo, papel de juízo de primeiro grau, na hipótese de o réu oferecer suas
contra-razões.
Trata-se de mecanismo “análogo” ao julgamento antecipado da
lide, com imensas desvantagens em relação a este, que proporciona pleno
contraditório. Certamente nenhuma diferença expressiva, até porque a
única “fase” que se estará evitando será a da citação seguida da apresen-
tação de contestação. Ora, se se trata de matéria de direito, logo após o
CONVIDADOS 201
Teresa Arruda Alvim Wambier

eventual exercício do direito de defesa, pelo réu, ou, ainda, na hipótese de


revelia, pode o magistrado (pela via do julgamento antecipado) proferir
sentença, sem qualquer atropelo e sem qualquer fissura no conjunto de
garantias processuais constitucionais.
O art. 285 - A traz nova hipótese de indeferimento da petição inicial,
que, a exemplo do que ocorre no caso do art. 295, IV (c/c art. 269, IV),
constituirá sentença de mérito, por reconhecer a improcedência do pedido
(art. 269, I). Poderia a Lei 11.277/2006, assim, ter simplesmente inserido
novo inciso no art. 295, caput, com conteúdo equivalente ao do art. 285-A.
O legislador, no entanto, agiu diferentemente e, como se verá adiante, tra-
tou de maneira diversa também o modo como pode se manifestar o réu,
caso haja apelação do autor, já que o art. 296 do CPC é inaplicável ao art.
285-A.
Nas demais hipóteses de indeferimento da petição inicial previstas
no Código (art. 295), havendo apelação, poderá o juiz retratar-se em qua-
renta e oito horas, e, não o fazendo, mandará remeter os autos ao tribunal,
não havendo citação do réu para acompanhar o recurso (art. 296). Dife-
rentemente, indeferida a petição inicial no caso previsto no art. 285-A,
havendo apelação, poderá o juiz reformar sua decisão no prazo de cinco
dias (§ 1.º do art. 285-A). Mantida a sentença, deverá o réu ser citado para
apresentar resposta ao recurso (art. 285-A, § 2.º).
O indeferimento da petição inicial ex vi do art. 285-A consubstancia-
se em sentença de mérito, já que, no caso, o pedido será julgado improce-
dente (art. 269, I). Quanto a este aspecto, a hipótese do art. 285-A assemelha-
se à prevista no art. 295, IV, c/c 269, IV, em que também há sentença de
mérito, quando o juiz rejeitar o pedido do autor em razão da prescrição ou
da decadência (cf., a respeito, comentários ao art. 219, § 5.º, supra).
Embora inexista previsão legal expressa neste sentido, entendemos
que se deve aplicar, à hipótese regulada no art. 285-A, o disposto no art.
219, § 6.º, do CPC, segundo o qual, indeferida a petição inicial em razão do
reconhecimento da prescrição ou da decadência, “passada em julgado a
sentença [...], o escrivão comunicará ao réu o resultado do julgamento”.
Assim, rejeitada a ação por força do art. 285-A, e não tendo o autor apela-
do contra tal sentença, deverá o réu ser cientificado da existência da ação,
aplicando-se analogicamente à hipótese o disposto no art. 219, § 6.º, do
CPC.
É necessário que se tenha em vista a tendência que há no
ordenamento jurídico brasileiro no sentido de uniformizar o entendimen-
to jurisprudencial acerca de teses jurídicas. O dispositivo legal em ques-
tão deve ser interpretado em consonância com a recente Reforma Consti-
202 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

tucional, que inseriu no ordenamento jurídico brasileiro o instituto da


súmula vinculante (CF, art. 103-A). O preceito legal em questão – se interpre-
tado literal e assistematicamente, sem se levar em conta as outras normas
jurídicas existentes no sistema processual – conduziria ao entendimento
de que o juiz de primeiro grau, ainda que determinada questão de direito
não tenha sido objeto de súmula de tribunal – vinculante ou não –, ou
sequer de jurisprudência pacífica ou dominante (expressão utilizada no
art. 557 do CPC), copie a sentença proferida em “casos idênticos”, julgados
anteriormente pelo mesmo juízo.
De fato, não há, textualmente, na referida norma, sequer a exigência de
que o entendimento adotado na sentença copiada tenha sido confirmado por órgão
recursal que seja superior àquele que proferiu a sentença. Contenta-se o novo
art. 285-A, tão-somente, com que anteriormente “tenha sido proferida sen-
tença de total improcedência em outros casos idênticos”. Mas tal disposi-
tivo não deve ser interpretado isoladamente, literalmente.
Entendemos que esta interpretação literal e isolada, dissociada das
outras normas jurídico-processuais relativas ao tema, deve ser afastada.
Uma orientação que permitisse, pura e simplesmente, a reiteração de “ju-
risprudência do próprio juízo”, ainda que contrária à orientação fixada
em Tribunais Superiores, segundo pensamos, não se coaduna com os va-
lores que justificam a adoção do sistema de súmulas vinculantes em um
sistema jurídico: segurança e previsibilidade.
Desse modo, o novo art. 285-A deve ser interpretado sistematica-
mente, em sintonia com outras regras e princípios jurídico-processuais
relacionados à formação, revisão e estabilização das decisões judiciais.
O sistema jurídico-processual mostra evidente preferência pelos
entendimentos sumulados ou, até mesmo, adotados por jurisprudência
dominante (v., p.ex., CF, art. 103-A, e CPC, art. 120, parágrafo único, art.
518, § 1.º, na redação da Lei 11.276/2006, e art. 557). Naturalmente, busca-
se, com isso, a confluência dos entendimentos jurisprudenciais para um
só, que seja considerado “ótimo”, isto é, o melhor, ou mais aprimorado,
dentre os vários modos de solucionar um mesmo problema jurídico. É
inegável que, quanto mais intensa a controvérsia jurisprudencial existen-
te acerca de uma questão jurídica, maior também será, proporcionalmen-
te, a quantidade de recursos interpostos pelas partes a respeito do tema.
O exame deste conjunto de normas permite extrair um princípio
jurídico fundamental, que permeia todo o direito processual civil: o de que
devem ser observadas, nas decisões proferidas pelos órgãos jurisdicionais,
as orientações traçadas pela jurisprudência firmada pelas instâncias hie-
rarquicamente superiores – em especial o Supremo Tribunal Federal e o
CONVIDADOS 203
Teresa Arruda Alvim Wambier

Superior Tribunal de Justiça, que existem para determinar a inteligência


das normas constitucionais e federais infra-constitucionais, respectiva-
mente.
Diante deste princípio, ao ponderar sobre a possível incidência do
art. 285-A, deve o juiz optar por evitar a reprodução de sentenças que
adotem orientação contrária àquela exarada por órgão jurisdicional hie-
rarquicamente superior, em especial pelo STF e pelo STJ. Entendimento
diverso implicaria permitir que preponderasse a “jurisprudência” firma-
da por um único juízo, em detrimento daquela oriunda dos tribunais que
lhe são superiores, o que contrariaria o princípio referido acima.
Não bastasse, caso o juiz de primeiro grau, fazendo uso do disposto no art.
285-A, proferisse sentenças que correspondessem apenas ao seu entendimento
pessoal, ainda que este fosse isolado e contrário ao dominante em tribunal que lhe
seja hierarquicamente superior, estaria a contrariar a intenção de “racionalizar”
o “julgamento de processos repetitivos”, manifestada na exposição de
motivos do projeto que resultou na Lei 11.277/2006, já que uma sentença
assim proferida, justamente por divergir de orientação jurisprudencial dominan-
te ou sumulada, inevitavelmente será objeto de apelação.
A coincidência entre a orientação adotada pelo juízo de primeiro
grau e o entendimento manifestado por tribunal que lhe seja hierarquica-
mente superior é, assim, pressuposto fundamental para a incidência do
art. 285-A.
Não bastará, por outro lado, que no juízo tenha sido proferida ape-
nas uma sentença de improcedência, sobre caso que posteriormente ve-
nha a repetir-se. Exige a lei, textualmente, que, para aplicar-se o disposto
no art. 285-A, deverão ter sido julgados “outros casos idênticos”. Assim,
deve ter havido ao menos duas ou mais decisões de improcedência sobre
o “caso idêntico”. Estabelece a norma em questão, ainda, que a sentença
de improcedência a ser reproduzida deve ter sido exarada “no juízo”.
Significa dizer que não poderá o juiz copiar sentença proferida em outro
juízo (de outra vara ou de outra comarca).
Questão tormentosa, a merecer cuidadosa consideração, diz respei-
to ao que se deve entender por “casos idênticos”. Certamente o legislador
não quis se referir a “ações idênticas”, cuja definição legal se encontra no
art. 301, § 2.º, do CPC, segundo o qual são idênticas as ações que têm as
mesmas partes, a mesma causa de pedir e o mesmo pedido. Fosse esta a
hipótese, haveria o juiz de rejeitar a segunda ação em razão da
litispendência ou da coisa julgada (art. 301, V e VI, §§ 1.º e 3.º), extinguin-
do o segundo processo sem resolução do mérito (art. 267, V).
204 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

“Casos idênticos”, assim, não equivalem a “ações idênticas”. Reve-


la-se, aí, que o legislador não foi cauteloso, quanto ao uso adequado de
expressões técnico-processuais que já têm significado jurídico preciso,
com conseqüências igualmente predeterminadas pela norma jurídica.
O legislador que, de fato, não foi cuidadoso, menciona “matéria
controvertida”, quando, rigorosamente, não terá havido controvérsia, que
o dispositivo dispensa a citação.
Para se extrair algum rendimento da referida norma jurídica, por
“casos idênticos” haver-se-á de entender aqueles em que se repitam exata
e precisamente as mesmas circunstâncias fáticas e jurídicas, que em nada
se difiram numa e noutra ação.
Vê-se, portanto, que a aplicação do art. 285-A deverá ser realizada
de modo extremamente comedido, apenas em casos em que, evidentemen-
te, de sua aplicação decorram conseqüências vantajosas, não só para os
juízes de primeiro grau e dos tribunais, mas, especialmente, para o
jurisdicionado. Não sendo assim, a aplicação do art. 285-A poderá resul-
tar em manifesto desperdício de tempo e de atividade jurisdicional, o que
estaria em descompasso com a garantia constitucional de duração razoá-
vel e celeridade da tramitação do processo (CF, art. 5.º, LXXVIII, inserido
pela EC 45/2004).
Note-se, ademais, que, imediatamente após a apresentação de res-
posta pelo réu, poderá o juiz, versando a causa apenas sobre matéria de
direito, proferir sentença julgando antecipadamente a lide (CPC, art. 330,
I), emitindo uma sentença mais amadurecida sobre o caso, e, por isso mes-
mo, com maior probabilidade de ser mantida, se contra ela houver recur-
so.
Conforme dissemos antes, ao contraditório, todavia, contemporanea-
mente, a doutrina tem atribuído uma outra dimensão, decorrente da ne-
cessidade de que o efetivo diálogo havido entre as partes SE REFLITA na
motivação da decisão.
De fato, careceria de sentido se afirmar que as partes têm direito a
exercer o contraditório, mas que inexiste a contrapartida de o juiz ter que
se manifestar sobre as provas produzidas e sobre os argumentos deduzi-
dos por aquelas.
Esta é a “participação” do juiz no contraditório: encampar, na mo-
tivação da decisão, os argumentos deduzidos e os fatos comprovados pe-
las partes. Seja acolhendo-os, seja rejeitando-os.
O juiz não pode simplesmente “escolher” as questões sobre as quais
quer manifestar-se.
CONVIDADOS 205
Teresa Arruda Alvim Wambier

O fato de o juiz se manifestar expressamente sobre o material fruto


do exercício do direito ao contraditório é a garantia que as partes têm de
que participaram do convencimento do juiz. A contraposição gerada, no
mais das vezes, pelo exercício do contraditório só ganha sentido e razão
de ser quando submetida à apreciação de um terceiro imparcial, pois que
na tensão do contraditório se terão desincumbido as partes de persuadir o
magistrado.
Temos sustentado que a lei dispensa o juiz de primeiro grau, quan-
do sentencia, de examinar toda a argumentação deduzida e todos os fatos
comprovados pelas partes, em virtude das regras constantes do art. 515§
1º e 2º.
Os dispositivos de lei acima referidos significam que o recurso de
apelação tem devolutividade ampla e que, por isso, mesmo os elementos a
que o juiz não se referiu expressamente na sentença, poderão ser analisa-
dos e levados em conta pelo Tribunal, ao decidir.
Estas regras dos §§ 1º e 2º do art. 515 não existem para os recursos
excepcionais que, ao contrário, têm o âmbito de devolutividade extrema-
mente restrito. O efeito devolutivo da interposição dos recursos excepcio-
nais carece de profundidade: assim, só se devolve ao Tribunal o que
consta da decisão de que se recorreu na exata e precisa medida em que
tenha sido impugnado pelo recorrente.
Não havendo dispositivo legal criando o regime de devolutividade
ampla dos arts. 515§§ 1 e 2, o dever de motivar as decisões, quando se
tratar de decisão de 2º grau, abrange o dever de analisar INCLUSIVE
ELEMENTOS QUE NÃO TENHAM SIDO LEVADOS EM CONTA
PARA A DECISÃO.
Devem integrar a motivação das decisões as RAZÕES em virtude
das quais argumentos deduzidos ou fatos comprovados (QUE LEVARI-
AM A UMA DECISÃO DIFERENTE DA QUE FOI PROFERIDA) não foram
levados em conta.
A omissão de fatos e/ou de argumentos deste tipo na decisão pode
levar à não admissibilidade e ao não provimento do recurso especial ou
do recurso extraordinário.
Estas reflexões nos levaram a concluir que o dever de motivar a
decisão, quando se trata de decisão sujeita a recurso ordinário (de
devolutividade ampla) não tem dimensões exatamente coincidentes com
o dever de motivar acórdãos (em princípio, sujeitos a recursos extraordi-
nários, de devolutividade restrita). Assim, porque o Tribunal, ao julgar a
apelação, tem em mãos todo o processo e tem, portanto, acesso, a todo
material a que teve o juiz monocrático, o dever de motivar a decisão do juiz
206 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

de 1º grau não é tão abrangente. Todavia, como os recursos extraordinário


e especial não proporcional ao Tribunal “ad quem” oportunidade de exa-
minar os autos (porque o efeito devolutivo que provocam é desprovido da
dimensão vertical) tudo o que deve ser tomado em conta para que o recur-
so seja admitido, provido e reformada a decisão, deve constar da própria
decisão. Inclusive os “elementos” que foram rejeitados e que, se acolhidos,
poderiam ter levado a decisão diferente da que foi proferida, como se ob-
servou.
Esta nova dimensão que hoje vem sendo atribuída ao contraditório
interferiu, como não poderia deixar de ser, com a maior relevância que
vêm adquirindo os embargos de declaração. Isto porque, se se diz que a
parte tem o direito de ver refletidos na decisão seus argumentos, as provas
que produziu, as razões em virtude das quais quer ver seu pedido acolhi-
do (ou o do réu, rejeitado), é claro que a este direito tem de corresponder o
dever do magistrado de apreciar todos estes elementos. Não sendo cum-
prido este dever, a via adequada para levar o Poder Judiciário a cumpri-lo
é a dos embargos de declaração.
CORPO DOCENTE
CORPO DOCENTE 209
Anna Carla M. Fracalossi

BREVES CONSIDERAÇÕES ACERCA DA PENSÃO


POR MORTE NO RGPS1

Anna Carla M. Fracalossi


Professora da matéria Direito da Seguridade
Social do Curso de Direito da UCSAL.
Advogada.

A Pensão por Morte é beneficio previdenciário direcionado aos de-


pendentes do segurado, visando à manutenção da família no caso da
morte do responsável pelo seu sustento. É assim devida em razão da ocor-
rência do evento morte do segurado – qualquer que seja sua classificação
– e é concedida aos dependentes inobstante o fato de o segurado, na data
do óbito, estar em atividade ou já aposentado.
O requisito ensejador do direito à pensão por morte é pois o óbito do
segurado. Vale ressaltar que além deste requisito mister se faz, que na data
do seu falecimento, o trabalhador detenha qualidade de segurado, ordi-
nária ou extraordinariamente;ou já possua direito adquirido a beneficio
de prestação continuada. Tal exigência se dá em razão de expressa previ-
são constitucional, vez que nossa Carta adota o sistema de proteção social
fundado na solidariedade,tendo ainda como um de seus pilares o sistema
contributivo, que por sua vez há que se manter na contínua busca pelo
equilíbrio financeiro e atuarial do sistema.
Assim, para fins de percepção deste beneficio, o óbito deve ser com-
provado, podendo ser real, quando certificado através de documento ofi-
cial, ou presumido. situação em que será fixado por decisão da autoridade
judicial competente após seis meses de comprovada ausência do segura-
do. Excepcionalmente, quando da ocorrência de acidentes, desastres ou
catástrofes públicas, para a caracterização do óbito, que nessa situação
também será presumido, se requer apenas a prova do desaparecimento do
segurado instituidor, sendo desnecessária assim, ante a notoriedade, a
mencionada decisão judicial.
Sucede que sendo presumido o óbito, a pensão por morte será sem-
pre provisória, cessando quando do reaparecimento do segurado. Ressal-

1
RGPS: Regime Geral de Previdência Social previsto nas Leis n° 8.212191e 8213/91 e
no Decreto n° 3.048/99 que aprova o Regulamento da Previdência Social
210 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

ta-se que apesar do entendimento já pacificado acerca da competência da


Justiça Federal para processar tal declaração judicial de ausência, mister
se faz mencionar que não se deve confundir a declaração de ausência
para fins civis (administração de bens e sucessão, prevista no Código
Civil),com esta para fins previdenciários.
A teor do Acórdão do Resp. nº 256.547-SP, da lavra do rel. Ministro
Fernando Gonçalves, publicado em 22/0812000, pode-se depreender:

RECURSO ESPECIAL. PENSÃO. MORTE PRESUMIDA. COM-


PETÊNCIA.
1. O reconhecimento da morte presumida do segurado, com
vistas à percepção de beneficio previdenciário (art. 78 da Lei
nº 8.213/91), não se confunde com a declaração de ausência
prevista nos Códigos Civil e de Processo Civil, razão pela
qual compete à Justiça Federal processar e julgar a ação.
2. Recurso conhecido e provido.

A ação proposta com a finalidade de reconhecer a ausência para


fins previdenciários seguirá o rito especial inominado de jurisdição vo-
luntária ou graciosa (arts. 1.10311.112 do CPC), pois dela não resultará
condenação direita do INSS ao pagamento da pensão, servirá apenas para
suprir a falta de documento público necessário á comprovação do óbito,
enquanto o segurado permanecer ausente.
A Renda Mensal nicial do beneficio de Pensão por Morte
corresponderá à totalidade da aposentadoria percebida em vida pelo
instituidor, caso o mesmo esteja aposentado na data do óbito; e na hipóte-
se do segurado estar em atividade quando do falecimento,o valor da pen-
são devida a seus dependentes será de 100% do valor da aposentadoria
por invalidez a que o segurado instituidor faria jus na data do infortúnio.
Existe uma particularidade no tocante à renda mensal do beneficio
de pensão por morte decorrente do falecimento de segurado já aposentado
na modalidade de aposentadoria por invalidez, e que em razão da neces-
sidade acompanhamento constante de terceiro decorrente da gravidade
de sua incapacidade de finitiva, tenha direito ao acréscimo de 25% em sua
RMB2 previsto no art. 45 de Lei nº 8213/913. É que nessa hipótese tal

2
RMB, equivale à Renda Mensal de Benefício. que para os benefícios de prestação conti-
nuada de caráter substitutivo da remuneração do trabalhador, não pode ter valor
inferior ao salário mínimo, nem superior ao limite máximo de salário de contribuição,
ressalvado o disposto no art. 45 da Lei n° 8213/91.
3
Art. 45. O valor da aposentadoria por invalidez do segurado que necessitar de assistên-
cia permanente de outra pessoa será acrescido de 25% (vinte e cinco por cento).
CORPO DOCENTE 211
Anna Carla M. Fracalossi

acréscimo de 25% à RMB da aposentadoria por invalidez, tal percentual


não integrará a RMB da pensão por morte, em razão de ser devido exclusi-
vamente ao segurado inválido, tendo como corolário o princípio da digni-
dade da pessoa humana capaz inclusive de ensejar a exceção à regra do
limite máximo do valor dos benefícios pagos pelo RGPS prevista no art. 33
da Lei nº 8.213/91, ao prever que caso a RMB da aposentadoria por
invalidez acrescida com os 25% venha a superar o limite máximo do salá-
rio-de-contribuição,vulgarmente conhecido como ‘’teto do RGPS”, mesmo
assim será devida.
Assim, a RMB da pensão por morte, como sucede com os demais
benefícios de prestação continuada do RGPS está limitada ao limite máxi-
mo do salário-de-contribuição que atualmente é o valor de R$ 2.894,28
(dois mil,oitocentos e noventa e quatro reais e vinte e oito centavos)4, em
razão da correlação existente entre o salário-de-contribuição – base de
cálculo da contribuição devida em razão da relação jurídica de custeio – e
o salário-de-benefício – base de cálculo do beneficio (prestação) decorren-
te da relação jurídica previdenciária (seguro social) – conceitos que ema-
nam do caráter contributivo do sistema de previdência social nacional.
Outra particularidade existente acerca do tema proposto se refere
ao início da percepção da RMI5 de Pensão por Morte, eis as hipóteses:

- se requerido em até trinta dias do óbito, a RMI será a data do óbito;


quando requerida após esse prazo, será devida a partir da DER6.
- nas hipóteses de morte presumida, será devida a partir da data
da decisão judicial.
- Vale ainda mencionar que até a edição do Decreto nº 5.545, de 22/
9/2005 - DOU DE 23/9/2005, existia a previsão de que a percep-
ção da RMI se daria, para o dependente menor, desde à data do
óbito, se requerida em até 30 dias do implemento da idade de 16
anos, em razão da regra de proteção do interesse de incapazes.
Havia no entanto regra também já revogada que previa o dever de
pagar retroativo ao óbito apenas quando da ocorrência de ne-
nhum outro dependente habilitado.

Sucede que na hipótese de já haver outros dependentes habilitados


à pensão por morte, o menor que não houvesse se habilitado em até trinta

4
PORTARIA MPS N° 142, DE 11 DE ABRIL DE 2007 - DOU DE 12/04/2007.
5
RMI: Renda Mensal Inicial
6
DER: Data de Entrada do Requerimento na Autarquia.
212 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

dias do óbito estaria desfavorecido, pois só passaria a receber da data de


entrada do requerimento (DER) ante a já existência de pagamentos
efetuados a outros dependentes que primeiro se habilitaram.
Tal situação cria, diversas interpretações equivocadas da norma de
proteção ao interesse de incapazes, uma vez que contra esses não há que
vigorar as regras previstas no art. 103 da Lei n° 8.213/9], que dispõe sobre
a decadência e a prescrição em matéria previdenciária.
Assim, quando a norma expressamente prevê que “o reconheci-
mento do direito à pensão se dará independente da ocorrência de pronta
habilitação de todos os dependentes”7, teremos o entendimento do direito
à proteção social como direito fundamental. Assim, não se podendo criar
exigência quanto à prévia habilitação de todos os dependentes para se
conceder o benefício e se pagar a correlata RMB, o então Decreto nº 3.048/
99 previa arbitrariamente regra restritiva de direito de incapaz, quando
afirmava que só seria devido o pagamento da RMB retroativo á data do
óbito em não havendo pagamentos feitos a dependentes primeiramente
habilitados.
Constata-se pois o flagrante descompasso da norma regulamentar
com as premissas Constitucionalmente fixadas quanto á matéria.
Finalmente à luz da legislação previdenciária e por conta do
regramento quanto à ordem de preferência dos dependentes, prescrita no
art. 16§1º da Lei nº 8.213/918, em havendo mais de um pensionista perten-
cente à mesma classe preferencial, o valor da pensão por morte será ratea-
do entre todos, em partes iguais, e, nessa hipótese, as parcelas do rateio
poderão ter valor inferior a um salário mínimo.
Quanto ao cônjuge e companheiro do sexo masculino a pensão por
morte passou a ser devida a partir de 05.10.88, em face do art. 201, V da
CF/88, pois antes o cônjuge varão só poderia reivindicar pensão por mor-
te da esposa, se comprovasse invalidez.
Ressalta-se ainda que não é devida pensão por morte quando na
data do óbito tenha ocorrido perda da qualidade de segurado, salvo se o
falecido houvesse implementado os requisitos para a concessão da apo-
sentadoria.

7
Decreto n° 3.048/99 em seu Art. 107 dispõe: “A concessão da pensão por morte não
será protelada pela falta de habilitação de outro possível dependente, e qualquer
habilitação posterior que importe em exclusão ou inclusão de dependente somente
produzirá efeito a contar da data da habilitação”.
8
“§ 10 – A existência de dependente de qualquer das classes deste artigo exclui do
direito às prestações os das classes seguintes”.
CORPO DOCENTE 213
Anna Carla M. Fracalossi

No entanto, existem precedentes do STJ que eclodiram com a publi-


cação da Lei 10.666/2003, determinando a desnecessidade de
concomitância do preenchimento dos requisitos para a obtenção da apo-
sentadoria por idade. Vale agora se questionar acerca da possibilidade de
se utilizar por analogia tais precedentes quando da concessão da pensão
por morte.
Mister se faz ainda salientar que a pensão se extingue com a perda
do direito do ultimo pensionista e não se transfere a dependente de classe
inferior (ato chamado de reversão que não existe no RGPS). Assim, a ces-
sação da pensão por morte se dará pela morte do
pensionista; para o pensionista menor de idade, ao completar 21
anos, salvo se for inválido, ou pela emancipação, ainda que inválido,
exceto nesse caso, se a emancipação se der por colação de grau em institui-
ção de ensino superior; e para o pensionista inválido, pela cessação da
invalidez.

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214 Revista Jurídica dos Formandos
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CORPO DOCENTE 215
Antonio Adonias Aguiar Bastos

O RECONHECIMENTO DA DÍVIDA E A
SATISFAÇÃO EM PRESTAÇÕES:
UM ESTUDO SOBRE O ART. 745-A, DO CPC.

Antonio Adonias Aguiar Bastos


Mestre (Universidade Federal da Bahia - UFBA).
Especialista em Direito Processual (Universida-
de Salvador - UNIF ACS). Professor de Direito
Processual Civil na Graduação em Direito e na
Pós--Graduação lato sensu em Direito Processual
Civil. Advogado.

SUMÁRIO: 1. Introdução; 2. Requisitos para o deferimento do parcelamento. 3.


Abrangência da vedação à oposição dos embargos após o reconhecimento da
obrigação; 4. Impossibilidade do parce1amento em face do reconhecimento par-
cial da obrigação; 5. Crítica ao art. 745-A. Suspensão dos atos executivos sem
prévia garantia do juízo; 6. Referências.

RESUMO: Este artigo estuda o reconhecimento e o parcelamento de obrigações


em execução sob a disciplina do novo art. 745-A, do Código de Processo Civil
brasileiro, analisando os seus requisitos e conseqüências jurídicas.

PALAVRAS-CHAVE: Direito Processual Civil; Execução; Reconhecimento;


Parcelamento; Obrigação; Art. 745-A; Requisitos.

ABSTRACT: This article studies the acknowledgment of debt and the payment
of obligations in execution in parts, according to the new article 745-A, of the
brazilian Civil Procedure Code, analysing its legal requirements and juridical
consequences.

KEYWORDS: Civil Procedural Law; Execution; Acknowledgment of debt;


Payment in parts; Obligation; Article 745-A; Requirements.

1. INTRODUÇÃO.

O novo art. 745-A, do CPC, prevê uma conduta premial para o deve-
dor que não resiste à execução1, permitindo-lhe o parcelamento da dívida,
desde que, no prazo para oferecer os embargos, reconheça o crédito postu-

1
Assim também entende Adriano Perácio de Paula (2007, p. 106).
216 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

lado pelo exeqüente. Para tanto, deve depositar 30% do valor executado,
incluindo aí as custas e os honorários advocatícios, requerendo, em segui-
da, o parcelamento do saldo restante em até seis parcelas mensais, que
serão corrigidas monetariamente, além de serem acrescidas de juros de 1 %
ao mês.
O § 1º do mesmo artigo de lei afirma que, deferida a proposta pelo
juiz, serão suspensos os atos executivos e o exeqüente estará autorizado a
levantar a quantia depositada. Caso contrário, o magistrado dará segui-
mento aos atos satisfativos, mantendo o depósito.
Afirmando tratar-se de uma “moratória” conferida pela lei, José
Maria Tesheiner (2007) tece duras críticas ao novo instituto, sobretudo
porque permite que o Estado interfira no âmbito do direito subjetivo e da
disponibilidade das partes.
Parece-nos que a medida foi criada sob os auspícios da “febre da
efetividade” e coloca em cheque toda uma construção em que se sedimentava
o direito subjetivo do credor de não receber parceladamente uma obriga-
ção, ainda que fosse ela divisível, se assim as partes não tivessem ajustado
(art. 314, do Código Civil), aspecto ao qual voltaremos mais adiante.
A intenção do legislador foi incentivar o devedor a pagar. Sabe o
executado que, se ele se opuser à execução e, no final, sair perdedor da ação
incidental de embargos, incidirão os atos expropriatórios sobre o seu
patrimônio, desfalcando-o de uma só vez. De forma diversa, pode reconhe-
cer a dívida, passando a ter uma posição de menor gravame: poderá parce-
lar o equivalente a 70% da dívida em até seis meses, desde que deposite, de
imediato, os 30% que determina o caput do art. 745-A.
Na realidade forense em que nos encontramos, a medida tende a
apresentar-se como vantajosa também para o credor. Longe dos aspectos
técnicos e científicos do direito, e próximo da realidade, sabe o credor que,
via de regra, o lapso de tempo entre a procura de bens para a penhora e a
efetiva entrega do dinheiro, consumirá mais do que os seis meses máximos
permitidos para o parcelamento2.

2
Athos Gusmão Carneiro (2007a, p. 126) explica: “Pelo novo instituto (que deve a
Ada Pellegrini Grinover suas características fundamentais) ambas as partes resul-
tam favorecidas. O exeqüente vê seu crédito reconhecido pelo executado, e poderá
de imediato levantar os trinta por cento depositados; e não estará sendo prejudica-
do pela demora em receber o saldo, pois provavelmente os atos executórios deman-
dariam mais tempo. Também favorecido o executado, porque diante de um débito
vencido e inconteste, obtém um prazo razoável para efetuar o pagamento, com
ônus bem inferiores aos de qualquer empréstimo em instituição bancária”.
CORPO DOCENTE 217
Antonio Adonias Aguiar Bastos

2. REQUISITOS PARA O DEFERIMENTO DO PARCELAMENTO.

A aplicação do comando exige quatro requisitos: (i) que o devedor


reconheça o crédito do exeqüente; (ii) que comprove o depósito de 30% do
valor executado, incluindo as custas e honorários advocatícios; e (iii) que
requeira o parcelamento; (iv) tudo isso no prazo que teria para opor embar-
gos, isto é, nos 15 dias contados da juntada do mandado de citação.
Quanto ao primeiro requisito, a lei exige o reconhecimento do crédi-
to. Cuida-se de ato de reconhecimento jurídico do pedido satisfativo, não
se confundindo com a confissão (voltada exclusivamente para os fatos),
nem com a inércia3. O silêncio do executado durante o prazo dos embargos
não ensejará o parcelamento.

3
Sobre o reconhecimento jurídico do pedido, deve-se ler a obra de Clito Fomaciari
Júnior (1977). Sobre a distinção entre o mencionado reconhecimento e a confissão,
confira-se a explicação de Humberto Theodor Júnior (2005a, p. 353):
Não se pode confundir o reconhecimento do pedido com a confissão. Enquan-
to a confissão apenas se relaciona com os fatos em discussão; sem que a parte
se manifeste sobre a jurisdicidade da pretensão do outro litigante, o reconhe-
cimento do pedido refere-se diretamente ao próprio direito material sobre o
qual se funda a pretensão do autor.
(...) Reconhecida a procedência do pedido, pelo réu, cessa a atividade
especulativa do juiz em tomo dos fatos alegados e provados pelas partes. Só
lhe restará dar por findo o processo e por solucionada a lide nos termos do
próprio pedido a que aderiu o réu. Na realidade, o reconhecimento acarreta o
desaparecimento da própria lide, já que sem resistência de uma das partes
deixa de existir o conflito de interesses que provocou sua eclosão no mundo
jurídico.
Em se tratando de forma de autocomposição do litígio, o reconhecimento do
pedido pelo réu só é admissível diante de conflitos sobre direitos disponíveis
(THEODORO JÚNIOR, 2005, p. 353).
Assim também leciona Moacyr Lobo da Costa (1983, p. 73-74):
O Código de Processo Civil manteve o sistema do Anteprojeto Buzaid a pro-
pósito da distinção entre confissão e reconhecimento do pedido. A primeira,
como meio de prova, e o segundo, como figura processual autônoma com a
função específica de pôr termo ao processo [atualmente, ao litígio, dada a
modificação do conceito legal de sentença - arts. 162,267 e 269, do CPC -,
promovido pela Lei n.O 11.232/2005].
(...) Como a confissão somente pode versar sobre os fatos da causa, ela faz
prova contra o confitente e dispensa a parte contrária de provar os fatos que
afirmou e formam objeto da confissão.
(...) Conquanto a mais importante das provas, a confissão judicial não é
decisiva, no sentido de eximir o juiz de examinar todos os elementos da causa
e apreciar o mérito da ação, para decidir a lide de acordo com o direito
aplicável e com as demais provas produzidas, nem vincula o pronunciamento
da sentença em favor da parte beneficiada com a confissão.
218 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

É necessário que o réu pronuncie-se expressa e inequivocamente no


sentido de admitir que a obrigação existe e é devida4. E assim ocorre porque
tal ato impedirá o acionado de opor-se à execução, como, aliás, frisa o § 2°,
do art. 745-A.
O referido comando legal estatui que, se o devedor vier a tomar-se
inadimplente em relação a qualquer das prestações, todas as demais se
tomarão vencidas, dando-se prosseguimento aos atos executivos, além de
incidir uma multa de 10% sobre o valor das parcelas inadimplidas, fican-
do o devedor impedido de opor embargos, ainda que, em tese, lhe sobejasse
prazo.

Tal como no processo romano clássico, a admissão, perante o juiz, da verdade


do fato não importa em submissão à pretensão exercitada com base nesse
fato. Cumpre ao juiz, ao proferir a sentença, tomar em consideração o fato
confessado como elemento de prova favorável ao adversário do confitente,
nada mais.
Sobre o assunto, José Carlos Barbosa Moreira (2005, p. 47) afirma:
Outra atitude do réu, menos freqüente, consiste em “reconhecer a procedência
do pedido do autor” (art. 269, n.O lI). Não se deve confundir esse ato com a
confissão, meio de prova, pelo qual “a parte” (não apenas o réu!) “admite a
verdade de um fato, contrário ao seu interesse e favorável ao adversário” (art.
348). O reconhecimento não tem por objeto um ou mais fatos, mas o próprio
pedido do autor.
Além disso, a doutrina tem admitido que o reconhecimento do pedido só pode
ocorrer de maneira expressa, e nunca tácita, no ordenamento brasileiro:
O reconhecimento jurídico do pedido deve ser expresso, não podendo resultar
de meras ilações tiradas pelo juiz ou pelas partes. O réu, quando pretender
fazê-lo, deve ser claro e incisivo em seu objetivo. Não se requer, entretanto,
forma sacramental.
(...) Por outro lado, não reconhece o pedido o réu que aceita os fatos e as
conseqüências solicitadas pelo autor, mas argüi a ausência de condições da
ação ou de pressupostos processuais, que levariam à extinção do processo
sem julgamento do mérito.
Estaria previsto em nosso Código o reconhecimento tácito do pedido? (...)
Tal entendimento [de que não é admitido o reconhecimento tácito] afigura-se-
nos exato. Realmente, não se pode compatibilizar o reconhecimento tácito do
pedido com a necessidade de ser inequívoco o réu e com a previsão do art. 319,
que concentra a rígida disciplina da revelia em nosso sistema.
A ausência de contestação, entre nós, faz com que os fatos - e tão só eles -
sejam tidos como verdadeiros, mas não leva necessariamente à procedência da
demanda. Os efeitos da revelia estão muito mais próximos aos da confissão do
que aos do reconhecimento. (FORNACIARI JÚNIOR, 1977, p. 58-60)..
4
Adriano Perácio de Paula (2007, p. 108) entende que o reconhecimento não precisa
ser expresso, bastando o preenchimento dos demais requisitos, caso em que se
presumiria o consentimento do executado em relação ao crédito pleiteado pelo
autor.
CORPO DOCENTE 219
Antonio Adonias Aguiar Bastos

Acontecerá uma preclusão lógica, afinal o reconhecimento é incom-


patível com a resistência à execução5. Não poderia o acionado, de um lado,
afirmar expressamente que a obrigação existe e é devida, pleiteando o
parcelamento, e, de outro lado, insurgir-se contra ela mesma.

A opção do executado pelo exercício deste direito potestativo é


comportamento que impede ajuizamento de futuros embargos
à execução, para a discussão de qualquer fato até aquele mo-
mento ocorrido. Trata-se de vedação que se relaciona ao princí-
pio que proíbe o comportamento contraditório (ver/ire
contrafactum proprium) e, portanto, está relacionada à proteção
da boa-fé objetiva e da confiança. É norma de profundo conteú-
do ético. A opção por valer-se do beneficio do art. 745-A implica
preclusão lógica do direito de discutir a dívida e o procedimen-
to executivo: se aceitou a dívida, tanto que se dispôs a pagá-la,
depositando no mínimo trinta por cento do seu montante, não
pode, em seguida, discuti-la, por se tratar de conduta incompa-
tível e contraditória (DIDIER JUNIOR, 2007a, p. 169).

Questão que tem se mostrado controvertida é a de o magistrado ter,


ou não, que intimar o credor para manifestar-se acerca do requerimento de
parce1amento feito pelo executado. A lei nada diz a respeito.
Parte dos doutrinadores tem afirmado que tal intimação é necessá-
ria, em respeito ao contraditório e à ampla defesa.

Após a manifestação do executado, o magistrado deve ouvir


o exeqüente, em respeito ao princípio do contraditório e da
ampla defesa, prolatando decisão de natureza interlocutória
em momento seguinte, passível (em tese) de ataque por meio
da interposição do recurso de agravo de instrumento, de uso
admitido em face da lesividade que acompanha o pronuncia-
mento, para o exeqüente ou para o executado
(MONTENEGRO FILHO, 2007, p. 531).

Accácio Cambi (2007), noticia que o VIII Curso de Atualização para


Magistrados (CRAM) de Londrina entendeu que “O juiz ouvirá o credor
antes de decidir o pedido de parce1amento da dívida, previsto no art. 745-
A do CPC”.
Afirma, ainda, que, em sentido diverso, o VII CRAM de Curitiba
concluiu que “Apresentada pelo devedor proposta nos exatos moldes do

5
No mesmo sentido: Misael Montenegro Filho (2007, p. 531) e Adriano Perácio de
Paula (2007, p. 25).
220 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

artigo 745-A do CPC, o juiz deferirá o pedido de parcelamento indepen-


dentemente de manifestação do credor”.
Examinando os Enunciados de tal Curso, constatamos que este foi
aprovado por unanimidade (ESCOLA DE MAGISTRATURA DO PARANÁ,
2007).
O Enunciado nº 17 da “Carta de Maceió”, sintetizando a conclusão
dos juízes do trabalho do TRT da 19a Região (Alagoas), reunidos para par-
ticipar do Seminário sobre as recentes Reformas do Poder Judiciário pela
Emenda Constitucional n° 45/2004 e reformas do Código de Processo Civil,
tem o seguinte teor: “RECONHECIMENTO DO CRÉDITO DO
EXEQUENTE POR PARTE DO EXECUTADO. PARCELAMENTO DO
ARTIGO 745-A DO CPC. COMPATIBILIDADE COM O PROCESSO DO
TRABALHO. DESNECESSIDADE DE CONCORDÂNCIA PRÉVIA DO
EXEQUENTE. É compatível com o Processo do Trabalho a norma do artigo
745-A do Código de Processo Civil. O deferimento desse parcelamento
independerá da concordância do exeqüente, cabendo ao juiz decidir acerca
das vantagens da proposta para a satisfação do crédito exeqüendo, poden-
do, para tanto, ouvir o credor” (grifo e caixa alta existentes no original).
Theotônio Negrão e José Roberto Ferreira Gouvêa (2007, p. 905) as-
severam que “Antes de deferir a proposta, deve o juiz ouvir o exeqüente, em
atenção ao princípio do contraditório”, com o que concorda Reinaldo Alves
Ferreira (2007).
Como já exposto anteriormente, Fredie Didier Junior (2007a, p. 169)
entende ser o parcelamento um direito potestativo do executado, inferindo-
se daí que não seria necessário ouvir o exeqüente, afinal tal é o direito que
pode ser exercitado unilateralmente por uma das partes da relação jurídi-
ca, atingindo a esfera jurídica do outro participante do aludido vínculo6.
Proferindo aula na pós-graduação, fomos indagados sobre a inter-
pretação sistemática do comando à luz do art. 314, do Código Civil, que
garante ao credor o direito de receber integralmente a obrigação, mesmo
que ela tenha por objeto prestação divisível, se assim não se ajustou. Lite-
ralmente:

6 Agnelo Amorim Filho (1997, p. 730) conceitua o direito potestativo, referindo-se às


lições de Chiovenda: “Assim, acentua ele [Chiovenda], em primeiro lugar, que o
exercício de um direito potestativo cria um estado de sujeição para outras pessoas,
coisa que não ocorre com o exercício das meras faculdades. Por sujeição, (...) deve-
se entender a situação daquele que, independentemente da sua vontade, ou mesmo
contra sua vontade, sofre uma alteração na sua situação jurídica, por força do
exercício de um daqueles poderes atribuídos a outra pessoa e que recebem a deno-
minação de direitos potestativos”.
CORPO DOCENTE 221
Antonio Adonias Aguiar Bastos

Art. 314. Ainda que a obrigação tenha por objeto prestação


divisível, não pode o credor ser obrigado a receber, nem o
devedor a pagar, por partes, se assim não se ajustou.

Humberto Theodoro Júnior (2007a, p. 219) e Adriano Perácio de


Paula (2007, p. 108) afirmam que, preenchidos os requisitos que autorizam
o parcelamento, o juiz não pode indeferi-lo.
O último doutrinador afirma que o magistrado não possui
discricionariedade7 em face da pretensão de parcelamento formulada pelo
executado, “podendo ou não ouvir o exeqüente”. Não concordamos com o
último trecho, pois, se a oitiva do credor for necessária, ela não será mera-
mente formal, mas de relevância para a futura decisão do juiz, em deferir,
ou não, o parcelamento.
Como se vê, a questão não é simples, havendo fundamentos a
embasar os dois entendimentos. Parece-nos, contudo, que a solução reside
na natureza jurídica do instituto.
Primeiramente, não podemos olvidar que o caput do art. 745-A refe-
re-se expressamente ao reconhecimento do crédito8. Na sistemática do CPC,
tal ato é unilateral, prescindindo de consentimento da parte adversa9. E

7
Na mesma linha: Reinaldo Alves Ferreira (2007).
8
Em sentido diverso, Misael Montenegro Filho (2007, p. 531) afirma tratar-se de
“novação de natureza processual”, devendo ser o credor ouvido acerca do requeri-
mento de parcelamento realizado pelo executado. Humberto Theodoro Júnior (2007a,
p. 216) a considera como uma “moratória legal”. Reinaldo Alves Ferreira (2007)
considera o art. 745-A como uma norma de direito material, equivocadamente
situada no CPC, pois cria uma “forma excepcional de extinção da obrigação” e
rebate a posição dos já aludidos professores, concebendo que o instituto não seja
uma “moratória legal”, por entender que “a moratória pressupõe apenas o alarga-
mento do prazo para o pagamento, sem que o débito seja amortizado com o
parcelamento da obrigação”. De acordo com o magistério de José Eduardo Carreira
Alvim (2007, p. 220) o artigo 745-A regula “uma espécie de injunção (monitória),
reconhecida ao executado, em proveito do exeqüente, quando reconhecer o crédito
constante do título executivo objeto da execução”.
9
Eis o magistério de Clito Fomaciari Júnior (1977, p. 05):
O reconhecimento jurídico do pedido é um instituto processual que se volta à
pretensão deduzida pela parte contrária. Através dele, o réu comparece a
Juízo com o intuito deliberado de não mais opor resistência ao pedido do
autor, aceitando-o. (...).
Marca-se o reconhecimento jurídico do pedido pela aceitação não só dos fatos
deduzidos pelo autor, como também das conseqüências jurídicas invocadas.
Através dele, admite o réu a própria pretensão do autor.
Constitui-se um ato jurídico unilateral, independendo, em nosso sistema, da
aceitação da parte a quem o reconhecimento favorece. Basta, para sua valida-
de, a manifestação de vontade do réu.
222 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

assim ocorre porque o reconhecimento significa a adesão do réu à preten-


são do autor. Na hipótese em análise, o executado admite que o crédito
pleiteado pelo exeqüente é devido, sendo-lhe vedado, por conseqüência,
opor embargos de mérito (contra a higidez do título ou contra a obrigação).
Existe, no entanto, um complicador: o reconhecimento, via de regra,
não interfere na esfera jurídica do acionante. Não lhe modifica qualquer
direito. Pelo contrário, cessa o litígio e afirma que a pretensão é devida tal
como foi pedida. A situação entabulada pelo art. 745-A guarda a peculiari-
dade de tomar incontroverso o crédito pleiteado pelo exeqüente, mas altera
a forma de pagamento, possibilitando o parcelamento.
Tal situação pode apresentar-se salutar à satisfação do crédito, na
medida em que favorece o devedor, estimulando-o a adimplir. Caso não
houvesse tal incentivo, quedaria ele, no máximo, inerte, tendo o autor que
suportar o ônus do tempo dos atos executivos, que, na atual conjuntura
judiciária brasileira, finalizam-se, via de regra, em mais do que seis meses,
como já se disse anteriormente.
Não se pode deixar de utilizar o comando legislativo naquilo que ele
tem de mais proveitoso: a satisfação da dívida, quando o devedor reconhe-
ce que deve, atendendo o escopo pacificador da jurisdição10. Eis uma sua
interpretação teleológica.
Também não se pode olvidar que o requisito até aqui analisado deve
ser lido em consonância com os demais. E o segundo deles é de que o
devedor, sponte propria11, deposite a quantia equivalente a 30% (trinta por
cento) do valor da obrigação que o acionante pretende ver satisfeita. O
executado não precisa de autorização judicial para tanto12.

10
Antônio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Cândido Rangel
Dinamarco (1997, p. 25) explicam que: “A pacificação é o escopo magno da jurisdição
e, por conseqüência, de todo o sistema processual (uma vez que todo ele pode ser
definido como a disciplina jurídica da jurisdição e seu exercício). É um escopo
social, uma vez que se relaciona com o resultado do exercício da jurisdição perante
a sociedade e sobre a vida gregária dos seus membros e felicidade pessoal de cada
um” (itálicos existentes na versão original).
11
No mesmo sentido: Misael Montenegro Filho (2007, p. 531).
12
Neste sentido, confira-se a seguinte decisão de 1 ° Grau: “COMO O EXECUTADO
RECONHECEU O CREDITO DO EXEQUENTE, DEFIRO O PEDI DO DE FLS. 45/
46, NO TOCANTE AO DEPOSITO DE 30% (TRINTA POR CENTO DIO VALOR
EM EXECUCAO E PARCELAMENTO DO RESTANTE EM 06 (SEIS) PARCELAS,
QUE SERAO CORRIGIDAS MENSALMENTE E ACRESCIDOS DE JUROS DE 1 %
(UM POR CENTO), COM FULCRO NO ARTIGO 745-A, DO
CODIGO DE PROCESSO CIVIL. SESPENDO A EXECUCAO ATE O PAGAMEN-
TO INTEGRAL DO DEBITO (ART. 745-A, § 1°, DO CODIGO DE PROCESSO
CIVIL). O NAO PAGAMENTO DE QUALQUER DAS PRESTACOES IMPLICA-
CORPO DOCENTE 223
Antonio Adonias Aguiar Bastos

O depósito tem natureza de sinal não sujeito à devolução, por repre-


sentar parcela incontroversa da demanda, e poderá ser levantada pelo
acionante13, desde que observadas as regras dos art. 709, 711 e 712, inclusi-
ve no que tange à formalização da quitação parcial, nos autos, como esta-
belece o parágrafo único, do art. 709, do CPC.
O terceiro requisito é a formalização do requerimento de parcelamento,
sem o qual o depósito surtirá os efeitos de pagamento parcial14, avançando o
processo para a prática dos demais atos executivos.
A intelecção dos referidos requisitos mostra-nos o seguinte horizon-
te: juntado o mandado de citação aos autos, começa a fluir o prazo de 15
dias para que o devedor possa realizar o depósito do sinal, não precisando
de consentimento judicial para tanto, e reconhecer a obrigação, formali-
zando o requerimento de parcelamento da dívida. O credor poderá receber
os 30% consignados e ao devedor não será mais permitido opor embargos.
Todos os atos até aí praticados são de vantagem para o credor e de
ônus para o executado, que já depositou uma parcela da dívida e não pode
mais se defender. A contrapartida dada pelo sistema ao executado é exata-
mente o parcelamento. Se ele não tiver a segurança de que terá êxito neste
intento, não arriscará as providências anteriores, tomando a medida
legislativa inócua e sem aplicação prática.
Não podemos perder de vista, ainda, que o art. 745-A também está
alinhado ao princípio da menor onerosidade para o devedor (ou da ade-

RA NO VENCIMENTO DAS SUBSEQUENTES E O PROSSEGUIMENTO DO PRO-


CESSO, COM O IMEDIATO INICIO DOS ATOS EXECUTIVOS, IMPOSTA AO
EXECUTADO MULTA DE 10% (DEZ POR CENTO) SOBRE O VALOR DAS
PRESTACOES NAO PAGAS, FICANDO VEDADA A OPOSICAO DE EMBAR-
GOS (ART. 745-A, . 2., DO CODIGO DE PROCESSO CIVIL). O DEPOSITO DE
30% (TRINTA POR CENTO) DO VALOR DO DEBITO JA FOI REALIZADO (FLS.
48), BEM COMO, O PAGAMENTO DA PRIMEIRA (FLS. 52/53) E DA SEGUNDA
PARCELA (FLS. 54/56). DEFIRO, TAMBEM, O PEDIDO DE FLS. 56/57 E, EM
CONSEQUENCIA, DETERMINO QUE SE PROCEDA O LEVANTAMENTO DO
PROTESTO DOS TITULOS EXECUTADOS, BEM COMO, A EXCLUSAO DO
NOME DO REQUERENTE DOS CADASTROS DO SERVICO DE PROTECAO AO
CREDITO(SPC, SERASA E EQUIF AX), PARA A EFETIV ACAO DA MEDIDA.
INTIME-SE O EXEQUENTE PARA REALIZAR O LEVANTAMENTO DA QUAN-
TIA DEPOSITADA. REGISTRE-SE. INTIMEM-SE. E CUMPRA-SE. CAIAPONIA,
09 DE JUNHO DE 2007. (A) INACIO PEREIRA DE SI QUEIRA - JUIZ DE DIREI-
TO” (Execução. Proc. 200700626985. Autos n.o 103. Vara de Família, Sucessões,
Infância e Juventude e 1ª. Vara Cível) (caixa alta existente no original).
13
Na mesma linha de entendimento: Fredie Didier Junior (2007a, p. 169) e Adriano
Perácio de Paula (2007, p. 108).
14
Athos Gusmão Carneiro (2007a, p. 126) entende que o depósito dos 30% será
mantido a título de penhora em dinheiro.
224 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

quação da execução), positivado pelo art. 620, do CPC, pelo qual o juiz
mandará que a execução se faça pelo modo menos gravoso para o executa-
do, quando, por vários meios, puder o credor promovê-la.
Quanto à contraposição da norma processual em comento com a do
art. 314, do Código Civil, entendemos que este não foi revogado, tendo sua
aplicação preterida em relação ao art. 745-A, somente no processo executi-
vo. Em tal situação, a regra processual é mais específica, além de ser poste-
rior à da Lei Substantiva.
Não fosse o suficiente, trata-se de norma de direito público, dirigin-
do-se de maneira cogente ao Estado-juiz e às partes15. Ela se situa em outro
contexto que não o do direito obrigacional. Extrapola, portanto, a esfera da
disponibilidade e da vontade das partes, sobretudo se comparada com o
art. 314, do Código Civil, que constitui norma dispositiva, no campo das
obrigações civis 16.
Neste passo, entendemos que o ato do executado é de reconhecimen-
to17, não nos alinhando à corrente doutrinária que afirma ser uma “novação
processual”, inclusive porque, se novação fosse, seria exigido o consenti-
mento do credor.
O último requisito é o prazo para a prática de tais atos, deixando o
comando evidente e expresso tratar-se do lapso temporal para os embar-
gos. Como é sabido, o lapso de tempo para a prática de um ato processual
pode extinguir-se por três espécies de preclusão: a temporal, a consumativa
e a lógica.
Daí concluir-se que, em princípio, o devedor terá os mesmos 15 dias,
a fluir da juntada do seu respectivo mandado de citação, para depositar o
sinal, reconhecer a obrigação e requerer o parcelamento. A mesma regra da
autonomia do prazo para a defesa do devedor (art. 738, § 1°) aplica-se para
a postulação do parcelamento.
Sob outra perspectiva, se o devedor embargar antes de findos os 15
dias, terá ocorrido preclusão consumativa, não lhe sendo mais lícito obter
o favor legal previsto no art. 745-A.

15
Explicando que a norma processual é de direito público e de aplicação cogente:
Antônio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Cândido Rangel
Dinamarco (1997, p. 90-91) e José Eduardo Carreira Alvim (2005, p. 243).
16
Neste aspecto, não concordamos com Reinaldo Alves Ferreira (2007) que a norma
seja de direito material, e nem que estabeleça uma “forma excepcional de extinção
da obrigação”. A extinção da obrigação, no caso, ocorrerá mediante o integral paga-
mento da dívida, que já está previsto no Código Civil.
17
Se o ato for praticado por advogado, ele deve possuir poderes especiais para tanto,
pois o reconhecimento implica alienação de direito, não se presumindo incluso nos
poderes gerais para o foro.
CORPO DOCENTE 225
Antonio Adonias Aguiar Bastos

Findo o prazo, o executado não poderá mais se beneficiar do


parcelamento de que trata o mencionado dispositivo legal18. Contudo, nada
impede que as partes cheguem a um parcelamento por meio de uma poste-
rior transação, aí, sim, incidindo o regramento geral dos negócios jurídi-
cos, que pressupõe concordância do credor19.

3. ABRANGÊNCIA DA VEDAÇÃO À OPOSIÇÃO DOS EMBARGOS


APÓS O RECONHECIMENTO DA OBRIGAÇÃO.

Embora o § 2°, do art. 745-A, afirme, textualmente, que será vedada a


oposição de embargos, caso o devedor venha a tomar-se inadimplente em
relação a qualquer das prestações, e, em que pese concordemos que o reco-
nhecimento da obrigação provoque a preclusão lógica, não podendo o exe-
cutado mais ajuizar a referida ação incidental, temos que observar que,
inadimplido o parcelamento, prosseguirá a execução, “com o imediato iní-
cio dos atos executivos”. Ocorre que algum(ns) destes atos podem ser pas-
síveis de nulidade, como, por exemplo, a constrição de bem impenhorável.
Em tal situação, será lícito ao executado insurgir-se contra os atos
satisfativos praticados após a execução ter voltado a tramitar20.
Humberto Theodoro Júnior (2007a, p. 220) explica a possibilidade
de oposição dos embargos no caso de denegação do pedido de parcelamento,
também aplicável à hipótese de inadimplemento superveniente21:

18
Explica Misael Montenegro Filho (2007, p. 531): “Fluído o prazo de que tratamos, é
inquestionável que o devedor pode pôr fim à demanda executiva (a qualquer tem-
po), através do pagamento da dívida, com os acréscimos legais e processuais,
como permitido pelo art. 651 do CPC (remição da dívida). A diferença reside no
fato de que, se a intenção de pagar for manifestada no prazo para a oposição dos
embargos (nos quinze dias após a juntada do mandado de citação aos autos), o
executado conta com a prerrogativa de efetuar o pagamento da dívida de forma
parcelada, o que não se confirma após o curso da dilação, quando a dívida deverá
ser liquidada a vista” (sic).
19
Athos Gusmão Carneiro (2007, p. 98-99) leciona: “Sim, em princípio cuida-se de
prazo peremptório. Destarte, findo o prazo para embargos, ao devedor não mais
assiste o direito a pleitear e obter moratória. Todavia, se o exeqüente concordar, às
partes será sempre lícito transigir, com a adoção do regramento do art. 745-A, o que
pressupõe que o devedor não tenha ajuizado ação de embargos, ou dela venha a
desistir”.
20
Neste diapasão: Fredie Didier Junior (2007a, p. 169) e Adriano Perácio de Paula
(2007, p. 108).
21
O professor mineiro explica que os embargos poderão ser opostos “se houver tem-
po”, considerando ele que a defesa contra a 2" penhora ou contra a penhora
superveniente dá-se nos próprios autos da execução, e não por embargos, como nós
entendemos.
226 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

Da denegação do parcelamento decorre o prosseguimento


normal dos atos executivos, mesmo porque o eventual agra-
vo não terá, em regra, efeito suspensivo. O depósito prepara-
tório da medida frustrada não será devolvido (art. 745-A, §
1°, in fine); permanecerá como garantia do juízo e, se já não
houver tempo útil para embargos, poderá ser levantado pelo
credor, para amortizar o débito do executado. Deve-se lem-
brar que ao postular o parcelamento o executado já reconhe-
ceu o crédito do exeqüente. Não terá mais possibilidade de
oferecer embargos de mérito. Se houver tempo, poderá ape-
nas, e eventualmente, opor exceções processuais, como as
argüições de penhora incorreta e avaliação errônea.

Assim é que o executado não poderá insurgir-se contra o título, a


obrigação, nem os atos processuais que tiveram vez antes do requerimento
de parcelamento, mas poderá insurgir-se no que toca aos atos executivos
posteriores ao deferimento do parcelamento.

4. IMPOSSIBILIDADE DE CUMULAÇÃO DE DOIS FAVORES


LEGAIS.

Uma das características da reforma empreendida pela Lei n.O


11.382/2006 foi a criação de medidas que visam a celeridade e a efetividade
processuais, seja estimulando o devedor a adimplir a obrigação em
contrapartida a’ certos benefícios, seja desencorajando os atos
procrastinatórios, para os quais há sanções específicas, entre outras tan-
tas.
Neste contexto, o legislador estabeleceu condutas premiais para o
executado que se propõe a pagar, ao invés de insurgir-se contra a atividade
executiva.
No âmbito dos aludidos comportamentos tem-se em destaque o
parcelamento regulado pelo art. 745-A e a redução dos honorários
advocatícios, positivada pelo parágrafo único, do art. 652-A. Este último
comando estatui que, se o executado pagar a dívida no prazo de três dias,
contados da juntada do mandado de citação aos autos, os honorários
advocatícios fixados pelo juiz no despacho que admitiu a petição inicial
da execução serão diminuídos à metade.
Indaga-se, então, se pode haver a cumulação dos dois favores legais,
se, no aludido prazo de três dias, o devedor depositar 30% do quantum
debeatur, reconhecendo a obrigação e postulando o seu parcelamento.
CORPO DOCENTE 227
Antonio Adonias Aguiar Bastos

Parece-nos que não22.


Primeiramente, porque a redução dos honorários, prevista pelo pa-
rágrafo único do art. 652-A, diz respeito ao pagamento integral da dívida,
e não parcelado.
Em segundo lugar, porque a mencionada redução está baseada tam-
bém no menor grau de complexidade do labor advocatício, quando o deve-
dor paga a dívida integralmente, já que, em tal situação, o patrono do
exeqüente se limitará a acompanhar os atos de levantamento do valor.
Se, de outra forma, o executado postula o parcelamento, o pagamen-
to não será integral, mas, inicialmente, consistirá apenas no sinal, ficando
pendentes as demais prestações.
Cuidar-se-á de situação mais complexa, inclusive por haver a hipó-
tese de inadimplemento, risco que inexiste na situação positivada pelo
parágrafo único, do art. 652-A.

5. IMPOSSIBILIDADE DO PARCELAMENTO EM FACE DO


RECONHECIMENTO PARCIAL DA OBRIGAÇÃO.

Também existe controvérsia sobre a possibilidade de parcelamento


de parte da obrigação, diante do correspondente reconhecimento parcial.
De um lado, Adriano Perácio de Paula (2007, p. 108) o admite:

Também pode se dar o pagamento em prestações na hipótese


de embargos parciais, que questionam uma parcela da co-
brança executiva, dada a compatibilidade e o objetivo per-
manente de solução da lide na parte sem controvérsia.

22
Eis o entendimento de Theotônio Negrão e José Roberto Ferreira Gouvêa (2007, p.
905): “Para efeito do depósito de 30%, deve ser considerado o valor total dos
honorários estipulados pelo juiz. O beneficio da redução pela metade somente tem
lugar quando há pagamento integral e no prazo de 3 dias (art. 652-A § ún), o que
não ocorre quando o executado lança mão do art. 745-A”.
No mesmo sentido, Adriano Perácio de Paula (2007, p. 107) explica que as situa-
ções dos arts. 652-A, 738 e 745-A são exc1udentes, umas das outras:
Realizada a citação, abre-se ao executado três alternativas, que se excluem uma das
outras, a saber:
a) pagar no prazo de 3 (três) dias a íntegra da dívida, ganhando a redução da
metade dos honorários estipulados (parágrafo único do art. 652-A do CPC);
b) oferecer embargos de devedor no prazo de 15 (quinze) dias após a juntada aos
autos do mandado de citação (caput do art. 738 do CPC);
c) reconhecer a dívida no prazo de 15 (quinze) dias e propor o pagamento em até 6
(seis) prestações, com depósito do sinal de 30% (trinta por cento) do valor exeqüendo
(art. 745-A do CPC).
228 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

Assim afirma Laura Affonso da Costa Levy (2007):

Cabe verificar, que não houve solução para o caso em que o


executado concorda com apenas parte do crédito exeqüendo.
Parece correto que a possibilidade de pagamento e seus
beneficios permaneçam as mesmas para a parte incontroversa
e, de outro lado, mantidos os direitos e a sistemática que
permite ao devedor discutir a parte que não concorda, repe-
tindo a fórmula do artigo 739-A, § 3° do CPC e, neste ponto,
igualmente válida a fórmula assemelhada ao que o legisla-
dor previu no artigo 475-J, § 5°, do mesmo diploma legal.

Não se pode confundir, contudo, o instituto previsto pelo art. 745-A,


do CPC, com a alegação de excesso de execução, que mereceu regramento
específico e expresso, como se depreende da leitura do art. 739-A, § 5°, do
CPC.
Enquanto o art. 745-A traz uma posição de vantagem para o execu-
tado, o § 5°, do art. 739-A, positiva um ônus. Opondo-se a uma parte da
dívida, o devedor insurge-se contra a atividade executiva, e ele tem que
afirmar qual é a fração incontroversa, sob pena de rejeição liminar de seus
embargos. Assim é que ele não admite uma parte da obrigação como um
comportamento premial, a fim de solver o litígio. Pelo contrário, fa-lo-á com
a intenção de defender-se. Se não se desincumbir de tal ônus, sua alegação
sequer será apreciada. Muito menos se pode deferir o parcelamento se a
alegação de excesso de execução estiver cumulada com qualquer outra
matéria de defesa.
Ademais, o art. 745-A contém disposição incompatível com a inter-
pretação sistemática dos §§ 3° e 5°, do art. 739-A. De acordo com o primeiro
dispositivo, deferido o parcelamento com lastro no primeiro artigo de lei,
serão sobrestados os atos executivos. Em sentido completamente oposto,
ao alegar o excesso de execução, e ao tomar incontroversa parte da obriga-
ção, deverão ser praticados os atos executivos em relação à parcela não
mais litigiosa da demanda.
Além disso, o comando legal trata do reconhecimento do “crédito do
exeqüente” e do depósito de 30% “do valor em execução, inclusive custas e
honorários advocatícios”.
Athos Gusmão Carneiro (2007a, p. 126) aponta exemplos em que
pode ser denegado o parcelamento requerido pelo devedor, afirmando que
a recusa do devedor em reconhecer parte do crédito em execução é um
deles. A contrario sensu, o doutrinador afirma que o reconhecimento inte-
CORPO DOCENTE 229
Antonio Adonias Aguiar Bastos

gral é requisito para o parcelamento. Em outro artigo, Jé expresso ao res-


ponder consulta acerca da possibilidade de parcelamento diante de
reeonhecimento parcial do débito.

Não. A moratória prevista no art. 745-A, como direito do


executado, visa beneficiar apenas e exatamente aquele deve-
dor que reconhece integralmente a dívida e que renuncia à
faculdade de embargar a execução (CARNEIRO, 2007, p. 98).

Assim é que o reconhecimento há de ser da obrigação na sua


integralidade, tal como postulada pelo exeqüente, sob pena de confundir o
instituto com a alegação de excesso de execução, que é matéria de defesa.
Cuida-se de uma vantagem conferida ao devedor que não se opõe à execu-
ção, de reconhecimento jurídico do pedido satisfativo, afastando-se,
ontologicamente, da defesa, que é o seu oposto. A medida tem em vista a
celeridade e a efetividade do processo executivo, não se coadunando com o
ajuizamento dos embargos, que visam exatamente o contrário: o debate acer-
ca da dívida. Se o devedor reconhecer apenas uma parte da dívida, tomando
a outra parte controvertida, ele estará alegando excesso de execução.
Não fosse assim e todos os embargos fundados em excesso de execu-
ção mereceriam o favor legal do art. 745-A.

6. CRÍTICA AO ART. 745-A. SUSPENSÃO DOS ATOS EXECUTIVOS


SEM PRÉVIA GARANTIA DO JUÍZO.

Como visto, o § 1°, do art. 745-A, determina a suspensão dos atos


executivos, assim que o juiz deferir o parcelamento.
Acontece que o deferimento do pagamento em até seis parcelas não
garante a satisfação do crédito, já que o executado pode vir a inadimplir as
prestações vincendas, situação prevista no § 2°.
É verdade que este último dispositivo impõe um multa de 10% sobre
as parcelas não pagas, desanimando o devedor a descumprir o
parcelamento, mas a hipótese de inadimplemento demonstra o risco de
ineficácia que recai sobre o processo executivo quando a obrigação for
dividida em prestações.
Para sanar este problema, o legislador poderia ter exigido a garantia
do juízo como um dos requisitos para o deferimento do parcelamento.
Embora a nova norma possa constituir um incentivo para o paga-
mento de débitos objeto de execução e com isso permitindo maior celeridade
na prestação jurisdicional diminuindo o grau de litigiosidade existente na
230 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

sociedade, a Lei peca quando não exige nenhuma garantia do credor para
que possa ser contemplado com o aludido beneficio, embora para obtê-Io
tenha que exibir o pagamento de 30% do valor da execução.
Teria andado melhor o legislador se tivesse exigido além do paga-
mento de parte da dívida algum tipo de garantia do devedor para que o
beneficio do parcelamento fosse concedido evitando que maus pagadores
possam lançar mão da faculdade legal apenas para protelar a execução
com o pagamento de apenas 30% do devido. (LIMA FILHO, 2007).
A garantia haveria de corresponder monetariamente aos 70% (se-
tenta por cento) do valor da obrigação, já que 30% são depositados de
imediato, resguardando, assim, o direito do executado, em não ser onerado
indevidamente, já que a finalidade do processo executivo é a satisfação do
direito do credor, e não a punição do executado.

7. REFERÊNCIAS

AMORIM FILHO, Agnelo. Critério cientifico para distinguir a prescrição da


decadência e para identificar as ações imprescritiveis. In: Revista dos Tribu-
nais, n. 744. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997.

BARBOSA MOREIRA, José Carlos. O novo Processo Civil brasileiro. 23. ed.
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CORPO DOCENTE 231
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CORPO DOCENTE 233
César Santos

A OBRIGAÇÃO DE FAZER OU NÃO FAZER


CONTRA A FAZENDA PÚBLICA

Cezar Santos
Prof. universitário da UFBA e da UCSAL, Mem-
bro da Academia de Letras Jurídicas da Bahia
– titular da cadeira nº. 21, Presidente do Rotary
Club Bahia Norte.

A obrigação de fazer realiza-se pela prática de um ato, um atuar,


um comportamento do devedor, enquanto a de não fazer caracteriza-se
por exigir a omissão ou tolerância do obrigado.
A consagração do principio da intangibilidade da vontade huma-
na, após o 14 de julho de 1789 (Queda da Bastilha – Revolução Francesa)
determinou-se, acertadamente, o banimento dos meios executórios pesso-
ais, do que resultou criarem-se outros meios para resolver as obrigações
de caráter infungível. A resistência do devedor, no caso, representava e
representa obstáculo quase impossível de ser afastado. Somente inexiste a
dificuldade quando a obrigação for fungível, podendo o próprio credor ou
a terceiro realiza-lo á custa do devedor.
Assim, sendo infungível a obrigação de fazer ou não fazer, torna-se
impossível a execução especifica. Com a evolução dos estudos sobre a
obrigação infungível, adveio a distinção entre a infungibilidade natural
(decorrente de especial qualidade, de aptidões, atributos especiais do pró-
prio devedor) e a infungibilidade jurídica (decorrente de proibição do
ordenamento jurídico e não tem causa natural, como a de prestar declara-
ção de vontade em contrato de compromisso de compra e venda, e que
pode ser satisfeita por uma atuação do Poder Judiciário.
A preocupação de tornar exeqüível estas obrigações, levou o legis-
lador a criar novas regras, para que, sem ofender a dignidade humana e os
direitos individuais indisponíveis, pudesse o processo dar a quem tem
razão tudo aquilo que tiver direito, como se o devedor cumprisse esponta-
neamente a prestação. Em 1990, o Código de Defesa do Consumidor, no
artigo 84, criou mecanismos para a realização das obrigações de fazer ou
não fazer, de caráter fungível ou infungível. Foi o primeiro passo. Em
1994, a lei 8.952/94, deu nova redação ao art. 461, do CPC e determinou
que, “na ação que tenha objeto o cumprimento de obrigação de fazer ou
234 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

não fazer, o juiz concederá a tutela especifica da obrigação”. De modo que,


o legislador estabeleceu como regra o cumprimento das obrigações de fa-
zer ou não fazer (cumprimento em espécie) e dotou o juiz de novos meios
executórios para obter o resultado especifico, sem que seja convertida em
perdas e danos. Foi o segundo passo. Pelo que, hoje a ultima opção do juiz
é a conversão em perdas e danos, nos termos do §1º, do art. 461, in verbis:
a obrigação somente se converterá em perdas e danos se impossível a
tutela especifica”. O legislador, então, para armar o juiz para fazer o deve-
dor cumprir a obrigação especifica forneceu-lhe as medidas de apoio pre-
vistas no §5º, do art. 461, recomendando-se, porém, ao magistrado que
observe os parâmetros de principio da proporcionalidade. Daí porque,
deve-se, atualmente, no nosso sistema jurídico entender como exceção a
conversão em perdas e danos das obrigações especificas de fazer ou não
fazer.
Em face da nova redação dada ao art. 632, a obrigação de fazer a ser
satisfeita pode resultar de titulo judicial ou extrajudicial. Em outro passo,
o legislador, ao criar um §3º ao art. 461, autorizou a concessão de uma
decisão interlocutória de antecipação dos efeitos da tutela jurisdicional.
E, por fim, com a lei 10.444/02, alterou a redação do artigo 644, dispondo
que “a sentença relativa a obrigação de fazer ou não fazer cumpre-se de
acordo com o art. 461, observando-se, subsidiariamente, o disposto neste
capitulo: arts. 632 e ss.”. Com esta reforma, admitiu, como realmente é, que
a ação de conhecimento torna-se SINCRÉTICA, resumindo atividades
cognitiva e de execução, sem, contudo, instaurar-se processo de execução
para sua efetivação, pois esta dar-se-á nos próprios autos do processo de
conhecimento.
Assim, aboliu-se a instauração de processo autônomo, próprio, em
autos distintos, da execução de obrigação de fazer ou não fazer de titulo
judicial e, n’outro passo, pela lei 11.232/05, em vigor em 24.06.06, as obri-
gações de pagar quantia certa e de entregar coisa, guardando-se portanto,
uniformidade, no caso de tratar-se de titulo judicial(sentença no Cível
transitada em julgado, que tenha como conteúdo qualquer das obrigações
de fazer, não fazer, entrega de coisa ou pagar quantia certa).
As exceções ficam por conta de sentença que homologa instrumen-
to de transação (onde só há juízo de delibação), da sentença arbitral, de
sentença estrangeira homologada pelo Superior Tribunal de Justiça e de
sentença penal condenatória transitada em julgado, que não dispensam a
instauração de processo autônomo de execução.
Sem embargo que, é regular a admissibilidade de execução de fazer
contra os entes públicos.
CORPO DOCENTE 235
César Santos

É comum nas ações movidas contra a Fazenda Pública, suas


autarquias, fundações, que os funcionários ou servidores públicos obte-
nham a tutela liminar ou final, com a sentença, o reconhecimento e paga-
mento de alguma vantagem, que não lhes estão sendo paga, ou que lhes
foram retirada. E o deferimento inicial ou com a sentença reconhecendo a
procedência, de logo, será apostilado, nada mais sendo do que típica obri-
gação de fazer, de logo, cumprida, esclarecendo-se que, no que toca aos
valores atrasados serão objeto, sem dúvida, de precatório judicial. Portan-
to, os entes públicos podem ser sujeitos passivos de obrigações de fazer ou
não fazer, porquanto não há incompatibilidade com o emprego de
astreintes e a aplicação do art. 14, V, e seu parágrafo único, do CPC, como
meio de coerção para que os entes públicos e os seus agentes cumpram a
obrigação.
236 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

DIREITOS TRABALHISTAS E A DIGNIDADE


DO TRABALHADOR

Christianne Gurgel
Professora de Direito Processual do Trabalho e
Prática Trabalhista da UCSAL. Advogada.

Na história de evidente e acintosa exploração do trabalhador, o


Direito do Trabalho surgiu como resposta estatal, impondo deveres a
cargo do empregador e assegurando direitos trabalhistas mínimos em
favor do trabalhador.
À cada passo da evolução da cidadania, o Direito Laboral foi cada
vez mais considerado como a garantia de que o trabalhador não seria
arremessado à própria sorte nas relações de emprego, e por força da
solidariedade, que é a inspiração da sua lógica, o direito do trabalho
assume o “status” de condição essencial para a paz na sociedade.
O manto da proteção ao operário, oferecido pelo Direito Laboral,
representou a bandeira de defesa da liberdade do trabalhador e da tão
desejada dignidade.
A Ordem jurídica trabalhista, com o fortalecimento das Leis especí-
ficas, permite à classe trabalhadora a possibilidade de apresentar à soci-
edade o fim do desamparo e descaso, ficando cada vez mais para atrás a
exploração desenfreada.
Não se pode esquecer a história de sangue e suor da classe trabalhista,
como um dos grandes exemplos de evolução ética da humanidade.
Os direitos trabalhistas conquistados tornam-se instrumentos para
realização de vida digna ao trabalhador. Consagrados pela Legislação, e
elevados ao status de direitos fundamentais pela Constituição Federal de
1988, os referidos direitos laborais encontram-se sob a inspiração do
Princípio da Progressão Social, expresso no art. 7° da Carta Magna.
O referido dispositivo constitucional assegura os direitos trabalhis-
tas mínimos, ao mesmo tempo em que permite o surgimento e aplicação de
outras normas trabalhistas que visem a melhoria da condição social do
trabalhador. Assim, a interpretação constitucional nos leva à conclusão
de que não pode haver extinção ou redução dos direitos considerados
mínimos, tendo em vista a garantia da dignidade do trabalhador.
CORPO DOCENTE 237
Christianne Gurgel

Tanto o direito ao trabalho como os direitos trabalhistas devem ser


tratados como direitos humanos, até porque são direitos sociais inseri-
dos no Título correspondente aos Direitos Fundamentais da Constituição
mecanismos para reduzir as garantias trabalhistas atinge a dignidade
humana. Repita-se, como direitos inerentes à condição humana foram
recepcionados pela Carta Política Brasileira .
A dignidade do trabalho é princípio fundamental da República
Federativa do Brasil, assim assegurado na Constituição Federal1, portan-
to todos os demais dispositivos legais e constitucionais devem ser inter-
pretado à Luz deste princípio.
Como garantia fundamental que é, previsto entre o elenco dos Di-
reitos sociais, o Direito Laboral deve obedecer ao princípio da progressão
social, como já mencionado em linhas pretéritas, o que significa que me-
lhores condições devem ser alcançadas pelo trabalhador, além daquelas
já positivadas.
Proprietária que é de princípios e regras peculiares no mundo dos
contratos, a relação de trabalho encontra-se ameaçada pela cultura da
desvalorização dos direitos do trabalhador, até mesmo da própria figura
humana do trabalhador.
Na incansável luta de tornar sempre viva a dignidade do trabalho
com a garantia de que os direitos respectivos devem sempre progredir,
jamais regredir, verifica-se total ausência de respeito à pessoa humana
quando há ameaça dos direitos que assegurados para sua subsistência, e
de sua família, considerados como mínimo concedido na Carta Política
Nacional.
Para que se impeça a retrocesso social, urgente a atenção de todos
para importante aspecto na garantia da dignidade humana através da
garantia dos direitos trabalhistas já conquistados.
A criação de Lei e mecanismos que possuem como objetivo ameaçar
a existência dos direitos do trabalhador, na verdade, revelam-se modelo
da chamada “injustiça legalizada”, expressão esta utilizada pelo Mestre
Dalmo de Abreu Dalllari.
Na contramão do Princípio da Progressão social, fundamentado
no discurso de “aumentar possibilidades de trabalho” surgem as discus-
sões sobre desregulamentação das relações trabalhistas. Tal idéia tem

1
Art. 1º: A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos
Estados Membros e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Demo-
crático de Direito e tem como fundamentos: (...) III- a dignidade da pessoa huma-
na; IV- os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa.
238 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

por fim a mínima interferência e proteção do Estado nas relações de em-


prego, deixando que empregado e empregadores estabeleçam as regras
do contrato.
Percebe-se, assim, a ameaça à classe trabalhadora, em meio não
somente à ausência de trabalho, quando tratamos da possibilidade impe-
rar o negociado sobre o legislado.
Ressalte-se ainda que, o aparecimento de normas que possibilitem
a redução ou o fim dos direitos trabalhistas, como manobra para a socie-
dade acreditar em fórmula de geração de emprego, somente afasta do
Estado a responsabilidade de criar políticas públicas ou outras alternati-
vas para que se preserve a dignidade do trabalho.
Os direitos trabalhistas encontram-se insertos na Constituição Fe-
deral de 1988 entre os Direitos e Garantias Fundamentais. Assim, partin-
do-se da compreensão destes direitos como sendo inerentes à condição
do ser humano, a redução ou eliminação dos mesmos significa ofender,
violar, desprezar a dignidade da pessoa.
Não se pode tolerar a idéia do direito do trabalho, que ao longo dos
anos se apresentou como instrumento de justiça, restrinja-se à luta por
acesso ao trabalho, pondo à margem todas as garantias e direitos con-
quistados.
Para finalizar, vale transcrever manifestação do doutrinador Al-
ceu Amoroso Lima: ”O trabalho faz parte da dignidade substancial da nature-
za humana. E toda organização do esforço comum que não corresponda a essa
dignidade intríseca de sua vontade é uma forma empírica, imperfeita do dever
ser”.
CORPO DOCENTE 239
Eurípedes Brito Cunha Júnior

REGIME JURÍDICO DOS CONTRATOS


ELETRÔNICOS NO BRASIL1

Eurípedes Brito Cunha Júnior


Professor de Direito de Informática e de Ética
Geral e Profissional da Universidade Católica do
Salvador. Diretor Acadêmico do Instituto Brasi-
leiro de Política e Direito da Informática e seu
ex-presidente. Advogado militante, sócio-funda-
dor do escritório BRITO CUNHA ADVOGADOS em Sal-
vador, Bahia

RESUMO: A introdução e a proliferação dos meios eletrônicos, nos dias atuais,


possibilita a realização de negócios e a livre circulação dos fluxos financeiros
por intermédio das bolsas de valores, aquisição de produtos e serviços, transfe-
rência de numerários, tudo de forma rápida e sem qualquer contato com o
tradicional papel-moeda. À luz do Código Civil, o presente artigo pretende
demonstrar que a contratação eletrônica encontra-se abrigada pelo ordenamento
jurídico brasileiro. Define o termo “contrato eletrônico”, bem como o classifica
quanto ao grau de eletronização, à natureza da relação tutelada, ao grau de
interação homem/máquina, à simultaneidade proposta/aceitação e à subforma.
A insegurança que impera na Internet é um óbice ao desenvolvimento do co-
mércio eletrônico, mas a seleção natural realizada pelo mercado do comércio
eletrônico permitirá a sobrevivência das empresas éticas, sérias e confiáveis,
com o perecimento das demais. Ressalta a importância de se ter um bom
assessoramento, para que o contrato seja formalizado e cumpra sua função,
preservada a segurança do negócio e o interesse das partes e da sociedade.

Palavras-chave: Contrato eletrônico; Internet; Código Civil; Comércio eletrô-


nico

1
O presente artigo é uma revisão atualizada do trabalho Os Contratos Eletrônicos e o Novo
Código Civil publicado originalmente na Revista CEJ nº 19, p. 62-77, out/dez-2002,
editada pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal. Colabora-
ram originariamente Fernando Berbert de Castro, Delegado de Polícia Federal, ex-advo-
gado, ex-professor de Direito da Informática da Faculdade de Direito da Universidade
Católica do Salvador, e Thiago Tavares Nunes de Oliveira, então Acadêmico de Direito
e de Administração de Empresas, atualmente professor de Direito da Informática da
Faculdade de Direito da Universidade Católica do Salvador e palestrante em matéria
de Software Livre e de Combate à Pornografia Infantil na Internet.
240 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

SUMÁRIO: I. Introdução. II. O Direito Natural, o Direito Positivo e o Direito


Cibernético. III. Requisitos de validade contratual no novo Código Civil. IV.
Elementos constitutivos do contrato. V. Proposta de classificação dos contratos
em geral quanto à forma. VI. Formação contratual (momento e local) de acordo
com o novo Código Civil . VII. Contratos eletrônicos. 1. Definição de contrato
eletrônico. 2. Adoção do termo eletrônico, em detrimento de outros. 3.
Classificação dos contratos eletrônicos. 3.1. Quanto ao grau de eletronização.
3.2. Quanto à natureza da relação tutelada. 3.3. Quanto ao grau de interação
homem/máquina. 3.4. Quanto à simultaneidade proposta/aceitação. 3.5. Quanto
à subforma. 4. Local de formação. 5. Momento de formação. 6. Foro competente.
VIII. Recomendações e Conclusão. IX. Bibliografia.

I. INTRODUÇÃO

A contratação pela via eletrônica é uma realidade dos tempos atu-


ais, em que tudo se pode adquirir através dos meios eletrônicos, de produ-
tos a serviços, de um simples sabonete à lista inteira de compras em um
supermercado, de um ingresso para o teatro a um tour pelo mundo, incluin-
do passagem de avião, passeios turísticos, hotéis etc.
Por outro lado, proliferam os meios eletrônicos de pagamento, situ-
ação em que, sem contato com o papel-moeda, pequenas ou vultosas somas
são transferidas do comprador para o vendedor, do tomador para o
prestador de serviços.
Não se trata de ficção, mas da absoluta realidade. Prova disso é a
financeirização do mundo e a conseqüente volatilidade do capital, ou seja,
a livre circulação dos fluxos financeiros através das bolsas de valores, tudo
isso num piscar de olhos.
Em aparente contraposição ao quanto afirmado no primeiro pará-
grafo, a contratação eletrônica não constitui novidade, como se pode equi-
vocadamente pensar. Desde meados do Século XX, ao discorrer sobre o
objeto da situação jurídica, e mais especificamente acerca das coisas sóli-
das e fluídas, Carnelluti traçou uma linha divisória entre uma nova e uma
antiga teoria das coisas, em que o “regime jurídico da eletricidade”2 foi o
ponto de rotura revelador da angústia da teoria tradicional em face dos
novos fenômenos.

2
CARNELUTTI, Francesco. Teoria geral do direito. São Paulo: Lejus; 1999 (Pág.
245). Trata-se de uma tradução do original Teoria generale del diritto.
CORPO DOCENTE 241
Eurípedes Brito Cunha Júnior

Carnelutti constatou, com a clareza que lhe é própria, que perplexos


viram-se os juristas daquela época diante do problema da definição e trata-
mento dos fenômenos jurídicos relativos à eletricidade. Aqueles considera-
dos por ele como juristas dúcteis, práticos, contornaram os problemas atra-
vés de deduções lógicas3. Para ele, a necessidade de sistematização teórica
tornou-se imperativo, “vez que as relações jurídicas sobre a eletricidade se torna-
ram o primeiro, ou antes, o mais antigo exemplo de uma série cada vez mais
numerosa”, referindo-se, a título de exemplo, à radiofonia e à televisão, esta
última então prestes a entrar em operação. O respeitado autor não estava
errado.
Voltando ao Século XXI, enquanto o legislador perde tempo com
discussões infrutíferas, vemos a realidade bater à nossa porta, sem que
nós, pobres consumidores, possamos exigir a indicação de endereço físico,
dados cadastrais e telefones para contato dos fornecedores que
disponibilizam produtos e serviços na Internet. O criptógrafo e Professor
Pedro Rezende bem percebeu e traduziu a angústia da sociedade em face
dessas discussões vazias e infrutíferas4.

3
Idem. (pág. 245 a 246). Disse o autor que a eletricidade não parecia ser objeto de
furto, já que algo que não se toca, não se vê, e nem parece ser coisa. Trouxe a lume
duas posturas diante do novo: “Tal a força do hábito que, na Alemanha, para que tais fatos
fossem punidos, foi necessário promulgar uma lei especial. Sinal, certamente, da maior dutilidade
da inteligência latina é que nossos magistrados tenham preferido inverter o silogismo, e, em vez
de deduzir do fato de a eletricidade não ser uma coisa que esta não se pode roubar, terem
deduzido da verificação de que pode ser roubada a conclusão de que deve ser uma coisa.”
4
REZENDE, Pedro Antonio Dourado de. As possíveis leis de assinatura digital no
Brasil. Disponível na Internet em <http://www.cic.unb.br/docentes/pedro/trabs/
leis.htm >. Uma destas discussões diz respeito à adoção da assinatura digital com
criptografia de par de chaves assimétricas. É importante esclarecer que um estudo
sério sobre o assunto conduz à compreensão de que a criptografia com par de chaves
assimétricas é conceito, bem explicado pelo Prof. Pedro Rezende da Unb, e não
‘tecnologia’, ou seja, criptografia não é tecnologia, nem engessa a tecnologia. A respei-
to, vale transcrever o seguinte texto de sua lavra: “Condeno, combato e repilo a
classificação da criptografia assimétrica como sistema tecnológico, já que é conceito
semiótico. Criptografia assimétrica quer dizer literalmente ‘escrita com ocultação não
simétrica’. Os três substantivos nesta definição lexical remetem respectivamente à
linguagem, à cognição e à geometria, perenidades que independem de qualquer ferra-
menta ou lei criada pelo homem, antecedendo e sobrevivendo a utilidade de nossos
ordenamentos jurídicos e nossos sistemas tecnológicos. Tal conceito tem parentesco
com outros que já conhecemos da semiótica, como o de escrita por alfabeto, o de
escrita por ideograma, o de escrita numérica posicional — com seus sistemas decimal
e binário, e o de escrita numérica não posicional — cujo sistema mais conhecido hoje
é o romano”. Igualmente recomendável o debate travado com o Prof. Augusto Tavares
Rosa Marcacini, denominado “Assinatura digital em debate com um Professor do
direito processual” Disponível na Internet em <http://www.cic.unb.br/docentes/
pedro/trabs/debatsindex.htm>
242 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

Com a vigência do novo Código Civil Brasileiro, Lei nº 10.406/2002,


a partir de 11 de janeiro de 2003, um anos após sua publicação no Diário
Oficial da União, perdeu o legislador a oportunidade de torná-lo mais
conforme as necessidades do nosso tempo, a exemplo da fixação de nor-
mas sobre a segurança na contratação por meios eletrônicos5. Como o pro-
cesso legislativo é lento, caminhando a passos de tartaruga, enquanto o
fato social anda a galope, não é demais repetir que o direito anda a reboque
dos fatos.
O Projeto do novo Código Civil tramita há mais de duas décadas. A
Lei Modelo da UNCITRAL (United Nations Comission for International
Trade Law) data de 1996. Não se trata de uma lei propriamente dita, mas
de diretrizes ou recomendações que devem as nações utilizar como base
para suas normas internas acerca do comércio eletrônico, inclusive no que
tange à assinatura digital, que é a ferramenta adequada para estabelecer a
necessária segurança na contratação eletrônica. Em magnífica obra, o Pro-
fessor Augusto Tavares Rosa Marcacini traça um panorama da regula-
mentação das assinaturas digitais no Brasil e no mundo6. Desde o ano de
1995 estados norteamericanos de Utah e da Califórnia regulamentaram a
utilização da assinatura eletrônica. A partir de 1997 vários países já edita-
ram normas sobre o comércio eletrônico, adotando as diretrizes da Lei
Modelo, a exemplo da Alemanha e Itália (1997), Espanha (1999) e França
(2000).
Embora o Projeto de Lei da Câmara nº 1589/99 da Câmara dos De-
putados seja a mais importante iniciativa legislativa no setor, no Brasil,
Marcacini lembra que a primeira disposição a tratar do tema foi a Instrução
Normativa nº 17, de 11 de dezembro de 1996, editada pelo Ministério da
Administração Federal e Reforma do Estado.
Esclarece Marcacini que apenas em 5 de setembro de 2001, com o
Decreto nº 3.587, é que foi instituída a Infra-Estrutura de Chaves Públicas
do Poder Executivo Federal. Portanto, restrita ao âmbito da Administração
Pública Federal.
Hoje o PLC nº 1589/99 e o PLC 1.483/99 encontram-se apensados
ao PLC nº 4.906/2001 (PLS nº 672/99), com a redação dada pelo substitutivo
do Deputado Julio Semeghini, aprovado pela Comissão Especial da Câma-
ra dos Deputados em 26.09.2001.

5
Ressalve-se, aqui, normatização da Bovespa/BMF, sobre validade jurídica dos con-
tratos eletrônicos firmados em bolsa.
6
MARCACINI, Augusto Tavares Rosa. Direito e informática: uma abordagem jurí-
dica sobre criptografia. Rio de Janeiro: Forense, 2002 (pág. 59 a 61).
CORPO DOCENTE 243
Eurípedes Brito Cunha Júnior

Portanto, o Brasil não possui uma lei que verse especificamente so-
bre o valor probante do documento eletrônico, a assinatura digital, a
certificação digital, nem tampouco sobre o comércio eletrônico7. Não se
pode afirmar que o § 1o do art. 10 da Medida Provisória nº 2200/20028
versa sobre o valor probante do documento, já que apenas transporta para
o documento eletrônico o princípio da presunção de veracidade da decla-
ração em relação ao subscritor.
Por “Comércio eletrônico”, num sentido mais amplo, há que se refe-
rir não só às transações que visam à prática de atos comerciais ou que dela
resultam, como também a todas as transações eletrônicas, ainda que fora
do âmbito da relações comerciais, tais como aquelas de natureza civil e até
mesmo as abrigadas pelo direito administrativo.
Os números do comércio eletrônico são assombrosos e evidenciam
uma intensa e crescente atividade por seu intermédio. O constante cresci-
mento da quantidade de páginas na Internet apontam nesse sentido. Em
julho de 2000, o panorama mundial era de cerca de 7 bilhões de páginas,
em outubro de 2001 eram 313 bilhões de páginas (eMarketer)9, e para o
final deste ano de 2002 estão previstas 350 bilhões de páginas (Sap)10 na
Internet. Só no Brasil, em outubro de 2001, eram 4,3 bilhões de páginas
(Megasolutions)11. Hoje os principais bancos nacionais concentram boa
parte de seus esforços no desenvolvimento de produtos direcionados para
as transações eletrônicas, dando primazia ao homebanking e ao atendimen-
to eletrônico nas próprias agências, tendo transferido para um terceiro
plano o atendimento pessoal, tradicional, nas agências bancárias, que nos
dias atuais encontram-se completamente desertas de funcionários.
Devido à falta de regulamentação legal, as empresas buscam prote-
ger-se e criar um certo nível de segurança para si e para seus consumido-
res, adotando certificados digitais em seus sites, a exemplo do que fazem os

7
A vigente Medida Provisória nº 2.200/2001 não trata da contratação eletrônica. Ela
instituiu a Infra-estrutura de Chaves Públicas Brasileira, além de fazer breve refe-
rência a alguns institutos do direito da informática que serão objeto de definição na
futura Lei do Comércio Eletrônico.
8
Art. 10. Consideram-se documentos públicos ou particulares, para todos os fins
legais, os documentos eletrônicos de que trata esta Medida Provisória.
§ 1º As declarações constantes dos documentos em forma eletrônica produzidos
com a utilização de processo de certificação disponibilizado pela ICP-Brasil presu-
mem-se verdadeiros em relação aos signatários, na forma do art. 131 da Lei nº
3.071, de 1º de janeiro de 1916 - Código Civil.
9
Disponível na Internet em < http://live.emarketer.com/>
10
Disponível na Internet em <http://www.sap.com/>
11
Disponível na Internet em <http://www.megasolutions.com.br/>
244 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

bancos e as principais lojas virtuais, a exemplo da Americanas.com e da


Submarino.com.
É nesse cenário em que nos encontramos hoje em dia. Atividade
crescente. O comércio eletrônico é uma realidade, desafiando o legislador,
que deixou-se dominar pelo turbilhão da globalização, sem se dar conta do
quanto a sua inércia pode prejudicar a economia nacional e os interesses
da sociedade.
Cumpre, doravante, enfrentar a realidade e por mãos à obra, investi-
gando a respeito da legalidade da prática de atos através dos meios eletrô-
nicos, seja por intermédio de uma breve e simples reflexão, como o presente
trabalho, seja pela via de integração da norma, modo pelo qual o estado-
juiz supre as lacunas deixadas pelo legislador.

II. O DIREITO NATURAL, O DIREITO POSITIVO E O DIREITO


CIBERNÉTICO

O direito natural, assim como o direito positivo, evoluem com o de-


senrolar da história. Há, todavia, diferentes posturas atitudinais dos juris-
tas em face do “novo”. Conforme lição do Professor Osmar Brina Corrêa
Lima12 no Simpósio Internacional de Direito Comercial Eletrônico e Teleco-
municações13, “o juspositivista concentra-se nas regras. O jusnaturalista, nos
valores e nos princípios.”
Para o Professor Brina, de um lado, “o juspositivista privilegia o valor
mais concreto da segurança”, “traduzida em lei”, ou seja, confundindo “o Di-
reito com a lei e tornando-se escravo dela”, ainda que esta se ache “sempre na
retaguarda” dos fatos. Por outro lado, o Professor Brina considera que “o
jusnaturalista privilegia o valor mais abstrato da justiça”, encarando o Direito
como uma “realidade procurada”, buscando “o Direito e a Justiça por intermé-
dio da lei”, sendo desta seu “senhor”, esculpindo-a. Daí, pontifica o nobre
mestre que, enquanto para o juspositivista, os “desdobramentos da informática
constituem um impasse”, “para o jusnaturalista, ao contrário”, “geram um desa-
fio a mais”.

12
LIMA, Osmar Brina Correia. (sem título). Belo Horizonte: Inédito, 2002 (pág. 4). A
página eletrônica do Professor Doutor Osmar Brina Correia Lima, cuja leitura reco-
mendo, está Disponível na Internet em <http://www.obcl.com.br/>, mas não con-
tém citado artigo.
13
O Simpósio Internacional de Direito Comercial Eletrônico e Telecomunicações foi
realizado entre os dias 14 e 16 de agosto de 2002, em Belo Horizonte-MG, sob a
coordenação científica do Professor Carlos Rohrmann, Doutor em Direito.
CORPO DOCENTE 245
Eurípedes Brito Cunha Júnior

No artigo intitulado Do Direito Natural ao Direito Artificial14, o


Professor Alexandre Freire Pimentel traça uma breve “notícia histórica do
direito natural”, salientando que, conforme Tércio Sampaio Ferraz Júnior,
encontra-se enfraquecida a dicotomia “entre direito natural e direito positi-
vo”, esclarece que a “atual influência do direito natural” provém do século
XVIII quando, sob o império do racionalismo jurídico, “o direito natural
adquiriu o status de ‘genuína disciplina jurídica’.”
Para o Professor Pimentel, a positivação do direito natural, até mes-
mo em cláusulas pétreas de nossa carta magna, contribuiu para o enfra-
quecimento da citada dicotomia, com perda da força do direito natural,
encontrando-se hoje presente seu objeto, o que para ele fica evidenciado
quando da tentativa do jurista em “descobrir-lhe substitutos para-univer-
sais”, “como o princípio da legalidade, da autonomia privada, etc”. Ele sugere
que, a isso, “some-se a teoria do direito artificial de Vittorio Frosini, que intenta
‘ressuscitá-lo’ e transformá-lo numa ‘jurisprudencia more geometrico
demonstrata’.”
A denominação “direito artificial” foi empregada por Frosini em
“contraposição semântica” à expressão “direito natural”.
A excentricidade do “direito artificial-cibernético” estaria no fato de
proporcionar possível solução técnica para “o problema do ordenamento
jurídico através do uso do computador”, conectando “a cibernética à jurispru-
dência”, “com o uso da lógica simbólica” e “da álgebra de Boole”. O resultado
da “redução do problema jurídico a uma dimensão lógica”, mediante “um
raciocínio perfeitamente objetivo”, seria considerado como direito artificial,
“totalmente tecnizado”. Com isso, contribuiria para afastar a “aparente an-
títese entre jusnaturalismo e juspositivismo jurídico”, no que tange à “segu-
rança jurídica”.
Pimentel leciona que a contraposição meramente semântica entre
o direito natural e o direito artificial não afeta a “finalidade ética que este
último objetiva restabelecer”, “com o emprego da tecnologia cibernética à experi-
ência jurídica”, que é “a hegemonia jusnaturalista”. Nesse mesmo contexto,
o termo “Giuritecnica”, empregado por Frosini, corresponderia à utiliza-
ção dos novos recursos tecnológicos no campo jurídico.
Mas se a informática e os novos recursos tecnológicos facilitaram a
tarefa de pesquisa e documentação dos juristas, também fez incrementar

14
O artigo encontra-se publicado no site do IBDI, Instituto Brasileiro da Política e do
Direito da Informática, Disponível na Internet em <http://www.ibdi.hpg.ig.com.br/
artigos/alexandre_freire/001.html>
246 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

uma série de problemas, tais como o a falsidade ideológica, a pedofilia, a


proliferação de mensagens difamatórias, dentre inúmeros outros.
É pertinente observar que o direito posto não resolve todas as ques-
tões, mas o jurista deve cumprir sua função social, enfrentando as situa-
ções novas, por vezes utilizando-se de analogia ou valendo-se dos princí-
pios universais do direito, outras vezes positivando o direito, tipificando
penalmente condutas socialmente reprováveis etc.

III. REQUISITOS DE VALIDADE CONTRATUAL NO NOVO


CÓDIGO CIVIL

O novo Código Civil Brasileiro, a exemplo do Código de 1916, dei-


xou de conceituar o contrato, para que a doutrina o fizesse. Em sua essên-
cia, o art. 104 do Código Novo manteve os anteriores requisitos para a
validade do negócio jurídico, a saber: agente capaz; objeto lícito, possível,
determinado ou determinável; forma prescrita ou não defesa em lei.
Mas numa análise comparativa pormenorizada, vê-se que o art. 82
do Código Antigo não desce a esse nível de detalhe. Estabelece a norma
antiga que a validade do ato jurídico requer agente capaz, objeto lícito e
forma prescrita ou não defesa em lei.
Por capacidade há de se falar em jurídica, no sentido de ser titular de
direitos, e a de agir, que é a de poder ser parte em processo judicial, atuar
judicialmente.
Quanto à forma, deve-se contratar de acordo com o que a lei determi-
nar, ou ao menos não vedar. É o princípio da livre forma. Não há impedi-
mento legal para a compra e venda mediante contrato verbal de um vaso de
cerâmica numa feira livre. Mas o pacto antenupcial, para ser válido, deve
ser lavrado em escritura pública. Adiante, será proposta uma classificação
dos atos jurídicos quanto ao requisito forma.
Avanços ocorrerem em relação à positivação de entendimento dou-
trinário, no texto novo, de modo a evidenciar que não basta a presença da
idoneidade legal do objeto contratual, mas à possibilidade material de sua
concretização. Não só o objeto jurídico deve ser legal, como também o obje-
to da relação jurídica deve ser realizável. Ainda que não seja o bem deter-
minado em um primeiro momento, deve ser determinável.
Não se pode, contudo, afirmar que a modificação do texto legal haja
provocado uma mudança de sentido, teórico ou prático, em relação à nor-
ma anterior.
CORPO DOCENTE 247
Eurípedes Brito Cunha Júnior

IV. ELEMENTOS CONSTITUTIVOS DO CONTRATO

Os elementos constitutivos do contrato, ou sua “força propulsora”,


na lição de Orlando Gomes15, são aqueles que permitem aos interessados
a condução da intenção de contratar, de modo a permitir ao outro interes-
sado, de interesse contraposto, o conhecimento e a respectiva condução,
visando à coincidência entre elas como o nascedouro do contrato. Tra-
tam-se das declarações receptícias de vontade (oferta e aceitação) e ainda
da coincidência entre ambas (o consenso).
O proponente é aquele que emite a declaração receptícia da vonta-
de denominada proposta, objetivando contratar. O oblato é o destinatário
da proposta que emite a declaração receptícia da vontade chamada acei-
tação.
Tem-se como proposta uma declaração receptícia de vontade emi-
tida por quem realmente pretende contratar. Não pode ser considerada
proposta uma declaração estapafúrdia, inconsistente, feita por brinca-
deira ou gracejo. A proposta séria é vinculante, obriga o proponente ao
seu cumprimento.
Enquanto a intenção de ofertar se mantiver apenas na mente de
quem pretende externá-la, o fato é de nenhum valor jurídico. A partir do
instante em que a oferta é produzida, ou seja, em que ocorre a exteriorização
da vontade de contratar, o fato torna-se juridicamente importante, na

15
GOMES, Orlando. Contratos. Rio de Janeiro: Forense, 1990 (pág. 45 e 46). Pare ele,
“requer o contrato, para valer, a conjunção de elementos extrínsecos e intrínsecos. A
doutrina moderna distingue-os sob os nomes, respectivamente, de pressupostos e requisi-
tos.
Pressupostos são as condições sob as quais se desenvolve e pode desenvolver-se o contrato
(FERRARA). Agrupam-se em três categorias, conforme digam respeito: 1.o) aos sujeitos; 2.o)
ao objeto; 3.o) à situação dos sujeitos em relação ao objeto. Todo contrato pressupõe:
a) capacidade das partes; b) idoneidade do objeto; c) legitimação para realizá-lo.
Esses pressupostos devem estar presentes no momento em que o contrato se realiza ou alcança
vigor (BETTI). São, portanto, extrínsecos, embora se integrem posteriormente na relação
contratual. Mas, não bastam. A lei exige outras condições para o contrato cumprir sua função
econômico-social típica. São requisitos complementares, considerados elementos intrínse-
cos indispensáveis à validade de qualquer contrato: a) o consentimento; b) a causa; c) o
objeto; d) a forma. Porque pressupostos e requisitos se completam, confundem-se, apesar
de serem diversos. Por simplificação, diz-se que são requisitos essenciais à validade do
negócio jurídico: a capacidade do agente, a possibilidade do objeto e a forma, esta
quando prescrita em lei. Sendo o contrato negócio jurídico bilateral, a vontade dos que o
realizam requer exame à parte, por ser particularização que precisa ser acentuada. Assim, o
acordo das partes adquire importância especial entre os elementos essenciais dos negócios
jurídicos bilaterais. É, de resto, sua força propulsora.”
248 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

medida em que o evento declaração há que produzir efeito na mente de


outrem. É ela o ato que serve para a satisfação da necessidade de trans-
missão do pensamento.16
Para produção da declaração da vontade, o que importa não é se
isso ocorre de forma escrita, verbal ou eletrônica, mas o fim a ser alcançado.
Carnelutti expôs metáfora de forma tão cristalina, que a transcrição é inevi-
tável: “o modo de declaração consiste, pois, numa transformação da realidade tal,
que permita a transmissão do pensamento. Se, para auxiliar o raciocínio, me permi-
tem aqui comparar o pensamento com uma mercadoria, direi que o que se trata aqui
é de construir o veículo e o motor que o transporte. A metáfora, embora grosseira,
pode ser útil, porque permite ver que assim como são preciso os mais minuciosos
cuidados na embalagem e expedição das mercadorias para garantir a sua integri-
dade, algo de semelhante se passa para assegurar bom termo às viagens do pensa-
mento.”17
Além da exteriorização do pensamento, da manifestação da declara-
ção receptícia de vontade, apresenta-se como elemento essencial para a forma-
ção do vínculo contratual o consenso, porque se o feirante João oferta uma
dúzia banana e o consumidor José diz ao primeiro que quer um cento de
laranja, esta segunda manifestação não é uma aceitação, mas uma
contraproposta. O consenso deve corresponder à coincidência entre as decla-
rações de vontade, ainda que os interesses sejam opostos: o de João de vender
e receber o respectivo preço; o de José de levar o alimento para sua prole.

V. PROPOSTA DE CLASSIFICAÇÃO DOS CONTRATOS EM GERAL


QUANTO AO REQUISITO FORMA

Para a validade do ato jurídico, conforme visto acima, um dos requi-


sitos é a forma, que deve ser prescrita ou não defesa em lei (art. 104 do
novo). Prescrita é a forma que a lei assim estabelece ou que as partes
convencionaram como tal.
A validade da declaração de vontade não dependerá de forma espe-
cial, senão quando a lei expressamente a exigir (art. 107 do novo e 129 do
antigo). Assim, desde que a lei não exija para certa avença um documento
escrito, esta pode ser celebrada verbalmente.
A escritura pública é essencial à validade dos negócios jurídicos
que visam à constituição, transferência, modificação ou renúncia de direi-
tos reais sobre imóveis de valor superior a trinta vezes o maior salário
mínimo vigente no País (art. 108 do novo, sem correspondência exata com

16
Carnelutti. Op. Cit. (pág. 444).
17
Idem. (pág. 444).
CORPO DOCENTE 249
Eurípedes Brito Cunha Júnior

o antigo, é semelhante ao art. 134, II. O sentido do art. 108, combinado com
o 215, eqüivale a uma refundição dos art. 130 e 134), bem como naqueles
celebrados com a cláusula de não valer sem instrumento público (art. 109
do novo e 133 do antigo).
Excetuando-se as situações em que os contratos devam ser escritos,
solenes ou não, nada obsta que sejam celebrados de forma verbal, ou de
qualquer outra forma que a mente humana seja capaz de imaginar ou in-
ventar.
Embora o novo Código Civil não tenha inserido expressamente a
forma eletrônica de contratação em nosso ordenamento jurídico, o fez de
maneira indireta, envolvendo as situações em que as partes estão presen-
tes, assim como aquelas em que estão ausentes. Tais modificações, embora
poucas em quantidade e pequenas se comparadas ao texto anterior, repre-
sentam um grande avanço, servindo como um calmante para a inquietação
do operador do direito, que certamente diminuiu, acaso não se haja dissi-
pado inteiramente.
Um avanço diz respeito à ampliação da noção de contratos entre
presentes contida no preceito do art. 1.081, inciso I do código vigente, pois
a novel lei equiparou ao telefone, como meio de comunicação para a forma-
ção contratual, outros meios de comunicação que a estes se assemelhem
(art. 428, I), conforme já observara Érica Brandini Barbagalo18, à época do
processo legislativo.
Outro avanço, observado com o mesmo cuidado pela citada autora,
versa sobre a substituição da noção de contrato epistolar, do caput do art.
1.086 do código antigo, pela de contratos entre ausentes (art. 434, caput),
portanto, ampliada, na mesma esteira daquele outro dispositivo.
Com isso, e sem necessidade de enumerá-lo explicitamente, o novo
Código Civil admitiu a contratação na forma eletrônica, seja entre ausentes
ou entre presentes. Daí, é correto afirmar que os contratos podem ser reves-
tidos de forma verbal, escrita, solene ou eletrônica.
Pode parecer impróprio falar em forma eletrônica, na medida em que
é evidente que um contrato celebrado por e-mail ou por documento a ele
anexado e um outro celebrado através de uma videoconferência são
extrinsecamente tão diferentes. Por isso, e porque não é possível dispensar
a todos os contratos eletrônicos o mesmo tratamento, a forma eletrônica é
um gênero que comporta várias espécies que serão podem ser denominada
subformas, as quais serão examinadas ao longo do tópico que versa sobre a
classificação dos referidos contratos.

18
BARBAGALO, Érica Brandini. Contratos eletrônicos. São Paulo: Saraiva, 2001(pág.
54).
250 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

VI. FORMAÇÃO CONTRATUAL (MOMENTO E LOCAL) DE ACORDO


COM O NOVO CÓDIGO CIVIL

A definição do momento e do local de constituição do contrato tem


relevância para o direito, na medida em que são determinantes para a
verificação da existência da relação jurídica, das obrigações constituídas,
dos prazos prescricionais e decadencias, da legislação aplicável e do foro
competente para processar a julgar eventuais feitos entre as partes.
Quando entre presentes, por dedução lógica, o contrato se forma no
local em que se encontram os contratantes. Já em relação ao momento da
formação, este ocorre no instante em que se dá a aceitação, ou seja, quando
o oblato aceita a proposta a ele dirigida.
A ficção legal de que é considerado entre presentes o contrato cele-
brado por telefone é conseqüência do fato de que, embora haja uma distân-
cia física entre os contratantes, existe a possibilidade de troca imediata de
declarações de vontade.
LOPES, ARRANZ e CASTRO lecionam a respeito do tema, com sim-
plicidade e clareza: “Analizando, en primer lugar, los conceptos de declaración
de voluntad entre presentes y ausentes, hay que decir que sobre este punto hay
varias teorías: unas que utilizan como determinante el criterio de la distancia física
entre los contratantes; otras el de la distancia física y el medio utilizado para
exteriorizar la voluntad; e por último, la que se basean en la distancia jurídica.
Frente a esta diversidad de teorías, consideramos que es independiente el criterio
utilizado para la determinación de la ausencia o presencia de los contratantes, dado
que es la falta de intercambio inmediato de declaraciones de voluntad, la que
determina la ausencia en la contratación.” 19
Quando entre ausentes, o contrato se forma no local onde foi pro-
posto (art. 435 do novo Código Civil, 1.087 do antigo). A norma guarda
pertinência com os preceitos da Lei de Introdução ao Código Civil, que no
caput do art. 9º consigna que regerá as obrigações a lei do país em que se
constituírem e, no § 2º do mesmo dispositivo que a obrigação resultante do
contrato reputa-se constituída no lugar em que residir o proponente.
As duas teorias mais aceitas entre as que buscam estabelecer o mo-
mento exato em que se dá a formação contratual são a teoria da expedição e a
teoria da recepção. De acordo com esta última, o contrato se forma no instante
em que o aceite chega à esfera de conhecimento do proponente (à caixa de

19
LOPES, V. Carrascosa, ARRANZ, M a . A. Pozo, CASTRO, E. P. Rodríguez. La
Contratación informática: el nuevo horizonte contractual. Gradana (Espanha):
Comares, 1999. (pág. 25).
CORPO DOCENTE 251
Eurípedes Brito Cunha Júnior

correspondência do prédio onde reside ou à sua caixa postal de correio


eletrônico). Não significa dizer que o proponente deva ter necessariamente
lido o teor resposta, mas que ele esteja apto a fazê-lo. Diversamente, a teoria do
conhecimento ou da cognição é aquela que considera formado o vínculo
contratual somente após o conhecimento da aceitação; Para a primeira o
contrato é considerado formado com a expedição da resposta, não bastando
a simples intenção em enviar a resposta, mas efetivamente fazê-lo. A teoria da
vontade, por sua vez, admite que a formação contratual ocorre quando o
oblato aceita a proposta, antes mesmo de manifestá-la ao proponente.
Nosso ordenamento acolheu como regra geral a teoria da expedição.
Assim é que o novo Código Civil diz expressamente que os contratos entre
ausentes tornam-se perfeitos desde que a aceitação é expedida (art. 434),
seguindo a mesma orientação da norma anterior (art. 1.086), inclusive quan-
to às exceções (se antes da aceitação ou com ela chegar ao proponente a
retratação do aceitante; se este se houver comprometido a esperar resposta;
ou se esta não chegar no prazo convencionado).

VII. OS CONTRATOS ELETRÔNICOS


VII. 1. DEFINIÇÃO DE CONTRATO ELETRÔNICO

Na esteira da positivação de entendimentos da melhor doutrina, o


Código Civil Novo incorporou expressamente princípios contratuais tais
como os da função social do contrato e da boa fé objetiva, bem como outros,
por influência do contexto social em que se inseriu o direito das relações de
consumo, como os princípios da interpretação mais favorável ao aderente e
da nulidade das cláusulas que estipulam a renúncia antecipada do aderen-
te a direito resultante da natureza do negócio.
A propósito da função social do contrato, ARNOLD WALD assevera
que a mesma “não deve afastar a sua função individual, cabendo conciliar os inte-
resses das partes e da sociedade. Assim, os direitos contratuais, embora exercendo
uma função social, constituem direitos adquiridos (art. 5º, XXXVI) e gozam, nos
termos da CF, da proteção do devido processo legal substantivo (art. 5º, LIV), em
virtude do qual ninguém pode ser privado dos seus bens - e dos seus direitos que
também se incluem entre os bens - sem o devido processo legal”.20 Para ele, essa é a
única interpretação aceitável em nosso regime constitucional, e considera
que a inovação não põe em risco a sobrevivência do contrato.

20
WALD, Arnold. Um novo direito para a nova economia: a evolução dos contratos
e o Código Civil. Publicado na Revista Síntese de Direito Civil e Processual Civil nº
12 - JUL-AGO/2001 (pág. 39).
252 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

Apesar dessas importante inovações, o novo Código Civil, assim,


como o antigo, não definiu o que seja um contrato, deixando essa tarefa
para a doutrina. É correto afirmar que um contrato decorre de um acordo de
vontades, que resulta da coincidência entre duas declarações receptícias
de vontade – oferta e a aceitação –, objetivando a produção de efeitos no
mundo jurídico, com a constituição, modificação, conservação ou extinção
de direitos, obrigando as partes ao seu cumprimento.
Em termos genéricos, o contrato eletrônico é aquele avençado ou
executado pela via eletrônica. O contrato celebrado através dos meios ele-
trônicos, ou seja, eletrônico na sua formação, pode ser considerado mais
eletrônico do que um contrato avençado por modo tradicional mas com
execução eletrônica. Assim, pode-se afirmar que o contrato celebrado ele-
tronicamente é eletrônico strictu sensu, enquanto o contrato simplesmente
executado eletronicamente o é latu senso. Portanto, as duas categorias estão
compreendidas dentro do escopo dos contratos eletrônicos.
Diante dessas considerações, contrato eletrônico é o acordo de von-
tades, celebrado ou executado por via eletrônica, que visa constituir, modi-
ficar, conservar ou extinguir direitos, obrigando os respectivos acordantes.

VII. 2. ADOÇÃO DO TERMO ELETRÔNICO, EM DETRIMENTO DE


OUTROS

Primeiramente, há que se ter em mira que os contratos considerados


eletrônicos são os celebrados ou executados através dos meios eletrôni-
cos21, ou seja, eletrônica é a forma de celebração ou execução contratual, e

21
O Projeto de Lei 1.483/99 define como documento eletrônico “a informação gerada,
enviada, recebida, armazenada ou comunicada por meios eletrônicos, ópticos, opto-
eletrônicos ou similares”. Isso porque os equipamentos eletrônicos e os meios de
transmissão tidos como eletrônicos não se apresentam de forma eletrônica pura.
Geralmente há participação efetiva de componentes ópticos (cabos de fibra óptica,
discos e leitoras ópticas), opto-eletrônicos (conversores, a exemplo do equipamento
de linha óptica, que converte os sinais elétricos que trafegam nos circuitos eletrôni-
cos dos equipamentos em sinais ópticos aptos a trafegarem pelas transparentes
fibras ópticas de silício ou germânio que integram os cabos ópticos). Com a trans-
missão no espaço livre (rádio e TV comerciais abertas, ou seja, não assinadas; trans-
missão por satélite) os sinais elétricos são modulados e trasladados para uma
freqüência de transmissão compatível com a do equipamento de recepção. As ante-
nas transmissoras são conversores eletromagnéticos que transformam os sinais elé-
tricos em ondas eletromagnéticas que viajam pelo espaço e são atenuados com o
aumento da distância do local de recepção. As antenas de recepção fazem o proces-
so inverso, captando sinais eletromagnéticos e convertendo-os em sinais elétricos.
CORPO DOCENTE 253
Eurípedes Brito Cunha Júnior

não o objeto em si, que pode também ser eletrônico. Mas este não define
necessariamente a forma, integrando, ao contrário, seu conteúdo.
Assim, seria razoável denominarem-se eletrônicos os contratos que
fossem celebrados ou, em algum momento, ainda que parcialmente, execu-
tados em meio eletrônico.
Em contraponto, são ora propostas as seguintes denominações: con-
tratos informáticos; contratos virtuais; e contratos artificiais-cibernéticos.
Segundo LOPES, ARRANZ e CASTRO22, informáticos são os contra-
tos que têm por objeto os bens produzidos pela informática, tais como os
contratos de licença de uso de software, de desenvolvimento de software,
de locação de equipamentos, de leasing de máquinas, de manutenção de
equipamentos, de manutenção de bases de dados, etc. Tem-se daí que, nos
contratos informáticos, a informática fornece os bens por eles tutelados, mas
não exatamente os meios de celebração ou execução. Por exemplo, quando
se entra numa loja, na Avenida Sete de Setembro, na Cidade de Salvador, e
se obtém na prateleira um software produzido em série, está-se a celebrar –
por adesão – um contrato de licença de uso de software, na forma da Lei
9.609/98.
Por outro lado, num exame perfunctório do termo no léxico, e sem
pretender adentrar em discussão de cunho filosófico, que pode ser bem
explicitada por Pierre Lévy23, o filósofo da Cybercultura, virtual é o “que não
existe como realidade, mas como potência ou faculdade; que eqüivale a outro, po-
dendo fazer as vezes deste, em virtude ou atividade; potencial; que não tem efeito
atual; possível”24. Um contrato celebrado em meio eletrônico pode ser execu-
tado até mesmo logo em seguida, a exemplo de um download que se dá logo
em seguida ao fornecimento de um número do cartão de crédito. Os contra-
tos eletrônicos sérios – como qualquer outro contrato sério – são reais,
verdadeiros, sinceros, não meramente potenciais. Na medida em que o co-
mércio eletrônico se expande na sociedade moderna, tais contratos devem
impor confiabilidade, para que não haja descrédito e subsequente desuso.
Imagine-se que, por hipótese e amor ao debate, fossem considerados virtu-
ais os contratos celebrados ou executados através dos meios eletrônicos.
Isso tornaria muito fácil burlar a legislação consumerista, deixando de

22
LOPES, ARRANZ, e CASTRO. Op. Cit. (pág. 109).
23
LÉVY, Pierre. O que é o virtual. Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Ed. 34, 1996.
24
MICHAELIS: Moderno dicionário da língua portuguesa. São Paulo: Companhia
Melhoramentos, 1998 (pág. 2208).
254 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

fornecer um produto que já teve seu preço pago pelo consumidor, ao argu-
mento de que não haveria obrigação a ser cumprida por tratar-se de um
contrato meramente virtual, que não constituiria obrigações reais, mas mera
faculdade do proponente em obrigar-se à proposta. Por isso, parece impró-
prio denominar tais contratos como virtuais.25
Com relação à denominação de contrato artificial-cibernético, ou sim-
plesmente artificial, já foi transcrita anteriormente lição do Professor Ale-
xandre Freire Pimentel, na qual deixa demonstrada claramente a intenção
de Vittorio Frosini em contrapor semanticamente o termo artificial ao natu-
ral. A explicação por si só bastaria para encerrar a discussão.
Mas se se considerar artificiais os contratos celebrados eletronica-
mente, apenas por argumentar, ter-se-ia que, à semelhança dos contratos
virtuais, estes não seriam reais. E pior do que isso, a possibilidade de tor-
nar-se reais ficaria submetida ao talante dos contratantes (proponente e
aceitante), em afronta ao princípio do pacta sunt servanda, como se proposta
e aceitação não gerassem nenhum efeito jurídico. Portanto, tais contratos,
seja porque praticamente inexistentes, seja em razão do simples potencial
que representam, não interessam ao mundo jurídico.
Ainda que se impute ao contrato verbal uma certa dificuldade quan-
to à produção de prova em juízo, é certo que testemunhas (as prostitutas
das provas)26 podem depor com a finalidade de comprovar sua existência.
A um contrato escrito, ainda que por instrumento particular, difícil a prova
contrária de sua existência, em razão de sua materialidade. Ora, se consi-
deramos que num contrato celebrado eletronicamente a prova pode ser
produzida por meio de perícia técnica, que é costumeiramente mais, diga-

25
O faço com todas as venias dos autores que tratam de “contratos virtuais”. Como
referência, para eventual estudo acerca das justificativas que amparam as denomi-
nações “direito virtual” e “contrato virtual”, indico o sítio do culto e inteligente
Professor Doutor Carlos Rohrmann, Coordenador científico do Simpósio Internaci-
onal de Direito Comercial Eletrônico e Telecomunicações, realizado entre os dias 14
e 16 de agosto de 2002, em Belo Horizonte, Minas Gerais, autor de diversos artigos
sobre o tema, Disponível na Internet em <http://home.earthlink.net/~lcgems/
index.htm>
26
Faço tal afirmação sem qualquer preconceito ou tom pejorativo às profissionais do
sexo, mas por imperativo de esclarecer tratar-se de alguém que satisfaça necessida-
des momentâneas do interessado. O respeito à própria condição humana de luta
pela sobrevivência, da necessidade de integração ao mercado de trabalho, para
garantir a subsistência, me levou a escrever essa frase que geralmente se diz mas
não se escreve.
CORPO DOCENTE 255
Eurípedes Brito Cunha Júnior

mos, isenta, que a prova testemunhal, e se consideramos na vida atual, que


contratos avençados verbalmente, quando conhecidos por terceiros, são
objeto de controle social, chamar-se de artificial um contrato celebrado ele-
tronicamente seria negar a existência do contrato (a realidade do contrato)
e da própria perícia que comprovou sua existência, o que seria uma afirma-
ção tautológica, sem aplicação de natureza prática.
Há que se falar em contratos eletrônicos e não em contratos informáticos,
nem virtuais nem artificiais, porque os celebrados e os executados eletroni-
camente versam sobre quaisquer assuntos, têm objeto diversificado, não
apenas os bens da informática, e salvo em caso de participação de um ou
outro aventureiro eletrônico, devem ser verdadeiros, reais, devem partir da
oferta de gente séria e comprometida com o respeito que merece a atividade
mercantil.

VII. 3. CLASSIFICAÇÃO DOS CONTRATOS ELETRÔNICOS

Aqui é proposta uma classificação sistemática, de modo a propiciar


uma melhor compreensão do fenômeno contratual eletrônico. Trata-se de
uma classificação de cunho essencialmente prático, e, certamente por isso
mesmo, sem o rigor científico dos doutos. Mas como se trata de análise de
situação nova, há que se correr o risco da crítica.
Dado o cunho prático acima mencionado, serão citados exemplos,
que não são taxativos, mas meramente ilustrativos, que servem para
visualizar o cenário que interessa.
Se mostra importante a classificação dos contratos eletrônicos por-
que, a depender do respectivo enquadramento, ter-se-á respondido acerca:
a) do local de formação contratual, para definição da legislação
aplicável ao contrato objeto de exame e, a depender da situação específi-
ca, do foro competente para processar a julgar feitos que cuidem sobre as
controvérsias entre as partes, que decorram da inexecução contratual
etc.;
b) do momento da formação contratual, instante em que passa a
existir a relação jurídica, obrigações são constituídas, passam a ser conta-
dos os prazos prescricionais e decadencias;
Os contratos eletrônicos classificam-se:
Quanto ao grau de eletronização
Quanto à natureza da relação tutelada
Quanto ao grau de interação homem/máquina
Quanto à simultaneidade proposta/aceitação
Quanto à subforma
256 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

VII. 3. 1. QUANTO AO GRAU DE ELETRONIZAÇÃO

Os contrato eletrônicos podem ser classificados de acordo com o


maior ou menor grau de eletronização27. Esta classificação ajuda a compre-
ender melhor as demais classificações que se seguem, bem como a afastar
os mitos eventualmente existentes acerca do tema.
As características de tempo (momento e duração) em que o emprego
das novas tecnologias influem na formação ou na execução contratual
ditam o grau de eletronização do contrato. Em outras palavras: um contra-
to que necessitou do emprego de meios tecnológicos para que pudesse se
formar é um contrato mais eletrônico do que outro apenas executado por
esses meios. O primeiro é tecnológico na sua raiz, na sua formação.

VII. 3. 1. 1. CONTRATOS EXECUTADOS ELETRONICAMENTE

Os menos eletrônicos dos contratos são aqueles apenas executados


eletronicamente, sendo celebrados em meio físico. Estes podem ser subdivi-
didos em parcial ou integralmente executados em meios eletrônicos. Ambos
são tradicionais na sua formação, celebrados fisicamente. Geralmente são
formas de execução de “contratos-mãe” ou “contratos-guarda-chuva” celebra-
dos que agasalham obrigações com prestação diferida no tempo.

VII. 3. 1. 1. 1. CONTRATOS PARCIALMENTE EXECUTADOS


ELETRONICAMENTE

Hoje em dia é comum o credenciamento de fabricantes de determi-


nados produtos, junto à indústria automobilística e aos grandes varejistas,
para que tais produtos sejam fornecidos a estes, quando o controle de esto-
que da montadora de automóveis ou do supermercado acusar uma baixa.
Os fornecedores celebram previamente um contrato escrito com seus clien-
tes comerciais, após habituais negociações. Os computadores dos contra-
tantes são então programados para formular as requisições eletrônicas,
visando à execução contratual, ou seja, máquinas são previamente progra-
madas para atender aos interesses dos contratantes.

27
Justiça se faça, surgiu-me a idéia de adotar esta classificação quando presenciava um
debate entre os advogados Sérgio Ricardo Marques Gonçalves e Mauro Leonardo Cu-
nha, na Conferência Direito da Informática, realizada em São Paulo, em agosto de 2000,
quando este último disse não haver contrato eletrônico puro. Daí, pensei que poderia
haver um escalonamento, uma gradação quanto à pureza eletrônica do contrato.
CORPO DOCENTE 257
Eurípedes Brito Cunha Júnior

A maior ou menor demanda pelo mercado consumerista determina-


rá, em conseqüência, o volume de componentes ou partes (lanternas, lâm-
padas, pneus, baterias, volantes, parafusos etc.) a serem adquiridos pela
montadora, bem como de produtos (sabão em pó, biscoito, vinho etc) a
serem comprados pelo supermercado.
Os produtos acima mencionados são bens tangíveis, físicos, que
podem ser vistos e tocados. Eles serão objeto de recebimento físico pelo
adquirente. Com isso, apenas uma parte da execução se dá de forma eletrô-
nica.
Nesses contratos, por terem sido celebrados por via tradicional, não
haverá dificuldade em se identificar o momento e o local de sua formação.

VII. 3. 1. 1. 2. CONTRATOS INTEGRALMENTE EXECUTADOS


ELETRONICAMENTE

Há situações outras em que o contrato pode ser celebrado fisicamen-


te, e integralmente executado eletronicamente. Servem como exemplos os
contratos de cartão de crédito e de manutenção de banco de dados.
Quanto aos primeiros, vale citar aqui a hipótese em que a utilização
do cartão ocorre somente através de maquinetas eletrônicas e o pagamento
se dê através de meio eletrônico, a fim de evitar controvérsias a respeito do
grau de eletronização dos mesmos. Os contratos de cartão de crédito prevê-
em a concessão de um certo limite de crédito pela empresa administradora
do cartão, bem como o pagamento correspondente ao valor utilizado, além
das taxas de anuidades e encargos de parcelamento e financiamento das
despesas, e encargos de mora, quando aplicáveis.
Ainda que o titular do direito de uso do cartão de crédito, com estes,
adquira bens tangíveis mediante contrato de compra e venda destes, e os
pague com o cartão, há que se notar que (o contrato de compra e venda) se
trata de outro contrato distinto daquele (o contrato de cartão de crédito).
Os contratos de manutenção de banco de dados são habitualmente
celebrados em meio físico, mas executados eletronicamente. As máquinas
onde estão instalados os bancos de dados podem fisicamente se encontrar
no ambiente físico da empresa proprietária do referido banco ou fora (mas
nesta situação, haveria um outro contrato para o armazenamento do banco
de dados). A manutenção pode ser efetuada no próprio local onde estive-
rem as máquinas ou em outro, mediante o acesso telemático. A execução
desse contrato se dará de forma inteiramente eletrônica, pois seu objeto é
eletrônico – o banco de dados – e sua manutenção não implica em
materialização do objeto.
258 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

O contrato do provimento de hospedagem, desde que oriundo de


uma celebração por meio tradicional, pode se enquadrar nesta categoria.
Também nesses contratos, assim como nos anteriores, parcialmente
executados eletronicamente, mas celebrados por via tradicional, não haverá
dificuldade quanto à identificação do momento e do local de sua formação.

VII. 3. 1. 2. CONTRATOS CELEBRADOS POR MEIOS ELETRÔNICOS E


EXECUTADOS FISICAMENTE

Aqui fala-se em contratos eletrônicos propriamente ditos ou contratos


eletrônicos strictu sensu. São contratos inseridos no cenário mundial das novas
tecnologias. Neles, as manifestações de vontade dos contratantes – oferta e
aceitação – se dão por meios de transmissão eletrônica de dados, enquanto o
registro das respectivas transações ocorre em meio virtual.
Essa espécie de contrato pode ser considerada mais eletrônica que as
anteriores porque o contrato é eletrônico desde sua formação, em seu
nascedouro. Para sua celebração impõe o emprego de recursos tecnológicos,
muito embora a execução se dê da forma tradicional.
A compra e venda de bens, duráveis ou não, através de páginas eletrô-
nicas na Internet, é o melhor e mais típico exemplo da hipótese. Os serviços
prestados fisicamente podem também ser enquadrados nesta categoria.
É grande a quantidade de homepages conhecidas do internauta que
ofertam bens duráveis (discos, livros, equipamentos eletrônicos, eletrodo-
mésticos etc.) e perecíveis (pizza, lanches em geral, compras de supermer-
cados etc.). Umas são genuinamente digitais, oriundas do novo cenário
mundial, nasceram eletrônicas, enquanto outras são empresas tradicio-
nais que se digitalizaram a fim de manter-se na vanguarda das relações
comercial no mundo digital desmaterializado28, de não perder o rumo da
história. Geralmente são páginas hospedadas em computadores previa-
mente programados, nas quais a oferta está à disposição do público, e, de
maneira dedutiva, quase automaticamente, o destinatário da oferta interage
com o computador do ofertante.
Nesses casos, a formação contratual se dá no instante em que o
aceitante, mediante um clique confirmatório, emite inequívoca declaração

28
A Internet, exemplo mais corriqueiro da situação enfocada embora não seja o único,
não é nem pode ser considerada ambiente físico, mas um megacanal de comunica-
ção. Mundo digital desmaterializado significa uma quebra de paradigma, em termos
de canal de comunicação, do que se apresenta hoje em dia em relação ao que existia
antes do emprego das novas tecnologias nas relações entre as pessoas.
CORPO DOCENTE 259
Eurípedes Brito Cunha Júnior

receptícia da vontade de contratar, isso após preencher um cadastro que o


identifique individualmente e escolher os produtos que pretende adquirir.
Há situações que diferem do que foi visto acima, e, por isso mesmo,
merecedoras de tratamento diverso. Tais hipóteses serão examinadas no
tópico que versa sobre a classificação quanto ao grau de interação homem/
máquina.

VII. 3. 1. 3. CONTRATOS FIRMADOS E EXECUTADOS ELETRO-


NICAMENTE

São estes tipicamente inseridos no mundo virtualizado29, intangível.


Tais contratos não são apenas celebrados eletronicamente como também
são executados dessa forma, por isso, são os contemplados com um maior
grau de eletronização em relação as categorias anteriores.
É paulatinamente crescente a quantidade de produtos e serviços
enquadrados na hipótese, da qual são interessantes exemplos a prestação
de serviços de informação (por e-mail, pager e telefone celular), os contratos
de licença de uso de software (quando estes são baixados diretamente do
comerciante que o fornece, mediante download, sem a necessidade de utili-
zação de outros dispositivos físicos além do próprio computador do
adquirente da licença) e a compra de créditos de créditos de celular pré-
pago via Internet.
O tratamento dispensado à categoria anterior, no que tange ao mo-
mento e local da formação do contrato será igualmente aplicado à presente.

VII. 3. 2. QUANTO À NATUREZA JURÍDICA DA RELAÇÃO TUTELADA

É o mesmo que classificar o contrato quanto à natureza jurídica do


direito material envolvido ou fazê-lo quanto à qualidade das partes envol-
vidas.
A doutrina enlatada importada, melhor dizendo, a doutrina nacio-
nal recepcionista de estrangeirismos, adotou denominar os contratos que
versam sobre relações comerciais de B2B, ou business to business, para ex-
pressar que se trata de um contrato entre dois empresários ou duas empre-
sas.

29
A palavra virtual não está sendo empregada aqui em seu sentido técnico, porque já
foi antes explicitada a inadequação do termo virtual no âmbito do direito. Aqui ela
é utilizada em seu sentido vulgar, de algo inerente ao mundo da informática, intan-
gível.
260 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

Na mesma linha, B2C, ou business to consumer, diz respeito a uma


relação consumerista, entre uma empresa fornecedora e uma empresa.
Mas como no bojo do comércio eletrônico estão todas as formas de
transações – comerciais, consumeristas, civis e até de direito público (admi-
nistrativo) – bem como as comunicações eletrônicas em geral, há que se de-
nominar comércio eletrônico lato sensu o gênero que engloba todas essas tran-
sações, quer de direito público ou privado, em contraposição à espécie comér-
cio eletrônico stricto sensu, que versa somente sobre as relações B2B e B2C.
Diante disso, e para não fugir à regra adotada genericamente por
todos, não resta outra alternativa a não utilizar o C2C (já referido na doutri-
na), e lançar aqui as denominações G2C, o B2G e o G2G30, até porque, na
prática, eles já existem, conforme adiante esclarecido.
C2C ou P2P dizem respeito às relações civis ou pessoais (não me
limitando às pessoas físicas), fora do âmbito do comércio propriamente
dito. Tais relações não estão excluídas dos meios eletrônicos. É perfeita-
mente viável o perfazimento de uma avença entre duas pessoas como, por
exemplo, a compra e venda de um carro usado, através da troca de e-mail
ou de mensagens eletrônicas por telefones celulares. Não difere destas a
natureza jurídica da relação entre as pessoas que colocam à disposição de
eventuais interessados os seus bens em páginas de terceiros, ainda que
haja dúvida quanto à relação dos interessados em face do terceiro, que se
autodenomina leiloeiro virtual.
O G2C e o B2G representam relações entre o particular e a adminis-
tração pública. Estas integram o comércio eletrônico em sentido amplo,
embora isso não ocorra no sentido restrito.
O cidadão hoje é beneficiário da prestação de serviços públicos por
meio da Internet. A obtenção de certidões digitais junto a diversos órgão
públicos, nas diversas esferas de poder, através da Internet, é uma realida-
de do G2C, o Governo Eletrônico31.
O Governo Federal e os de alguns Estados do Brasil já possuem ou
estão implantando o portal COMPRASNET. No âmbito do Governo Federal,
COMPRASNET é o sítio32 na Internet que presta serviços e divulga informações
sobre licitações, e no qual os fornecedores podem tomar conhecimento das
licitações em andamento.

30
Para fazer justiça, inclui duas últimas categorias por sugestão do Dr. Pedro Marcos
Cardoso Ferreira, culto advogado baiano, pós-graduado em Direito Público.
31
São exemplos de órgão que fornecem certidões a Secretaria da Receita Federal Dis-
ponível na Internet em <http://www.receita.fazenda.gov.br> e o Ministério da Pre-
vidência Social Disponível na Internet em <http://www.mpas.gov.br/>
32
O sítio de compras do Governo Federal está Disponível na Internet em <http://
www.comprasnet.gov.br/>
CORPO DOCENTE 261
Eurípedes Brito Cunha Júnior

No âmbito do Governo do Estado da Bahia, COMPRASNET é o canal de


compras online do Estado, tendo como principal objetivo ampliar a divul-
gação de seus serviços33. Através do referido portal do poder executivo
baiano já possui, em pleno funcionamento, empresas previamente cadas-
tradas e em situação regular (conforme exigências das leis federal e estadu-
al sobre licitações públicas) habilitam-se a fornecer o objeto dos respectivos
editais. Ganha a administração pública, por simplificar, acelerar e barate-
ar os processos licitatórios, ganham os licitantes, com a transparência no
procedimento, que resulta em maior equilíbrio entre eles. A economia ope-
rada pela administração gera para os administrados em geral, a comuni-
dade, uma maior possibilidade de investimento na área social.
A hipótese (licitação) não é exatamente a de um contrato eletrônico
(celebração ou execução eletrônicas), mas refere-se a atos preliminares no
âmbito da administração pública, inseridos no contexto das transações
eletrônicas em geral, ou do comércio eletrônico lato sensu.
Por fim, as transações eletrônicas envolvem as relações G2G, ou res-
tritas ao âmbito da administração pública. Também aqui não há falar-se
em contratação, mas em atos administrativos praticados dentro de uma
esfera de abrangência. O repertório legal existente no país contempla o
Decreto nº 3.996/2001, que dispõe sobre a prestação de serviços de
certificação digital no âmbito da Administração Pública Federal, além de
haver revogado o Decreto nº 3.587/2000 que instituiu e estabeleceu nor-
mas para a ICP-Gov, a Infra-estrutura de Chaves Públicas do Poder Execu-
tivo Federal Brasileiro.

VII. 3. 3. QUANTO AO GRAU DE INTERAÇÃO HOMEM/MÁQUINA

Essa classificação foi proposta por Mariza Delapieve Rossi e adota-


da por Érica Brandini Barbagalo34. Outros autores propuseram classifica-
ções assemelhadas à presente, mas não exatamente iguais à aqui mencio-
nada35. Embora esta classificação aqui incorporada não seja inovadora, a
denominação o é.

33
O sítio do Estado da Bahia, citado aqui como um exemplo, dentre outros sítios
estaduais, está Disponível na Internet em <http://www.comprasnet.ba.gov.br/>
34
ROSSI, Mariza Delapieve apud BARBAGALO. Op. cit. (pág. 51). Na nota nº 91 de
rodapé, a autora faz referência ao artigo “Aspectos legais do comércio eletrônico –
contratos de adesão”, publicado aos Anais do XIX Seminário Nacional de Proprie-
dade Intelectual, promovido pela Associação Brasileira de Propriedade Intelectual.
35
BARBAGALO. Op. Cit. (pág. 48 e 50). A autora referiu-se a Cesar Viterbo de Matos
Santolim, Manoel Joaquim Pereira dos Santos e João Vicente Lavieri.
262 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

De acordo com tal classificação, os contratos podem ser interpessoais,


interativos ou intersistêmicos.

VII. 3. 3. 1. CONTRATOS INTERPESSOAIS

Os interpessoais são aqueles em que as mensagens eletrônicas são


trocadas entre pessoas (pessoa-pessoa), como ocorre, por exemplo, em
contratação por e-mail, em um chat36 ou numa videoconferência. A compra
e venda via homepage pode ser enquadrada nesta hipótese quando a pági-
na eletrônica não oferecer recursos para aceitação automática da oferta,
dispondo, contudo, de um e-mail para contato.
Como as páginas de comércio eletrônico mais conhecidas, mais fa-
mosas são interativas, ou seja, o consumidor interage com a máquina, o
intérprete é levado a pensar que todas as páginas eletrônicas que há ofertas
ao público funcionariam da mesma forma. Ledo engano.
Embora seja crescente o número de páginas interativas, é importan-
te que se esclareça que não basta a existência de oferta ao público. Se é
oferecido um e-mail para que o aceitante possa manifestar sua vontade,
significa que não é possível a troca imediata de declarações de vontade e,
por isso mesmo, o contrato, embora eletrônico na sua formação, é ora clas-
sificado como interpessoal, e celebrado entre ausentes. A formação se dará
no instante em que o aceitante expedir o e-mail que contém sua declaração
de vontade.

VII. 3. 3. 2. CONTRATOS INTERATIVOS

O contratos interativos são aqueles que permitem a interação de


uma pessoa com uma máquina, como ocorre nas páginas eletrônicas mais
modernas, em que o internauta seleciona os produtos que deseja adquirir,
e após esse processo, declara sua vontade de aceitar a oferta mediante um
clique confirmatório. É com esse ato que se dá a formação do contrato.
Portanto, não basta que a homepage do empresário virtual contenha
simplesmente um telefone para contato, nem o seu endereço de e-mail. Para
que a hipótese esteja contemplada, impõe-se que seja possível o intercâm-
bio imediato de vontades.
É igualmente importante salientar que a contratação não se dá entre
homem e máquina. A máquina é previamente programada, em conformi-

36
Sala de bate-papo na Internet, também conhecido como bate-papo virtual.
CORPO DOCENTE 263
Eurípedes Brito Cunha Júnior

dade com a vontade do comerciante. Quando alguém alcança uma página


de um fornecedor de discos musicais, o primeiro elemento constitutivo do
contrato, a oferta, já está à disposição de possíveis interessados. Desse
modo, a aceitação é suficiente para dar lugar ao consenso formador do
contrato.
Não é objetivo deste trabalho adentrar na seara dos contratos de
adesão, que imperam universalmente, dentro e fora da áreas onde as novas
tecnologias são empregadas, porque eles fazem parte da vida moderna, na
qual a dimensão tempo parece ser cada vez menor. Em contraposição aos
males criados por esse cenário, em que muitas vezes a parte mais fraca (não
somente o consumidor37) é obrigada a aceitar as cláusulas em pacotes,
mediante esquemas uniformes, no dizer de Alberto do Amaral Júnior38, sem
chance de discuti-las, o novo Código Civil preceitua acertadamente que,
nos contratados de adesão, as cláusulas ambíguas ou contraditórias de-
vem ser interpretadas de forma mais favorável ao aderente (art. 423), esta-
belecendo, ainda, a nulidade das cláusulas que estipulem a renúncia ante-
cipada do aderente a direito resultante da natureza do negócio (art. 424), o
que significa um avanço social.

37
São cláusulas abusivas, na dicção do art. 51 do Código de defesa do Consumidor,
entre outras, as relativas ao fornecimento de produtos e serviços que impossibili-
tem, exonerem ou atenuem a responsabilidade do fornecedor por vícios de qualquer
natureza dos produtos e serviços ou impliquem renúncia ou disposição de direitos,
subtraiam ao consumidor a opção de reembolso da quantia já paga, transfiram
responsabilidades a terceiros e as que coloquem o consumidor em desvantagem
exagerada. A relação do art. 51 do CDC é meramente exemplificativa. Seu regula-
mento, o Decreto nº 2.181/97, traz uma relação extensa de cláusulas abusivas,
constantemente ampliada por Portarias da Secretaria de Direito Econômico do
Ministério da Justiça.
38
AMARAL JR., Alberto do. Comentários ao Código de Proteção do Consumidor.
Juarez de Oliveira (Coordenador). São Paulo: Saraiva, 1991 (Pág. 204 e 205). Se-
gundo o autor, que é um dos co-autores do anteprojeto do CDC: “Nos contratos de
massa, as cláusulas contratuais são predeterminadas, unilateralmente, mediante a
elaboração de esquemas uniformes, que deverão se repetir em todos os contratos
celebrados pelo predisponente.
Os contratos de massa suprimem todas as negociações prévias, cabendo ao aderen-
te aceitar ou recusar em bloco o regulamento uniforme que lhe é apresentado. O
traço essencial que os singulariza não é tanto a diferença econômica entre as partes,
mas o poder de estabelecer unilateralmente as cláusulas que deverão integrar o
instrumento contratual.
Enquanto os contratos individuais são precedidos pela ampla discussão das cláu-
sulas que compõem o seu conteúdo, os contratos de massa são contratos por
adesão para os clientes ou consumidores que, em regra, não discutem as suas
cláusulas, como sucederia nos contratos isolados.”
264 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

VII. 3. 3. 3. CONTRATOS INTERSISTÊMICOS

Diz-se intersistêmicos os contratos operados entre máquina e má-


quina, em que os empresários programam previamente suas máquinas, de
modo a executar o que foi antes avençado. A menção à “operação” dá-se
pelo simples fato de que, embora não esteja descartada a hipótese de uma
“celebração” intersistêmica, parece de pouco alcance prático.
São basicamente aqueles mesmos contratos menos eletrônicos, em
que comerciantes que programam previamente suas máquinas, para que
possam executar parcialmente na forma eletrônica um contrato de forneci-
mento de componentes para a indústria automotiva ou de produtos para
os supermercados.
Já que foi ligeiramente mencionada a celebração de contratos de
maneira intersistêmica, imagina-se que, com a evolução da tecnologia, tal-
vez torne-se possível ao ser humano, futuramente, valer-se dos mesmos.
Atualmente, a hipótese parece improvável. Todavia, em razão da
confiabilidade que merecer cada comerciante que eventualmente
disponibilizar ofertas ao público (o que somente pode ser aferido, percebi-
do, pela experiência humana), seria temerário para um consumidor valer-
se da contratação intersistêmica. Por isso, a referência e o exemplo têm
cunho meramente acadêmico.
Seu funcionamento se daria da seguinte forma: o consumidor inte-
ressado em adquirir determinado produto muniria sua máquina de infor-
mações acerca do produto (um vinho, por exemplo) como o tipo da uva, a
safra, o país, a região e o produtor de origem, transporte desejado para a
remessa, seus dados pessoais básicos, inclusive endereço para entrega do
produto e o número do cartão de crédito. Tendo o consumidor fornecido
informações essenciais para a realização do negócio, poderia deixar seu
computador operar automaticamente, varrendo a Rede em busca da oferta
mais em conta (preço e frete).
Se todos aqueles que disponibilizam ofertas na Internet fossem me-
recedores da mesma confiança, o consumidor poderia ir tranqüilo para o
cinema ou para a praia. Como há na Internet quem utilize “fachadas”
comerciais com o único intuito de se apropriar de números e de códigos de
segurança de cartões de crédito, a fórmula acima sugerida é inviável no
cenário atual, pois exige uma certa dose de sensibilidade e de experiência
do consumidor para que não se deixe levar por falsas promessas de comer-
ciantes pouco confiáveis. O exemplo do vinho deve-se a mero devaneio,
não a qualquer experiência malsucedida.
CORPO DOCENTE 265
Eurípedes Brito Cunha Júnior

Ao contrário da contratação intersistêmica, a execução intersistêmica


é plausível, ainda que não se saiba previamente de qual dos fornecedores
determinado produto será adquirido (quando o computador da empresa
adquirente fizer uma varredura entre fornecedores), justamente porque os
fornecedores de componentes contrataram previamente com a indústria,
sendo desta conhecidos.

VII. 3. 4. QUANTO À SIMULTANEIDADE PROPOSTA/ACEITAÇÃO

A classificação dos contratos quanto à simultaneidade proposta/


aceitação não apresenta dificuldades. Podem ser classificados em simultâ-
neos ou não simultâneos.
Simultâneos ou online são os que possibilitam a troca imediata, ins-
tantânea, de declarações de vontade. Por isso são considerados como cele-
brados entre presentes. Se no Código Civil antigo era necessário recorrer à
analogia, para equiparar a contratação eletrônica simultânea àquela por
telefone, de que trata o disposto no art. 1.081, inciso I, 2a parte, que reputa
entre presentes os contratos celebrado desta forma, agora esse recurso é
dispensável, em razão da redação abrangente do dispositivo correspon-
dente na nova lei, que diz expressamente, no art. 428, inciso, I, que a
contratação por quaisquer outros meios de comunicação que ao telefone se
assemelhem será tida como entre presentes. De forma não taxativa, enqua-
dram-se na hipótese a contratação em chats, por videoconferência, ICQ, MS
Messeger e através de homepages, nos casos em que esta última for comple-
tamente interativa, conforme descrito anteriormente.
Não simultâneos ou off-line são os contratos em que as manifestações de
vontade ocorrem de forma diferida no tempo. São alguns exemplo desta
hipótese a contratação por e-mail, por fax, e através de homepages, nos casos
em que esta última não for completamente interativa, possibilitando a
contratação apenas conforme descrito no tópico que trata de contratos
interpessoais. Eqüivaliam aos contratos por correspondência epistolar objeto
do disposto no caput do art. 1.086 do Código antigo, dispositivo agora trasla-
dado para o caput do art. 434 do novo, que cuida de contratos entre ausentes.
A presente classificação não comporta contratos com menor grau de
eletronização, os contratos intersistêmicos.

VII. 3. 5. QUANTO À SUBFORMA

A forma contratual diz respeito ao modo da declaração da vontade,


sendo, assim, verbal, escrita, solene ou eletrônica.
266 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

As maneiras pelas quais a declaração de vontade manifestada ele-


tronicamente, pode se expressar, são as subformas.
A presente classificação quanto à subforma é imprecisa, não traduz
qualquer pretensão do autor de fixá-la, mas é meramente ilustrativa, dada
a dinâmica com que os meios eletrônicos surgem e evoluem. É imprecisa
porque ora contempla o protocolo de transmissão, ora a forma pela qual se
mostram perceptíveis aos sentidos humanos as manifestações de vontade,
mas como se trata de fruto da constatação (empírica) serve, na mais sim-
ples e despretensiosa hipótese, para provocar a comunidade científica e
acadêmica a traçar parâmetros que fixe esta classificação, ou que a repila.
A fala não se materializa em papel, embora numa sala de bate-papo o
texto digitado pelas partes possa ser gravado como documento eletrônico,
ou impresso, materializando-se como cópia. Subforma aqui diz respeito à
subforma original, não à transformação nem à cópia.
A subforma EDI ou IED (intercâmbio eletrônico de dados) é um proto-
colo eletrônico de comunicação adotado comercialmente, que difundiu-se
com a ampla utilização de cartões de crédito com tarjetas magnéticas.
Miriam Junqueira39 leciona que havia dois tipos básicos: o europeu e o
americano. Ainda na década de 80, convergiram para um único padrão
internacional. Por questão de segurança, as empresas utilizam variantes
dos mesmos, a fim de dificultar o intervenção indesejável de piratas eletrô-
nicos.
A subforma videoconferência, que pode ocorrer mediante o aluguel
de um sistema específico (equipamentos profissionais) ou mesmo com a
utilização de câmaras e microfones acoplados a computadores pessoais
(portanto, não tão profissionais quanto aqueles equipamentos dedicados)
invariavelmente externa-se de maneira multimídia.

39
JUNQUEIRA, Miriam. Contratos eletrônicos. Rio de Janeiro: Mauad, 1997 (pág.
68). A autora explica que o EDI “é um padrão internacional para intercâmbio
eletrônico de dados. Apresenta-se como origem da padronização os seguintes acon-
tecimentos: a) por volta de 1985, surgiram dois padrões que tiveram larga aceita-
ção: ANSI ASC X12 (American National Standards Institute Accredited Standards
Committee – Instituto Nacional Americano de Padrões – Comitê Credenciado de
Padrões), na América do Norte, GTDI (Guidelines for Trade Data Interchange – Orien-
tações para Intercâmbio de Dados Comerciais), na Europa. Embora atendessem
necessidades domésticas, a existência desses dois padrões, significantes mas dife-
rentes, criou dificuldades para o comércio internacional. b) em 1986, a UN/ECE
aprovou o ‘UN/EDIFACT’, que significa Intercâmbio Eletrônico de Dados para
Administração, Comércio e Transporte. O conceito é simples: um único padrão
internacional para o EDI, suficientemente flexível para atender às necessidades do
governo e da indústria privada.”
CORPO DOCENTE 267
Eurípedes Brito Cunha Júnior

Através do TCP-IP (protocolo de controle de transferência – protoco-


lo de Internet), usual nas comunicações na Internet, várias subformas se
expressam: e-mail, bate-papo, mensagens interativas.
A telefonia VoIP40 representa inovação quanto ao meio por onde
circula a voz de possíveis contratantes, mas a mudança não causa impacto
da contratação por telefone, expressamente positivada no Código Civil
anterior.
Os exemplos citados contém em si a própria classificação. A relação
descrita é meramente exemplificativa. A lista é crescente, em conformidade
com o avanço da tecnologia.

VII. 4. LOCAL DE FORMAÇÃO

Reputar-se-á celebrado o contrato no lugar em que foi proposto. É a


regra do art. 1.087 do Código antigo transposta para o art. 435 do novo.
Independentemente do enquadramento de um contrato no rol classificatório
visto acima, quando celebrado entre ausentes, considerar-se-á formado no
local onde foi proposto.
Quando se tratar de direito interno, i.e., quando proponente e aceitante
residirem no Brasil, a norma aplicável é a nacional. Contudo, em se tratando
de direito internacional, obrigação resultante do contrato reputa-se constitu-
ída no lugar em que residir o proponente, regendo as obrigações a lei do país
em que se constituírem, a teor do disposto no art. 9o e § 2o da LICC.
Em matéria de direito internacional, há uma tendência relativamen-
te recente, defendida por diversos autores, que se contrapõe ao entendi-
mento aqui esposado, no sentido de se considerar formado o contrato onde
tem domicílio o destinatário da oferta. Conforme esse corrente de pensa-
mento, o contrato seria formado no Brasil, se uma proposta é feita no exte-
rior, mas em língua portuguesa, possibilitando a brasileiros a contratação
de determinado produto ou serviço41. Essa tendência, a Teoria do Targeting,

40
Conforme consta na Wikipedia “Telefone por IP, VoIP ou Voz via infra-estrutura IP
é a tecnologia que torna possível estabelecer conversações telefônicas em uma Rede
IP (incluindo a Internet), ao invés de uma linha dedicada à transmissão de voz,
prescindindo da comutação de circuitos e o seu conseqüente desperdício de largura
de banda.” Disponível na Internet em <http://pt.wikipedia.org/wiki/VoIP>
Ainda segundo a Wikipedia, em razão da convergência de “serviços de dados, voz,
fax e vídeo”, também possibilita a construção de “novas infra-estruturas para
aplicações avançadas de e-commerce”. (ex., Call center Web).”
41
BARBAGALO. Op. Cit. (pág. 72).
268 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

ou seja, do “alvejamento” do destinatário da proposta, por assim dizer.


Para Tiago Gomes Fernandes42, a teoria defendida por Barbagalo traz
uma solução interessante, sendo plausível justificativa. “É uma forma
original de adequar-se uma lei ultrapassada, que vigora desde quando o
rádio era o meio de comunicação à distância mais utilizado, aos tempos
do ambiente virtual sem fronteiras.”43
Em conformidade com o nosso regramento jurídico, os contratos
eletrônicos são formados no local onde tem domicílio o proponente. Os
locais onde estão seus servidores, ou onde está o provedor de hospeda-
gem, ou o país onde foi registrado o domínio virtual da homepage do co-
merciante, bem como o fato de a proposta dirigir-se às pessoas
indeterminadas, independentemente de sua nacionalidade, são, data
maxima venia, irrelevantes para a definição da lei que regerá as obriga-
ções contratuais.

VII. 5. MOMENTO DE FORMAÇÃO

No direito brasileiro, que adotou a teoria da expedição como regra


geral, o momento da formação do contrato é aquele em que o oblato emite
a respectiva declaração receptícia da vontade, qual seja, a aceitação.
É bem de ver que, em se tratando de proposta feita sem prazo a uma
pessoa presente, o momento da aceitação deverá ser imediatamente pos-
terior ao da oferta, sob pena de, não sendo imediatamente aceita, deixar
de ser obrigatória a proposta.
Parece não haver maior dificuldade para definição do momento da
formação dos contratos simultâneos ou online. É aquele imediatamente
posterior ao da oferta.
Para os contratos eletrônicos off-line, será tido formado o contrato,
quando da expedição da aceitação.
E não se diga que, no caso dos contratos interativos, este poderia ser
considerado off-line pelo simples fato de que a oferta está disponível na
Internet, para quando o destinatário desejar contratar (desde que a oferta
ainda esteja disponível), porque isso desnaturaria tal contrato.

42
FERNANDES, Tiago Gomes. Lei aplicável aos contratos eletrônicos internacionais
de consumo. In: Direito Internacional e da Integração. PIMENTEL, Luiz Otávio
(Coordenador). Florianópolis: Boiteux, 2003. (pág. 307)
43
Idem. (pág. 307)
CORPO DOCENTE 269
Eurípedes Brito Cunha Júnior

Para Cesar Viterbo44, o direito brasileiro adotou sistema misto, com a


aplicação da teoria da cognição em relação ao proponente, e da teoria da
expedição quanto ao aceitante, com prevalência para este último.
Partindo do fato de que, em se tratando de comunicações eletrôni-
cas, a transmissão é uma certeza e a recepção é uma dúvida, a imposição de
envio pelo proponente de uma confirmação do recebimento da aceitação,
conforme prevê o Projeto de Lei do Comércio Eletrônico, é aplicável a todas
as categorias contratuais eletrônicas, não tendo o condão de equiparar
todos os contratos eletrônicos a contratos entre ausentes, e visa ao estabele-
cimento de uma segurança para as partes quanto à eficácia do negócio, não
quanto ao momento de formação contratual.

VII. 6. FORO COMPETENTE

Em se tratando de direito interno, a regra geral do Código de Proces-


so Civil é de que o foro competente para composição das lides entre as
partes é o do domicílio do réu. Poderá ser o foro do domicílio do autor se
incerto ou desconhecido o domicílio do réu, quando este não tiver domicí-
lio nem residência no Brasil. Todavia, nas ações fundadas em direito real
sobre imóveis é competente o foro da situação da coisa. As partes podem,
alternativamente, convencionar o foro de eleição, desde que não tenha esta
por objetivo o cerceio de defesa pela parte aderente. (v. art. 94 e 95 do CPC;
art. 423 e 424 do Código Civil novo).
Quando o direito material versar sobre responsabilidade civil do
fornecedor de produtos e serviços (relação de consumo), competente tam-
bém será o juiz do foro do domicílio do consumidor, se este assim preferir,
consoante preceito do art. 101, inciso I, do Código de Defesa do Consumi-
dor. O objetivo é dar cumprimento ao princípio da facilitação de sua defesa
em juízo, arrolado no inciso VIII do art. 6o da mesma norma.
Quando, porém, versar a causa sobre um contrato internacional,
impõe-se o exame da situação à luz do art. 12 da Lei de Introdução ao
Código Civil, que fixa a competência da autoridade judiciária brasileira,
quando for o réu domiciliado no Brasil ou aqui tiver de ser cumprida a
obrigação.
Não se pode afastar o império do art. 9o e seu § 2o, da LICC, em
relação ao direito material. O material aplicável é aquele ditado pelas leis

44
SANTOLIM, Cesar Viterbo Matos. Formação e eficácia dos contratos por computa-
dor. São Paulo: Saraiva, 1995 (pág. 15 a 17).
270 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

do lugar em que for formado o contrato, em que residir o proponente, se de


forma diversa não dispuserem as partes.
Em contratos comerciais internacionais, as partes costumam eleger
um tribunal arbitral para a solução de eventuais contendas, bem como as
leis aplicáveis à relação. Nos dias atuais, os grandes negócios são celebra-
dos de forma tradicional, podendo ser parcialmente executados eletronica-
mente.
Se apresenta de maneira conflituosa a aplicação do art. 101, I, do
CDC, em face do art. 12 da LICC, quando a causa versar sobre defeito de
fornecimento no âmbito das relações de consumo. Qual seria o foro compe-
tente para processar e julgar uma ação movida pelo consumidor? O do art.
12 da LICC, se o réu for nacional? O do art. 101, I, do CDC se o autor for
nacional?
O ordenamento jurídico nacional pode conter aparentes conflitos,
mas que são transponíveis. O intérprete da lei há que examinar a situação
sob dois pontos de vista: o do tempo da lei e o da especificidade desta. O §
1º do art. 2o da LICC fornece os instrumentos adequados para a transposi-
ção do problema.
A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare,
quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a maté-
ria de que tratava a lei anterior. São norma de ordem pública tanto a LICC
quanto o CDC. Hierarquicamente estão no mesmo nível. A Lei de Introdu-
ção é aplicável, genericamente, a todo o ordenamento jurídico nacional,
não apenas ao Código Civil. Já o CDC é norma posterior à LICC (quase 50
anos mais nova), além de ser específica sobre as relações de consumo. O
CDC introduziu princípios próprios dessa nova vertente do direito priva-
do, dentre eles aquele da facilitação da defesa em juízo. Por isso, em se
tratando de causa que envolva relação internacional de consumo, não se
pode afastar o império do CDC, notadamente quanto à competência do
foro do domicílio do consumidor.
Supondo que uma empresa brasileira, através de uma página intei-
ramente iterativa na Internet, ofereça artigos do artesanato nacional, terá
como potencial cliente um alienígena, da Espanha por exemplo, que dese-
jar adquirir uma panela de barro ou um cesto de palha. No caso de defeito
no fornecimento, a competente ação poderá ser proposta na Espanha. É o
que se depreende das normas citadas retro. O contrato foi constituído sob a
tutela da lei brasileira, que privilegia o foro do domicílio do consumidor.
Em outras situações, mais complexas, será necessário confrontar as nor-
mas dos ordenamentos jurídicos possivelmente aplicáveis à relação
contratual, caso a caso, para que se possa definir o foro competente.
CORPO DOCENTE 271
Eurípedes Brito Cunha Júnior

VIII. RECOMENDAÇÕES E CONCLUSÃO

O advogado é essencial à administração da justiça45, prestando, no


seu ministério privado, serviço público46. É importante que o advogado
tenha consciência de seu papel na sociedade, e que os membros desta pro-
curem um advogado de confiança para assessorá-los quando da elabora-
ção de contratos em geral.
É lamentável que os membros da sociedade considerem de pouco ou
de nenhum valor a questão formal do contrato. Carnelutti com muita pro-
priedade, alerta para o fato de que “até os mais cultos dos homens de negócios,
de um modo geral, sentem pouco a importância que pode ter para eles o problema
formal do contrato, e, por conseguinte, dão pouca atenção à necessidade de consti-
tuir tecnicamente estes instrumentos jurídicos, cujo mecanismo, de resto, não é,
para o sucesso de uma empresa, nem menos útil, nem menos delicado que o das
máquinas físicas.47”
A insegurança que ainda impera na Internet, quer em razão do ano-
nimato, quer devido à arquitetura da rede, possibilita simulações e fraudes
por aventureiros, sendo um empecilho ao desenvolvimento do comércio
eletrônico. Com o decorrer do tempo, as empresas sérias e confiáveis da
nova economia acabarão se tornando conhecidas e passarão a gozar de
boa reputação. As outras, ao contrário, se tornarão perfumaria etérea. O
mercado fará sua própria seleção natural.
A versão em lei do projeto que tramita no Congresso Nacional, que
dispõe sobre o documento eletrônico, a assinatura digital, a certificação
digital, e que institui normas para as transações de comércio eletrônico por
certo dará uma outra feição a essas relações em nosso país.
As empresas comprometidas com a credibilidade e a evolução do
comércio eletrônico tomam a dianteira no que diz respeito à adoção de dis-
positivos de segurança, de perfeita incorporação dos princípios ditados pelo
CDC às suas homepages. Afinal, “quem sabe faz a hora, não espera acontecer”48.

45
Estabelece o art. 133 da Carta Magna que o advogado é indispensável à administra-
ção da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profis-
são, nos limites da lei.
46
O Estatuto da Advocacia e da Ordem dos Advogados do Brasil, Lei 8.906/94,
dispõe, no parágrafo 1 o do art. 2o: No seu ministério privado, o advogado presta
serviço público e exerce função social.
47
CARNELUTTI. Op. Cit. (pág. 168).
48
VANDRÉ, Geraldo. Excerto do refrão da música “Para não dizer que não falei de
flores”, composta na época da ditadura militar no Brasil.
272 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

Em outras palavras o empresário que quer não apenas ser merecedor de


confiança do público, mas também parecer merecedor dessa confiança, incor-
porará os dispositivos tecnológicos de segurança mais avançados.
Por outro lado, o homem inteligente e culto, empresário ou cidadão,
que tem consciência de sua ignorância em relação ao direito, não estabele-
cerá vínculos contratuais que tutelarão suas relações sem antes, no míni-
mo, consultar a respeito um advogado.
Nada justifica a corriqueira e açodada atitude do consumidor em
simplesmente clicar, manifestando sua vontade em adquirir determinado
bem, sem antes ler integralmente o contrato. Esse contratos geralmente dis-
põem sobre a política de privacidade à qual se submete. Não raras vezes,
ao concordar com todas as cláusulas, o consumidor está permitindo ao
fornecedor dispor livremente sobre informações de caráter pessoal, dados
sensíveis a seu respeito.
O advento da Portaria SDE nº 05, de 28 de agosto de 2002, que am-
pliou o leque de cláusulas abusivas do Regulamento do CDC, Decreto 2.181/
97, limitou em parte a possibilidade de negociação, por provedores de
Internet, de dados referentes ao consumidor. Dita Portaria considera
abusiva, nos termos do seu art. 1o, inciso II, a cláusula que imponha ao
consumidor, nos contratos de adesão, a obrigação de manifestar-se contra
a transferência, onerosa ou não, para terceiros, dos dados cadastrais confi-
ados ao fornecedor. Assim, deverá ser expressa a concordância do consu-
midor com a venda de cadastro com seus dados para terceiros.
Os fornecedores devem buscar o auxílio de um advogado, para que
seus contratos padronizados de adesão estejam em conformidade com o
ordenamento jurídico.
Por cautela, e a fim de afastar o risco de possíveis discussões acerca
da lei aplicável ao contrato e do foro competente para julgamento das lides
dele resultantes, o fornecedor de produtos e serviços na Internet deve criar
obstáculos que inviabilizem a formação do contratos por aqueles com quem
ele não deseja contratar.
O consumidor deve amparar-se na opinião de um advogado, para
que não tenha que, no futuro, desgastar-se emocionalmente com pendengas
judiciais.
Um consumidor incauto geralmente o é sempre, seja pessoalmente,
seja à distância. As vítimas do tradicional golpe do vigário são potenciais49
vítimas do mesmo, ainda quando este se apresentar na forma eletrônica.
Uma recomendação bastante simples, mas de profunda repercus-
são, no âmbito contratual, é a adoção de uma lista de declarações a serem
emitidas pelo oblato, no caso de uma relação de consumo através de meios
eletrônicos. Como que se tome, como rol mínimo, declarações que digam
CORPO DOCENTE 273
Eurípedes Brito Cunha Júnior

respeito à confirmação da leitura e da concordância do consumidor quan-


to às disposições contratuais como um todo, bem como especificamente em
relação às cláusulas que permitem a veiculação de dados pessoais do con-
sumidor e das que limitem direitos ou o exercício deles.
A existência de tais declarações deve estar mencionada em cláusula
contratual, e integrar o instrumento para todos os fins e efeitos. Com isso, e
como imperativo tecnológico, para que o contrato possa ser formalizado,
i.e., expedida a resposta, necessário o preenchimento das declarações.
É de valor trazer à baila a sábia conclusão a que chegou Cesar Viterbo,
de que o computador não traz novidade acerca da “formação dos contratos e
da eficácia probatória de seus instrumentos”, embora introduza uma nova for-
ma de compreensão do tema, de modo a merecer a atenção do direito50.
Enfim, os contratos eletrônicos não apresentam nada de novo entre
o céu e a Terra, a não ser novos desafios para o jurista, que deve procurar
conhecer o fenômeno em si, já que a ele “cabe a tarefa de propor e posicionar os
problemas existentes para o direito, antes mesmo de solucioná-los”51.
Impõe-se a aprovação do Projeto de Lei do Comércio Eletrônico, pois
este visa ao estabelecimento da contratação eletrônica de forma segura,
mas enquanto isso não ocorrer, o ordenamento jurídico pátrio não deixa ao
desamparo quem optar pela contratação através dos meios eletrônicos.
Embora o Código Civil de 2002 suscite inúmeras confusões em ou-
tros campos por ele regulados, no âmbito dos contratos eletrônicos ele re-
presenta um indubitável avanço.

IX. BIBLIOGRAFIA

AMARAL JR., Alberto do. Comentários ao Código de Proteção do Consu-


midor. Coordenação de Juarez de Oliveira. São Paulo: Saraiva, 1991.

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2001.

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Carlos Ferreira. São Paulo: Lejus; 1999.

CARVALHO, Ana Paula Gambogi. Contratos via Internet. Belo Horizon-


te: Del Rey, 2001.

49
Pode-se dizer que essas são virtuais vítimas do golpe do vigário, podendo tornar-se
reais vítimas, se o golpe for levado a termo.
50
SANTOLIM. Op. cit. (pág. 41).
51
Idem. (pág. 41).
274 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

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WALD, Arnold. Um novo direito para a nova economia: a evolução dos


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Processual Civil nº 12 - JUL-AGO/2001.
CORPO DOCENTE 275
José Gomes Brito

ENSAIO SOBRE O MOMENTO DO


INTERROGATÓRIO NO PROCESSO PENAL

José Gomes Brito


Mestre em Direito pela UFBA. Professor da
Faculdade de Direito da UCSAL. Procurador
de Justiça.

A defesa no processo penal ganhou impulso com a consagração


das garantias individuais na Constituição de 1988, em especial a ampla
defesa e o contraditório. Tais garantias permeiam todos os atos processu-
ais, inclusive o interrogatório.
O interrogatório do acusado, visto por parte da doutrina como mero
meio de prova, adquiriu novos contornos com a ingerência salutar da
ampla defesa. Prevalece, atualmente, o entendimento de que o interrogató-
rio não se cinge a mero meio de prova, mas momento relevante em que o
acusado realiza a defesa pessoal1.

Sempre pensamos, em face da sua posição topográfica, fosse


o interrogatório, também, meio de prova. E como tal era
considerado. Meditando sobre o assunto – principalmente
agora que a Constituição, no art. 5º, LXIII, reconheceu o direi-
to ao silêncio –, chegamos à conclusão de ser ele, apenas, um
meio de defesa. (TOURINHO FILHO, 2005, p. 270)

No mesmo sentido, seguem as sempre pertinentes lições de Eugê-


nio Pacelli de Oliveira:

Inicialmente concebido como um meio de prova, no qual o


acusado era unicamente mais um objeto da prova, o interro-
gatório, na ordem atual, há de merecer nova leitura.

Que continue a ser uma espécie de prova, não há maiores


problemas, até porque as demais espécies defensivas são tam-
bém consideradas como provas. Mas o fundamental, em uma

1
Sobre o tema conferir: Paulo Rangel. Direito Processual Penal, 10 ed., Lumen Juris,
p.478.
276 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

concepção de processo via da qual o acusado seja um sujeito


de direitos, e no contexto de um modelo acusatório, tal qual
como instaurado pelo sistema constitucionalista das garanti-
as individuais, o interrogatório do acusado encontra-se inse-
rido fundamentalmente no princípio da ampla defesa. (2005,
p. 320)

A defesa no processo penal, para que possua a amplitude que exige


o Constituinte 1988, somente será aquela em que se associe a defesa técni-
ca à defesa pessoal, ou autodefesa2.
Uma acusação reúne aspectos fáticos e jurídicos. A defesa técnica,
exercida pelo advogado, permite refutar os aspectos jurídicos que a impu-
tação enceta. Entretanto, o conteúdo fático da acusação somente poderá
ser rechaçado com a possibilidade de manifestação do acusado, mesmo
que se limite a fornecer subsídios para que seu patrono trabalhe com a
prova.
O respeito ao direito do réu de defender-se pessoalmente da acusa-
ção que lhe pesa integra a garantia da ampla defesa, prevista constitucio-
nalmente. O Constituinte não se satisfaz com a garantia da assistência
pelo advogado. É preciso que o réu tenha voz no processo, podendo con-
tribuir, concretamente, com a produção da prova que, diga-se, servirá para
condená-lo ou absolvê-lo.
E tal necessidade decorre do fato de ser a declaração do réu meio de
defesa. E o Estado quer que o acusado se defenda. A defesa é uma injunção
legal. Não apenas a defesa técnica (art. 261 e respectivo parágrafo do CPP),
como também a autodefesa ou defesa material. (TOURINHO FILHO, 2005,
p. 275)
A efetividade do contraditório também consagra a participação
pessoal do acusado no processo penal. Assegurar seu direito de reação
apenas atende ao aspecto formal da garantia. Contudo, o conteúdo do
contraditório, o aspecto material da garantia, somente será assegurado se
essa reação for efetiva. O processo penal deve abrir espaço para que, via
garantia do contraditório, o acusado tenha a oportunidade de rechaçar a
acusação que pesa sobre ele, principalmente os aspectos fáticos, por ve-

2
Neste trabalho a expressão autodefesa e defesa pessoal serão usadas como sinônimos.
Essa ressalva faz-se importante considerando a posição do sempre respeitado
Fernando de Almeida Pedroso, para quem defesa pessoal é aquela desempenhada
pelo acusado, enquanto que a autodefesa é a defesa técnica desempenhada pelo
próprio réu, quando possuir capacidade postulatória, como o advogado. (2001, P.
35)
CORPO DOCENTE 277
José Gomes Brito

zes, quando a estes, certamente poderá contribuir muito mais que seu
defensor.
Por outro lado, a República Federativa do Brasil, nos termos do art.
1º da CF, assenta-se sobre o fundamento do Estado Democrático de Direi-
to. Tal fundamento deve irradiar por toda atividade estatal, inclusive pelo
próprio processo penal.
A Democracia no processo penal, inerente ao Estado Democrático
de Direito, implica a participação plúrima de todos os envolvidos na rela-
ção processual, o que inclui, evidentemente, a participação efetiva do réu.
Isso posto, a participação pessoal efetiva do réu no processo penal
decorre tanto das garantias da ampla defesa e do contraditório, como do
próprio sustentáculo da República Federativa do Brasil, caracterizando
um reflexo do postulado da democracia no processo penal.
Como exemplos do novo perfil que adquiriu o interrogatório como
meio de defesa, tem-se a Lei nº. 10.792/03, que alterou o CPP, permitindo
a formulação de perguntas pelas partes (art.188), além do direito de entre-
vista reservada com seu advogado, antes da audiência (art. 185, §2º).
Explicitada, em breves linhas, a relevância da participação pessoal
do acusado no processo penal, impende apreciar o momento em que essa
intervenção deva ocorrer.
Segundo o art. 394 e seguintes do Código de Processo Penal, no rito
ordinário, após o recebimento da denúncia, segue-se com a realização do
interrogatório do acusado. Após o que, defesa prévia e oitiva das testemu-
nhas.
Como primeiro ato processual após o recebimento da denúncia, na
audiência de interrogatório o acusado limita-se ou a negar os fatos conti-
dos na denúncia ou queixa, ou a dar sua versão. Nada mais. Sempre esta-
rá adstrito à narração fática contida na inicial acusatória. Assim, pessoal-
mente, não poderá manifestar-se sobre a prova produzida ao longo da
instrução, que ocorrerá após a sua única e breve participação no processo.
Iniciar o processo com a oitiva do acusado restringe sobremaneira o
seu direito de, exercendo a autodefesa, participar efetivamente da produ-
ção da prova. Assim, a atual localização temporal do interrogatório no
rito ordinário previsto no CPP não atende a amplitude da defesa e do
contraditório, não sem antes caracterizar uma indevida limitação à demo-
cracia no processo penal.
Atento a essa problemática, o legislador pós 1988 tem respeitado,
em alguns casos, o valor da autodefesa, realizada em sede de interrogató-
rio.
278 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

A Lei 9.099/95, conforme dispõe seu art. 81, determina que o inter-
rogatório do acusado somente ocorrerá após a oitiva de todas as testemu-
nhas, bem como da vítima3.
A doutrina tem recebido com bons olhos essa evolução legislativa.
Ada Pellegrini Grinover, Antônio Magalhães Gomes Filho, Antônio
Scarance Fernandes e Luiz Flávio Gomes assim se posicionam:

Na lei nova prevalece outra orientação: o interrogatório é o


momento mais importante da autodefesa; é a ocasião em que
o acusado pode fornecer ao juiz sua versão pessoal sobre os
fatos e sua realização após a colheita da prova permitirá, sem
dúvida, um exercício mais completo do direito de defesa,
inclusive pela faculdade de permanecer em silêncio (art. 5,
LVIII, CF). (2005, p. 192)

Deslocar o interrogatório para o final da instrução permite que o


acusado exerça efetivamente a autodefesa, manifestando-se sobre a prova
produzida ao longo do processo. Iniciar a instrução com a oitiva do acu-
sado implica a realização de um ato processual precário, limitando-se ao
conteúdo narrado na inicial acusatória. Tal desvalorização do interroga-
tório foi bem percebida por CEZAR ROBERTO BITENCOURT:

Na praxis forensis constatam-se, muitas vezes, interrogatórios


absolutamente deficientes, inoperantes, desinteressados no
esclarecimento dos fatos. No Juizado Especial, ocorrendo após
a oitiva de todas as testemunhas, será impossível torná-lo
um ato inócuo, a menos que o interrogado prefira silenciar.
(2003, p. 105)

Aramis Nassif, Desembargador do Tribunal de Justiça do Rio Gran-


de do Sul, em seu voto na Apelação de nº 70019067545, julgada em 09.05.07,
afirmou que o interrogatório deve ser o último ato processual a ser praticado.
Argumenta o respeitado jurista que, dessa forma, está se fortalecendo a
ampla defesa, haja vista a possibilidade de cotejo com a prova construída, fixan-
do-se este ato como legítimo meio de defesa e não mais como meio de prova
(IBCCRIM, Boletim nº. 176, julho/2007).

3
Art. 81. Aberta a audiência, será dada a palavra ao defensor para responder à
acusação, após o que o Juiz receberá, ou não, a denúncia ou queixa; havendo
recebimento, serão ouvidas a vítima e as testemunhas de acusação e defesa, inter-
rogando-se a seguir o acusado, se presente, passando-se imediatamente aos deba-
tes orais e à prolação da sentença.
CORPO DOCENTE 279
José Gomes Brito

O momento em que o interrogatório é realizado reflete a postura do


legislador penal. Ao deslocá-lo para o final da instrução, contamina o
processo com a mais pura democracia, assegurando o direito de voz do
acusado, que passará a realizar um contraditório mais efetivo.

A mudança do momento de realização do interrogatório – do


início da instrução, logo após a defesa prévia, para o final da
instrução – dá outro sentido a esse ato, que passa a ser pre-
ponderantemente um ato de defesa, autodefesa, e não um
meio de prova. (TOURINHO NETO, 2005, p. 586)

Tramita no Congresso Nacional o Projeto de Lei n. 4.207/01, alte-


rando diversos dispositivos do Código de Processo Penal, inclusive aque-
les que versam sobre o interrogatório.
Ao que interessa ao presente ensaio, leia-se a redação dada ao art.
400 pelo mencionado Projeto de Lei:

Art. 400. Na audiência de instrução e julgamento, a ser reali-


zada no prazo máximo de trinta dias, proceder-se-á à tomada
de declarações do ofendido, se possível, à inquirição das tes-
temunhas arroladas pela acusação e pela defesa, nesta or-
dem, bem como aos esclarecimentos dos peritos, às acarea-
ções e ao reconhecimento de pessoas e coisas, interrogando-
se, em seguida, o acusado. (sem grifos no original)

Caso seja aprovado o Projeto, respeitar-se-á o interrogatório como


meio de defesa que efetivamente o é. Seguindo determinação constitucio-
nal, aplicando a ampla defesa em toda sua plenitude, o legislador assegu-
rará ao acusado o direito sagrado de defender-se pessoalmente, colocan-
do a autodefesa em patamar adequado, do mesmo modo como vem proce-
dendo com a defesa técnica4.

4
Segundo a nova redação do p. único do art.261, alterado pela Lei nº.10.792/03, a
defesa técnica exercida por defensor público ou dativo deve ser sempre fundamen-
tada, sob pena de nulidade. O Projeto de Lei n. 4.204/01, alterando a atual redação
do referido parágrafo único, amplia a proteção da defesa técnica, excluindo a
restrição à defesa exercida por defensor dativo ou público, abarcando os casos em
que o defensor seja constituído pelo próprio acusado. Esses são exemplos de como
a defesa técnica tem sido preservada pelo legislador infraconstitucional.
280 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

REFERÊNCIAS

BITENCOURT, Cezar Roberto. Juizados Especiais Criminais Federais: análise


comparativa das Leis 9.099/95 e 10.259/01. São Paulo: Saraiva, 2003.

GRINOVER, Ada Pellegrini. GOMES FILHO, Antônio Magalhães.


FERNANDES, Antônio Scarance. GOMES, Luiz Flávio. Juizados Especiais
Criminais: Comentários à Lei 9.099/95. 5 ed.. São Paulo: Revista dos Tribu-
nais, 2005.

PEDROSO, Fernando de Almeida. Processo Penal. O direito de defesa: reper-


cussão, amplitude e limites. 3ª ed., revista e atualizada. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2001.

TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal, vol. 3. 27 ed., re-


vista e atualizada. São Paulo: Saraiva, 2005.

TOURINHO NETO, Fernando da Costa. FIGUEIRA JÚNIOR, Joel Dias.


Juizados Especiais Estaduais Cíveis e Criminais: Comentários à Lei 9.099/95. 4
ed.. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005.

OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal, 5 ed. Belo Hori-
zonte: DelRey, 2005.

PARIAZATTO, João Roberto. Comentários à Lei dos Juizados Especiais Cíveis


e Criminais. Brasília, DF: Livraria e Editora Brasília Jurídica, 1996.
CORPO DOCENTE 281
Nágila Maria Sales de Brito

FOCO DISTORCIDO NA ANENCEFALIA:


UMA QUESTÃO DA BIOÉTICA E DO BIODIREITO

Nágila Maria Sales Brito


Mestre (UFBA) e Doutora (PUC-SP). Professo-
ra da Faculdade de Direito da UCSAL e da
Pós-graduação em Bioética e Biodireito da Fa-
culdade São Bento. Procuradora de Justiça.

RESUMO: Trata esta pesquisa de questão de Bioética e Biodireito que envolve


a difícil decisão pela antecipação terapêutica do parto, configuradora de con-
duta que ora se defende como atípica, levantando, para tanto, diversas teorias
no âmbito penal, bem como os princípios constitucionais de direito à saúde, à
liberdade e à vida digna, enfatizando o protagonismo da mulher na qualidade
de paciente-gestante e no exercício de sua autonomia, como detentora do direi-
to à escolha, após o esclarecimento da situação que vivencia.

PALAVRAS-CHAVE: anencefalia - bioética - biodireito – atipicidade.

SUMÁRIO: Introdução. 1 Breve noção conceitual. 2 As opiniões díspares sobre


a questão. 3 Diversas correntes fundamentadoras da atipicidade e/ou
impunibilidade. O avanço da Biotecnologia e o descompasso da legislação e
da jurisprudência. 5 Conclusão.

INTRODUÇÃO

A anencefalia é um problema que envolve, principalmente, duas


áreas distintas e importantes para a vida em sociedade: a Medicina e o
Direito, que se interligam e, às vezes, se confrontam, na busca de solução
para a questão, imbrincadas com sentimentos religiosos, morais e científi-
cos, nem sempre coadunados.
Recentemente, a mais alta Corte de Justiça do país enfrentou o tema,
por meio do caso concreto que lhe chegou na forma de Argüição de
Descumprimento de Preceito Fundamental, com decisão monocrática
liminar do Min. Marco Aurélio de Melo, permitindo, inicialmente, a ante-
282 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

cipação do parto, mas, afinal, revogada, por meio de decisão plenária,


pela qual passou a ser proibida a antecipação nas hipóteses de feto
anencéfalo.
Debruçando-se sobre o problema, este estudo questiona o foco que
vem sendo dado ora ao feto, ora à gestante, concluindo, com a análise de
normas e princípios que compõem o ordenamento jurídico brasileiro, pela
impossibilidade de imputação de pena à prática da antecipação terapêu-
tica do parto, na hipótese da anomalia congênita do feto denominada
anencefalia, desde que a decisão seja tomada pela gestante, mediante
emissão de consentimento livre e informado.

1. BREVE NOÇÃO CONCEITUAL

Para conceituar anencefalia, valemo-nos do ensinamento de William


Bell (1979, p. 627), que preleciona ser a “malformação letal na qual a abó-
bada do crânio é ausente e o crânio exposto é amorfo”, ou seja, indica
como má formação congênita que ocorre por volta do 24º dia após a con-
cepção, quando o tubo neural (estrutura fetal precursora do sistema ner-
voso central) sofre um defeito em seu fechamento. O resultado dessa ano-
malia, além da aparência que choca pela visibilidade da parte interna do
cérebro, configurando verdadeira deformidade, torna inviável a vida, ocor-
rendo o óbito concomitantemente ao nascimento ou horas após ao parto,
na maioria das vezes.1
É o que afirma o cientista William Bell (1979, p. 627), apud Arx
Tourinho, Conselheiro Federal da OAB, em seu voto a respeito da
anencefalia: “Entre 75 e 80 por cento desses recém-nascidos são natimortos
e os restantes sucumbem dentro de horas ou poucos dias após o nasci-
mento”. A literatura médica, no mundo, assinala essa constatação.
De acordo com Keith Moore e Persaud (2000, p. 354), “Embora o
termo anencefalia signifique ausência do encéfalo, há sempre algum teci-
do encefálico”, porém, sem maior importância.
O encéfalo é a “parte do sistema nervoso central situada dentro do
crânio neural”, formado pelo cérebro, cerebelo e tronco encefálico, na dic-
ção de Angelo Machado (1979, p. 11).
Assim, embora a princípio pareça tratar-se de criança nascida sem
encéfalo, esta noção é errônea.

1
Há notícia de um bebê nascido em São Paulo, que já conta com quase um ano
permanentemente ligado a aparelhos.
CORPO DOCENTE 283
Nágila Maria Sales de Brito

2. AS OPINIÕES DÍSPARES SOBRE A QUESTÃO

Não se pretende trazer à baila opiniões favoráveis ou contrárias ao


aborto, mas discutir situação extraordinária e impossível de ficar-se indi-
ferente – a do anencéfalo - ante o ordenamento jurídico brasileiro, deven-
do, neste trabalho, esta dialética permanecer estritamente confinado ao
âmbito médico-jurídico, pontuando que se excetua, expressamente, inde-
pendentemente da presença de anencefalia, a configuração de prática de
delito em 2 situações: do aborto terapêutico ou necessário e do aborto
sentimental ou humanitário, isto é, permite-se a prática do aborto pelo
médico, com conseqüente morte do feto nas hipóteses de inexistência de
outro meio para salvar a gestante, e se a gravidez resultar de estupro, com
o consentimento precedente da gestante e, se menor, do seu representante
legal (art. 128, I e II, do CP). Como se delimita, então, a anencefalia nesse
contexto?
É consabido que, à época do advento do Código Penal, em 1940,
contrariamente ao que ocorre na atualidade, quando se certifica não só o
sexo, mas qualquer anomalia, ainda na vida uterina, não havia tecnologia
para detectar a presença do feto anencefálico. Por tal razão, o Conselho
Federal de Medicina, em 1990, diante do avanço da medicina fetal,
propugnou por uma nova postura da classe médica, a fim de embasar
uma “reordenação jurídica”, o que ensejou proposta de reformulação do
Código Penal, segundo informam Marcos Frigério et alii (2001).
Assim, a indagação primeira que se nos apresenta é se o aborto do
anencéfalo seria crime por não se subsumir nas duas situações excludentes
de culpabilidade do art. 128, I e II, do CP, ou poder-se-ia inseri-lo numa
dessas duas hipóteses ou em ambas ou, ainda, se tais incisos não configu-
rariam numerus clausus ante a evolução da tecnologia que, no estado atual
da ciência, pode demonstrar, com certeza, por meio do exame de ultra-
sonografia, a existência de um feto com patologia grave e incurável, exo-
nerando-se da culpa o autor do aborto (a Inglaterra e Portugal já prevêem
esta excludente). Na verdade, inúmeros são os diagnósticos, podendo se
arrolar outros casos, assim como fetos portadores de agenesia renal bilate-
ral, holoprocenfalia em fetos cíclopes, e aberrações cromossômicas gra-
ves, com malformações cardíacas e cerebrais múltiplas, hipóteses em que,
tais como na anencefalia, deveria ser autorizada a antecipação terapêuti-
ca do parto, dado que sem qualquer chance de sobrevida desses fetos fora
do útero.
Os doutrinadores e operadores do Direito que se posicionam de
modo favorável à incriminação do abortamento do feto anencefálico mes-
284 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

clam, em sua grande maioria, elementos de ordem religiosa aos argumen-


tos jurídicos fundamentadores de sua opinião. É o que pudemos inferir
dos artigos publicados nos periódicos especializados em assuntos jurídi-
cos quando tratam da matéria. Vejamos, neste sentido, a opinião da
advogada Vera Meira Bestene (2004, p. 08), comentando sobre a liminar
concedida pelo Min. Marco Aurélio de Mello na ADPF nº 54, que permitia
o aborto nesses casos:

Como pode um ministro do STF ignorar os ditames legais se


ele é responsável, justamente, por fazer valer a lei? Se os
Ministros do STF tivessem um pouco de conhecimento das
Leis Divinas ou Naturais, se conhecessem as conseqüências
advindas dos que praticam ou contribuem para o aborto, eles
jamais pensariam em abrir novas portas para a prática do
aborto violento. Já o aborto moral, permitido quando a mãe
é estuprada, fere as Leis de Deus, não se há de abrir novas
legalizações ao assassinato de pequenas criaturas que têm
sua destinação própria e sua razão de ser para o reencarne
nestas condições. Que seja logo, imediatamente e definitiva-
mente decidido contra o pedido de aborto por anencefalia.
Esta é a moral, está é a lei, esta é a justiça.

Além dessas motivações religiosas, temos que a argumentação jurí-


dica subsistente, fundamentadora da incriminação do aborto do feto
anencefálico, pauta-se na violação do princípio constitucional do direito
à vida, previsto no art. 5º da Constituição Federal de 1988, além do art. 4º
do Pacto de São José da Costa Rica (subscrito pelo Brasil), pelo qual nin-
guém tem o direito de dispor da própria vida nem da de outrem.
Nesse sentido, argumentam que, na verdade, não seria anencefalia,
mas uma ausência de completude da estrutura cerebral, não restando
dúvidas sobre a existência de vida no feto que se desenvolve no ventre
materno, apesar da patologia, com o que concordamos, embora deva ser
acrescentado que se trabalha nesta hipótese com a certeza científica da
morte iminente, o que nos faz raciocinar tomando por base duas premis-
sas importantes:
1 - Há que se diferenciar a anencefalia, a ser diagnosticada pelo
profissional médico como uma situação na qual se comprova a impossibi-
lidade de vida autônoma extra-uterina, daquela que apenas constitui de-
ficiência física, com plausibilidade de sobrevida autônoma, apesar das
dificuldades próprias da sua situação específica. Nesta última hipótese
deve ser afastada a antecipação terapêutica do parto, sob pena de incidir-
se na eugenia, tão combatida na atualidade.
CORPO DOCENTE 285
Nágila Maria Sales de Brito

2 - Com o diagnóstico certo e indiscutível de tratar-se de anencefalia,


significativa de ausência de chance de sobrevida independente, a última
palavra sobre a antecipação, melhor dizendo, a escolha para fazê-la ou
não, incumbe à gestante, não sendo incomum hipóteses em que a mãe, por
convicções religiosas, psicológicas, sociais, dentre outras, decida levar a
termo a sua gravidez, o que deve ser respeitado.
Já os que se posicionam pela antecipação terapêutica afastam a
incriminação do aborto do feto anencefálico, e, diferentemente da corrente
exposta anteriormente, procura não confundir a questão com elementos
de ordem religiosa. Nesse sentido Luiz Flávio Gomes (2004, p. 09), discor-
rendo sobre o assunto, colabora com os seguintes esclarecimentos:

Nosso Código Penal, como se vê, ainda é bastante conserva-


dor em matéria de aborto. Isso se deve muito provavelmente
à influência que ainda exercem sobe o legislador certos seto-
res religiosos. O processo de secularização do Direito ainda
não terminou. Confunde-se ainda religião com Direito. No
caso do aborto por anencefalia (autorizado pelo ministro Marco
Aurélio, do STF), o debate instaurado evidenciou isso de for-
ma exuberante. Não existe razão séria (e razoável) que justifi-
que a não autorização do aborto quando se sabe que o feto
com anencefalia não dura mais que dez minutos depois de
nascido. Aliás, metade deles já morre durante a gestação. A
outra perece imediatamente após o parto. A morte, de qual-
quer modo, é inevitável.

Numa síntese apertada do direito estrangeiro, verifica-se, conforme


notícia trazida por Débora Diniz e Diaulas Costa Ribeiro (2004), que, além
do Brasil, são contrários à legalização do aborto no caso de anencefalia as
nações islâmicas, africanas e grande parte da América Latina, razão por
que lideram as estatísticas de nascimentos com má-formação, dentre as
quais, pela ordem de classificação, encontram-se o México, Chile e Paraguai,
ocupando o Brasil o 4º lugar, com o registro de 8,62 casos em dez mil
nascimentos. Vale ressaltar que países tradicionalmente católicos, como a
Itália, Espanha, Portugal, Estados Unidos e Canadá, autorizam a inter-
rupção da gravidez nesses casos.

3. DIVERSAS CORRENTES FUNDAMENTADORAS DA


ATIPICIDADE E/OU IMPUNIBILIDADE

Contudo, a fundamentação para o posicionamento ora em análise


– impossibilidade de punição do aborto do feto anencefálico – é variada.
286 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

Para justificar a interrupção da gravidez quando da ocorrência da


anencefalia, há diversas correntes, uma delas entendendo que o
abortamento de anencéfalos se enquadraria no art. 128, I do CP, já que esta
gestação causaria mal-estar físico e psicológico capaz de admitir a permis-
são prevista neste inciso. Esta é a posição da Confederação Nacional dos
Trabalhadores da Saúde, que ajuizou a ADPF nº 54, afirmando ser a legis-
lação penal de 1940, período em que a tecnologia existente não possibilita-
ria o diagnóstico tão preciso de anomalias incompatíveis com a vida, razão
por que não se abrigou a anencefalia nas hipóteses excludentes.
Assinalou, ademais, que a ciência nada pode fazer em relação ao
anencéfalo, dado que inviável, mas em relação à gestante, a permanência
do feto anômalo é potencialmente perigosa, podendo gerar danos à saúde
e até perigo à vida, especialmente porque há alto índice de mortandade
intra-útero desses fetos, o que conduz à violação da dignidade da pessoa
humana, por força do perigo à sua integridade física e aos danos à integri-
dade moral e psicológica.
Não se pode olvidar que, com a exposição dos tecidos nervosos,
ocorre a liberação de enzimas tóxicas, passíveis de caírem, via aniótico-
placentária, na circulação materna, podendo comprometer as funções vi-
tais da gestante.
Outra corrente que ora passamos a explicitar é aquela que vê no
conflito entre direitos humanos fundamentais: vida e dignidade da pessoa
humana, ambos previstos constitucionalmente, o cerne de toda a questão.
Para essa corrente, a Constituição, de fato, exige a preservação e a
tutela da vida, mas acresce a expressão “com dignidade”. Assim, absurdo
seria exigir que uma mãe carregasse em seu ventre um feto sem qualquer
chance de sobrevida, como no caso do anencéfalo, pois isto seria torturá-la
psiquicamente e constrangê-la a um sofrimento dramático, permeado pelo
medo, o que ninguém tem o direito de impor.
Esta parcela da doutrina pondera que devem ser utilizados, sem
dúvida, nesses casos, os princípios da razoabilidade e da proporcio-
nalidade, para se entender que, no embate entre o direito fundamental da
vida e o direito, também fundamental da dignidade, embora a vida possa
parecer, em princípio, o maior dos bens humanos, não parece razoável
impor a uma mãe que prolongue durante meses sua dor e seu sofrimento
até o dia do parto, “como se de antemão tivesse sido condenada pela natu-
reza simplesmente por ter um dia buscado contribuir para com ela”
(TAGLIAFERRO, 2004).
Nesse diapasão, sintetiza o posicionamento desses juristas uma
frase do Professor Luiz Flávio Gomes (2004, p. 09): “É chegado o momento
CORPO DOCENTE 287
Nágila Maria Sales de Brito

de nos posicionarmos em favor do não sofrimento inútil do ser humano. O


pior que se pode sugerir (ou impor) no mundo atual é que alguém padeça
de sofrimentos inúteis”.
Outros juristas invocam a teoria da tipicidade conglobante de Eu-
genio Raúl Zaffaroni e José Henrique Pierangeli, para explicar a impossi-
bilidade de punição do feto anencefálico.
Esta teoria afirma que o tipo legal consiste em uma norma gerada
para tutelar a relação de um ente ou sujeito com um bem jurídico, e que a
norma proibitiva que dá lugar ao tipo convive com outras normas também
proibitivas, constituindo uma ordem normativa onde não é possível que
uma proíba o que outra ordena ou fomenta, sob pena de não se ter uma
ordem normativa e sim “um amontoado caprichoso de normas arbitraria-
mente reunidas” (ZAFFARONI; PIERANGELI, 2004, p. 522). Neste senti-
do, poderia ocorrer de uma situação aparentemente ser alcançada pela
norma proibitiva, mas, de modo algum, poder ser proibida, quando consi-
derada juntamente com as outras normas, vale dizer, conglobantemente.
Eis o que prelecionam os referidos autores:

Pois bem: pode ocorrer o fenômeno da fórmula legal aparen-


te abarcar hipóteses que são alcançadas pela norma proibitiva,
considerada isoladamente, mas que, de modo algum, podem
incluir-se na sua proibição, quando considerada
conglobantemente, isto é, fazendo parte de um universo ordena-
do de normas. Daí que a tipicidade penal não se reduz à tipicidade
legal (isto é, à adequação à formulação legal), e sim que deva
evidenciar uma verdadeira proibição com relevância penal,
para o que é necessário que esteja proibida à luz da conside-
ração conglobada da norma. Isso significa que a tipicidade
penal implica a tipicidade legal corrigida pela tipicidade conglobante,
que pode reduzir o âmbito de proibição aparente, que surge
da consideração isolada da tipicidade penal. (Grifos dos au-
tores). (2004, p. 522)

Aplicando esta teoria em contextualização com o tema proposto,


temos que a situação do abortamento do feto anencefálico, embora possa,
a princípio, ser considerada legalmente típica, por força da inexistência
da sua previsão como excludente no Código Penal, à luz da legislação
pertinente e da sistemática jurídica não pode ser considerada como tal.
Senão, vejamos.
O conceito de morte atualmente abraçado expressamente por nossa
legislação é o de morte encefálica, constatada segundo critérios médicos,
dispostos na Lei nº 9434/97 (Lei de Transplante de Órgãos) (LARA;
288 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

WILHELMS, 2005). Por esse conceito, morte é a parada total das funções
encefálicas, em conseqüência de processo irreversível e de causa conheci-
da, mesmo que o tronco cerebral esteja temporariamente funcionando. O
anencéfalo, por sua vez, como já vimos, é o resultado de um processo
irreversível, de causa conhecida e sem qualquer possibilidade de sobrevida,
e que, por não possuir a parte vital do cérebro, poderia, a grosso modo, ser
considerado um natimorto.
Ora, no caso da anencefalia, inexistente a possibilidade de vida
viável, não há que se falar em aborto, porquanto, juridicamente, este é a
morte causada pela interrupção da gestação, não sendo lesado, nesse caso,
o interesse protegido pela norma penal, qual seja a vida do ser em forma-
ção.
Parece-nos ter sido este, inclusive, o entendimento do Ministro do
STF, Marco Aurélio de Mello, ao conceder liminar para antecipação tera-
pêutica de gravidez do feto anencefálico, na referida ADPF nº 542.
Há quem critique, porém, esse posicionamento, afirmando que os
defensores dessa teoria olvidam-se de atentar para o artigo 3º da mencio-
nada Lei de Doação de Órgãos, que não utilizou o termo morte cerebral,
mas sim morte encefálica. Aduzem eles que, indubitavelmente, o feto com
anencefalia não preenche os requisitos necessários à constatação da mor-
te encefálica, não se podendo confundir morte encefálica com morte cere-
bral. São, porém, distinções tão tênues que preferimos trabalhar com o
signo indiscutível de inviabilidade de vida própria.
Bastante questionado e ainda sem pacificação o entendimento so-
bre o momento exato do início da vida e o da ocorrência da morte, tendo

2
“(...) HÁ, SIM, DE FORMALIZAR-SE MEDIDA ACAUTELADORA E ESTA NÃO
PODE FICAR LIMITADA A MERA SUSPENSÃO DE TODO E QUALQUER PRO-
CEDIMENTO JUDICIAL HOJE EXISTENTE. HÁ DE VIABILIZAR, EMBORA DE
MODO PRECÁRIO E EFÊMERO, A CONCRETUDE MAIOR DA CARTA DA RE-
PÚBLICA, PRESENTES OS VALORES EM FOCO. DAÍ O ACOLHIMENTO DO
PLEITO FORMULADO PARA, DIANTE DA RELEVÂNCIA DO PEDIDO E DO
RISCO DE MANTER-SE COM PLENA EFICÁCIA O AMBIENTE DE
DESENCONTROS EM PRONUNCIAMENTOS JUDICIAIS ATÉ AQUI NOTA-
DOS, TER-SE-ÃO NÃO SÓ O SOBRESTAMENTO DOS PROCESSOS E DECI-
SÕES NÃO TRANSITADAS EM JULGADO, COMO TAMBÉM O RECONHECI-
MENTO DO DIREITO CONSTITUCIONAL DA GESTANTE DE SUBMETER-SE
À OPERAÇÃO TERAPÊUTICA DE PARTO DE FETOS ANENCEFÁLICOS, A
PARTIR DE LAUDO MÉDICO ATESTANDO A DEFORMIDADE, A ANOMA-
LIA QUE ATINGIU O FETO. É COMO DECIDO NA ESPÉCIE. 3. AO PLENÁRIO
PARA O CRIVO PERTINENTE”. (Trecho da liminar concedida pelo Ministro do
STF, Marco Aurélio de Mello, na Argüição de Descumprimento de Preceito Funda-
mental nº 54).
CORPO DOCENTE 289
Nágila Maria Sales de Brito

havido, na contemporaneidade, a evolução para a constatação da morte


do critério desde quando cessa a função cardíaca para a cessação das
funções cerebrais.
Nesse sentido, o voto esclarecedor do Ministro do STF Carlos Ayres
de Brito:

Ora, muito já se fala em morte cerebral como parâmetro para


o momento da doação dos órgãos para transplantes, em que
num consenso de valores médico-jurídicos é admitida a mor-
te com a constatação da falência encefálica, na qual se verifica
lesão ou deterioração substancial e irrecuperável do cérebro,
quando o sujeito se torna incapaz de vida autônoma (art. 3º
da Lei 9.434/97). Possível se nos afigura traçarmos um para-
lelo entre o paciente que teve diagnosticada a morte cerebral
e o anencéfalo que não chegou a ter vida cerebral. Com efei-
to, plausível dar prioridade à paciente gestante ante a certeza
científica da inexistência de vida cerebral no anencéfalo, de-
vendo ser dela a decisão sobre a antecipação do parto.

No âmbito penal, o bem jurídico tutelado no crime de aborto (arts.


124, 125 e 126 do Código Penal), como já dito anteriormente, é a vida do ser
humano em formação. Interpretando este dispositivo aduz Luis Regis Pra-
do (2004, 119) “protege-se a vida intra-uterina, para que possa o ser hu-
mano desenvolver-se e nascer”. Assim, pode-se deduzir dever ser protegi-
do o feto humano viável, ou seja, apto a desenvolver-se enquanto alojado
no útero materno e, após o parto, com a possibilidade de tornar-se um
indivíduo capaz de direitos e obrigações. Atípica, portanto, a conduta de
antecipação do parto nesse caso, visto que destituída de potencial lesivo
aos bens protegidos pela lei penal: a saúde e a vida.
Vê-se, pois, ser a situação do anencéfalo idêntica à do indivíduo
com falência encefálica, podendo ser considerado juridicamente como
morto, o que afasta a tipicidade, não se podendo afirmar a prática do
crime de aborto.
Perfeitamente aplicável a esse estudo o ensinamento de Nélson
Hungria (1958, p. 207-208), a respeito da gravidez extra-uterina e da gra-
videz molar:

O feto expulso (para que se caracterize aborto) deve ser pro-


duto fisiológico, e não patalógico. Se a gravidez se apresenta
como um processo verdadeiramente mórbido, de modo a
não permitir sequer uma intervenção cirúrgica que pudesse
salvar a vida do feto, não há falar-se em aborto, para cuja
290 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

existência é necessária a presumida possibilidade de conti-


nuação da vida do feto.

Sem dúvida, o Mestre já parecia antever as situações que tantos


anos depois poderiam ser detectadas facilmente por meios ecográficos.
De outra banda, para outros, com base na Teoria da Imputação
Objetiva, poderia ser, da mesma forma, afastada a tipicidade da conduta
em análise.
Na lição do Professor Luiz Flávio Gomes (apud GAGLIANO;
PAMPLONA FILHO, 2003, p.109): “A teoria da imputação objetiva con-
siste basicamente no seguinte: só pode ser responsabilizado penalmente
por um fato (leia-se: a um sujeito só pode ser imputado o fato), se ele criou
ou incrementou um risco proibido relevante e, ademais, se o resultado
jurídico decorreu desse risco”.
De acordo com os defensores da tese, nos casos de anencefalia,

o risco criado (contra o bem jurídico vida do feto) não é desa-


provado juridicamente. [...]. Aquilo que se causa no contexto
de um risco permitido (autorizado, razoável) não é juridica-
mente desaprovado, logo, não é juridicamente imputável ao
agente. No aborto anencefálico, não existe uma morte arbi-
trária. Ao contrário, antecipa-se a morte do feto (cuja vida,
aliás, está cientificamente inviabilizada), mas isso é feito para
a tutela de outros interesses sumamente relevantes (saúde da
mãe, sobretudo psicológica, dignidade etc.), não se trata, en-
tão, de uma morte arbitrária. Por isso que o fato é atípico.
(GOMES, p. 06).

Contudo, para outros doutrinadores, não se pode justificar o


abortamento por tratar-se o produto da concepção um condenado à morte.
O risco criado, indubitavelmente, é proibido. A vida está presente e, ape-
sar de ser inviável, é protegida juridicamente. Nessa linha de raciocínio:
“A Constituição garante a todos os serem humanos, bem ou malformados,
sadios ou doentes, o direito à vida desde a concepção, sendo a morte ape-
nas a decorrência natural de sua condição e não a decorrência antecipada
de convicções ideológicas” (MARTINS, 2004).
Para estes, na culpabilidade é que se encontraria uma saída
satisfatória para os casos de interrupção da gestação em casos de
anencefalia.
Assim, apesar de típica, a conduta de abortar um feto com anencefalia
consiste em uma excludente de culpabilidade, qual seja a inexigibilidade
de conduta diversa. A respeito do tema, ensina o professor Juarez Cirino
CORPO DOCENTE 291
Nágila Maria Sales de Brito

dos Santos (2006, p. 322) que: “a normalidade das circunstâncias do fato


é o fundamento concreto da exigibilidade de comportamento conforme o
direito (...) ao contrário, circunstâncias anormais podem constituir situa-
ções de exculpação que excluem ou reduzem o juízo de exigibilidade de
comportamento conforme o direito”.
O professor Francisco Assis de Toledo (2000, p. 315-316), por sua
vez, assevera que “não age cupavelmente – nem deve ser, portanto, penal-
mente responsabilizado pelo fato – aquele que, no momento da ação ou
omissão, não poderia, nas circunstâncias, ter agido de outro modo, por-
que, dentro do que nos é comumente revelado pela humana experiência,
não lhe era exigível comportamento diverso”. Outrossim, é de se observar
que o instituto em análise funda-se na premissa de que o Estado e o Direito
não são estáticos, cumprindo, desse modo, a inexigibilidade de conduta
diversa a tarefa de, em apreciando as normas da cultura, justificar uma
conduta que para o Direito Positivo é típica e antijurídica.
Comunga com essas idéias o mestre Frederico Marques (1980, p.
227):

A inexigibilidade de outra conduta pode ser invocada, ape-


sar de não haver texto expresso em lei, como forma genérica
de exclusão da culpabilidade, visto que se trata de princípio
imanente no sistema penal. Nem se diga que, com isto, have-
rá uma espécie de amolecimento na repressão e na aplicação
das normas punitivas. Quando a conduta não é culpável, a
punição é iníqua, pois a ninguém se pune na ausência de
culpa; e afirmar que existe culpa diante da anormalidade do
ato volitivo, é verdadeira heresia.

Com efeito, sustenta-se por essa linha de intelecção que, diante da


situação extrema e anormal na qual se encontra(m) o(s) agente(s) do abor-
to (gestante e/ou médico) em questão, não se poderia dele(s) exigir com-
portamento diverso. Vale dizer, uma vez que qualquer pessoa naquelas
circunstâncias de realização do tipo agiria igual ao autor, seria, então,
inaceitável a imposição de pena.
Afinal, é inquestionável, nos casos de anencefalia, que a saúde psí-
quica da gestante passa por graves transtornos. O diagnóstico da
inviabilidade da vida do feto cria na mulher grávida uma grave perturba-
ção emocional, idônea a contagiar a si própria e a seu núcleo familiar.
“São evidentes as seqüelas de depressão, de frustração, de tristeza e de
angústia suportadas pela mulher gestante que se vê obrigada à torturante
292 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

espera do parto de um feto condenado à morte” (FRANCO, 2005). Diante


de tantas circunstâncias anormais, não se pode exigir da gestante condu-
ta diversa da interrupção da gravidez.
No que toca ao médico, também não se pode exigir outra conduta.
Isso porque o profissional da saúde se sentirá compelido a prolongar o
sofrimento psíquico da gestante.Não é outro o entendimento de Guilher-
me de Souza Nucci (2003, p. 396):

A tese da inexigibilidade, nesse caso, teria dois enfoques: o


da mãe, não suportando gerar e carregar no ventre uma cri-
ança de vida inviável; o do medico, julgando salvar a genitora
do forte abalo psicológico que vem sofrendo. A medicina,
por ter meios atualmente de detectar tais anomalias
gravíssimas, propicia uma avaliação judicial antes impossí-
vel. Até este ponto, cremos ser razoável a invocação da tese
de ser inexigível a mulher carregar por meses um ser que,
logo ao nascer, perecerá.

Nesse particular, vale fazer referência às palavras de Cezar Roberto


Bittencourt (2003, p. 170):

Cumpre destacar que o Código Penal, lamentavelmente, não


legitima a realização do chamado aborto eugenésico, mesmo
que seja provável que a criança nasça com deformidade ou
enfermidade incurável. Contudo, sustentamos que a gestan-
te que provoca o auto-aborto ou consente que terceiro lho
pratique está amparada pela excludente de culpabilidade de
inexigibilidade de outra conduta.

Também os nossos Tribunais vêm decidindo no mesmo sentido ora


explanado:

Afigura-se admissível a postulação em juízo de pedido pre-


tendendo a interrupção de gravidez, no caso de constatar a
má-formação do feto, diagnosticada a ausência de calota
craniana ou acrania fetal, com previsão de óbito intra-uterino
ou no período neo-natal. Apesar de não se achar prevista
dentre as causas autorizadoras do aborto dispostas no art.
128 do Código Penal, a má-formação congênita exige a situa-
ção anômala específica à adequação da lei ao avanço
tecnológico da medicina que antecipa a situação do feto
(TAMG – AC – Rel. Duarte de Paula – RT 762/147).
CORPO DOCENTE 293
Nágila Maria Sales de Brito

Diante da solicitação de autorização para realização de abor-


to, instruída com laudos médico e psicológico favoráveis,
deliberada com plena conscientização da gestante e de seu
companheiro e evidenciado o risco à saúde desta, mormente
a psicológica, resultante do drama emocional a que estará
submetida caso leve a termo a gestação, pois comprovado
cientificamente que o feto é portador de anencefalia (ausên-
cia de cérebro) e de outras anomalias incompatíveis com a
sobrevida extra-uterina, outra solução não resta senão auto-
rizar a requerente a interromper a gravidez (TJSC – AC – Rel.
Jorge Mussi – RT 756/652).

Com a análise doutrinária e jurisprudencial anteriormente


esboçada, parece-nos mais correta, de acordo com os preceitos que regem
a sistemática penal, a desconsideração do caráter ilícito do aborto do
anencefálico à luz da inexigibilidade de conduta diversa. Ademais, inde-
pendente do fundamento, certo é que não há de se punir novamente uma
mãe que já experimentou uma pena tão dolorosa imposta pela vida: a
morte precoce de um filho.
Por derradeiro, importante observar que desde o ano de 1997, quan-
do se pretendeu incluir uma terceira hipótese de exclusão de ilicitude ao
art. 128 do Estatuto Repressivo, o tema é discutido no Congresso Nacio-
nal. Mais recentemente, os Deputados Luciana Genro e Dr. Pinotti, auto-
res do Projeto de Lei nº 4.834/05, buscaram a mesma pretensão. Impende
destacar a proposta:

Art. 128 ..........................................................................


I - ....................................................................................
II - ...................................................................................
III – se o feto é portador de anencefalia, comprovada por
laudos independentes de dois médicos (NR).

Adota este pensamento o professor César Bittencourt (2003, p. 157):

O Código Penal de 1940 foi publicado segundo a cultura,


costumes e hábitos dominantes na década de 30. Passaram
mais de sessenta anos, e, nesse lapso, não foram apenas os
valores da sociedade que se modificaram, mas principalmen-
te os avanços científicos e tecnológicos, que produziram ver-
dadeira revolução na ciência médica. No atual estágio, a Me-
dicina tem condições de definir com absoluta certeza e preci-
são eventual anomalia do feto e, conseqüentemente, a
inviabilidade de vida extra-uterina. Nessas condições, é per-
294 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

feitamente defensável a orientação do Anteprojeto de Refor-


ma da Parte Especial do Código Penal, que autoriza o aborto
quando o nascituro apresentar graves e irreversíveis anoma-
lias físicas ou mentais, ampliando a abrangência do aborto
eugênico ou piedoso.

O que se pode afirmar, sem sombra de dúvida, é a impossibilidade


da sobrevivência extra-uterina do portador de anencefalia,
consubstanciada na inexistência dos ossos da cabeça, como se o crânio
tivesse sido serrado à altura das sobrancelhas, expondo a parte interna do
tecido cerebral, com desenvolvimento incompleto, por não possuir estru-
turas completas de comando cerebral que ensejem os atos fisiológicos
exteriorizadores de sinais vitais, como respirar autonomamente ou desen-
volver funções outras, essenciais à existência.
Sobre a matéria decidiu o Conselho Federal da Ordem dos Advoga-
dos do Brasil, por maioria de votos, seguindo o voto do relator, o Conse-
lheiro Federal Arx Tourinho, pela afirmação de que a interrupção da gra-
videz de feto anencefálico não é considerada prática abortiva. A matéria
foi examinada pelos 81 advogados que compõem o Conselho, na sede da
OAB, após a decisão do Ministro do Supremo Tribunal Federal, Marco
Aurélio, que concedeu liminar à Confederação Nacional dos Trabalhado-
res na Saúde (CNTS) para reconhecer o direito constitucional de gestantes
que decidam realizar operação de parto de fetos anencefálicos.
Na OAB, a decisão baseou-se nas seguintes premissas:
1. Direito da mulher gestante ao cometimento da interrupção de
gravidez de feto anencefálico.
2. Polêmica causada por aqueles que, desatentos aos princípios
jurídico-constitucionais, insistem na concepção medieval de que a mu-
lher deve fingir tratar-se de uma gravidez normal.
3. Proclamação pelo Conselho Federal da OAB de que a gestante, na
condição delineada, tem direito de interromper a gravidez, valendo-se de
seu direito à saúde e em atenção aos princípios constitucionais da liber-
dade e da dignidade da pessoa humana.

4. O AVANÇO DA BIOTECNOLOGIA E O DESCOMPASSO DA


LEGISLAÇÃO E DA JURISPRUDÊNCIA

Estreme de dúvidas que as novas tecnologias devem-se colocar a


serviço do ser humano, com a observância, na sua utilização, dos princí-
pios bioéticos da autonomia, beneficência, não maleficência e justiça, sem-
pre com vistas à efetivação do princípio da dignidade da pessoa humana,
fundamento da República Federativa do Brasil.
CORPO DOCENTE 295
Nágila Maria Sales de Brito

Assim, há de se pensar sempre o problema da anencefalia ou de


qualquer outra patologia fetal que torne inviável a vida fora do útero sob o
prisma da dignidade da pessoa humana. Mas questionaria qual o foco a
ser mirado nesta discussão que leva à busca da melhor solução no caso
concreto: a gestante ou o feto anencéfalo?
Na verdade, se a indagação for para se saber o posicionamento, se
contra ou a favor da antecipação terapêutica do parto, a resposta mais
aceitável não coincide com estas duas opções, mas sim pelo entendimento
de que, tratando-se de uma decisão tão importante para a saúde da mu-
lher, no seu âmbito físico e psíquico, deve ser da gestante, no seu livre
arbítrio e como sujeito de direito partícipe de um Estado Democrático de
Direito, a fazer esta difícil escolha, sem qualquer forma de pressão.
A vida é o bem maior protegido pela Constituição da República,
devendo sempre ser priorizada em face de qualquer outro. Tal afirmativa
conduz-nos a um raciocínio lógico para colocar no centro das atenções a
paciente-gestante, em virtude da comprovada impossibilidade de vida
independente do anencéfalo após a sua retirada do útero.
Ante essa premissa, inarredável que a autonomia a ser efetivada e a
prevalecer condiz com a paciente-gestante, que deve ser esclarecida acer-
ca do diagnóstico, riscos e opções terapêuticas, de modo a fazer, livremen-
te, a escolha mais consonante com a sua personalidade, emitindo, se for o
caso, o consentimento informado, possibilitando ao médico atuar no sen-
tido da antecipação terapêutica do parto3, terminologia preferencial a abor-
to, que constitui um tipo penal ensejador de aplicação de pena ao seu
autor.
Também o princípio da beneficência, consubstanciado na promo-
ção do bem do doente, aí entendida a gestante, cujo mal-estar psíquico
exige do profissional que a assiste uma solução mais antenada com seus
interesses, no menor tempo possível, porquanto em relação ao feto
anencefálico o determinismo letal é incompatível com qualquer prática de
prolongamento da vida.
O da não-maleficência, consubstanciado no dever de não fazer o
mal, maximizando para a gestante possíveis benefícios e minimizando-
lhe os riscos.
Por fim, o da justiça, definido pelo Relatório Belmont como imparci-
alidade na distribuição dos riscos e benefícios. E o médico se depara a
todo instante, principalmente os intensivistas, com a difícil missão de

3
Expressão utilizada por Débora Diniz e Diaulas Costa Ribeiro.
296 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

fazer a escolha de Sofia, ou seja, dizer quem deve morrer ou viver, por
exemplo, quando existe só uma vaga de UTI e dois pacientes à espera.
Referidos os princípios da Bioética, há que se falar no Biodireito
(não é unanimemente aceita essa terminologia na doutrina), designativo
de um novo ramo da Ciência Jurídica, ainda em formação, com a incum-
bência de trazer aos fatos originados das novas tecnologias a incidência
do Direito. Tem ele princípios próprios, tais como o da dignidade, da lega-
lidade, do consentimento livre e informado, da cooperação científica entre
países e do direito ao sigilo e à privacidade a serem observados pelos
profissionais que lidam com as questões bioéticas, que se multiplicam na
atualidade.
Vale observar que questões como a que ora se analisa ainda persis-
te em busca de uma solução justa ante a problemática da definição do
início e do fim da vida.
Configura, no entanto, sob todos os aspectos analisáveis, desuma-
na a exigência à mulher ter de suportar uma gravidez, com todo o seu
incômodo e riscos, que não vai conduzi-la a um final feliz de trazer um
bebê saudável nos braços; ao contrário, ante o quadro chocante, preferível
poupá-la até de vê-lo após a sua retirada do útero, não se devendo esque-
cer que, também indubitável, poder ela considerar-se um depósito funerá-
rio de um futuro natimorto, de quem só restará a comprovação da existên-
cia por meio do único documento que ficará de lembrança: o atestado de
óbito.
Dada a impossibilidade, pois, de falar-se de vida em potencial na
hipótese do anencéfalo, visto que perecerá imediatamente, caso desliga-
dos os aparelhos, a dignidade a ser preservada, por óbvio, repita-se, é da
gestante.
Tal matéria merece ser estudada sob diversos aspectos, mormente o
penal, civil, filosófico e constitucional, inclusive com a necessária distin-
ção entre pessoa, ser humano e indivíduo, o que não é possível em traba-
lho deste jaez, pelo que optamos por restringir a abrangência do estudo à
caracterização ou não da conduta como tipo penal4.
O aborto, permitido porque de gravidez oriunda do estupro, na
forma do previsto no art. 128, II do C. Penal, não depende de autorização
judicial para sua prática, porque se impõe a excludente de culpabilidade.
Mas, por precaução, tem sido sempre pedida autorização judicial, mor-

4
Quem desejar aprofundar o tema ver MORI, Maurizio, in A moralidade do aborto,
sacralidade e o novo papel da mulher, na obra O embrião e pessoa humana?, publicada
pela UNB.
CORPO DOCENTE 297
Nágila Maria Sales de Brito

mente quando determinada por força da existência de anencefalia, signi-


ficativa da impossibilidade de vida independente após o parto, o que não
justifica os nove meses de gravidez, com todos os seus corolários de an-
gústia, em que o medo e a certeza da morte do filho podem levar até ao
desestímulo de viver da gestante5.
Outro ponto injustificável é o permissivo legal para o aborto decor-
rente do estupro, admitido até na forma da violência ficta, ou seja, gravi-
dez decorrente de relação sexual com menor de 14 anos (art 224 do CP),
geralmente resultante da permissividade dos costumes entre namorados,
nesta sociedade em que as relações sexuais começam cada vez mais cedo,
e não admiti-lo na hipótese de gravidez de, praticamente, um natimorto.
Qual a finalidade da norma permissiva do aborto no caso de estu-
pro? É, naturalmente, evitar a dor da mulher que sofreu violência ou grave
ameaça vindo a gestar um feto indesejado. É diferente a dor daquela que
gesta um filho que não vingará? Por que prolongar o sofrimento? A quem
incumbe a decisão pela antecipação do parto? À mãe, ao juiz ou à socieda-
de? Estas as perguntas a serem respondidas no cotidiano do operador do
direito, visto que malgrado a cassação da liminar autorizativa da anteci-
pação terapêutica do parto pelo STF, continuam a ser ajuizados pedidos
de alvarás nas mais diversas comarcas deste imenso país, pois a norma é
positivada e deve ser interpretada quando da sua aplicação ao caso con-
creto.
Assim, incumbe explicitar o papel da Jurisprudência, que, em últi-
ma instância, diz o Direito no caso concreto, valendo as decisões de Juízes
e Desembargadores como importante fonte do Direito, embora dividida
contra ou a favor, nos diversos rincões do Brasil.
Vale ressaltar, ainda, a atuação dos Ministérios Públicos nos Esta-
dos, dentre os quais se destaca a do Distrito Federal, visto que, com o
respaldo de decisões judiciais que entendem ser a antecipação terapêuti-
ca do parto um problema administrativo, vem este Órgão literalmente to-
mando “decisões” nos casos que lhes são apresentados. Nesse Estado,
após o diagnóstico de anomalia fetal incompatível com a vida, quando a
mulher é atendida por uma equipe multidisciplinar, com médicos de di-
versas especialidades e um psicólogo, ela e sua família são informadas da
possibilidade da interrupção da gravidez e se sua decisão for neste senti-
do, é encaminhada ao Ministério Público, onde é atendida por uma equi-

5
V. a angústia e o sofrimento demonstrado no filme Quem são elas ?, dirigido por
Débora Diniz.
298 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

pe de médicos legistas, assistentes sociais e o Promotor examinará e solu-


cionará rapidamente a questão, tudo com base em processo administrati-
vo regulado pela Lei nº 9.784/99 (DINIZ; RIBEIRO, 2004, p. 130-134).
Recorde-se que, se não houver consentimento da gestante e for rea-
lizado o aborto, será ela sujeito passivo do crime de aborto.
Temos como imprescindível, pois, ao exame da matéria, partir-se
da certeza diagnóstica e do consentimento informado da gestante como
parâmetros para a autorização da antecipação terapêutica do parto. As
questões religiosas, éticas e morais a ensejar alteração acerca do convenci-
mento do acerto ou não desta prática são elementos secundários, em que
pese a importância para a sanidade física e psicológica e o bem estar da
paciente, que não pode ser obrigada a fazer absolutamente nada contra a
sua vontade. Assim, se ela não emitiu seu consentimento, e o médico,
temeroso em relação à demora da decisão (sabe-se ser desaconselhável o
aborto após o 3º mês de gestação), antecipa o procedimento, responderá
ele penal e civilmente por sua conduta, com claros indícios de danos mo-
rais a serem indenizados neste caso.
Ressalte-se por fim, que a linha de intelecção desenvolvida neste
trabalho apóia-se, ademais, no texto do novo projeto de Código Penal,
elaborado por comissão presidida pelo então Ministro Luís Vicente
Chernicchiaro, autorizativo do aborto no caso de anomalia congênita do
feto, que impossibilite sua sobrevida, aduzindo um demonstrativo da ten-
dência da tratativa da questão.

5. CONCLUSÃO

Ao se analisar o sistema de saúde no Brasil, constata-se que este estu-


do, na verdade, é uma homenagem às mulheres pobres, sem acesso à Medi-
cina Privada, e que sofrem as mazelas de ser mulher e pobre neste país,
invisíveis para o Estado nos seus diversos segmentos: Legislativo, Executivo
e Judiciário, que, desconhecendo seus dramas pessoais fazem-nas peregri-
nar pelos fóruns e hospitais, submetendo-as a verdadeira tortura.
Verifica-se, de tudo quanto exposto, ser impossível ante uma inter-
pretação sistemática do ordenamento jurídico brasileiro imputar-se a prá-
tica de crime ao profissional médico ou à paciente gestante que realizem a
antecipação do parto em face de diagnóstico seguro de anencefalia, desde
que, para tanto, sejam respeitados os princípios da Bioética e do Biodireito,
tendo como parâmetro para a atuação na área de saúde a exigência do
consentimento esclarecido da paciente, que deve ser preservada na sua
dignidade.
CORPO DOCENTE 299
Nágila Maria Sales de Brito

Assim, a decisão sobre a antecipação terapêutica do parto de feto


anencéfalo deve ser, exclusivamente, da paciente gestante, garantido o
exercício da sua autonomia, exteriorizada na forma do consentimento li-
vre e esclarecido, respeitando-se, em todas as etapas do procedimento, a
dignidade da pessoa humana.

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CORPO DISCENTE
Formandos
CORPO DISCENTE • FORMANDOS 303
Igor Raphael de Novaes Santos

REGIME DISCIPLINAR DIFERENCIADO: SOLUÇÃO


OU DISCURSO PALIATIVO PARA O PROBLEMA DA
EXECUÇÃO PENAL?

Igor Raphael de Novaes Santos


Bacharel em Direito pela UCSal.

Sumário: 1 Introdução – 2 As origens do Regime Disciplinar Diferenciado – 3


Da inconstitucionalidade do Regime – 4 O RDD como consectário do Direito
Penal do Inimigo – 5 Da complacência do Judiciário – 6 Considerações Finais

1. INTRODUÇÃO

A Lei nº. 10.792 de dezembro de 2003, dentre outras disposições,


alterou a Lei de Execução Penal – Lei nº 7.210/84 para incluir as regras
gerais do que o legislador denominou Regime Disciplinar Diferenciado –
RDD. Sem rodeios iniciais, cumpre, de logo, destacar a criação legislativa:

Art. 52. A prática de fato previsto como crime doloso constitui


falta grave e, quando ocasione subversão da ordem ou discipli-
na internas, sujeita o preso provisório, ou condenado, sem pre-
juízo da sanção penal, ao regime disciplinar diferenciado, com
as seguintes características:
I - duração máxima de trezentos e sessenta dias, sem prejuízo de
repetição da sanção por nova falta grave de mesma espécie, até
o limite de um sexto da pena aplicada;
II - recolhimento em cela individual;
III - visitas semanais de duas pessoas, sem contar as crianças,
com duração de duas horas;
IV - o preso terá direito à saída da cela por 2 horas diárias para
banho de sol.
§ 1o O regime disciplinar diferenciado também poderá abrigar
presos provisórios ou condenados, nacionais ou estrangeiros,
que apresentem alto risco para a ordem e a segurança do estabe-
lecimento penal ou da sociedade.
§ 2o Estará igualmente sujeito ao regime disciplinar diferencia-
do o preso provisório ou o condenado sob o qual recaiam fun-
dadas suspeitas de envolvimento ou participação, a qualquer
título, em organizações criminosas, quadrilha ou bando. (NR)
304 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

Art. 53. .............................................................................


V - inclusão no regime disciplinar diferenciado
Art. 54. As sanções dos incisos I a IV do art. 53 serão aplicadas
por ato motivado do diretor do estabelecimento e a do inciso
V, por prévio e fundamentado despacho do juiz competente.
§ 1o A autorização para a inclusão do preso em regime disci-
plinar dependerá de requerimento circunstanciado elabora-
do pelo diretor do estabelecimento ou outra autoridade ad-
ministrativa.
§ 2o A decisão judicial sobre inclusão de preso em regime
disciplinar será precedida de manifestação do Ministério
Público e da defesa e prolatada no prazo máximo de quinze
dias. (NR)
Art. 58. O isolamento, a suspensão e a restrição de direitos
não poderão exceder a trinta dias, ressalvada a hipótese do
regime disciplinar diferenciado.

Do exame atento dos dispositivos legais, dessume-se, sem maiores


dilações acadêmicas, a disposição do legislador em demonstrar para a
sociedade “a retomada pelo Estado do controle dentro do Sistema Peni-
tenciário”1, justificação divulgada pelos defensores do novo modelo de
aprisionamento.
Ocorre que, logo após a promulgação da lei, iniciou-se intenso de-
bate na doutrina. De um lado, com base na ofensa aos princípios constitu-
cionais da presunção de inocência, dignidade da pessoa humana e legali-
dade, entre outros, buscou-se afirmar a incompatibilidade do regime com
o sistema de garantias moderno2; por outro, diante do proclamado avanço
da criminalidade organizada e da imprescindível manutenção da ordem
nos estabelecimentos prisionais, restou firmada a “necessidade do casti-
go”3.
O presente trabalho focaliza justamente essa problemática, ou seja,
por meio de uma análise técnica, pretende aferir a adequação do novel
instituto ao ordenamento jurídico nacional, bem como seu real campo de

1
CHRISTINO, Márcio. Sistema Penitenciário e o RDD. Disponível em: www.mj.gov.br/
Depen/publicacoes/marcio_christino.pdf. p. 2
2
Mencione-se, por todos: MOREIRA, Rômulo de Andrade. Este monstro chamado
RDD. Disponível na internet: www.ibccrim.org.br, 23.08.2004. Acesso em 20/05/
2007.
3
CUNHA, Rogério Sanches; PÁDUA, Thales Tácito Pontes Luz de Pádua. Regime
Disciplinar Diferenciado. Breves Comentários (RDD). IN: CUNHA, Rogério Sanches. Lei-
turas Complementares de Execução Penal. Salvador: JusPodivm. 2006. p. 104.
CORPO DISCENTE • FORMANDOS 305
Igor Raphael de Novaes Santos

eficácia, a fim de que possa ser considerada a imprescindibilidade da


manutenção de sua previsão legal.
A isto, acrescente-se que os aspectos legislativos do regime serão
avaliados à luz dos preceitos constitucionais vigentes, em um verdadeiro
consectário lógico da investigação científica de sua capacidade instru-
mental. Isso porque, como é cediço, “as normas que integram a ordenação
jurídica nacional só serão válidas se se conformarem com as normas da
Constituição Federal”4.
Por fim, não se olvide que outra questão crucial a ser tratada, ainda
que por via oblíqua, pela (re)visitação deste tema na academia, revela-se
ante a escassa ou nenhuma importância atribuída ao estudo da execução
penal nas cadeiras das faculdades de Direito. Prática esta incompreensí-
vel, uma vez que, já há algum tempo, o problema da execução penal (altos
índices de reincidência e rebeliões, entre tantos outros) exige um trata-
mento sério e coerente dos profissionais da área.

2. AS ORIGENS DO REGIME DISCIPLINAR DIFERENCIADO

O Regime Diferenciado tem origens na Resolução SAP/SP 265 e no


Regime Disciplinar Especial6, disciplinas administrativas editadas nos
Estados de São Paulo e do Rio de Janeiro após uma série de rebeliões
comandadas por facções criminosas entre os anos de 2001 e 2002.
Em um esforço histórico, informa o jurista Adeildo Nunes que foi
“com base no crescimento desenfreado do poder de organização e de es-
trutura física e material das facções criminosas”7 que se fez necessário o
novel instituto.
O professor Mirabete, por sua vez, narra que o RDD foi concebido
para atender às necessidades de maior segurança nos estabelecimentos
penais e de defesa da ordem pública contra criminosos que, “por serem
líderes ou integrantes de facções criminosas, mesmo encarcerados, co-
mandam ou participam de quadrilhas ou organizações criminosas atuan-
tes no interior do sistema prisional e no meio social”8.

4
DA SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 27ed. São Paulo:
Malheiros. 2006.
5
Íntegra da resolução no sítio: www.mj.gov.br/depen/publicacoes/
nagashi_furukawa.pdf.
6
Maiores informações: www.seap.rj.gov.br
7
NUNES, Adeildo. O regime disciplinar na prisão. Disponível na internet:
www.ibcrim.org.br.
8
MIRABETE, Júlio Fabbrini. Execução penal. 11ed. São Paulo: Atlas. 2007. p. 149.
306 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

A respeito do tema, cumpre observar, que na mesma época, partindo


de dois pressupostos propositalmente delineados pela mass media, dava-se
início a um processo de legitimação do discurso pela maximização da
punição que perdura até hoje. O primeiro fundado em uma sensação cada
vez maior de emergência caracterizada pela divulgação massiva das on-
das de “terror” e o segundo, motivado pela vinculação dessa emergência
às “excessivas” garantias do apenado, em uma conexão construída entre a
impunidade e os dispositivos penais essencialmente “permissivos”9.
Foi a partir dessas premissas, que a população brasileira passou a
adotar o discurso pelo endurecimento das leis (ou do “hard control” como
definem os norte-americanos), o que terminou por motivar a edição da Lei
nº. 10.792/03, com o fito de universalizar o Regime Especial no espaço
brasileiro e de, às pressas, pôr fim às numerosas medidas judiciais inter-
postas no âmbito dos Estados contra as resoluções administrativas que
sustentavam o regime até então.
Deflui-se, assim, que a grande problemática encarada pelo Legislativo
consubstanciava-se no propalado crescimento dos grupos da criminalidade
organizada que iniciavam, então, a demonstração de sua força por meio de
ataques às polícias militar e judiciária e de práticas incendiárias contra
ônibus lotados de passageiros.
Entrementes, olvidou-se o legislador que a formação de grupos do
“crime organizado”10, origina-se da ausência ou mesmo da presença iná-
bil do Estado no interior dos estabelecimentos prisionais. Afinal, seres
humanos que são, os internos terminam por sujeitar-se ao discurso político
dos líderes das organizações criminosas que, valendo-se das inúmeras
carências ali existentes, tomam para si o controle dos mesmos a fim de
angariar poder e submetê-los aos seus comandos.
Oportuno o relato do professor Márcio Christino11:

Essencialmente foi o próprio Estado que ao longo de muitos


anos e por omissão criou as condições que mudaram o com-
portamento e a organização daquela amálgama de pessoas
inseridas no Sistema Prisional, a percepção do Estado ausen-
te cristalizou-se e foi captado por um grupo que conseguiu se
sobrepor aos demais e apropriou-se de um discurso nitida-
mente político.

9
CARVALHO, Salo de; FREIRE, Christiane Russomano. O Regime Disciplinar Dife-
renciado: Notas Críticas à Reforma do Sistema Punitivo Brasileiro. IN: CARVALHO,
Salo. Crítica à Execução Penal. 2ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2007. p. 275.
10
Termo utilizado com ressalvas em razão da inexistência de definição do que seja uma
“organização criminosa” em nosso ordenamento jurídico.
11
Ibidem.
CORPO DISCENTE • FORMANDOS 307
Igor Raphael de Novaes Santos

Na mesma linha, observou o Grupo de Atuação Especial de Repres-


são ao Crime Organizado – GAECO do estado de São Paulo12:

(...) Muito embora em um primeiro momento descartásse-


mos as condições prisionais como geradoras de tal organis-
mo, somos forçados a reconhecer que efetivamente tal cir-
cunstância milita como elemento dos mais decisivos para
que o fenômeno (leia-se: as organizações criminosas) se es-
palhe com rapidez e ganhe adeptos facilmente.

Desse modo, a bem da verdade, vislumbra-se que as circunstâncias


que fomentam os problemas da execução penal são oriundas, direta ou
indiretamente, dessa insípida atuação estatal, o que nos leva à constatação
de que o RDD é muito mais, senão apenas, uma resposta imediatista e
supostamente firme aos grupos sociais hegemônicos13 que, ao se apresen-
tar como modo de “combate à criminalidade”, sequer tangencia as raízes
do problema.

3. DA INCONSTITUCIONALIDADE DO REGIME

Os primeiros passos tomados em torno da inconstitucionalidade do


tema sub exame advêm mesmo antes do ano de 2003, quando se buscou
delinear ofensa à Carta Magna com base na impossibilidade de o Estado
dispor, em sede de resolução, sobre matéria afeta à lei ordinária, in casu, a
disciplina referente à falta grave. Levada a tese ao Judiciário, espancou-se
a pretensão sob o argumento de que os Estados Membros têm legitimidade
para legislar sobre Direito Penitenciário14.
Ultrapassada a controvérsia, inclusive com a posterior atribuição
de força de lei ao instituto, cumpre observar que ainda são numerosas as
ofensas ao texto constitucional. De logo, no tocante aos §§ 1º e 2º do art. 52
da LEP, ressalte-se a ofensa ao princípio da taxatividade, colorário que é
do princípio da legalidade.
Ora, ao se falar em taxatividade, depreende-se “que as condutas
típicas, merecedoras de punição, devem ser suficientemente claras e bem
elaboradas, de modo a não deixar dúvida por parte do destinatário da
norma”15 excluindo-se, assim, toda possibilidade de arbítrio no exercício
do poder punitivo.

12
ibidem. p.2
13
Vale-se aqui da expressão utilizada pelo professor Juarez Cirino dos Santos em sua
obra.
14
Art 24, I da Constituição da República.
15
NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Direito Penal 2ed. São Paulo: RT. 2006. p. 72
308 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

Todavia, ao revés do que determinam doutrina e jurisprudência, os


dispositivos aludidos prevêem como condição para o aperfeiçoamento da
proclamada sanção disciplinar termos vagos e imprecisos tais como “pre-
sos (...) que apresentem alto risco para a ordem e a segurança do estabele-
cimento penal ou da sociedade” e “preso sob o qual recaia fundada sus-
peita de envolvimento ou participação, a qualquer título, em organizações
criminosas, quadrilha ou bando”, acabando por tornar o Regime Discipli-
nar Diferenciado campo aberto para a prática de arbitrariedades, no que
definiu o professor Cezar Bittencourt como prática “intolerável” e
legitimadora de uma “sanção penal cruel e desumana sem tipo penal
definido correspondente”16.
Noutro enfoque, observe-se que a inconstitucionalidade não se li-
mita ao quanto espraiado até aqui. É que o regramento legal afronta, de
uma só vez, além da proibição da indeterminação do tipo penal, os princí-
pios da presunção de inocência, do devido processo legal, da vedação de
pena cruel e da dignidade da pessoa humana.
A uma, porque a disciplina legal em análise autoriza que mesmo os
presos provisórios (art. 52, caput e parágrafos) possam ser submetidos a
este “regime integralmente fechado plus”17 circunstância que, aliada à
indeterminação típica, pulveriza a presunção de não culpabilidade ao
permitir que o preso cautelar sobre o qual recaiam “fundadas suspeitas”
possa ser submetido ao regime sem que nem mesmo haja sido proferido
juízo meritório definitivo a respeito do ilícito autorizador da prisão.
A duas, porque inobstante a previsão de um prazo de 15 dias para
apresentação de defesa, o procedimento previsto nos §§ 1º e 2º do art. 54
não pode ser visualizado como contraditório, haja vista que a efetividade
no exercício da ampla defesa não se concretiza em face de argumentos
opostos com base em “suspeitas” ou em um “alto risco para a ordem e
segurança”, mas sim em torno fatos concretamente delineados e imputa-
dos, garantia que, permissa venia, restou mitigada no RDD.
A três, porque, diante das características delineadas nos incisos do
art. 52, a saber: recolhimento em “em cela individual” (inc. II), com “direi-
to à saída da cela por 2 horas diárias para banho de sol” (inc. IV), “dura-
ção máxima de trezentos e sessenta dias, sem prejuízo de repetição da
sanção por nova falta grave da mesma espécie”, podendo se estender
“até o limite de um sexto da pena aplicada” (inc. I) é inevitável vislum-

16
BITTENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. v1. 10ed. São Paulo:
Saraiva, 2006. p. 16.
17
Expressão cunhada pelo professor Salo de Carvalho.
CORPO DISCENTE • FORMANDOS 309
Igor Raphael de Novaes Santos

brar ofensa ao princípio constitucional da dignidade da pessoa humana,


e, por conseguinte, ao da vedação da pena cruel.
Nessa senda, Roberto Delmanto18, em precioso artigo, alerta que
manter alguém em solitária por 360 ou 720 dias, ou por até um sexto da
pena - o que, na hipótese de um homicídio qualificado apenado com pena
mínima, poderia chegar a quatro anos - será, “certamente, transformá-lo
em um verdadeiro animal, um doente mental ou alguém muito pior do que
já era”, mormente porque “estudos mostram que, isolado por mais de um
ano, o preso sofrerá problemas psicológicos e psiquiátricos”.

4. O RDD COMO CONSECTÁRIO DO DIREITO PENAL DO INIMIGO

Inevitável a constatação de que o RDD em muito se aproxima do


que o professor Gunther Jakobs definiu como “Direito Penal do Inimigo”.
Em suma, sustenta o jurista alemão que, paralelamente aos cida-
dãos, existem aqueles que deveriam ser chamados de inimigos, ou seja,
“indivíduos cuja atitude na vida econômica, mediante sua incorporação
a uma organização, reflete seu distanciamento, presumivelmente dura-
douro em relação ao Direito”19, razão por que, em face do perigo e ameaça
que proporcionariam à existência da sociedade, deveria ser instaurada
uma guerra na qual o legislador pudesse se valer de instrumentos como a
“otimização de bens jurídicos em detrimento da tutela à esfera da liberda-
de” e a formulação de tipos que se dirigem à “conservação com respeito a
fatos futuros e não à sanção de fatos já perpetrados”20, o que, permissa
venia, implicaria em “uma renúncia às garantias materiais e processuais
do Direito Penal da normalidade”21.
Posto isto, é de se observar que a disciplina do RDD, notadamente
os §§1º e 2º do art. 52 da LEP, enquadra-se justamente nessa punição
antecipada de atos que, por si sós, não constituem fato típico algum, atri-
buindo, como visto, aos indivíduos que “a qualquer título” participem de
organizações criminosas, a presunção de culpa.

18
DELMANTO, Roberto. Regime disciplinar diferenciado ou pena cruel. Boletim IBCCRIM.
São Paulo, v.11, n.134, p. 5, jan. 2004.
19
JAKOBS, Gunther. Derecho Penal del ciudadano y Derecho Penal del enemigo. IN:
MARTÍN, Luis Gracia. O horizonte do finalismo e o direito penal do inimigo. São Paulo:
RT. p. 84
20
ibidem. p. 86
21
MARTÍN, Luis Gracia. O horizonte do finalismo e o direito penal do inimigo. São Paulo:
RT. p. 87
310 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

Vejamos a doutrina do professor Paulo César Busato22:

A imposição de uma fórmula de execução da pena diferenci-


ada segundo características do autor relacionadas com “sus-
peitas” de sua participação na criminalidade de massa não é
mais que um “Direito Penal do Inimigo, quer dizer, (...) a
adoção do Regime Disciplinar Diferenciado representa o tra-
tamento desumano de determinado tipo de autor de delito,
distinguindo evidentemente entre cidadãos e inimigos”.

Reforça esse mesmo entendimento a constatação de que não obstante


os mencionados dispositivos figurarem de modo subsidiário no regime
jurídico do RDD, está se invertendo, na prática, a mens legis, haja vista que
a grande maioria dos internos do RDD se enquadra não no caput e incisos
do art. 52, mas em seus parágrafos, erigindo à regra o que era exceção, em
uma clara intenção de afastar as garantias fundamentais de indivíduos
cuidadosamente selecionados pela ordem legal, in casu, os integrantes das
organizações criminosas.

5. DA COMPLACÊNCIA DO JUDICIÁRIO

À luz dos traços de inconstitucionalidade traçados, observa o pro-


fessor Andrei Zenkner Schimidt23 que estamos passando por uma crise de
legalidade na execução penal, concretizando-se o que ele denomina de
“deslegitimação interna”. Vale dizer, inobstante o fato de estar a norma
submetida a uma legitimação externa/formal (in casu, os critérios da
taxatividade, presunção de inocência, devido processo legal, vedação de
pena cruel e dignidade da pessoa humana), esta não vem sendo invalida-
da mesmo quando constatada sua desobediência, o que torna o Judiciário
seu (des)legitimador.
Nessa mesma linha, observam os professores Salo de Carvalho e
Christiane Russomano Freire que “se o Poder Legislativo derivado pade-
ceu por ter produzido normas que maximizaram o sistema punitivo (...)
esta culpa deve ser dividida, pois encontrou no Judiciário conveniente
cúmplice” 24.

22
BUSATO, Paulo César. Regime Disciplinar Diferenciado com Produto de um Direito
Penal do Inimigo. IN: CARVALHO, Salo. Crítica à Execução Penal. 2ed. Rio de Janeiro:
Lúmen Júris, 2007. p. 297.
23
SCHIMIDT, Andrei Zenkner. Direitos, Deveres e Disciplina na Execução Penal. IN:
CARVALHO, Salo. Crítica à Execução Penal. 2ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2007.
p. 31/33.
24
Ibidem. p. 271.
CORPO DISCENTE • FORMANDOS 311
Igor Raphael de Novaes Santos

Reflexo disto pode ser encontrado nas lições dos professores Rogé-
rio Sanches Cunha e Thales Tácito25, os quais, em que pese o reconheci-
mento da indeterminação típica, defendem a constitucionalidade do Re-
gime Especial:

Pensamos que a medida drástica é constitucional, desde que


utilizada como sanção extrema, excepcional (...) Confessa-
mos a dificuldade de se extrair o real significado do que seja
‘alto risco para ordem e a segurança do estabelecimento pe-
nal ou da sociedade’, mostrando-se ampla, margeando a am-
bigüidade, campo fértil para arbitrariedade. (...) Tecemos, no
entanto, severa crítica à expressão “fundada suspeita” utili-
zada pelo inciso em análise.

Contudo, o que não se pode deixar de ter em vista é que, se há


irregularidade ou imperfeição técnica em qualquer instrumento jurídico
há de ser esta combatida, seja pela atuação profissional, seja pela produ-
ção acadêmica, sob pena de, por meio dessas permissividades, restar legi-
timado um complexo de normas absolutamente incoerente com as funções
do Direito Penal e com as premissas que a Constituição da República
buscou consolidar, em verdadeira afronta ao sistema garantista que im-
põe-se ao Direito Penal Moderno.

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ferrajoli, com a percuciência que lhe é peculiar, afirma que a histó-


ria das penas “é mais horrenda e infamante que a própria história dos
delitos: porque mais cruéis e talvez mais numerosas do que as violências
produzidas pelos delitos têm sido as produzidas pelas penas”26.
Sob a chancela do professor italiano, não é difícil constatar que a
técnica estatal de impor penas mais graves e penosas aos autores de deli-
tos já há algum tempo contribui para a supressão de garantias em episódi-
os emblemáticos da história mundial. Não é diferente o caso do RDD.
Como visto, a circunstâncias históricas que motivaram a edição
das disciplinas administrativas e, posteriormente, a promulgação da Lei
nº 10.792/2003, aliada aos traços de inconstitucionalidade demonstra-
dos, resultaram em um instituto ineficaz quanto ao cumprimento de seu

25
Ibidem.p.104
26
FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: Teoria do Garantismo Penal. p. 310
312 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

desiderato e incompatível com o que hoje se afirma como Estado Democrá-


tico de Direito.
Ademais, ao proceder desta forma, reproduziu-se, tão-somente, a
prática governamental de atacar os efeitos e não as causas do problema, o
que termina por realçar a absoluta incapacidade de gestão do Executivo.
Entretanto, ainda poder-se-ia perguntar: “O RDD, mesmo ineficaz,
não seria, a curto prazo, medida necessária para o problema que hoje se
enfrenta?”.
Imperiosa é a resposta negativa. Isso porque, ao nos posicionarmos
em sentido contrário, estaríamos legitimando o discurso pela mitigação
de garantias individuais em prol de um combate à criminalidade de cará-
ter meramente paliativo que, ressalte-se, se não for suprimido, certamente
resultará em institutos cada vez mais repressores, aproximando-nos, pou-
co a pouco, de um Estado Despótico, no qual não se poderá mais falar em
Direito Penal, mas em “mero exercício de poder”27.
Assim é que, diante das considerações tecidas, pode-se afirmar que
o Regime Disciplinar Diferenciado destoa das garantias previstas consti-
tucionalmente e se mostra como mais um28 dos inúmeros expedientes
legislativos editados na leviana pretensão de solucionar os problemas da
criminalidade com atos meramente formais, resultando, assim, na forma-
ção de um corpus legal dotado de caráter paliativo evidente que, ao se
apresentar como instrumento simbólico de segurança, apenas protela o
enfrentamento das causas reais da criminalidade.
Nessa ordem de idéias, a título de conclusão, cabe aqui deixar claro
que o RDD, ao buscar solucionar o problema da execução penal, impõe
objetivos que em muito se afastam da essência do Direito Penal, razão por
que, ao ser-lhe imputada a responsabilidade pela pacificação dos proble-
mas da execução só poderia levar às desastrosas conseqüências experi-
mentadas.
Afinal, a ciência penal tem, historicamente, a finalidade de limitar o
poder punitivo, não de expandi-lo, como se vem pretendendo. Desse modo,
o manejo da questão deve partir do enfrentamento de aspectos conjunturais
(desemprego, distribuição irregular de renda, déficit educacional, entre
outros), aliado a uma mudança premente do discurso jurídico, a fim de
que, caso mostrem-se mais uma vez omissos o Executivo e o Legislativo,

27
Termo consignado por Zaffaroni em seu Manual de Direito Penal Brasileiro.
28
A título exemplificativo basta relembrar a Lei nº 8.072/90, a Nova Lei de Tóxicos
(Lei 11.343/06) e a recente alteração no aumento do percentual para concessão da
progressão de regime as ditos crimes hediondos (Lei 11.464/2007)
CORPO DISCENTE • FORMANDOS 313
Igor Raphael de Novaes Santos

seja o Judiciário o efetivo fiscalizador dos preceitos normativos garantido-


res dos direitos fundamentais inerentes a todo cidadão, sob pena de se
continuar confundindo Direito Penal com arbitrariedade.

REFERÊNCIAS

BITTENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. v1. 10 ed. São


Paulo: Saraiva, 2006.

BUSATO, Paulo César. Regime Disciplinar Diferenciado com Produto de


um Direito Penal do Inimigo. IN: CARVALHO, Salo. Crítica à Execução
Penal. 2 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.

CARVALHO, Salo de; FREIRE, Christiane Russomano. O Regime Disci-


plinar Diferenciado: Notas Críticas à Reforma do Sistema Punitivo Brasi-
leiro. IN: CARVALHO, Salo. Crítica à Execução Penal. 2 ed. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2007.

CHRISTINO, Márcio. Sistema Penitenciário e o RDD. Disponível em:


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CUNHA, Rogério Sanches; PÁDUA, Thales Tácito Pontes Luz de Pádua.


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FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: Teoria do Garantismo Penal. São Paulo:


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MARTÍN, Luis Gracia. O horizonte do finalismo e o direito penal do inimigo.


São Paulo: RT.2007

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314 Revista Jurídica dos Formandos
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NUNES, Adeildo. O regime disciplinar na prisão. Disponível na internet:


www.ibcrim.org.br

SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal: Parte Geral. Curitiba: ICPC/
Lumen Juris, 2006.

SCHIMIDT, Andrei Zenkner. A Crise de Legalidade na Execução Penal.


IN: CARVALHO, Salo. Crítica à Execução Penal. 2 ed. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2007.

ZAFFARONI, Eugênio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Di-


reito Penal Brasileiro: Parte Geral. São Paulo: RT. 1997.
CORPO DISCENTE • FORMANDOS 315
Rodrigo Dantas Tourinho

A RESPONSABILIDADE DA ADMINISTRAÇÃO
PÚBLICA PELOS DÉBITOS TRABALHISTAS E A
LEI DE LICITAÇÕES. INTERPRETANDO O § 1º
DO ART. 71 DA LEI 8.666/93

Rodrigo Tourinho Dantas


Bacharel em Direito pela UCSAL. Pós-graduan-
do “lato sensu” em Direito Processual Civil pela
Fundação Faculdade de Direito da UFBA.

1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS

A Administração Pública responde pelos débitos trabalhistas oriun-


dos do inadimplemento por parte do prestador de obra ou serviço públi-
co?
A discussão acerca da responsabilidade do Poder Público pelo não
cumprimento dos encargos trabalhistas, até pouco tempo atrás, estava
sepultada, sobremodo pelo entendimento já pacificado no c. Tribunal Su-
perior do Trabalho.

AGRAVO DE INSTRUMENTO. RECURSO DE REVISTA. RES-


PONSABILIDADE SUBSIDIÁRIA. TOMADOR DOS SERVIÇOS.
SÚMULA Nº 331 DO TST. A discussão acerca da responsabili-
dade subsidiária do tomador dos serviços já se encontra paci-
ficada nesta Corte, por meio da Súmula nº 331, IV, do TST.
Decisão recorrida em harmonia com citada Súmula, ficando
indenes de violação os preceitos dos artigos 71 da Lei 8.666/
93 e 596 do Código de Processo Civil, ante o crivo de legali-
dade e constitucionalidade em que são emanados os verbetes
sumulares desta Corte. Agravo de instrumento conhecido e
não provido (TST, AIRR 2867/2000-024-05-00, 6ª T., Relator
Luiz Antonio Lazarim, DJ 10.08.2007).

Todavia, o questionamento acerca dessa responsabilidade ressur-


giu em virtude do ajuizamento da Ação Declaratória de
Constitucionalidade (ADC) nº 16, segunda a qual se pretende que seja
declarado constitucional o dispositivo que determina que a Administra-
ção Pública não é responsável pelos débitos trabalhistas dos terceirizados,
nos exatos termos em que vaticina o § 1º do art. 71 da Lei de Licitações.
316 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

2. O § 1º DO ART. 71 DA LEI 8.666/93

O preceptivo legal ora examinado assim preceitua: “A inadimplência


do contratado com referência aos encargos trabalhistas, fiscais e comerciais não
transfere à Administração Pública a responsabilidade por seu pagamento, nem
poderá onerar o objeto do contrato ou restringir a regularização e o uso das obras
e edificações, inclusive perante o Registro de Imóveis”.
Pois bem. O exame isolado do susomencionado dispositivo leva-
nos a afirmar, em princípio, que o Poder Público está isento de qualquer
responsabilidade, seja ela solidária ou subsidiária, devendo o Contratado
– e somente ele – responder pelos débitos que venha assumir, inclusive
durante a execução contratual.
Nesse diapasão, encontra eco as lições de Marçal Justen Filho, para
quem

A Administração Pública não se transforma em devedora


solidária ou subsidiária perante os credores do contratado.
Mesmo quando as dívidas se originarem de operação neces-
sária à execução do contrato, o contratado permanecerá como
único devedor perante terceiros 1.

Com efeito, assinala a doutrina que quando a Administração Públi-


ca contrata –quer por meio de processo licitatório ou não - com empresa
habilitada a construir mantém-se na qualidade de mera dona da obra 2, só
respondendo pelas obrigações que lhe são próprias (obrigações meramen-
te contratuais) 3. Por isso que, nessa condição, aplicar-se-ia ao Poder Pú-
blico a Orientação Jurisprudencial nº 191 do c. TST.

DONO DA OBRA. RESPONSABILIDADE. Diante da


inexistência de previsão legal, o contrato de empreitada en-
tre o dono da obra e o empreiteiro não enseja responsabili-

1
FILHO, Marçal Justen. Comentários à Lei de Licitações e contratos Administrativos. 8ª
ed., São Paulo: Dialética, 2002, p.566
2
Segundo os escólios de Sérgio Pinto Martins, o dono da obra não é considerado
empregador “pois não assume os riscos da atividade econômica, nem tem intuito de lucro na
construção ou reforma”, daí porque não responde pelos encargos trabalhistas, salvo se
construtora ou incorporadora. (In Direito do Trabalho, 22ª ed., São Paulo: Atlas,
2006, p. 187).
3
No sentido do texto, MEIRELLES, Hely Lopes. Licitação e Contrato Administrativo.
13ª ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 286.
CORPO DISCENTE • FORMANDOS 317
Rodrigo Dantas Tourinho

dade solidária ou subsidiária nas obrigações trabalhistas con-


traídas pelo empreiteiro, salvo sendo o dono da obra uma
empresa construtora ou incorporadora.

Nesse sentido, têm se firmado alguns julgados: “MUNICÍPIO -


DONO DA OBRA. “RESPONSABILIDADE SUBSIDIÁRIA”.
INAPLICABILIDADE”. OJ 191 DA SDI-I/TST. O Município, no exercício
das suas funções administrativas, não pode ser confundido com empresa
construtora ou incorporadora. Portanto, deve ser considerado dono da
obra e não responde subsidiariamente por dívidas trabalhistas da empre-
sa construtora que contratou para a edificação de escola pública perten-
cente à municipalidade. Inteligência da Orientação Jurisprudencial 191
da SDI-I/TST (TRT 3ª Região, 00336-2006-097-03-00-0 RO, 2ª Turma,
Relator Sebastião Geraldo de Oliveira, DJ 18/10/2006)”; “OBRAS MUNI-
CIPAIS REALIZADAS POR EMPRESA PRIVADA “DÉBITO TRABALHIS-
TA - RESPONSABILIDADE SUBSIDIÁRIA DO ENTE PÚBLICO “NÃO
OCORRÊNCIA” Não há que se falar em responsabilidade subsidiária do
Município, quando não se está diante daquela hipótese prevista na juris-
prudência consolidada no Enunciado 331-TST, de terceirização de servi-
ços próprios, mas de uma atividade fim do Estado, qual seja, o de promo-
ver licitações e credenciar empresas privadas para a execução das obras
públicas, no caso, construção de uma Escola. Estando fixado nos autos
tratar-se, a empregadora, de uma empresa de construção civil, escolhida,
pelo critério legal próprio, para atuação no seu ramo de negócios, é intei-
ramente dela a responsabilidade pelos débitos trabalhistas (TRT 3ª Re-
gião, 00903-2004-097-03-00-6 RO, 3ª Turma, Relator Paulo Araújo, DJ
14.05.2005)”.
Ainda:

RESPONSABILIDADE SUBSIDIÁRIA. DONO DA OBRA. “Di-


ante da inexistência de previsão legal, o contrato de emprei-
tada entre o dono da obra e o empreiteiro não enseja respon-
sabilidade solidária ou subsidiária nas obrigações trabalhis-
tas contraídas pelo empreiteiro, salvo sendo o dono da obra
uma empresa construtora ou incorporadora.” Orientação
Jurisprudencial nº 191 da SDI-I do TST. Hipótese em que o
ente municipal é o dono da obra, não sendo responsável no
feito (TRT 4ª Região, 00357-2004-018-04-00-6 RO, 7ª Turma,
Relatora Maria Inês Cunha Dornelles, DJ 21.09.2006).
318 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

No entanto, apesar de ser induvidoso que a Lei nº 8.666/93 (Lei de


Licitações) tenha adotado a teoria da irresponsabilização do Estado, como
dito alhures, a jurisprudência prevalente não tem acolhido essa tese, jus-
tamente porque, como se verá, a norma infraconstitucional viola o manda-
mento constitucional inscrito no § 6º do art. 37.

3. INTERPRETANDO A LEI DE LICITAÇÕES À LUZ DA


CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988

A Lex Fundamentalis de 1988, sem embargos, adotou a teoria da res-


ponsabilidade objetiva do Estado, segunda a qual é dispensada a culpa
em relação ao evento danoso. Basta, pois, que haja um nexo causal entre o
fato administrativo e o dano sofrido.
A previsão constitucional da responsabilização do Estado encon-
tra-se inserta no § 6º do art. 37, segundo a qual “as pessoas jurídicas de
direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responde-
rão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegura-
do o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa”.
Ora, diante de tudo o quanto fora dito, faz-se imperioso interpretar
o § 1º do art. 71 da Lei nº 8.666/93 à luz da CF/88. E não será preciso fazer
uma análise mais aprofundada para concluirmos que o dispositivo da Lei
de Licitações é manifestamente inconstitucional.
Sim, porque o texto infraconstitucional, ao excluir qualquer tipo de
responsabilidade da Administração Pública pelos débitos trabalhistas,
conflita com a norma esculpida na Constituição, que prevê que o Estado –
e também as pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviços
públicos – responde pelo dano que seus agentes causarem a terceiro.
O termo agente, segundo José dos Santos Carvalho Filho, tem um
conceito amplo, englobando “todos aqueles que, de alguma forma, este-
jam juridicamente vinculados ao Estado” 4.
Pois bem. Se, por exemplo, a Administração contrata uma empresa
para realizar uma determinada obra, e ela deixa de cumprir com todos os
seus encargos trabalhistas de seus empregados, essa empresa contratada

4
FILHO, José dos Santos Carvalho. Manual de Direito Administrativo. 17ª ed., rev.,
ampl. e atual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 481.
5
Terceiro é definido por Sérgio Cavalieri Filho, como sendo “alguém estranho à Ad-
ministração Pública, alguém com o qual o Estado não tem vínculo jurídico
preexistente” (In Programa de Responsabilidade Civil. 7ª ed., São Paulo: Atlas, 2007, p.
30).
CORPO DISCENTE • FORMANDOS 319
Rodrigo Dantas Tourinho

estará causando dano aos seus trabalhadores. – que juridicamente são


considerados como “terceiros” 5, já que não mantém um vínculo direto
com o Estado. Nessa hipótese, presente o fato administrativo, o dano
(inadimplemento dos encargos trabalhistas) e o nexo causal, não há como
isentar o Estado de qualquer responsabilidade.
Giza anotar, também, que, ainda que tenha obedecido a todas as
formalidades exigidas no processo de Licitação, caso a empresa por ela
contratada esteja com débitos trabalhistas, a responsabilidade do Esta-
do subsiste, haja vista que, além de incorrer em culpa in eligendo (má
escolha do contratante), subsiste a culpa in vigilando (má fiscalização
das obrigações contratuais). É a aplicação da teoria da responsabilidade
subjetiva.

AGRAVO DE INSTRUMENTO. ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA.


RESPONSABILIDADE SUBSIDIÁRIA. SÚMULA Nº 331 DO
TST. Segundo a redação do item IV da Súmula nº 331 do TST:
“IV - o inadimplemento das obrigações trabalhistas, por par-
te do empregador, implica a responsabilidade subsidiária do
tomador dos serviços, quanto àquelas obrigações, inclusive
quanto aos órgãos da administração pública, das autarquias,
das fundações públicas, das empresas públicas e das socieda-
des de economia mista, desde que hajam participado da rela-
ção processual e constem também do título executivo judicial
(Lei nº 8666/93, art. 71)”. A culpa in eligendo e in vigilando da
Administração atrai a responsabilidade subsidiária, por atu-
ação do princípio inserto no art. 455 da Consolidação, aplica-
do por força do inciso II, § 1º, do art. 173 da CF/88, além do
que preconiza o art. 67 da mesma Lei nº 8.666/93. Agravo de
instrumento não provido conhecido (TST, AIRR-823/2004-
034-12-40.3, 4ª Turma, Relator Juíza Convocada Maria Doralice
Novaes, DJ 22.06.2007).

Veja-se, também os seguintes arestos: “RECURSO DE REVISTA.


RESPONSABILIDADE SUBSIDIÁRIA. ENTE DA ADMINISTRAÇÃO PÚ-
BLICA. LEI 8.666/93. A terceirização de serviços pela Administração Pú-
blica, ainda que precedida de regular processo licitatório, não exime a
tomadora de serviços da responsabilidade subsidiária pelas obrigações
trabalhistas devidas pela prestadora de serviços aos empregados que os
executaram e deram cumprimento ao contrato celebrado entre aquela e
esta. Assim, na hipótese de inadimplemento pela empresa prestadora de
serviços, a tomadora responde subsidiariamente pelas obrigações traba-
320 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

lhistas, desde que haja integrado a relação processual e figure no título


executivo judicial (Súmula 331, item IV, do TST) (TST, RR225/2005-371-
06-00, 5ª Turma, Relator Ministro João Batista Brito Pereira, DJ 10.08.2007)”;
“RECURSO DE REVISTA. RESPONSABILIDADE SUBSIDIÁRIA. ARTI-
GO 71 DA LEI Nº 8.666/93. OFENSA. NÃO-CONFIGURAÇÃO. A Súmula
nº 331, IV, em sua nova redação, trata da matéria relativa à responsabili-
dade subsidiária à luz da Lei nº 8.666/93, se aplicando, inclusive, às
hipóteses em que a pessoa jurídica de direito público adotou o procedi-
mento licitatório ali previsto, afastando, por conseqüência, a alegação de
ofensa ao artigo 71 da citada lei pela decisão que adota o entendimento
nele consagrado. Recurso de revista de que não se conhece (TST, RR-
700919/00.0, 1ª Turma, Relator Juiz Convocado Guilherme Bastos, DJ
15.06.2007)”.
Com efeito, somente poder-se-ia falar em exclusão da responsabili-
dade do recorrente se tivesse ele observado as regras contidas nos artigos
58, III, 67 e 76 da Lei n. 8.666/93, que lhe atribui o dever de acompanhar e
fiscalizar a execução do contrato, assim como lhe confere a prerrogativa
de rejeitar o serviço fornecido ou executado em desacordo com o pactua-
do.
Imperioso anotar, por outro lado, para que a Administração Públi-
ca seja responsabilizada subsidiariamente pelos encargos trabalhistas,
faz-se mister que tenha integrado a relação processual e conste, também,
do título executivo judicial.
É, inclusive, o que estabelece o item IV do verbete sumular nº 331 do
c. TST:

O inadimplemento das obrigações trabalhistas, por parte do


empregador, implica a responsabilidade subsidiária do
tomador dos serviços, quanto àquelas obrigações, inclusive
quanto aos órgãos da administração direta, das autarquias,
das fundações públicas, das empresas públicas e das socieda-
des de economia mista, desde que hajam participado da rela-
ção processual e constem também do título executivo judicial
(art.71 da Lei nº 8.666, de 21.06.1993).

Em uma escorchada síntese, pode-se concluir que, a Administração


Pública, quer objetivamente, quer subjetivamente, responde pelos débitos
trabalhistas devidos pelos empregadores envolvidos com contratos
terceirizantes.
CORPO DISCENTE • FORMANDOS 321
Rodrigo Dantas Tourinho

5. CONCLUSÕES

Desse modo, como visto, outra não pode ser a resposta ao


questionamento feito nas primeiras linhas deste artigo, senão a de que a
Administração Pública responde, de forma subsidiária, pelos débitos tra-
balhistas oriundos do inadimplemento por parte do prestador de obra ou
serviço público.
Justamente porque o dispositivo infraconstitucional – o § 1º do art.
71 da Lei nº 8.666/93 –, que prevê a irresponsabilização do Poder Público
pelos encargos trabalhistas dos terceirizados, viola a ordem jurídica cons-
titucional, contida no § 6º do art. 37 da Magna Carta.
Por isso, salvo melhor juízo, entendemos que não pode ser outro o
desfecho da Ação Declaratória de Constitucionalidade nº 16, senão a sua
improcedência, com a conseqüente declaração de inconstitucionalidade
do supracitado dispositivo da Lei de Licitações, pondo, enfim, e em defini-
tivo, término a essa questão controvertida.

6. BIBLIOGRAFIA

DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de direito do trabalho. 5ª ed. – São


Paulo: LTr, 2006;

FILHO, José dos Santos Carvalho. Manual de Direito Administrativo. 17ª ed.,
rev., ampl. e atual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007;

FILHO, Marçal Justen. Comentários à Lei de Licitações e contratos Administra-


tivos. 8ª ed., São Paulo: Dialética, 2002;

FILHO, Sérgio Cavalieri. Programa de Responsabilidade Civil. 7ª ed., São


Paulo: Atlas, 2007;

MARTINS, Sérgio Pinto. Direito do Trabalho. 22ª ed. – São Paulo: Atlas,
2006;

MEIRELLES, Hely Lopes. Licitação e Contrato Administrativo. 13ª ed. São


Paulo: Malheiros, 2002

MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 7ª ed. rev., amp. e atual. –


São Paulo: Atlas, 2000.
CORPO DISCENTE
Graduandos
CORPO DISCENTE • GRADUANDOS 325
Carlos Alberto José Barbosa Coutinho

A CRISE ONTOLÓGICA1 DO ARTIGO 5º, CAPUT,


DA CARTA CIDADÃ DE 1988

Carlos Alberto José Barbosa Coutinho


Bacharelando em Direito da Universidade Ca-
tólica do Salvador

“Aqui está ó pobre Carta Constitucional que declara com


ingenuidade que o País é católico e monárquico. É por isso
talvez que ninguém crê na religião, e que ninguém crê na
realeza! É que ninguém crê em ti ó Carta Constitucional! Os
ministros que te defendem, os professores que te ensinam, as
autoridades que te realizam, os padres que falam em ti à
missa conventual, aqueles mesmos cuja única profissão era
crer em ti, todos te renegam e ganhando o seu pão em teu
nome, ridicularizam-te pelas mesas dos botequins!”
(Eça de Queiroz)

SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Breve Conceito de Constituição e Normas Cons-


titucionais 3. A Ontologia do Artigo 5º, Caput 4. Os Fatores da Crise Ontológica
do Artigo 5º, Caput 4.1. A Crise da Modernidade 4.2. A Problemática do
Positivismo e do Ordenamento Jurídico. 5. Conclusão. 6. Referências

1. INTRODUÇÃO

A Constituição é um dos mecanismos surgidos ao longo da história


para buscar o mínimo de harmonia na sociedade. Diante das desigualda-
des entre os homens e o arbítrio dos detentores do poder, criou-se uma
forma política e legal de regular as condutas sociais, atendendo as aspira-
ções dos cidadãos. Eis a Constituição: produto do “contrato” entre
governantes e governados, expressão máxima da modernidade enquanto
convivência dos indivíduos em sociedade.

1
Este estudo utiliza o termo ontologia na concepção Heideggeriana do ser- em- si, ou
seja, no sentido estrito do termo Dasein. Objetiva-se a demonstração da necessidade
de sua apreciação quando da análise do ordenamento jurídico a fim de dotar o
dispositivo constitucional de uma práxis sinérgica com as necessidades do homem
social.
326 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

As Cartas Constitucionais sofreram mutações ao longo do tempo,


diante das aporias da ordem econômica e das instabilidades sociais. Era
necessário manter a ordem e a progressividade do sistema capitalista atra-
vés do Direito. Em outras palavras, o Estado necessita, a todo instante,
conter as convulsões cíclicas imanentes a esse sistema sócio-econômico.
A Constituição Federal de 1988 veio atender às aspirações de uma
sociedade que sofreu vinte e um anos de tolhimentos advindos do regime
militar. Ela foi promulgada no espírito de que o Brasil gozaria de um
verdadeiro Estado Democrático de Direito.
O artigo 5º, caput, da referida Carta Fundamental compõe-se de va-
lores indispensáveis na sociedade contemporânea. Apesar da sua potên-
cia de eficácia, o dispositivo transformou - se num mero discurso político
e jurídico. As condições econômicas, sociais e políticas do mundo e do
Brasil aluem o sentido de ser (Dasein) da norma constitucional, compro-
vando a subordinação do Direito àquelas. Ademais, a dogmática jurídica
insiste em tratar o Direito através de uma epistemologia não axiológica,
negando, dessarte, seu vultoso papel enquanto disciplina a serviço das
ciências econômicas e sociais.

2. BREVE CONCEITO DE CONSTITUIÇÃO E NORMAS


CONSTITUCIONAIS

A constituição tem um conceito precípuo para a existência e com-


portamento das regras jurídicas. Ela uniformiza a linha interpretativa,
conectados aos objetivos do Estado. Considera-se a Lei Máxima de um
ordenamento jurídico, à qual as demais leis estão subordinadas (denomi-
nadas infraconstitucionais). Destarte, eis o sentido jurídico de Constitui-
ção conforme adução de José Afonso da Silva:

Na concepção jurídica, que interessa ao jurista como tal, a


constituição se apresenta essencialmente como norma jurídica,
norma fundamental de organização do Estado e da vida jurí-
dica de um país. A constituição será, então, ‘um complexo
normativo estabelecido de uma só vez, na qual, de uma ma-
neira total, exaustiva e sistemática, se estabelecem as funções
fundamentais do estado e se regulam os órgãos, a âmbito de
suas competências e as suas relações entre eles. A constitui-
ção é, pois, um sistema de normas.2

2
SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das Normas Constitucionais. 7.ed. São Paulo:
Malheiros, 2007. p. 29.
CORPO DISCENTE • GRADUANDOS 327
Carlos Alberto José Barbosa Coutinho

A constituição moderna, como é a Carta Magna Brasileira, com-


põem-se de normas e define regras. Aquelas se estruturam numa maior
extensão interpretativa, possibilitando a dinâmica da aplicabilidade jurí-
dica. O valor social da norma ultrapassa os limites das regras, justamente
pela sua valoração. O seu teor social é explícito. As regras, por sua vez, são
delimitadas, sendo suporte de interpretação no caso concreto.
Por mais que seja conceituada, a norma jurídica constitucional tem
marcos históricos, econômicos, políticos e sociais, pois sua razão de ser
(Dasein) excede aos limites positivistas da Ilustração. Ela revela que o Di-
reito não se escraviza exclusivamente diante de fatos, mas das congruências
deles com a realidade legal, para daí se pensar no quantum da sua eficácia.

3. A ONTOLOGIA DO ARTIGO 5º, CAPUT.

O artigo 5º, caput, da Constituição Federal vigente direciona que


“Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, ga-
rantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a
inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à
propriedade, nos termos seguintes [...]”. O dispositivo traz consigo valo-
res importantes a serem preservados pelo Estado e juristas. O motivo advém
daquela ser uma Carta programática comprometida com a unidade social
e política. Trazer para o concreto tais valores, exige comprometimento
estatal e interpretação da dinamicidade social brasileira, para que sua
aplicabilidade seja justa e devida.
O referido artigo traz em si as garantias e os direitos fundamentais3
(Titulo II) da República Federativa do Brasil, como também compele a
ilação dos princípios fundamentais da nação (Titulo I, enfatizando os art.
1º, II, III, IV e V, 3º, e 4º, II). Isso faz com que o dispositivo quinto se diferen-
cie dos demais artigos da Constituição. Com efeito, a norma constitucio-
nal em questão é mais do que uma introdutora dos direitos e garantias
fundamentais, como também exigência de eficácia dos dispositivos supra
citados. Trata-se, portanto, de metas e direitos.

3
Paulo Bonavides ensina que “[...] os direitos representam por si certos bens, as
garantias destinam-se a assegurar a fruição desses bens; os direitos são principais,
as garantias são acessórias e, muitas delas, adjetivas ( ainda que possam ser objeto
de um regime constitucional substantivo); os direitos permitem a realização das
pessoas e inserem-se direta e imediatamente, por isso, nas respectivas esferas jurí-
dicas, as garantias só nelas se projetam pelo nexo que possuem com os direitos; na
acepção jusracionalista inicial, os direitos declaram-se, as garantias estabelecem-
se”. In: Curso de Direito Constitucional. São Paulo:Malheiros, 2004. p. 528.
328 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

A sua razão e natureza de ser (Dasein) é essencialmente de


intercomunicação. Logo, a sua interpretação deve ter o eco de eficácia e
aplicação na realidade, senão transforma-se numa carta demagógica e
política (como vem acontecendo). O espírito da norma está acima do seu
axioma, não podendo ser interpretada como mera regra. Vale trazer o
ensinamento de Humberto Ávila, o qual leva em consideração que a

[...] atividade do intérprete - quer julgador, quer cientista-


não consiste em meramente descrever o significado previa-
mente existente dos dispositivos. Sua atividade consiste em
construir esses significados. Em razão disso, também não é
plausível aceitar a idéia de que a aplicação do Direito envol-
ve uma atividade de subsunção entre conceitos prontos antes
mesmo do processo de aplicação4.

4. OS FATORES DA CRISE ONTOLÓGICA DO ART. 5º, CAPUT

4.1. A CRISE DA MODERNIDADE

A Constituição moderna foi de inspiração e obra iluminista, frente


às fraturas do Absolutismo Monárquico e a necessidade burguesa na to-
mada do poder político. Era necessário limitar os poderes do Estado e
realizar um “pacto” com os cidadãos. Este cenário histórico permitiu a
manifestação do liberalismo, sua ambição filosófica e política até os dias
atuais. A Constituição dos Estados Unidos, promulgada em 1787, e a Re-
volução Francesa são os exemplos clássicos da manifestação liberal. Eis a
modernidade: razão, justiça, igualdade, fraternidade e liberdade.
No século XX, guerras mundiais, revoltas operárias e colapsos eco-
nômicos a nível planetário (Crash de Nova Iorque), provocaram abalos no
sistema jurídico, trazendo uma nova forma do “social” já frio e tecnica-
mente incorporado ao sistema jurídico. As constituições passaram a ser
um exemplo programático a ser seguido pelo Estado para promover o
Welfare State. A fim de frear as convulsões capitalistas, inserem-se normas
de cunho constitucional, clama-se por novas leis para evitar um caos soci-
al, acalmando as massas.
A imbricação do capitalismo financeiro sobre a mais-valia obtida
via economia real transmudou as bases do sistema. Na época da Industrial

4
ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios: da Definição à Aplicação dos Princípios Jurídi-
cos. 4.ed. São Paulo: Malheiros, 2005. p.24.
CORPO DISCENTE • GRADUANDOS 329
Carlos Alberto José Barbosa Coutinho

Dourada, o arcabouço legalista que amparava o compromisso Keynesiano


atendia aos anseios do regime de produção e acumulação. A ortodoxia do
pensamento econômico, ou seja, o Neoliberalismo, contrapõe-se ao Esta-
do Social, vela a democracia, exigindo, dessarte, que as Cartas com influ-
xo fenomenológico de Keynes sejam rasgadas via MP’s, leis ordinárias e,
sobretudo, Emendas Constitucionais; afinal de contas, o Estado burguês
jamais pode ser ameaçado.
A partir do choque entre entes econômicos e sociais, começa a crise
da modernidade, ou seja, dos planos iluministas e constitucionais cria-
dos até então. A constituição tornou-se um legado político ocidental, sob a
racionalidade do poder com garantias aos Direitos Fundamentais. Estes,
por seu turno, tacitamente insuficientes e ineficazes (logo, atrativo ao
sistema).
E o direito? A sua práxis tornou-se circunscrita pela falta de eficá-
cia das normas. Valores como a igualdade foram mecanizados pelo Direi-
to e pelo ordenamento jurídico, tornando as cartas constitucionais, inclu-
sive a brasileira, um discurso demagógico, tendo como maior vítima, a
aplicabilidade, a hermenêutica e a eficácia do art. 5º, caput.
A esse respeito, Capellari corrobora:

Essa idéia constitucional assumiu, no século XX, o modelo


programático ou dirigente, voltado à realização dos direitos
sociais. Como as promessas assumidas nos pactos constituci-
onais resultaram insuficiente cumpridas, entrou em crise esse
constitucionalismo social, com seus adversários criticando o
excessivo papel nele contido ao Estado e ao Direito na dire-
ção da Sociedade, sobressaindo a pergunta acerca do papel
que à Constituição ainda pode ser atribuído, em tempos de
Pós – modernidade5. 6

Face a esta vicissitude epistemológica do Direito, criou-se um des-


crédito, o desânimo frente as instituições políticas, inclusive as jurídicas.
O descontentamento evidente da população, sobretudo as menos
favorecidas, explica o intrínseco choque entre a ordem capitalista, blinda-

5
Chama-se de Pós-Modernidade as condições sócio-culturais e estéticas do capi-
talismo contemporâneo, podendo ser denominado também de pós-industrial ou
financeiro. É um termo que se tornou de uso corrente, mas bastante disputado.
Teóricos e acadêmicos têm diferentes concepções sobre o mesmo.
6
CAPELLARI, Eduardo. A Crise da Modernidade e a Constituição: Elementos para a
Compreensão do Constitucionalismo Contemporâneo. Rio de Janeiro: América Jurídica,
2004. p. IX do Prefácio.
330 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

da pela racionalização jurídica de exacerbado tecnicismo (patrono da com-


plexidade da realidade jurídico - política ocidental) com a eficácia real
das normas jurídicas constitucionais.
Se a problemática reside no art. 5º, caput, da Constituição Federal de
1988, relaciona-se também à morte da democracia, do Estado Democráti-
co de Direito, frente a decomposição do referido dispositivo constitucio-
nal fundamental. É o que diz, apropriadamente, Friedrich Muller:

Conforme ensina a experiência, as distorções no campo do


Estado de Direito assumem aqui proporções estarrecedoras:
por um lado se recorre à maior parte da população, por outro
não se investe essa parte da população de direitos; por um
lado a maior parte da população é ‘integrada’ na condição de
obrigada, acusada, demandada, por outro lado ela não é inte-
grada na condição de demandante de direitos. Os direitos
fundamentais não estão positivamente à disposição dos in-
divíduos e dos grupos excluídos, mas os direitos fundamen-
tais e humanos destes são violados (de forma repressiva e de
outras formas). Normas constitucionais manifestam-se para
eles ‘quase só nos seus efeitos limitadores da liberdade’, seus
direitos e participação política aparecem, - diante do pano de
fundo a sua depravação integral- preponderante só no papel,
assim também o acesso aos tribunais e à proteção jurídica.7

Ante ao exposto, torna-se patente a crise do constitucionalismo brasi-


leiro. A nova “Mater Legis” trouxe a explicitação dos direitos fundamentais,
inseridos e conectados ao art. 5º, caput. Já se passaram mais de dezoito anos
e a Constituição, particularmente o artigo referido, continua inerte, pouco
aplicado à realidade, muito menos produzindo sua real eficácia. Os valores
contidos no art. 5º ainda estão no plano demagógico, quiçá quimérico. Tudo
isso faz parte de um terreno da crise da modernidade, em que a manutenção
do poder e a segurança do capitalismo necessitam de medidas econômicas e
políticas drásticas, subordinando o Direito para tal intento, mesmo com os
mais nobres valores inseridos numa Carta Constitucional.
O chamado Constitucionalismo mostra-se lasso ante tantas pro-
messas e ineficácias. No caso do Brasil, tem-se o art. 5º, caput, mas a popu-
lação em si, já diante das formas e fórmulas de poder, não evoca o próprio
direito. Fica-se, portanto, no plano da exigência. Lenio Streck afirma que :

7
MÜLLER, Friedrich. Quem é Povo? A Questão Fundamental da Democracia. Tradução
de Peter Naumann. 3.ed. São Paulo: Max Limonad, 2003. p. 95.
CORPO DISCENTE • GRADUANDOS 331
Carlos Alberto José Barbosa Coutinho

[...] cumpre observar que a fragilizarão do Poder Judiciário


atende a interesses bem marcados dos Executivos fortes, que
se nutrem de projetos desdobrados de uma nítida transposi-
ção, hoje, dos quadros do privado para os do público, do indi-
vidualismo possessivo. Penso podermos afirmar que, se de
um lado o capitalismo já não padece do temor da contestação
social, os executivos não tem pejo de violar as Constituições e
de violentar as exigências de harmonia entre os Poderes. A
América Latina tem sido profusa e generosa em exemplos...8

O cético Calmon de Passos aduz:

[...] a institucionalização de uma ordem jurídica justa não é


tarefa dos juristas, mas sim dos políticos, ou melhor dizendo,
do confronto de forças sociais contrapostas, na procura da sa-
tisfação de seus interesses e na moldura das expectativas
institucionalizadas. Em suma, inexiste pureza no Direito. O
jurídico coabita, necessariamente, com o político, o econômi-
co e o ideológico. Nenhum sistema jurídico, nenhum instituto
ou construção jurídica teórica escapa dessa contaminação. Nada,
no jurídico, se imuniza em relação a esse comprometimento.
Conseqüentemente, a dimensão de justiça de um ordenamento
jurídico é a resultante de uma correlação de forças em confron-
to no espaço político em que ele foi institucionalizado.9

O peso do capitalismo e das regras políticas fazem com que a justi-


ça penda para o lado da ineficácia das normas constitucionais. O art. 5º,
diante de tais “regras”, vive na sua clandestinidade quanto ao seu eco
(Dasein) de alcance prático. Isso se torna um grave problema, pois aumen-
ta a descrença no próprio Direito e suas instituições.

4.2. A PROBLEMÁTICA DO POSITIVISMO E DO ORDENAMENTO


JURÍDICO

O sistema jurídico contemporâneo, criado por Hans Kelsen, sob o


manto filosófico do positivismo, foi acoplado ao sistema de racionaliza-
ção da modernidade, canalizando as suas estruturas para a manutenção

8
STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) Crise: Uma exploração hermenêutica da
construção do Direito. 6.ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2005. p.15.
9
PASSOS, J. J. Calmon. Direito, Poder, Justiça e Processo: Julgando quem nos Julgam. Rio
de Janeiro: Forense, 2003. p. 05.
332 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

de poder regido pelo capitalismo. Os valores (Dasein) são quase despreza-


dos na perspectiva de regulação de condutas. O sentido social e integrativo
de norma foi tolhido, senão perdida sua essência.
O ordenamento jurídico, em sua lógica, tem que ser “puro”. A busca
da verdade é tida como sinal de segurança, mesmo em tempos onde sua
relativização é ventilada pela própria ciência. Kelsen mostra que o
ordenamento jurídico é composto e regulado por normas, vistas sob o
prisma dos fatos, descartando-se os valores. Ensina o citado Mestre que a
pureza

[...] propõe garantir um conhecimento apenas dirigido ao Di-


reito e excluir deste conhecimento tudo quanto não pertença
ao seu objeto, tudo quanto não se possa, rigorosamente, deter-
minar como Direito. Quer isto dizer que ela pretende libertar
a ciência jurídica de todos os elementos que lhe são estranhos.
Esse é o princípio metodológico fundamental.10

A norma, segundo Kelsen, tem como essência a não influência de


outras ciências. Porém, sem a intercomunicação destas, o Direito torna-se
incompleto e a cientificidade um excesso, aonde a hermenêutica e o enten-
dimento da norma como fim social tornam-se inaplicáveis. O núcleo da
sua teoria é transformar o Direito numa ciência com os mesmos métodos
das ciências exatas e biológicas. Bobbio confirma: “Ora, a característica
fundamental da ciência consiste em sua avaloratividade, isto é, na distin-
ção entre juízos de fato e juízos de valor e na rigorosa exclusão destes
últimos do campo cientifico: a ciência consiste somente em juízos de fato”.11
A atual fase do capitalismo e a política demagógica instruem para
que o ordenamento seja meio de manutenção e segurança do poder, justa-
mente pela lógica e idéia sistêmica. Logo, sobrevém o Direito como o tercei-
ro poder! O clamor social e a ineficiência das normas jurídicas constituci-
onais exigem do ordenamento uma nova postura, quiçá, sua reformulação.
Com a eclosão das exigências sociais mostraram-se as falhas do
cientificismo jurídico. As matrizes do liberalismo econômico e o modelo
norte-americano de constituição, essencialmente, não conseguem mais
absorver os problemas, conseqüência da expansão liberal – capitalista.

10
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Tradução de João Baptista Machado. São
Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 1.
11
BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico: Lições de Filosofia do Direito. Tradução e
notas de Márcio Pugliesi. São Paulo: Ícone, 1999. p.135.
CORPO DISCENTE • GRADUANDOS 333
Carlos Alberto José Barbosa Coutinho

As metanarrativas do Estado Social (tardiamente instituída na Constitui-


ção Federal de 1988) são pressionadas, frente aos colapsos econômicos e
despreocupação política, gerando miséria. Conseqüentemente, a norma
constitucional programática somente dorme no afago de seu berço esplên-
dido, devido aos pesadelos da ineficácia no mundo real:

(...) O debate filosófico estruturado em torno do projeto da


Modernidade repercute sobre o constitucionalismo na medi-
da em que se torna aguda a denúncia de que o direito moder-
no acabou, após uma longa jornada articulada em torno de
uma experiência de normatividade emancipatória, por tor-
nar-se refém de uma concepção positivista que o restringe ao
papel de regulação social e manutenção do status quo. Após
um longo processo pela liberdade política e edificação de uma
sociedade moralmente justa, acaba por servir de técnica de
organização social, em que o cidadão se torna refém, agora
não mais somente do soberano político, mas da economia.12

A aplicação fria e avalorativa (desprovida do Dasein) do Direito


permitem a sua subordinação (mais que natural, convém frisar) perante o
poder econômico legítimo. Se os filósofos se distanciaram da avaliação do
Direito, muito menos será, pelo cidadão, a compreenssão dos seus direitos
e do que ele é perante o sistema. A outra questão é como exigir que as
normas sejam aplicadas e efetivadas frente a um sistema processual
kafkariano. Nota-se a intolerância do ordenamento, excluindo o cidadão
de exigir os seus direitos que compõem a dignidade social do Estado. A
subordinação do Direito garante a estabilidade do poder e do saber.
Vários filósofos já se contrapõem ao sistema jurídico positivo, ex-
pondo os seus problemas. Não é do escopo deste estudo especificá-los,
mas citar alguns: a) a abordagem do direito como fato e não como valor; b)
a complexidade das fontes jurídicas montadas pelo positivismo jurídico;
d) a teoria do ordenamento e seu rigor provoca a não dinamicidade de
normas, sobretudo no aspecto valorativo; f) a capacidade de não viver sem
as lacunas.
A primeira relação de contraposição ao positivismo e as mordaças
da modernidade é trazer os valores (Dasein) de volta ao ordenamento. Na
atual situação, há exigência e necessidade de eficácia dos direitos fun-

12
CAPELLARI, Eduardo. A Crise da Modernidade e a Constituição: Elementos para a Com-
preensão do Constitucionalismo Contemporâneo. Rio de Janeiro: América Jurídica, 2004. p.
105.
334 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

damentais e sociais, ou seja, a intercomunicação entre ordenamento e os


valores sociais. Há também a força progressiva dos princípios constituci-
onais, os quais garantem a interpretação fora das regras massificas do
ordenamento.
A crise do ordenamento jurídico permite o agravamento da ineficá-
cia do art. 5º da Carta Brasileira, apesar da potencialidade da mesma. O
acesso à Justiça para reivindicação dos direitos fundamentais ainda é
prosaico. Os valores são diminuídos frente à carga objetiva do ordenamento,
não gracejando, portanto, o espírito programático da Constituição Fede-
ral (já ferida pelos aspectos econômicos e políticos). Torna-se, portanto, o
artigo 5º, caput, uma utopia jurídica? Um texto dogmático e político e não
uma verdadeira e aplicável norma?
Ainda no aspecto do positivismo e do ordenamento, o Direito Cons-
titucional Brasileiro e seus doutrinadores ainda passeiam pelo dogmatismo
exacerbado, contribuindo para a mecanização dos direitos fundamentais.
O pensamento filosófico e sociológico aplicados ao Direito pelos próprios
doutrinadores é uma grande quimera, ou, no bojo atual, um absurdo. A
dogmática ainda urge nos ensinamentos das academias, formando meros
operadores do Direito, ao invés de pensadores, perpetuando assim, in-
trinsecamente no silêncio do sofrimento da sociedade, novos dogmáticos.
Ressalta Tércio Sampaio Jr:

Essa limitação teórica pode comportar posicionamentos


cognitivos diversos que podem conduzir, por vezes, a exage-
ros, havendo quem faça do estudo do direito um conheci-
mento demasiado restritivo, legalista, cego para a realidade,
formalmente infenso à própria existência do fenômeno jurí-
dico como um fenômeno social; pode levar-nos ainda a crer
que uma disciplina dogmática constitui uma espécie de pri-
são para o espírito, o que se deduz do uso comum da expres-
são dogmático, no sentido intransigente, formalista, obsti-
nado, que só vê que as normas prescrevem.13

5. CONCLUSÃO

A subordinação do Direito frente aos efeitos econômicos e políticos,


acoplado ao engessado e exageradamente positivado ordenamento jurídi-
co contribuem para que o artigo 5º, caput, da Constituição Cidadã de 1988

13
FERRAZ JR, Tercio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito. 4. ed. São Paulo: Atlas,
2003. p. 48.
CORPO DISCENTE • GRADUANDOS 335
Carlos Alberto José Barbosa Coutinho

permaneça na sua ineficácia. Isso confirma o tratamento insignificante a


certos valores, como a igualdade, a vida, dentre outros considerados
axiomáticos para uma sociedade sadia em seu convívio.
O referido artigo vive um dilema. Se por um lado, sua eficácia for
urgida, o próprio sistema que a criou será contrariado. Mesmo que tenha
capacidade de insurgir-se, perderá seu fôlego frente ao judiciário carente
de uma visão multicultural. Somente será dotada da hegemonia do saber
jurídico (que não é nada mais do que o saber de uma “verdade” para
regulamentação social).
As políticas públicas e o conhecimento dos direitos para
conscientização do cidadão são saídas óbvias, mas desprovidas de ação,
atitudes. Não há intenções do Estado em proclamar a eficácia de artigo
constitucional que traga perigos ao neoliberalismo e ao capitalismo. A
norma do artigo 5º, caput, sofre de sua crise essencial (ontológica - Dasein)
devido a sua imobilidade no ordenamento. Se for aplicada, não será eficaz
no mundo. Logo, coligi-se que formas e verdades jurídicas são subsídios
tácitos e sutis de manutenção (e perpetuação) de poder.
Este estudo não tenciona refutar o positivismo jurídico. Este ainda
é o máximo pensamento humano sobre o Direito. Suas estruturas quanto à
dinamicidade das normas e a concretização da justiça devem ser, sim,
repensadas, trazendo de volta os valores e a convergência do Direito com
as demais áreas do saber, sem perder suas autonomias.
Numa perspectiva pessimista, o século XXI traz consigo a marca da
difusão da informação e a manipulação das massas por esta. Cabe ao
individuo, desviar-se com senso crítico, enxergando a realidade de forma
própria. Se, diante de um mundo consumista, sob a dominação da consci-
ência coletiva via informação, como se dará a libertação de uma razão
suficientemente categórica de busca pelos direitos fundamentais? Eis uma
indagação preocupante, no claro caminho de que a eficácia do art. 5º,
caput, ainda é e será uma quimera.

6. REFERÊNCIAS

BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico: Lições de Filosofia do Direito.


Tradução e notas de Márcio Pugliesi. São Paulo: Ícone, 1999

BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 4. ed. São Paulo:


Malheiros, 2004.
336 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

CAPELLARI, Eduardo. A Crise da Modernidade e a Constituição: Ele-


mentos para a Compreensão do Constitucionalismo Contemporâneo.
Rio de Janeiro: América Jurídica, 2004.

FERRAZ JR. Tercio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito. 4. ed. São


Paulo: Atlas, 2003

KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Tradução de João Baptista Ma-


chado. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

KEYNES, John Maynard. A Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moe-


da, São Paulo: Atlas, 1982.

MARX, karl. O Capital – Volume III – Livro Segundo – O Processo de


Circulação do Capital, São Paulo: Nova Cultural, 1988.

MÜLLER, Friedrich. Quem é Povo? A Questão Fundamental da Demo-


cracia. Tradução de Peter Naumann. 3.ed. São Paulo: Max Limonad, 2003.

PASSOS, J. J. Calmon. Direito, Poder, Justiça e Processo: Julgando quem


nos Julgam. Rio de Janeiro: Forense, 2003.

SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das Normas Constitucionais. 7.ed.


São Paulo: Malheiros, 2007.

STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) Crise: Uma explora-


ção hermenêutica da construção do Direito. 6.ed. Porto Alegre: Livraria
do Advogado Editora, 2005
CORPO DISCENTE • GRADUANDOS 337
Marcel Santos Mutim

A REPERCUSSÃO GERAL DE QUESTÃO


CONSTITUCIONAL COMO PRESSUPOSTO
PRELIMINAR DE ADMISSIBILIDADE DO
RECURSO EXTRAORDINÁRIO

Marcel Santos Mutim


Bacharelando em Direito da Universidade Ca-
tólica do Salvador

1 - INTRODUÇÃO

A emenda constitucional n° 45, de 30 de dezembro de 2004, alterou


significativamente a Constituição Federal pátria, introduzindo o princí-
pio da razoável duração do processo (Art. 5º, LXXVIII); modificando a
competência para homologar as sentenças estrangeiras e conceder o
exequatur às Cartas Rogatórias para o Superior Tribunal de Justiça1, além
de outras tantas alterações.
O Recurso Extraordinário, que tem por objetivo a guarda da Lei
Maior, também sofreu profundas mudanças principalmente no que diz
respeito aos seus pressupostos de admissibilidade. Esta reforma do judi-
ciário – como ficou conhecida a emenda em análise - trouxe um novo
requisito preliminar para o Recurso sub examine, o instituto da repercus-
são geral.
Neste diapasão, profundas têm sido as reflexões acerca deste novo
elemento jurídico de admissibilidade do recurso, julgado pelo STF,
impugnativo de decisões: que contrariem a Constituição; que declarem a
inconstitucionalidade de tratado ou lei Federal; que julguem válida lei ou
ato de governo local contestado em face da Carta Suprema e que julguem
válida lei local contestada em face de lei Federal. Assim, os estudiosos do
Direito Processual bem como do Direito Constitucional questionam sobre a
definição de repercussão geral, comparam com a antiga Argüição de Rele-
vância2, além de avaliarem a constitucionalidade ou não deste requisito.

1
Antes da Reforma do Poder Judiciário proposta pela EC/45, a competência para
homologar as sentenças estrangeiras bem como para conceder o “cumpra-se” às
Cartas Rogatórias era do Supremo Tribunal Federal de acordo com o antigo Art.
102, h. Este declínio de competência visou diminuir a distribuição de processos
para a Corte Máxima a fim de evitar o estado de abarrotamento daquele Tribunal.
2
O instituto da Argüição de Relevância existiu durante a vigência Constituição Fede-
ral de 1967 após a emenda constitucional nº 7, de 13 de abril de 1977.
338 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

2 – PRINCÍPIO DA RECORRIBILIDADE E DO DUPLO GRAU DE


JURISDIÇÃO

Pelo princípio da recorribilidade, todo ato do magistrado que possa


causar determinado prejuízo aos sujeitos da lide, em regra, haverá de ser
suscetível a um meio de impugnação, com fito de reformar, esclarecer,
emendar as decisões para minimizar os equívocos existentes nos julga-
dos. Mister se faz salientar, que os recursos, pelo princípio da taxatividade,
estão esgotados no Código de Processo Civil no Art. 496.
Diante do supra aduzido, emana às partes o direito ao duplo grau
de jurisdição. Neste sentido, ensina a obra do Ilustríssimo Advogado mi-
litante e Desembargador Aposentado do Tribunal de Justiça de Minas
Gerais HUMBERTO THEODORO JUNIOR:

(...)
Assim, para completar o princípio da recorribilidade existe,
também, o princípio da dualidade de instâncias ou duplo grau
de jurisdição.
Isto quer dizer que, como regra geral, a parte tem o direito a
que sua pretensão seja conhecida e julgada por dois juízos
distintos, mediante recurso, caso não se conforme com a pri-
meira decisão. Desse princípio decorre a necessidade de ór-
gãos judiciais de competência hierárquica diferente: os de
primeiro grau (juízes singulares) e os de segundo grau (Tri-
bunais Superiores).
THEODORO JUNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual
Civil. 42ª ed. Forense. Rio de Janeiro: 2005. p. 26.
(Grifos do Original)

Por esta esteira, pode-se concluir que os princípios da recorribilidade


e do duplo grau de jurisdição são siameses com muitos pontos de
congruência. Não obstante estes princípios serem institutos jurídicos dis-
tintos e autônomos caminham com harmonia quase que simbiótica.
Imperioso esclarecer as divergências doutrinárias a respeito da
previsibilidade constitucional ao princípio do duplo grau de jurisdição
como uma de suas garantias. Os autores da literatura jurídica processual
não marcham num sentido único, sendo, portanto, campo vasto a
elucubrações teóricas com objetivo de superar umas as outras.
Aqueles que sustentam a recorribilidade como princípio assegura-
do e garantido pela Carta Maior fazem defendendo este status constitucio-
nal, ainda que de modo tácito, em virtude de uma ligação umbilical com o
super princípio do devido processo legal. Outro argumento utilizado por
CORPO DISCENTE • GRADUANDOS 339
Marcel Santos Mutim

estes advogados da asseveração na Lei Soberana destas normas regue-se


em virtude dos artigos 102 e 105 da CF:

Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal,


precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe:
I - omissis
II - julgar, em recurso ordinário:
III - julgar, mediante recurso extraordinário (...);
Art. 105. Compete ao Superior Tribunal de Justiça:
I - omissis
II - julgar, em recurso ordinário;
III - julgar, em recurso especial;

Por outro lado, há quem afirme, entretanto, que esta tese ora suscita-
da não faz, nem ao menos pressupor, qualquer garantia. Deste modo, o
duplo grau de jurisdição tampouco se encontra implicitamente previsto
na Constituição Federal, isto porque, a previsão da possibilidade de
interposição de recursos aos tribunais superiores estabelece competência,
o que não pode ser confundido com instituir um princípio3! Para Oreste
Nestor de Souza Laspro- rebatendo as teses dos defensores de garantias
constitucionais aos princípios em estudo – “o duplo grau de jurisdição não
assegura, efetivamente, uma decisão melhor, nem tampouco garante a isenção do
juízo e a efetiva defesa das partes, portanto, não se pode considerá-lo como um dos
elementos formadores do devido processo legal”4.
As decisões do Tribunal Máximo têm entendido que “diante do
disposto no inciso III do Artigo 102 da Constituição Federal, no que revela
cabível o extraordinário contra decisão de última ou única instância, o
duplo grau de jurisdição, no âmbito da recorribilidade ordinária, não
consubstancia garantia constitucional”5. Em matéria de recurso administrati-
vo, também, é vasta a jurisprudência daquele Tribunal negando o caráter
garantista ao duplo grau de jurisdição, como bem denota, por exemplo, a
ementa do RE 346882/RJ - RIO DE JANEIRO.

3
Texto publicado na internet no site www.abdconst.com.br/arquivos/
emenda_45_seus efeitos.doc. Autor Desconhecido.
4
LASPRO, Oreste Nestor de Souza: Duplo grau de jurisdição no direito processual
civil. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1995, p. 99.
5
Com este teor vem julgando o Supremo Tribunal Federal como se pode aferir dos
seguintes Acórdãos: ai 210039 agr - ano-1998 uf-sp turma-02 n.pp-006 Min. Marco
Aurélio - dj 04-12-1998 pp-00015 ement vol-01934-05 pp-00994 - ai 210048 agr -
ano-1998 uf-sp turma-02 n.pp-006 Min. Marco Aurélio - dj 04-12-1998 pp-00015
ement vol-01934-05 pp-01000 - ai 210722 agr - ano-1998 uf-sp turma-02 n.pp-006
min. Marco Aurélio - dj 04-12-1998 pp-00015 ement vol-01934-05
340 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

3 – DO RECURSO EXTRAORDINÁRIO

O Recurso Extraordinário, construção do Direito Processual Civil


brasileiro inspirado pelo writ of error Norte-Americano, está previsto no
Art. 496 do CPC. Entretanto, seu cabimento vem disposto na Carta Política
no trato da competência do STF (Art. 102, III). Este meio de provocar o
reexame de uma decisão com escopo de reformar, modificar ou invalidar a
decisão impugnada tem por finalidade a manutenção da autoridade da
Constituição Federal do Brasil.
Por esta tese ora ventilada, verifica-se, da análise do artigo 102, III,
o cabimento deste recurso. Com nítida clareza, percebe-se que este institu-
to de direito constitucional processual, como salientado, visa tutelar a
supremacia da Lei Maior. Para isso, re-analisa a matéria de direito não
conhecendo profundamente as discussões acerca dos fatos nem, muito
menos, da justiça ou não da decisão impugnada. Assim, ao recurso extra-
ordinário “cabe, em princípio, o exame não dos fatos controvertidos, nem
tampouco das provas existentes no processo, nem mesmo da justiça ou
injustiça do julgado recorrido, mas apenas e tão-somente a revisão das
teses jurídicas envolvidas no julgamento impugnado”. 6
Para o processamento deste “meio impugnativo”, a parte
sucumbente deverá, no prazo de 15 dias, o interpor direcionando ao Pre-
sidente ou Vice-Presidente do Tribunal que prolatou a decisão (Vide Art.
541 CPC). Ao recorrido é dado mesmo prazo para pronunciamento de
contra-razoes e, após isso, o deferimento ou indeferimento do seguimento
do recurso. Feito o prévio juízo de admissibilidade, pelo órgão judicante a
quo, e sendo procedente, os autos serão encaminhados ao STF, caso con-
trário, se ao recurso não for dado seguimento, caberá à parte Agravo de
Instrumento, no prazo de 10 dias. Saliente-se, ainda, que o Recurso Extra-
ordinário gera efeitos de natureza apenas devolutiva e, por isso mesmo, é
suscetível à execução provisória7 do acórdão impugnado.

6
THEODORO JUNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil. 42ª ed. Foren-
se. Rio de Janeiro: 2005. p. 570.
7
Frise-se que em tempos do Código de Processo Civil anterior, muitas discussões
giraram em razão da natureza da execução do acórdão impugnado pelo Recurso
Extraordinário, isto pois aquele regulamento nada dispunha sobre os efeitos deste
recurso. Para solucionar tais conflitos teóricos, o STF editou a Súmula 228: “não é
provisória a execução na pendência de recurso extraordinário, ou de agravo desti-
nado a fazê-lo admitir”. Enfatize-se que esta súmula já não está mais em vigor em
função do Código de Buzaid ser claro ao dar efeito apenas devolutivo a este recur-
so.
CORPO DISCENTE • GRADUANDOS 341
Marcel Santos Mutim

Além dos requisitos gerais (intrínsecos e extrínsecos) de


admissibilidade a todos os recursos, tais como cabimento, legitimação
para recorrer, interesse em recorrer, tempestividade, preparo, regularida-
de formal e inexistência de fato impeditivo ou extintivo do poder de recor-
rer, a parte deverá demonstrar os pressupostos específicos para o Recurso
Constitucional Extraordinário. Sendo assim, imperiosa é a atenção do in-
teressado para as hipóteses de cabimento previstas na Magna Carta, com
objetivo de atender, não somente aos preceitos da teoria geral dos recur-
sos, como também, e principalmente, às condições prévias estabelecidas
pela Constituição.
Torne-se clarividente, ainda, que a questão constitucional já deve
ter sido discutida, não podendo, deste modo, ser levada a análise inicial-
mente no Recurso Extraordinário. Ou seja, é conditio sine quo non para o
sucesso deste meio impugnativo em comento o prequestionamento – só
será julgado o mérito caso a questão nele discutida já tenha sido objeto de
apreciação em instâncias inferiores.

4 – A REPERCUSSÃO GERAL DE QUESTÃO CONSTITUCIONAL


COMO PRESSUPOSTO PRELIMINAR DE ADMISSIBILIDADE DO
RECURSO EXTRAORDINÁRIO

Com a emenda constitucional n° 45, de 30 de dezembro de 2004, um


novo requisito constitucional foi implantado para este Recurso destinado
ao Supremo Tribunal Federal, qual seja: a repercussão geral. Assim, novo
parágrafo terceiro foi aditado à Lei Máxima impondo o ônus à parte recor-
rente em demonstrá-la. Dispõe o citado Artigo: “§ 3º No recurso extraordiná-
rio o recorrente deverá demonstrar a repercussão geral das questões constitucio-
nais discutidas no caso, nos termos da lei, a fim de que o Tribunal examine a
admissão do recurso, somente podendo recusá-lo pela manifestação de dois terços
de seus membros”.
O autor do recurso, diante dos novos regramentos, haverá de, além
de motivar sua peça processual com uma das tipificações de cabimento do
Art. 102, III, expressar a repercussão geral em tópico específico de suas
razões recursais, sob pena de não ser admitido o extraordinário. A análise
e julgamento deste recurso constitucional especialíssimo competem às
turmas do STF, no entanto, esta questão preliminar será apreciada pelo
Pleno que receberá os autos para este fim.
Diante da leitura do citado parágrafo terceiro, verifica-se a necessi-
dade de quorum qualificado para a rejeição do recurso com razões funda-
das neste novo pressuposto. Por esta esteira ora traçada, “somente poderá
342 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

recusá-lo pela manifestação de dois terços de seus membros” e por isso,


segundo a doutrina do Ilustre Professor baiano Fredie Didier Jr. fazendo
alusão ao sempre brilhante Lênio Streck, “é razoável afirmar, assim, que
existe uma presunção em favor da existência da repercussão geral”.

5 – DA DEFINIÇÃO DE REPERCUSSÃO GERAL

A citada emenda n° 45, que instituiu o mencionado §3º ao Art. 102,


III da CF estabelecendo a repercussão geral, não definiu este novo requisi-
to preliminar de admissibilidade do Recurso Extraordinário, ficando a
cargo da lei infraconstitucional. Em 20 de dezembro último, publicou-se a
Lei Ordinária n° 11.418 a qual acrescentou à Lei n° 5.869, de 11 de janeiro
de 1973 - Código de Processo Civil - dispositivos que regulamentam aque-
le parágrafo da Constituição.
Apesar de esta nova ordem jurídica propor mecanismo para escla-
recer o que seria a ‘repercussão geral’, nenhuma definição objetiva pode
se aferir da redação legal. Para Luiz Guilherme Marinoni, não é possível
estabelecer noções a priori e abstrata acerca da efetiva repercussão, haja
vista que será sempre necessário o conhecimento do caso concreto.
Para não deixar ampla lacuna legal em torno deste instituto novo
preliminar para admissibilidade recursal, o legislador infra-constitucio-
nal, de modo subjetivo e sintético – sem qualquer tipificação legislativa –
prescreveu no sentido de ser questões relevantes do ponto de vista políti-
co, social ou jurídico, superiores aos interesses individuais das partes.
Assim vejamos o acréscimo do Art.543-A e seu § 1° ao CPC:

“Art. 543-A. O Supremo Tribunal Federal, em decisão irrecorrível,


não conhecerá do recurso extraordinário, quando a questão constitu-
cional nele versada não oferecer repercussão geral, nos termos deste
artigo.
§ 1o Para efeito da repercussão geral, será considerada a existência, ou
não, de questões relevantes do ponto de vista econômico, político,
social ou jurídico, que ultrapassem os interesses subjetivos da causa.

No universo da ciência do Direito Processual Civil, há critérios para


a avaliação desta repercussão geral em seus enumerados “pontos de vis-
ta”: I – Do ponto de vista jurídico, visa à proteção dos institutos jurídicos
básicos com intuito de a decisão não gerar perigoso e relevante preceden-
te; II – Do ponto de vista político, tem por objetivo a paz e harmonia entre
os entes soberanos, assim, haverá esta repercussão quando de uma causa
pudesse emergir decisão capaz de influenciar relações com Estados es-
CORPO DISCENTE • GRADUANDOS 343
Marcel Santos Mutim

trangeiros ou Organismos Internacionais; III – Já do ponto de vista social,


far-se-á presente nas ações cujo objeto relaciona, por exemplo, com o direi-
to à escola, à moradia... IV – Do ponto de vista econômico, ocorrerá, verbi
gratia, quando se discutir o sistema financeiro da habitação ou privatização
de serviços públicos8.
Esta lei sob exame também trouxe casos onde será desnecessária a
remessa dos autos ao pleno. Isto ocorrerá em atenção ao Art. 543-A, § 4º: Se
a Turma decidir pela existência da repercussão geral por, no mínimo, 4 (quatro)
votos, ficará dispensada a remessa do recurso ao Plenário. Por óbvio, já que a
Constituição Federal, no tão comentado § 3° do Art. 102, III, estabeleceu o
quorum qualificado de rejeição do recurso – sendo onze ministros, e oito é
o mínimo de votos para negar a existência de repercussão geral, é razoável
dispensar a remessa ao plenário se quatro ministros já admitem o recurso
extraordinário9.
Afim de melhor esclarecer o conceito de repercussão geral socorremo-
nos, mais uma vez, aos argumentos dos Ilustres Fredie Didier Jr. e Leonar-
do José Carneiro da Cunha, em sua obra Curso de Direito Processual Civil,
volume 3, terceira edição e página 270:

Como foi visto, o legislador valeu-se, corretamente, de con-


ceitos jurídicos indeterminados para a aferição da repercus-
são geral. É possível vislumbrar, porém, alguns parâmetros
para a definição do que seja “repercussão geral”: i) questões
constitucionais que sirvam de fundamento a demandas múl-
tiplas, como aquelas relacionadas a questões previdenciárias
ou tributárias, em que diversos demandantes fazem pedidos
semelhantes, baseados na mesma tese jurídica. Por conta dis-
so, é possível pressupor que, em causas coletivas que versem
sobre temas constitucionais, haverá a tal “repercussão geral”
que se exige para o cabimento do recurso extraordinário. ii)
questões que, em razão da sua magnitude constitucional, de-
vem ser examinadas pelo STF em controle difuso de
constitucionalidade, como aquelas que dizem respeito à cor-
reta interpretação/aplicação dos direitos fundamentais, que

8
Critérios propostos por José Miguel Garcia Medina, Teresa Arruda Alvim Wambier
e Luiz Rodrigues Wambier na obra Breves comentários à nova sistemática processual
civil. 3ed. São Paulo: RT, 2005, p. 103 e 104. Outros grandes pensadores do direito
entendem no mesmo sentido como Luiz Manoel Gomes Jr. em A repercussão geral da
questão constitucional no recurso extraordinário. São Paulo: RT, 2005, p. 101 e 102 e
Lenio Luiz Streck em Comentários à reforma do poder judiciário. Rio de Janeiro: Forense,
2005, p. 140 2 141.
9
DIDIER JR, Fredie, e CUNHA, Leonardo José Carneiro. Curso de Direito Processual
Civil. Vol. III. 3° ed. Editora Juspodivm. Salvador: 2007. p. 269.
344 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

traduzem um conjunto de valores básicos que servem de es-


teio a toda ordem jurídica - dimensão objetiva dos direitos
fundamentais.

Ressalte-se, ainda, a previsão legal de uma presunção absoluta da


existência deste requisito preliminar de repercussão geral da matéria cons-
titucional. Deste modo, traz à lume o Art. 543-A, § 3°: Haverá repercussão
geral sempre que o recurso impugnar decisão contrária a súmula ou jurisprudên-
cia dominante do Tribunal. Este posicionamento normativo reforça as
súmulas simples, as súmulas vinculantes, bem como a jurisprudência
dominante da Suprema Corte.

6 – ANTIGA ARGÜIÇÃO DE RELEVÂNCIA VERSUS NOVA


REPERCUSSÃO GERAL

O instituto jurídico da Argüição de Relevância passou a existir, no


Brasil, na vigência da Constituição de 1967 após, entretanto, as profun-
das modificações constitucionais. Com a emenda n° 7, de 13 de abril de
1977, coube ao regimento interno do Excelso Tribunal esclarecer “o pro-
cesso e o julgamento dos feitos de sua competência originária ou recursal
e da argüição de relevância da questão federal”.
A repercussão geral, por sua vez, também chamada por muitos
doutrinadores de requisito de transcendência, foi implantada na atual
Constituição através da reforma do judiciário. Como vimos, os conceitos e
esclarecimentos pertinentes dados a tal pressuposto ficaram a cargo da
legislação ordinária (Lei n° 11.418/2006). Importante ressaltar, que este
mecanismo jurídico não é exclusivo do Direito Processual Civil Brasileiro,
mas outros Estados Democráticos também o afirmam, como é o caso da
Suprema Corte Norte-Americana bem como dos Argentinos em seu Código
Procesal Civil y Comercial de la Nación.
Sem embargo de muitos doutrinadores chamarem a atual repercus-
são geral de argüição de relevância, vênia concessa, parece-nos falecer ra-
zão este posicionamento, já que os institutos ora comentados não se con-
fundem. A fim de demonstrar a principal das diferenças destes institutos,
mister transcrever as palavras do Doutor Marcelo Andrade Féres, em arti-
go publicado em meio eletrônico10, ao citar o ex-ministro Sydney Sanches

10
O Artigo “Nótula sobre a repercussão geral (ou transcendência) do recurso extraor-
dinário” do professor Marcelo Andrade Féres está publicado e pode ser encontrado
através do seguinte endereço de internet: http://jus2.uol.com.br/doutrina/
texto.asp?id=7530.
CORPO DISCENTE • GRADUANDOS 345
Marcel Santos Mutim

-tratando da norma revogada - em palestra proferida na OAB/SP, em 1987:


“julgamento de relevância de uma questão federal não é atividade jurisdicional, é
ato político, no sentido mais nobre do termo”. Por isso mesmo, a decisão do
STF sobre esta argüição não precisava de motivação e, além disso, era
proferida em “sessões administrativas fechadas”, ou seja, em sigilo. Afir-
mava-se, ainda, que estes julgados tinham natureza legislativa em virtude
de os Ministros apenas acrescentarem hipoteticamente mais um inciso ao
velho artigo 325 do Regimento Interno do STF, o qual disciplinava o cabi-
mento do Recurso Extraordinário.
Já o julgamento da atual Repercussão Geral, como toda decisão de
um verdadeiro Estado Democrático de Direito deve ser, é fundamentada e
é pública, de acordo com os princípios da motivação das decisões e da
publicidade dos atos do judiciário11. Deste modo, enquanto aquela tem
por característica o segredo e a não-fundamentação, esta se demonstra, ao
revés, transparente e esclarecida.
Outro aspecto diferenciador destes elementos de direito gira em
torno da admissibilidade do Recurso Constitucional Extraordinário. En-
quanto a Repercussão Geral de questão Constitucional é um pressuposto
preliminar de admissibilidade do Recurso Extraordinário – caso não ob-
servado o recurso não será conhecido e, por conseguinte, o mérito não vai
ser julgado – a Argüição de Relevância, no entender de José Alberto Couto
Maciel12, “se configura como um meio de abrandar o rigorismo dos óbices regi-
mentais”. Neste passo, em plano teórico do antigo regime, existindo funda-
da importância, o Recurso Extraordinário, ainda que não encaixado em
nenhum dos incisos de cabimento do velho art. 325 do RISTF, deveria ser
julgado pelo Supremo Tribunal. O supracitado estudioso do direito, ain-
da tratando da Argüição de Relevância, faz referencia às enquetes de
Jouberto de Quadros Pessoa Cavalcante em matéria publicada na Revista
Justiça do Trabalho, de março de 2007, sob o título Aspectos da Relevân-
cia, Transcendência ou Repercussão Geral, baseada em artigo do Minis-
tro Ives Gandra: Interessante notar que a argüição era apresentada em autos
apartados e apreciada pelo STF, em sessão do Conselho. Das mais de 30.000

11
Assim dispõe o Art. 93, IX: “todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário
serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo
a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advoga-
dos, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade
do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação”
12
MACIEL, José Alberto Couto. Regulamentação da repercussão geral nos recursos
extraordinários. Revista Jurídica Consulex – Ano XI – n° 252 – 15 de julho de 2007.
346 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

argüições feitas, apenas 5% das argüições foram acolhidas, sendo que 20% deixa-
ram de ser conhecidas por deficiência do instrumento e o restante (75%) foram
rejeitadas. Clarividente está, pois, que a Argüição de Relevância não alcan-
çou seu fim científico.
Notória, por fim, os pontos divergentes entre a Antiga Argüição de
Relevância e a Nova Repercussão Geral. Sendo assim, parecem-nos mais
acertado aqueles que não entendem como idênticos estes mecanismos ju-
rídicos.

7 - DA CONSTITUCIONALIDADE DA REPERCUSSÃO GERAL DE


QUESTÃO CONSTITUCIONAL COMO PRESSUPOSTO
PRELIMINAR DE ADMISSIBILIDADE DO RECURSO
EXTRAORDINÁRIO

Sempre que profundas alterações são introduzidas no ordenamento


jurídico pátrio saltam aos olhos inúmeros artigos, monografias, teses, li-
vros questionando a constitucionalidade ou não destes institutos
modificativos. Isto porque, em razão do movimento social vivido a época
da promulgação, a Constituição da República Federativa do Brasil é extre-
mamente analítica. Com a repercussão geral de questão Constitucional
como pressuposto preliminar de admissibilidade do Recurso Extraordi-
nário, então, não poderia ter sido diferente.
A batalha dos cientistas jurídicos em relação à ofensa, deste novo
requisito recursal, ao Estatuto Político Máximo diz respeito à transgres-
são ao disposto no Artigo 60, § 4°, inciso IV, o qual estabelece não poder
ser objeto de deliberação a proposta de emenda constitucional tendente a
abolir os direitos e garantias individuais. Isto porque a norma
infraconstitucional (Lei n° 11.418/2006) supostamente diminuiu a possi-
bilidade de o cidadão exercer certos direitos assegurados constitucional-
mente13. Imprescindível se faz tecer comentários a respeito deste Poder

13
Neste sentido, defendendo a Inconstitucionalidade da Repercussão Geral, entende o
professor Dirley da Cunha Júnior e Carlos Rátis, em “EC 45/2004 - Comentários a
Reforma do Poder Judiciário”, 2005, Salvador: editora juspodivm, p. 44: “esse novo
pressuposto de admissibilidade recursal se não vier a ser declarado inconstitucional,
só poderá ser exigido quando for elaborada a lei que o regule, posto que de eficácia
limitada a norma do § 3° em comento. Sem embargo, independentemente do que
venha a ser preconizado pela lei como repercussão geral, o novo § 3° do Art. 102 é
flagrantemente inconstitucional, pois autoriza norma infraconstitucional, não ape-
nas a restringir, mas ceifar a possibilidade de o jurisdicionado exercer um direito
fundamental. Há, portanto, incontestável violação ao Art. 60, §4° da CF/88.”
CORPO DISCENTE • GRADUANDOS 347
Marcel Santos Mutim

Constituinte Derivado Reformador, que diferente do Originário (“tudo


pode”), sofre limitações e é condicionado, justamente, pelas regras do Po-
der Inaugural. Neste diapasão, este último, ao criar o novo Estado Brasilei-
ro com a Constituição de 1988, vedou ao constituinte derivado a modifica-
ção das chamadas cláusulas pétreas. Em suma, os direitos e garantias indivi-
duais são matérias intangíveis.
Para os defensores da inconstitucionalidade latente do requisito
recursal em análise, a repercussão geral ofende aos direitos fundamentais
por violar a garantia, prescrita na Lei Suprema, da recorribilidade e do
duplo juízo. Neste passo, em conformidade com a supracitada norma cons-
titucional não poderia prosperar livremente o pressuposto de
admissibilidade em reflexão devendo ser expurgado do ordenamento jurí-
dico nacional. Com intuito de refletir sobre a constitucionalidade ou não
da repercussão geral como condição prévia para a admissibilidade do re-
curso extraordinário em razão da relativização do direito de recorrer, há de
se questionar, como já feito, sobre se estes princípios não são ou são garan-
tias previstas na Norma das Normas.
Como vimos, não há unanimidade em sede de doutrina acerca dos
princípios da recorribilidade e do duplo grau de jurisdição como direitos
fundamentais inalteráveis. Entendemos de acordo com aqueles que optam
pela não garantia destas regras, já que, parece-nos evidente que a CF, ao
dispor sobre a competência dos tribunais, não estatui um princípio consti-
tucional intransponível. Entendemos, ainda, que caso fosse da vontade do
Poder Constituinte Originário, vale repetir poder incondicionado, sobera-
no, autônomo, inicial e ilimitado juridicamente, estabelecer o princípio da
recorribilidade e do duplo grau de jurisdição como garantia constitucional
o faria de modo expresso a fim de não restar qualquer dúvida. Por esta
esteira, não nos parece sustentável o argumento daqueles que defendem
estes princípios como garantia tácita ou implícita. Mister enfatizar, tam-
bém, uma série de atos judiciais irrecorríveis, como, por exemplo, no Art.
482, §3°, no Art. 519, parágrafo único, no Art. 543, §§ 2° e 3°, sem falar na
própria decisão que não conhece o Recurso Extraordinário por falta de
Repercussão geral e, ainda, nos despachos que não são suscetíveis a recur-
so processual algum. Por fim, a jurisprudência do Tribunal Supremo cami-
nha toda no sentido de negar a característica de garantia constitucional a
estes princípios da recorribilidade e da duplicidade de instâncias.
Ex positis, estamos de acordo com os defensores da constituciona-
lidade da Repercussão Geral de questão Constitucional como pressuposto
preliminar de admissibilidade do Recurso Extraordinário. Isto em virtude
de não ser garantia constitucional expressa os princípios em supra trazi-
dos à baila.
348 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

8 – CONCLUSÃO

Como enfaticamente salientado, a condição de admissibilidade para


o Recurso Extraordinário de Repercussão Geral passou a fazer parte do
sistema jurídico brasileiro após a reforma do poder judiciário (através da
EC/45). Alguns escritores jurídicos confundiram-na com a antiga Argüi-
ção de Relevância afirmando ter esta ressuscitado, com outra denomina-
ção, no Direito Constitucional Processual pátrio. Todavia, restou demons-
trado a distinção entre estes mecanismos jurídicos, onde no antigo o Regi-
mento do STF regulamentou enquanto na atual repercussão lei ordinária
o fez. Isso, sem falar, que a decisão da Argüição de Relevância não neces-
sitava de fundamentação, muito menos, publicação – o que não ocorre
com o atual pressuposto recursal.
Discute-se, como visto, a constitucionalidade desta regra de direito,
onde para uns ofende a Constituição da República por “ceifar” direitos e
garantias individuais – princípio da recorribilidade e do duplo grau de
jurisdição. Para nós, entretanto, com a maxima venia merecida por estes
outros, não há falar-se em Inconstitucionalidade ao passo que os princípi-
os mencionados não figuram como garantia prevista pela atual CF.
Dizia o sempre brilhante Alfredo Buzaid que “se a injustiça da
sentença a torna amarga, as delongas fazem-na azeda”14. No sentido de
tornar o processo mais célere e, por isso mesmo, mais eficiente, muitas têm
sido as modificações tanto no Código de Processo Civil como, também, na
Constituição. A reforma na execução de título executivo com a introdução
do módulo de cumprimento de sentença, as súmulas vinculantes e, tam-
bém, esta Repercussão Geral de questão Constitucional como pressuposto
preliminar de admissibilidade do Recurso Extraordinário são alterações
legislativas que visam o cumprimento do novo princípio constitucional
previsto pelo Art. 5°, LXXVIII – “a todos, no âmbito judicial e administra-
tivo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que ga-
rantam a celeridade de sua tramitação”.
Em últimas palavras, vale lembrar que o Direito, como leciona
Miguel Reale, é fato, valor e norma e busca sempre a paz social e o bem
estar da coletividade. Diante disto, os operadores do direito devem
executá-lo sempre com ética buscando esta interpretação teleológica da
ciência jurídica.

14
BUZAID, Alfredo. Ensaio para uma revisão do sistema de recursos no código de
processo civil. Revista Jurídica. Porto Alegre. nº 22, out. 1956. p. 8.
CORPO DISCENTE • GRADUANDOS 349
Marcel Santos Mutim

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

BUZAID, Alfredo. Ensaio para uma revisão do sistema de recursos no Código de


Processo Civil. Revista Jurídica. Porto Alegre. nº 22, 1956.

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Poder Judiciário. Salvador: Editora Juspodivm, 2005.

MACIEL, José Alberto Couto. Regulamentação da repercussão geral nos recur-


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MEDINA, José Miguel Garcia, WAMBIER, Teresa Arruda Alvim,


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350 Revista Jurídica dos Formandos
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FÉRES, Marcelo Andrade. Nótula sobre a repercussão geral (ou transcendência)


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titucional nº 45/2004. Disponível em: http://jus2.uol.com.br/doutrina/
texto.asp?id=6391. Acesso em: 27.Ago.2007.
CORPO DISCENTE • GRADUANDOS 351
Janilde Silva Cruz

ASPECTOS POLÊMICOS DO TRATAMENTO ESPECIAL


ÀS MICRO E PEQUENAS EMPRESAS NAS AQUISIÇÕES
PÚBLICAS (LEI COMPLEMENTAR Nº 123/2006 E
DECRETO FEDERAL Nº 6.204/2007) - COMPROVAÇÃO
DE REGULARIDADE FISCAL, EMPATE FICTO E O
PRINCÍPIO DA ISONOMIA.

Janilde Silva Cruz


Bacharelanda em Direito da Universidade Ca-
tólica do Salvador

Microempresas e empresas de pequeno porte, consoante o disposto


na atual Carta Magna (artigos 170, IX e 179), terão tratamento favorecido e
diferenciado. Quis o poder constituinte, com isso, fomentar as atividades
no setor responsável por 20% do Produto Interno Brasileiro – PIB e por 60%
dos empregos no setor privado 1. O projeto, ao que parece, tem por escopo
aumentar a geração de emprego e renda e assim, reduzir as desigualdades
sociais.
Assim, com o fim de atender ao mando constitucional e incentivar a
atuação dessas empresas no mercado, entrou em vigor a Lei Complemen-
tar nº 123 de 14 de dezembro de 2006, a qual institui o Estatuto Nacional
das Microempresas e Empresas de Pequeno Porte, estabelecendo normas
gerais relativas ao tratamento especial a ser dispensado às empresas assim
enquadradas.
Com fulcro no art. 3º, I e II da LC 123/2006, define-se microempresa
como o empresário, a pessoa jurídica, ou a ela equiparada, que aufira recei-
ta bruta igual ou inferior a R$ 240.000,00 (duzentos e quarenta mil reais). Já
a empresa de pequeno porte é o empresário, a pessoa jurídica ou a ela
equiparada que aufira, em cada ano calendário, receita bruta superior a R$
240.000,00 (duzentos e quarenta mil reais) e igual ou inferior a
R$ 2.400.000,00 (dois milhões e quatrocentos mil reais).
As normas gerais descritas na LC nº 123/2006, estabelecem trata-
mento favorecido e privilegiado às microempresas (ME’s) e empresas de
pequeno porte (EPP’s) na esfera da União, dos estados, do Distrito Federal

1
Dados do IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.
352 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

e dos municípios, sendo possível constatar que o legislador , além de ocu-


par-se com a área fiscal, principal foco da LC, entendeu que deveria inter-
vir, também, nas aquisições públicas (arts. 42 a 49), trazendo verdadeiras
anomalias à ordem jurídica que é própria das licitações. Desses dispositi-
vos, são auto-aplicáveis os arts. 42 a 45, enquanto os arts. 47 a 49 depen-
dem de regulamentação do respectivo ente (União, estados, Distrito Fede-
ral ou municípios).
Desse modo, com o fim de cumprir o papel de regulamentar o trata-
mento favorecido, diferenciado e simplificado para as ME´s e EPP´s no
âmbito da Administração Pública Federal, foi sancionado o Decreto Fede-
ral nº 6.204 de 05 de setembro de 2007, previsto para entrar em vigor trinta
dias após a data de sua publicação. Não se submetem, por questão de
competência, a essa regra, as demais esferas da Federação.
Cabe salientar que o legislador do Decreto em pauta, além de abor-
dar os arts. 47 a 49, da LC, que dependem de previsão e regulamentação na
legislação do respectivo ente para possuir eficácia, entendeu que deveria
promover ajustes nos artigos auto-aplicáveis, agravando sobremaneira a
confusão pela qual passa a Administração Pública Federal no que tange às
suas aquisições, no presente momento. Trata-se portanto de conjuntura
especial, em que a Administração deverá se cobrir de maior cautela, no que
concerne à norma a ser obedecida, cabendo observar que se um ato normativo
retira seu embasamento na validade de outro, este outro lhe é hierarquica-
mente superior.
Pois bem, versam os arts. 42 e 43 da LC nº 123/2006, sobre a regula-
ridade fiscal das ME´s e EPP´s nas licitações e contratações com o governo,
estando assegurado no art. 42 que a comprovação de situação regular so-
mente será exigida, para efeito de assinatura de contrato com a empresa
favorecida e privilegiada, sendo certo que nos certames licitatórios, essa
mesma empresa deve apresentar sua documentação, ainda que haja restri-
ção, consoante o disposto no caput do artigo 43. Tal situação deixará os
responsáveis pela condução dos certames numa situação no mínimo es-
quisita, quando ultrapassarão a fase de habilitação, com licitantes “habi-
litadas com ressalvas”, vale dizer; sem comprovação da regularidade fis-
cal na fase habilitatória, uma vez que as licitantes enquadradas como ME´s
e EPP´s têm, desde a inovação em tela, maior fôlego para permanecer na
disputa, podendo adiar a comprovação para o momento da contratação.
Desse modo, o §1º, do mesmo artigo 43 assegura prazo para que, em
havendo alguma restrição na comprovação da regularidade fiscal, a lici-
tante especial possa regularizar a documentação, pagar ou parcelar o seu
débito, a fim de possibilitar sua contratação. Esse prazo será de dois dias
CORPO DISCENTE • GRADUANDOS 353
Janilde Silva Cruz

úteis, prorrogáveis por igual período, a critério da Administração,


correspondendo o termo inicial ao momento em que a proponente for de-
clarada vencedora do certame.
Ocorre que, a rigor, a Lei nº 8.666/93, que rege as modalidades
diversas do pregão, autoriza a Comissão de Licitação, dentre outros atos
no certame, a receber e examinar todos os documentos e proceder ao julga-
mento e classificação das propostas de acordo com os critérios de avalia-
ção constantes do edital. No entanto, não a autoriza a declarar a vencedora
do certame, ficando tal função destinada à autoridade que adjudica o item
à licitante melhor classificada.
Para evitar maiores embaraços, pressupõe-se que o mais indicado
será a Comissão classificar as propostas que ultrapassaram incólumes as
fases de habilitação (com ou sem ressalva, se ME´s e EPP´s) e de julgamen-
to das propostas, declarando que o ocupante do primeiro lugar na ordem
de classificação é a vencedora do certame, o que não chega a criar mácula
no certame, vez que é razoável admitir que a Comissão que analisa docu-
mentação, julga e ordena propostas, está apta a declarar que a licitante que
ocupa o primeiro lugar nessa ordem é a vencedora. Ademais, é possível
usar por analogia, o artigo 4º, XV da Lei 10.520/2002 - lei que rege a licita-
ção na modalidade pregão, e proceder, a Comissão de Licitação, como o
pregoeiro, em conformidade com o dispositivo exposto, o qual determina
que: “ verificado o atendimento das exigências fixadas no edital, o licitante será
declarado vencedor”. Se não for assim, mais moroso se tornará o andamento
do processo licitatório.
Saliente-se que somente faz sentido declarar a licitante vencedora,
depois de convocada a ME ou EPP e essa se manifestar, exercendo ou não
o direito de preferência. Declarar uma vencedora e depois convocar uma
ME ou EPP para cobrir sua oferta, não tem serventia alguma. Considere-se
ainda que quando a Administração convoca ME ou EPP para apresentar
nova oferta, significa que ainda está tentando encontrar a licitante vence-
dora. Sendo assim, faz-se precipitada essa declaração antes do desfecho
desse estágio.
Acerca da declaração do vencedor, o §2º, art. 4º do Decreto nº 6.204/
2007, que cuida de todas as modalidades de licitação, assevera que a decla-
ração da licitante vencedora deverá ocorrer no momento posterior ao julga-
mento das propostas, aguardando-se os prazos de regularização fiscal
para a abertura do prazo recursal, donde se conclui que autoriza a Comis-
são de Licitação a declarar a licitante vencedora, dizimando a dúvida. Esse
dispositivo, mantém-se alinhado com as regras que versam sobre licitação
quando afirma que a adjudicação deve acontecer somente depois de su-
354 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

perada a fase de recursos, entretanto esbarra-se em mecanismos dispostos


na Lei Complementar e em outros no próprio Decreto, revelando despreparo
do legislador, conforme veremos mais adiante, quando esse dispositivo
será novamente mencionado.
Com relação ao prazo para regularização da situação fiscal das ME´s
e EPP´s, o Decreto interfere reduzindo o poder discricionário garantido
pela LC à Administração, quando sentencia que a prorrogação deverá sem-
pre ser concedida pela Administração quando requerida pela licitante,
restringindo as possibilidades de indeferimento do pedido à urgência na
contratação ou ao prazo insuficiente para empenho, desde que devida-
mente justificados.
No §2º do art. 43 da LC 123/2006 está previsto que a não-regulariza-
ção da documentação, no prazo previsto, implicará decadência do direito
à contratação, sem prejuízo das sanções previstas no art. 81 da Lei no
8.666/93, sendo facultado à Administração convocar as licitantes rema-
nescentes, na ordem de classificação, para a assinatura do contrato, ou
revogar a licitação. Ora, há que se considerar a possibilidade de a licitante
seguinte, na ordem de classificação, tratar-se também de ME ou EPP e,
dessa também estar com pendências no que se refere à regularidade fiscal.
Destarte, é equivocado convocar remanescentes para a assinatura do con-
trato. Convocar-se-á licitante remanescente, sim, para apresentar oferta. Se
necessário, a Administração abrirá prazo, do mesmo modo, para que essa
empresa regularize sua situação fiscal. Acerca disso o Decreto nº 6.204/
2007 foi mais prudente, dispondo no seu art. 4º, §3º que é facultado a Admi-
nistração convocar licitantes remanescentes, na ordem de classificação, ou
então revogar a licitação, sem abordar o tema assinatura de contrato.
Quanto à forma de punir a não-regularização da situação fiscal no
prazo fixado, Lei e Decreto incidem no mesmo erro: ameaçam aplicar o art.
81 da Lei 8.666/93, o qual versa sobre a recusa injustificada do adjudicatário
em assinar o contrato, o que não condiz com a situação em questão. Ade-
mais, não se pode compreender, como expõe Ivan Barbosa Rigolin, a apli-
cação desse “mesmo rigor a quem simplesmente não consegue se habilitar”. Há
que se ponderar ainda, que, pelo que se depreende do emaranhado conjun-
to de dispositivos presente nas duas regras, não está exatamente compre-
endido que nessa altura a empresa licitante é adjudicatária, nem como se
tornou adjudicatária.
No que tange à interferência da LC nº 123/2006 na fase das propos-
tas, o artigo 44 trata do direito preferencial e cria um novo modo de se
entender o empate nas licitações. Estabelece o caput desse artigo que as
ME’s e EPP’s serão beneficiadas com o direito à preferência, sempre que
CORPO DISCENTE • GRADUANDOS 355
Janilde Silva Cruz

essas estiverem empatadas com a licitante que tenha apresentado a melhor


oferta, desde que essa não seja também uma empresa especial. Em regra,
propostas empatadas são aquelas que, atendendo ao exigido no instru-
mento convocatório, apresentem preços idênticos. No entanto, os parágra-
fos 1º e 2º do artigo 44, guardam uma novidade: Se a modalidade de licita-
ção for concorrência pública, tomada de preços ou convite e a proposta
apresentada pela ME ou EPP consignar valor igual ao da proposta mais
bem classificada ou valor superior a esta em até 10% (5% se modalidade
pregão), há empate. Em ocorrendo o empate, ficto ou real, a licitante com
direito à preferência será convocada para apresentar proposta com preço
inferior ao da licitante mais bem classificada.
Caso a modalidade escolhida pela Administração seja pregão, a
empresa terá o prazo de até cinco minutos para trazer à luz sua nova
proposta, a qual deve cobrir o valor da mais bem classificada. Sendo outra
modalidade de licitação, não trata a lei de prazo algum, deixando a defini-
ção a critério da Comissão de Licitação, até porque a Administração há que
considerar se os representantes das empresas licitantes estão ou não pre-
sentes à sessão. Se o representante estiver presente e o instrumento
convocatório assim estabelecer, poderá manifestar-se tão logo seja solicita-
do. De outro modo, a Comissão provavelmente optará por suspender a
sessão, publicar a ata e intimar a licitante detentora do direito à preferên-
cia, para que essa possa ofertar seu novo preço ou denegar do direito de
reformar sua oferta, no prazo fixado no edital.
Segue nessa linha o Decreto nº 6.204/2007, uma vez que, conforme
está insculpido no §7º do art. 5º, o órgão da Administração Federal deverá
estabelecer no instrumento convocatório prazo para as licitantes apresen-
tarem nova proposta. Será prudente, a fim de evitar equívocos, determinar
também, a forma pela qual deverá se manifestar a licitante.
No caso da licitação na modalidade pregão na forma presencial,
esse procedimento se torna ainda mais estranho e ainda mais embaraçoso.
Pelo § 2º do mesmo artigo 44 da LC, o intervalo percentual estabelecido no
§ 1º será de apenas 5% superior ao melhor preço. Seria razoável interpretar
que a Lei Complementar refere-se às propostas inscritas no pregão e não
aos lances verbais, em atenção à regra própria dessa modalidade. Mas se
assim fosse, não haveria sentido para o §2º do art. 44, uma vez que, em se
tratando de pregão presencial, está garantido pela própria lei do pregão2,
que licitantes com propostas superiores à de menor valor, em até 10%,

2
Lei 10.520/2002
356 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

estão naturalmente autorizadas a passar à fase de lances. No caso do pre-


gão na forma eletrônica, no qual todas as licitantes estão autorizadas à
disputa por lances, deduz-se que o legislador entende como proposta, o
último preço ofertado na fase de lances. Assim, conhecidos os lances fi-
nais, depois de ordenados os valores, seja o pregão presencial ou na forma
eletrônica, é que será efetivamente aplicada a regra do art. 4º, §2º da LC,
respeitado, portanto, para fins de aplicação do direito à preferência, o valor
do último lance como sendo a proposta da empresa licitante.
Nesse ponto, o Decreto é esclarecedor quando define o empate, con-
siderando as ofertas apresentadas e não as propostas, obedecidos os
percentuais determinados na LC.
No entanto, o Decreto acarreta mais desalinho quanto ao proceder
dos condutores dos certames, quando garante que a Administração aguar-
dará os prazos de regularização fiscal para a abertura do prazo recursal,
dando a entender que a adjudicação somente ocorrerá depois de resolvi-
dos os recursos (art. 4º, § 2º, abordado anteriormente). Contradizendo-se, o
mesmo Decreto, no seu art. 5º, §4º, I, assevera que “ocorrendo o empate, a
microempresa ou empresa de pequeno porte melhor classificada poderá apresentar
proposta de preço inferior àquela considerada vencedora do certame, situação em
que será adjudicado o objeto em seu favor”. (grifei). Olvidou o legislador,
nesse momento, do tema prazo recursal.
Esse dispositivo lamentável guarda similaridade com o art. 45, I da
LC, e, ao arrepio da Constituição, ambos ordenam adjudicar o objeto sem
garantir às demais empresas licitantes o direito ao contraditório e a ampla
defesa, induzido a Administração a atropelos absurdos. Acrescente-se ain-
da que, além de inconstitucional, esse ato pode resultar em alargamento
do emaranhado procedimental, uma vez que, para num salto, alcançar a
fase contratual, será necessário adjudicar e homologar os itens. Se a licitan-
te não cumprir o exigido, indispensável será cancelar a homologação e a
adjudicação e convocar uma das licitantes remanescentes, na ordem de
classificação, para apresentação de novel oferta de preço e gerando toda
sorte de atribulação à instituição licitadora.
Note-se que a aplicação do tratamento diferenciado nas aludidas
normas, no que tange ao direito de protelar a comprovação de regularidade
fiscal das ME´s e EPP´s nos certames, sem falar na redução de custos
proporcionada por outros dispositivos da LC, já privilegia as empresas
desse setor. Melhor seria não interferir na disputa dos preços nas aquisi-
ções públicas, evitando-se o mal-estar provocado pela frustração dos mé-
dios ou grandes empresários que na disputa, em ofertando o menor preço,
muitas vezes, senão sempre, poderão ser obrigados a assistir a vitória lhes
CORPO DISCENTE • GRADUANDOS 357
Janilde Silva Cruz

ser retirada por outra licitante. Se a modalidade for pregão, ainda maior o
desconforto, uma vez que as licitantes têm iguais oportunidades durante o
certame, de reduzir o preço. Essa licitante, além de poder comprovar a
regularidade fiscal posteriormente, também está autorizada a cobrir o me-
nor preço, mesmo depois de encerrada a fase de lances. Os empresários das
companhias de médio ou grande porte, excetuando-se os desavisados, de-
vem, já a essa altura, participar dos combates licitatórios, receosos de envidar
esforços e posteriormente serem preteridos, donde se conclui que a Lei em
destaque e, conseqüentemente o Decreto, protege para estimular de um
lado e desestimula do outro.
A Carta Federal assegura no art. 37, XXI que “...obras, serviços, com-
pras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que
assegure igualdade de condições a todos os concorrentes...”. Assim, tal comando
se impõe a quaisquer regras que atinjam as licitações em qualquer esfera
governamental e, nesse diapasão, a Lei de Licitações - Lei nº 8.666/93, no
seu art. 3º, define que “a licitação destina-se a garantir a observância do princí-
pio constitucional da isonomia e a selecionar proposta mais vantajosa para a Ad-
ministração”.
É sabido que o princípio da isonomia deve ser interpretado à luz da
advertência de Aristóteles, que afirmou consistir o princípio da igualdade
em tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais. Sob esse pris-
ma, nada há que afirmar contra o poder constituinte que instituiu que se
tratasse as ME´s e EPP´s de forma especial. Não há também que se erguer
contra o legislador que seguiu com o objetivo de atender à Constituição,
estabelecendo desigualdades a fim de igualar.
No dizer de Celso Bandeira de Mello, a licitação “estriba-se na idéia de
competição, a ser travada isonomicamente entre os que preencham os atributos e
aptidões necessários ao bom cumprimento das obrigações que se propõem assu-
mir.” Acrescenta ainda que “a licitação é uma aplicação concreta do princípio
da igualdade, o qual, na Constituição está encartado como um dos direitos e garan-
tias fundamentais.” Segundo esse mesmo autor, a afirmação de Aristóteles
acerca do princípio da isonomia tem muito valor como ponto de abertura
dessa discussão, mas não a encerra, uma vez que “entre um e outro extremo
serpeia um fosso de incertezas cavado sobre a intuitiva pergunta que aflora ao
espírito: Quem são os iguais e quem são os desiguais? (...) que espécie de igualdade
veda e que tipo de desigualdade faculta a discriminação (...) sem quebra e agressão
aos objetivos transfundidos no princípio constitucional da isonomia?”
Diante disto, o tratamento diferenciado e favorecido dado as ME´s e
EPP´s, não padece, em princípio, de mácula por agressão a um princípio
constitucional. Entretanto, é de se lamentar que as medidas objetivando
358 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

favorecer as MPE´s não tenham se restringido, no que concerne às licita-


ções, à regularidade fiscal, o que já privilegia em muito essas empresas.
Acrescente-se que somente nesse aspecto, a LC traz muitas situações estra-
nhas aos procedimentos licitatórios, já dotados de complexidade, dando a
certeza de que tais medidas poderiam ter sido melhor desenhadas. Optou
o legislador por se perder no citado “fosso de incertezas”, quando, expandin-
do seus tentáculos até às aquisições públicas, sobretudo até às disputas de
preço, dá a desagradável certeza de que, neste ponto, rompeu os limites do
razoável.

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360 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

SÚMULA DE EFEITO VINCULANTE E


ERRO JUDICIÁRIO: INDENIZAÇÃO EM VIRTUDE
DA SUA NÃO APLICAÇÃO

Ana Paula Fernandes Neves


Bacharelanda em Direito da Universidade Ca-
tólica do Salvador

RESUMO
O presente trabalho tem por finalidade criar um novo paradigma para o insti-
tuto do Erro Judiciário, relacionando-o com a responsabilização civil dos Po-
deres e Instituições Públicas. Versa o artigo sobre a possibilidade de uma
indenização cível em virtude da responsabilidade por Erro Judiciário em face
da não aplicação da Súmula de efeito vinculante, tendo em vista as conseqüên-
cias que uma decisão proferida por um magistrado ou membro do Poder Exe-
cutivo, em desconformidade com a súmula, que se fazia obrigatória, pode
acarretar na vida daquele que busca a prestação jurisdicional.

Palavras-chave: Direito Constitucional e Processual Civil – Súmula de Efeito


Vinculante e Erro Judiciário – Não aplicação da súmula – Indenização – Possi-
bilidade.

ABSTRACT
The present work has for purpose to create a new paradigm for the institute of
the Judiciary Error, relating it with the civil responsabilização of them To be
able and Public Institutions. The article turns on the possibility of a civil
indemnity in virtue of the responsibility for Judiciary Error in face of not the
application Abridgement of binding effect, in view of the consequences that a
decision pronounced for a magistrate or member of the Executive,
disconformity with the abridgement, that if made obligator, can cause the life
of that it searchs the judgement

Sumário: 1. Introdução – 2. A necessidade de uniformização da jurisprudência


– 3. A Súmula de Efeito Vinculante – 4. O Erro Judiciário – 5. Súmula de Efeito
Vinculante e Erro Judiciário – 6. A responsabilização pelo Erro Judiciário – 7.
Conclusão.
CORPO DISCENTE • GRADUANDOS 361
Ana Paula Fernandes Neves

1. INTRODUÇÃO

O tema “Súmula de efeito vinculante e erro judiciário: indenização


em virtude da sua não aplicação” é instigante, posto que envolve em larga
escala aspectos jurídicos, mais especificamente, constitucional e processu-
al civil. Trata-se, pois, de um tema que em virtude da relevância que o
mesmo se apresenta face à efetivação das garantias constitucionais e do
Estado Democrático de Direito, impõe ao aplicador do Direito o dever de
posicionar-se a respeito do tema, alertando a sociedade sobre a
implementação da súmula vinculante e as possíveis conseqüências deste
instituto.
Para a elaboração de um bom trabalho científico, deve-se, antes de
mais nada, definir o objeto de estudo, motivo pelo qual, passa-se à
conceituação de Súmula Vinculante.
O termo súmula seria algo que de modo abreviado explicaria o teor
de uma coisa, consiste num enunciado sintético que contém a interpreta-
ção uniformizada de tribunal sobre uma dada matéria, ou seja, pequenos
enunciados que o Supremo Tribunal Federal vem decidindo de modo reite-
rado acerca de temas que se repetem em seu julgamento.
Com a promulgação da Emenda Constitucional nº 45/2004, foi
introduzida a possibilidade de adoção de súmula vinculante pelo STF. Foi
acrescido o art. 103-A ao texto constitucional, conferindo poderes ao tribu-
nal para aprovar súmula, que a partir de sua publicação na imprensa
oficial, terá “efeito vinculante” em relação aos demais órgãos do Poder
Judiciário e à Administração Pública Direta e Indireta.
Assim, tal emenda impõe aos juízes de instâncias inferiores e órgãos
do Poder Executivo, a observância obrigatória da súmula emanada dos
tribunais, dando sentido uniforme à prestação jurisdicional sobre determi-
nado tema. Trata-se de uma preocupação do legislador de dotar o Judiciá-
rio de meios capazes de garantir uma rápida e efetiva tutela jurisdicional,
sendo a súmula vinculante o remédio eficaz para dar celeridade e coerên-
cia às decisões judiciais.
Vislumbra-se que com a implementação das súmulas vinculantes
caberá ao órgão judicante promover a adequação de determinada súmula
à realidade dos fatos, ou seja, caberá aos magistrados e membros do Poder
Executivo, por força de um exercício de hermenêutica condicionar determi-
nada súmula ao caso concreto, eis que então se estabelece a celeuma, tendo
em vista que por não existir uma exegese uníssona, pode-se divorciar opi-
niões acerca de uma mesma situação.
362 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

A saber, por serem seres diferentes e terem cada um a sua concepção


é evidente que há a possibilidade de determinado magistrado ou órgão do
Poder Executivo, no exercício da interpretação do ordenamento, ao aplicar
a súmula ao caso concreto entender plausível uma objeção argüida contra
a mesma deixando de aplicá-la, quando seria aplicável, ou mesmo apli-
cando-a quando seria aquela súmula inaplicável ao caso concreto.
Assim, diante da adequação da súmula ao caso concreto é possível
que se configure o erro judiciário, posto que, sendo a administração da
Justiça e do Poder Executivo compostas por seres humanos que agem e
atuam amparados no livre arbítrio não poderia ignorar a possibilidade da
ocorrência do erro.
Dessa forma, o ordenamento jurídico pátrio deve reconhecer a ocor-
rência do erro judiciário quando da não aplicação de determinada súmula
de efeito vinculante ao caso concreto quando obrigatório se fazia a aplica-
ção de uma súmula em específico e fixar regras para as conseqüências
advindas de tal situação, estabelecendo para isso meios jurídicos e formas
legais de ser imposto ao Estado o dever de reparar os prejuízos ocasiona-
dos ao interessado pela prestação jurisdicional.

2. A NECESSIDADE DE UNIFORMIZAÇÃO DA JURISPRUDÊNCIA

É natural que decidindo o tribunal a respeito de determinada solu-


ção encontrada para um caso concreto, decorrerá que, no futuro, os casos
semelhantes serão decididos da mesma forma. Assim, indiretamente, uma
resolução judicial tem grande probabilidade de, pelo menos naquele tribu-
nal específico, projetar o conteúdo da sua fundamentação para além do
caso concreto decidido.
Embora inicialmente a decisão de um tribunal tenha importância
direta somente para o caso concreto que se busca resolver, há nela uma
afirmação implícita de que, no futuro, os casos a serem decididos pelo
mesmo tribunal seguirão a mesma linha interpretativa expressa naquele
primeiro julgamento, que servirá dessa forma de precedente para casos
futuros. Indiretamente, portanto, uma decisão judicial acaba por ir além do
caso concreto decidido. Dificilmente o tribunal se afastará de uma juris-
prudência sólida, firmada em uma pluralidade de casos em que foram
analisados minuciosamente.
Em regra, os Tribunais Superiores procuram orientar-se pelos seus
precedentes, pelas decisões já consolidadas, que acabam assim, por tor-
nar-se modelos para futuras resoluções que digam respeito a casos simila-
res. Confirmando esse entendimento, preceitua REDLICH apud Mônica
Sifuentes: “todo precedente judiciário tem uma força normativa para casos
futuros da mesma ou de semelhante natureza”.
CORPO DISCENTE • GRADUANDOS 363
Ana Paula Fernandes Neves

Oferecendo a norma jurídica mais de uma possibilidade de interpre-


tação, por possuir a característica a que se tem chamado grande parte da
doutrina de “textura aberta”, a vinculação, ainda que indireta, a um enten-
dimento já firmado por determinado tribunal, surge assim com a função
precípua de dirimir a margem de arbítrio, na medida em que funciona
como diretriz à ação do intérprete.
A justiça é feita para o cidadão, assim, é para ele que se dirige a
interpretação da lei e para quem se busca a realização da justiça. Dessa
forma, existindo a probabilidade de que os tribunais inferiores se vinculem
às decisões que já foram reiteradamente decididas, cujo entendimento já foi
consolidado, depois de certo tempo, a tendência é que aquilo que até então
era precedente jurisprudencial, passe a ser considerado direito vigente, o
que é útil à uniformidade do Direito e à continuidade da jurisprudência, e,
sobretudo à segurança jurídica, dotando a máquina judiciária assim de
eficácia e agilidade, evitando repetição inútil de causas, bem como dissenso
de vários julgadores em instancias inferiores.

3. A SÚMULA DE EFEITO VINCULANTE

A Súmula Vinculante, hoje consagrada pela Emenda Constitucio-


nal n. 45/2004, tem o seu antecedente mais próximo e semelhante nos
prejulgados do Tribunal Superior do Trabalho. O Código Eleitoral por sua
vez, também admitiu o prejulgado, consignando-lhe efeito vinculante, a
menos que a tese nele exposta fosse rejeitada por dois terços dos membros
do tribunal que a aplicasse. Não somente nestas situações, mas em diver-
sos outros momentos de nossa história também se adotou modelos de efei-
to vinculativo das decisões judiciais, desde a época do império com os
chamados “assentos” das Casas de Suplicação portuguesas até mais re-
centemente com a Ação Declaratória de Constitucionalidade.
Na verdade, suas raízes podem ser atribuídas aos assentos das cor-
tes portuguesas, esses assentos eram enunciados do Supremo Tribunal de
Justiça. Este instituto perdurou até 1995, até ser revogado em conseqüência
da reforma processual naquele país.
A palavra súmula vem do latim summula, significando sumário ou
índice de alguma. No âmbito jurídico, a súmula seria algo que de modo
abreviado explica o conteúdo integral de teses jurídicas solidamente as-
sentadas em decisões, das quais se pode retirar um enunciado, que é o
“preceito doutrinário” que extrapola os casos concretos que lhe deram
origem e pode ser utilizado para orientar o julgamento de outros casos.
364 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

A introdução da súmula no ordenamento jurídico brasileiro se deu


através de uma proposta, de autoria do Ministro Victor Nunes Leal, que foi
acolhida e incluída no Regimento Interno do STF em 1963, sendo incorpo-
rada à legislação posterior, conforme se observa do disposto nos arts. 476 e
seguintes do Código de Processo Civil de 1973.
Tal proposta foi pensada objetivando desafogar os trabalhos do Tri-
bunal, e promover a criação das súmulas, com o intuito de enunciar as
matérias reiteradamente decididas, demonstrando assim a entendimento
do Tribunal quanto a essas matérias.
Assim, em 1963 foram aprovadas as primeiras súmulas do STF. Neste
primeiro momento, a súmula tinha caráter apenas persuasivo, não existia
obrigatoriedade de sua adoção pelos juízes, servindo simplesmente como
orientação ao julgador, quanto ao entendimento daquela Corte de Justiça.
Somente em 1973, o CPC estendeu a súmula de jurisprudência aos outros
tribunais brasileiros, que passaram a partir de então, a editar as suas pró-
prias súmulas.
Assim, os tribunais poderão editar súmulas em duas situações: em
caso de ser reconhecida a divergência sobre o entendimento de matéria ou
direito entre turmas ou seções do mesmo tribunal, caso em que objetiva
fixar, no âmbito interno dos tribunais, qual o entendimento a ser adotado
pelo tribunal em determinada questão jurídica, cuja interpretação é objeto
de divergência entre os seus órgãos fracionários; e quando houver entendi-
mento pacífico no tribunal a respeito de determinada matéria.

4. O ERRO JUDICIÁRIO

Considera-se erro judiciário a má aplicação do Direito ou a deficien-


te apreciação dos fatos da causa, por parte do jurisdicionado, que resulta
em decisão contrária á lei, à verdade material e por que não dizer decisão
em desconformidade com súmula de efeito vinculante, quando se fazia
obrigatória a sua aplicação.
A palavra erro, derivada do latim error, do verbo errare, significa
falsa concepção acerca de uma pessoa, de uma coisa ou de um fato. É idéia
contrária à verdade, podendo ser o falso tomado como verdadeiro ou o
verdadeiro tomado como falso. Infere-se que o erro é contrário à verdade.
O erro faz parte da natureza humana, é necessário que se reconheça
as limitações e a falibilidade do homem. Se o Direito está sempre voltado,
direta ou indiretamente, para acontecimentos da vida humana, não poderia
assim ignorar a ocorrência do erro, tanto é assim, que o nosso direito positivo
reconhece a sua ocorrência e fixa regras para as suas conseqüências.
CORPO DISCENTE • GRADUANDOS 365
Ana Paula Fernandes Neves

O erro judiciário é cometido por juízes, voluntária ou


involuntariamente, em suas sentenças e acórdãos. Em regra, resulta o erro
judiciário da não observância da lei ou fundado engano resultante de atos
e documentos da causa, entendemos resultar o erro judiciário também,
quando da não aplicação da súmula de efeito vinculante que se fazia obri-
gatória.
Fala-se em error in judicando e em error in procedendo para separar as
duas modalidades de erro que podem ser verificadas numa decisão judici-
al O error in judicando é aquele cometido pelo juiz, relativamente ao juízo
de direito, quer no tocante ao direito material, quer ao direito processual, a
violação ou a errada aplicação da lei, pelo juiz ou tribunal ao julgar. Por
sua vez, o error in procedendo, se configura pela não observância, pelo
juiz, dos preceitos estabelecidos nas leis processuais, relativamente à dis-
ciplina do procedimento.

5. SÚMULA DE EFEITO VINCULANTE E ERRO JUDICIÁRIO

A Emenda Constitucional n.45, de 08/12/2004, ao introduzir a


súmula vinculante no ordenamento jurídico pátrio acrescentou ao texto cons-
titucional o art. 103 A, objetivando uniformizar a jurisprudência e por fim
às demandas múltiplas, principalmente aquelas em que é parte a Adminis-
tração Pública. Dispõe tal dispositivo:

Art. 103- O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por


provocação, mediante decisão de dois terços dos seus membros, após
reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula
que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito
vinculante em relação ao demais órgãos do Poder Judiciário e à admi-
nistração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e
municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na
forma estabelecida em lei.
§ 1º- A súmula terá por objetivo a validade, a interpretação e a
eficácia de normas determinadas, acerca das quais haja controvérsia
atual entre órgãos judiciários ou entre esses e a administração públi-
ca, que acarrete grave insegurança jurídica e relevante multiplica-
ção de processos sobre questão idêntica.
§2º - Sem prejuízo do que vier a ser estabelecido em lei, a aprovação,
revisão ou cancelamento de súmula poderá ser provocada por aque-
les que podem propor a ação direta de inconstitucionalidade.
§3º - Do ato administrativo ou decisão judicial que contrariar a súmula
aplicável ou que indevidamente a aplicar, caberá reclamação ao Su-
premo Tribunal Federal que, julgando-a procedente, anulará o ato
366 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

administrativo ou cassará a decisão judicial reclamada, e determina-


rá que outra seja proferida com ou sem aplicação da súmula, confor-
me o caso.

Assim, tem-se a súmula como medida urgente e necessária para o


funcionamento da Justiça, como também meio de preservação do princípio
da igualdade de todos perante a interpretação da lei, afastando assim, o
perigo das decisões contraditórias e ainda, como meio de resguardar o
princípio da segurança jurídica, assegurando a previsibilidade das deci-
sões judiciais em causas idênticas.
Atribuir força vinculante à súmula, não representa retrocesso, mas
evolução na forma de disciplinar as relações sociais, conferindo maior
estabilidade e segurança ao jurisdicionado diante de um entendimento
uniforme das questões constitucionais pelo STF, com o objetivo da pacifi-
car eventuais conflitos de entendimento de entendimento entre os diversos
órgãos judiciais acerca de matérias idênticas ou análogas.
Uma vez firmado entendimento sobre determinada matéria confere-
se poderes ao tribunal para aprovar súmulas que, a partir de sua aplicação
na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do
Poder Judiciário e da Administração Pública Direta e Indireta.
Assim, impõe aos juízos inferiores a observância obrigatória das
súmulas emanadas dos Tribunais, dando sentido uniforme à prestação
jurisdicional sobre determinado tema específico. Diante de tal uniformiza-
ção, se for praticado algum ato judicial ou administrativo contrário ao seu
sentido, ou seja, for proferida decisão em desconformidade com súmula
vinculante deve-se entender como erro judiciário, passível assim de inde-
nização.

6. A RESPONSABILIZAÇÃO PELO ERRO JUDICIÁRIO

Quando se fala em erro judiciário, logo se pensa no erro penal, erro


na condenação, no recebimento da denúncia, na decretação da prisão
cautelar. No entanto, o erro judiciário pode ocorrer tanto no âmbito penal,
como no civil, trabalhista, como em qualquer área de atuação jurisdicional,
posto que, trata-se o erro de um risco inerente ao próprio funcionamento do
serviço. Assim como no processo penal, o Estado será responsabilizado
por ato de seus agentes, não há como admitir a irresponsabilidade do Po-
der Público por erros judiciários civis.
Está consagrado no ordenamento jurídico pátrio, art. 37 §6º da CF:
“As pessoas jurídicas de direito público e de direito privado, prestadoras
de serviços públicos, responderão pelos danos que seus agentes, nesta
CORPO DISCENTE • GRADUANDOS 367
Ana Paula Fernandes Neves

qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra


o responsável nos casos de dolo ou culpa.”
Assim, entendemos a necessidade de uma responsabilização cível
dos Poderes e Instituições Públicas em face da não aplicação da súmula
de efeito vinculante, quando obrigatória se fazia sua efetivação, uma vez
que já tenha o Supremo firmado seu entendimento neste sentido.
O vocábulo “responsabilidade” originou-se do latim respondare,
que vem a ser o fato de alguém se constituir garantidor de algo, ou seja,
alguém que por ter praticado determinada conduta ou não ter praticado,
violando bem jurídico protegido, será responsabilizado por tal conduta,
uma espécie de sanção.
Assim, a responsabilização civil tem por finalidade precípua o
restabelecimento do equilíbrio violado pelo dano, reposição do prejudi-
cado ao status quo ante, como maneira de dar segurança jurídica ao lesa-
do, uma sanção civil de natureza compensatória.
Já é pacífico o entendimento de que o ordenamento jurídico brasilei-
ro admite que o Estado possa causar prejuízos, através de comportamentos
comissivos ou omissivos, resultando-lhe assim a obrigação de recompor
tais danos. Desta forma, uma decisão proferida em desconformidade com
súmula que se fazia obrigatória, por já ter o Tribunal Superior firmado
entendimento uniforme relacionado àquela matéria poderá acarretar dano
ao jurisdicionado, devendo assim existir meios jurídicos e formas legais
para o ressarcimento e ou indenização dos prejuízos morais e materiais
ocasionados pela não aplicação da súmula.
Cumpre salientar que a Emenda Constitucional n.45, com o objetivo
de zelar pelo cumprimento das decisões sumuladas, previu o cabimento de
reclamação ao próprio Supremo Tribunal Federal, em face do ato adminis-
trativo ou decisão judicial que contrariar a súmula aplicável ou que
indevidamente a aplicar. Assim, poderá o jurisdicionado frente a uma de-
cisão proferida em desconformidade com entendimento já uniforme pelo
Supremo Tribunal por exemplo, utilizar-se de tal mecanismo, além de po-
der valer-se, no nosso entender, de vias outras, que possibilitem o ressarci-
mento do prejuízo advindo de tal conduta, pleiteando indenização em
virtude dos danos que porventura lhe tenham sido causados.

7. CONCLUSÃO

A partir do estudado realizado, demonstramos a possibilidade de


uma indenização em virtude da não aplicação de súmula de efeito
vinculante quando obrigatória se fazia a sua aplicação. Como dito inici-
368 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

almente, trata-se de um tema instigante, sobre o qual, neste enfoque em


particular, não existe obra monográfica. Contudo, diante da relevância que
o mesmo se apresenta face à concretização do Estado Democrático de Di-
reito e das garantias constitucionais, impõe ao aplicador do Direito o dever
de posicionar-se a respeito do tema.
Entendemos que são necessárias ainda, maiores reflexões e discus-
sões acerca do instituto do erro judiciário e as possíveis conseqüências da
súmula vinculante. O nosso posicionamento é no sentido de que, as
súmulas, bastante enraizada na vida jurídica brasileira, é hoje um instru-
mento imprescindível à atividade dos tribunais, não há quem pense em
suprimi-las, a par dos notórios benefícios que os entendimentos sumulados
têm trazido não apenas para o jurisdicionado, em razão da segurança
jurídica, como dos próprios juízes, que têm na súmula uma firme orienta-
ção para os seus julgamentos.
É bem verdade, que a decisão judicial é fruto de um raciocínio com-
pleto, irredutível a esquemas lógicos elementares, no qual o juiz exerce
ampla discricionariedade. Esse princípio é verdadeiro na medida em que é
ilimitado o índice de variedade das situações concretas: não há um proces-
so igual a outro no âmbito do confronto entre interesses individuais. No
entanto, é necessário que essas decisões atendam ao critério de
racionalidade, que é também uma exigência do Estado de Direito e do pró-
prio princípio da legalidade.
Espera-se, portanto, da decisão judicial que ela seja desenvolvida
conforme critérios, regras e normas, respeitando-se, ademais, os parâmetros
de racionalidade do raciocínio jurídico.
A independência e liberdade do juiz, não é e não pode ser absoluta,
a decisão deve-se pautar em critérios racionais, anteriormente fixados pela
súmula de efeito vinculante. Não se trata de um “instrumento de controle”
de legalidade das decisões, trata-se de um mecanismo de controle contra o
arbítrio judicial, mas a ser exercido pelo próprio povo.

REFERÊNCIAS

FILHO, Sérgio Cavalieri. Programa de Responsabilidade Civil. 7 ed. São Pau-


lo: Atlas, 2007.

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CORPO DISCENTE • GRADUANDOS 369
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Erro Judiciário Civil. Revista Jurídica Consulex, nº 154, junho de 2003. p.34.

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Paulo: Malheiros Editores, 2007.
370 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

SOBERANIA POPULAR: VIDA, SUPERAÇÃO E


DIREITO

Ricardo Gonçalves dos Santos Júnior


Bacharelando em Direito pela UCSAL

A história da existência humana sempre foi acompanhada por avan-


ços e retrocessos, sortes e revezes; revoluções e evoluções.
Grande parte dessas revoluções e evoluções girou em torno de uma
das primeiras relações que fundaram a sociedade, a relação entre aqueles
que mandam e aqueles que obedecem.
A relação entre aqueles que mandam e obedecem, ou relação de po-
der, pode ter diversos fundamentos como: a força, o poderio bélico, a reli-
gião... Hoje, numa perspectiva constitucionalista-formal, poder é o povo e
seu fundamento é o Estado.
O poder do Estado se projeta por meio de três ordens: Poder Executi-
vo, Poder Legislativo e Poder Judiciário, entretanto, o poder é uno e emana do
povo. É nessa perspectiva que a Teoria da Soberania Popular determina e,
dessa forma, foi acolhida pela Assembléia responsável pela Constituição
Federal de 1988 que a recepcionou no parágrafo único do seu art. 1º.
A Constituição recepcionou diversas outras teorias. Uma das prin-
cipais não pode ser outra senão aquela que nasceu e fundou a Declaração
de Direitos do Homem e do Cidadão. O homem tomou para si direitos
destinados a lhe conferir a dignidade de que carece a condição de ser hu-
mano, independente de qualquer um de seus predicados sejam relativos a
sexo, cor, religião e qualquer outra particularidade. Devendo, a partir de
então, ser respeitado individual e coletivamente. Assim nasceram os direi-
tos do povo, emanados do povo, protegidos e respeitados pelo Estado.
Houve a mais proveitosa “revolta dos fatos contra os códigos” (1), expres-
são muito feliz de Savigny, quando a fonte do poder estatal deixou de ser o
próprio estado e passou a ser o seu respectivo povo. Na Constituição Bra-
sileira vigente esses direitos se encontram enunciados no art. 5º que, em
seu § 2º, que deixa claro se tratar de uma enunciação meramente explicativa.
Resulta deste processo o que se pode chamar de “institucionalização
democrática do poder”, ela, explica o Prof. Manoel Ribeiro (2), se traduz na
separação de poderes em favor do povo. Foi inspirada pela doutrina de
Montesquieu (3) pela qual o poder carece de limites, que devem ser determi-
CORPO DISCENTE • GRADUANDOS 371
Ricardo Gonçalves dos Santos Júnior

nados por ele próprio para que possa seguir, servir e ser administrado pelo
povo.
Entretanto, apesar dessa ser uma premissa conhecida pelo povo
brasileiro, inserida em seus espíritos e corações, a população brasileira se
encontra aprisionada pela sua própria imaturidade política; se converteu
em principal patrocinadora de um Estado que não atua como seu servidor,
ao aceitar políticas como a do “rouba, mas faz”, cujo único beneficiário é o
establishment.
É possível que exista um povo tão oprimido política e economica-
mente que prefira legitimar um candidato que pensa mais em si mesmo que
nos seus eleitores em troca de migalhas?
No Brasil, a institucionalização do poder ocorreu preenchida pelas
peculiaridades nacionais. Faz parte da história do povo brasileiro atribuir
poderes demais a seus governantes; desse modo sua iniciativa foi homeo-
paticamente reprimida para que o Estado se tornasse o único responsável
por ela.
Mesmo quando o Estado brasileiro se tornou um estado federal, ele
o fez mediante um processo centrífugo, no qual, o poder emergente cedeu
parcelas de poder aos estados federados. O contrário do que aconteceu na
formação da federação norte americana, na qual o poder foi delegado ao
poder emergente seguindo critérios que mantiveram a autonomia necessá-
ria a uma administração eficiente e independente por parte dos Estados
federados; como deve ser.
Também no âmbito constitucional, se pode detectar algumas ano-
malias. A integridade do texto constitucional é constantemente desrespei-
tada. Nascida em 1988, a Constituição cidadã é filha de um processo alheio
às massas desde a eleição de sua Assembléia Constituinte, que fora
congressual: resultante de um acúmulo de funções por parte dos integran-
tes do Congresso Nacional. O texto original da referida Constituição foi
inspirado em outras constituições de países que possuem uma sociedade
civil ativa; se constituiu, então, uma semente de esperança de um futuro
mais justo. Infelizmente, sementes não germinam sobre pedras, pedras es-
tas que são o conjunto de maus hábitos que se misturam á essência do que
é o Brasil e de quem são os brasileiros.
A Constituição vigente, em menos de 20 anos, já conta com 54 emen-
das, o que é uma pena. No livro “Debate sobre a Constituição de 1988” (4),
escrito quando ocorreu o décimo aniversário da referida Constituição, 10
dos maiores juristas do Brasil escreveram sobre ela e sua recepção por
parte dos detentores eventuais do poder e por parte de seus titulares: todos
elogiaram a Assembléia Constituinte, mas não houve uma opinião positi-
372 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

va sequer sobre o que dela fora feito, principalmente quanto a


desestabilização do sistema de freios e contrapesos, que se destina a limi-
tar o poder, resultante de interpretações tendenciosas e das emendas cons-
titucionais, em particular no que diz respeito ao poder de legislar concedi-
do ao Poder Executivo por meio das medidas provisórias. Nos últimos 9
anos o establishment, conservador, permitiu que esse processo continuas-
se a modificar o conteúdo da Constituição cidadã; que a situação anterior
à sua publicação aos poucos fosse reinstalada e que o quadro da desigual-
dade social se vertesse de notório em notável.
Ferdinand Lassale (5) já enunciava, em 1863, a diferença entre uma
constituição real e uma constituição escrita, a primeira traduz a real e efe-
tiva maneira de ser dos elementos sociais ativos bem como seus fins, en-
quanto a segunda serve apenas para disfarçar a exploração do seu povo, a
desigualdade social, perante o resto do mundo. Nunca foi mais preciso
este posicionamento do que na era da globalização, basta que se lembre o
que fora escrito pelo prof. Manoel Ribeiro em 1985 (6):

“a democracia constitucional não depende, apenas, do con-


teúdo da Constituição, mas, inclusive, em que o povo seja o
supremo árbitro final”.

Assim, a própria lógica de funcionamento do poder se revela


corruptora, a passividade do povo brasileiro frente ao poder é a fonte do
desequilíbrio entre aqueles que mandam e obedecem. Não se trata de voto,
uma vez que mesmo o mais que humilde brasileiro seja posto como deten-
tor do poder o sistema o corromperá. O sistema é o conjunto de fatores que
moldam a estrutura e a dinâmica do estado, para o qual, o poder nunca é
suficiente; é composto pelo povo (indiretamente), pelo modo com que inte-
resses das classes que o compõe coexistem, pelos detentores eventuais do
poder e por pressões internacionais, em especial as pressões capitalistas,
interessantes apenas ao establishment.
Apesar disso, é possível que se acredite que o Brasil possa crescer
social e politicamente. Acreditamos que essa evolução pode se operar a
partir do exemplo de países em cujos quais existe um equilíbrio entre aque-
les que mandam e aqueles que obedecem baseado na lei, - que é a tradução
dos meios necessários para que se saciem as carências nacionais - e na
vontade do povo. Deve ser inspirada, no povo brasileiro, a iniciativa repri-
mida pela história, por meio do exemplo de como se porta o povo nesses
países, respeitando os aspectos positivos do povo brasileiro e sonhando
ser possível construir um modelo que possa servir de exemplo também. O
CORPO DISCENTE • GRADUANDOS 373
Ricardo Gonçalves dos Santos Júnior

que não deve ser feito é justamente o que tem sido feito, se tem desistido de
ter orgulho de ser brasileiro.
O Brasil sofre com as conseqüências dos maus tratos do mundo
capitalista globalizador; globalizado seria se a inserção das nações nesse
processo fosse fruto de uma decisão política por parte do conjunto de indi-
víduos que dela fizesse parte, no entanto é imposto pela força dos países
mais abastados do globo. De modo que, para a maior parte da humanidade
a globalização está se impondo como uma fábrica de perversidades. O
desemprego crescente se torna crônico. A pobreza aumenta e as classes
médias perdem em qualidade de vida. O poder aquisitivo do salário míni-
mo tende a diminuir por conta da inflação. A fome e o desabrigo se genera-
lizam. Os frutos da evolução científica são privilégios das classes mais
abastadas e não chegam sequer a ser conhecidos pelos mais carentes. A
educação de qualidade é cada vez mais inacessível.

“... a perversidade sistêmica que está na raiz dessa evolução


negativa da humanidade tem relação com a adesão desenfre-
ada aos comportamentos competitivos que atualmente ca-
racterizam as ações hegemônicas. Todas as mazelas são dire-
ta e indiretamente imputáveis ao presente processo de
globalização”

explica o saudoso geógrafo Milton Santos (7).


Ainda no âmbito dos interesses do establishment, que prejudicam o
bem estar do povo brasileiro, Elaine Rosseti Bering (8) descreve o avanço
do capitalismo para dentro das fronteiras nacionais dizendo:

“Esteve em curso no Brasil dos anos 1990 uma contra-refor-


ma do Estado, e não uma ‘reforma’, como apontavam - e
ainda o fazem - seus defensores. Uma contra-reforma que se
compôs de um conjunto de mudanças estruturais regressistas
sobre os trabalhadores e a massa da população brasileira,
que foram também antinacionalistas e antidemocráticas”.

A reversão dos danos causados ao povo brasileiro, que foram econô-


micos, políticos, sociais e culturais, é possível, mas vai exigir muita cora-
gem e vontade política dos novos dirigentes do país e muita mobilização
popular, para além do voto.
A razão de serem permitidas graves ofensas à soberania popular
brasileira é fruto de recorrentes ataques por parte dos detentores eventuais
do poder direta e indiretamente, ao pretenderem atender interesses aos
374 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

conservadores do sistema. Esse processo modificou a personalidade do


homem brasileiro, transformando-o no “homem-massa” médio europeu
de três séculos atrás. É o que José Ortega y Gasset (9) explicou ser

“o homem previamente despojado de sua própria história,


sem entranhas de passado, e, por isso mesmo, dócil a todas as
disciplinas chamadas ‘internacionais’, mais do que um ho-
mem, é apenas uma carcaça de homem constituído por meros
idola fori; carece de um ‘dentro’, de uma intimidade sua,
inexorável e inalienável de um eu que se possa revogar. Daí
estar sempre em disponibilidade pra fingir ser qualquer coi-
sa. Tem só apetites, crê que só tem direitos e não crê que tem
obrigações: é o homem sem nobreza que obriga”.

Identifica-se esse com o perfil atual do povo brasileiro. Foi inibido o


espírito desbravador dos paulistas, a pureza de caráter do povo nordesti-
no... São freqüentes denuncias contra integrantes do MST - Movimento dos
Sem-Terra - por venderem as terras as quais lhe foram, depois tantas lutas,
cedidas pelo governo para que pudessem trabalhar; contra algumas aldei-
as indígenas, corrompidas por madeireiros com o intuito explorem suas
terras (muitas vezes áreas de preservação ambiental). O “jeitinho brasilei-
ro”, que se caracteriza pela maneira leve de resolver as situações desagra-
dáveis cotidianas, se converteu em permissividade, o povo brasileiro per-
deu a consciência que lhe permitia fazer um julgamento de seus atos pe-
rante a sociedade e passou a atuar como um pequeno corrompido, que
justifica seus erros com base nos erros dos demais. Qual casa não tem um
único DVD pirata neste País?
Pior ainda no âmbito dos poderes constituídos do Estado, será que
em um país sério, do qual o seu povo tivesse orgulho, um presidente do
senado poderia ter as despesas pagas por um lobista e ser absolvido pelo
corporativismo? É assim que se detecta a influência do establishment
espalhada por toda a sociedade brasileira.
Apesar desse modelo, o Brasil já passou por diversas crises e nunca
quebrou. Crises provocadas necessariamente pela falta de personalidade e
compromisso dos detentores eventuais do poder e pelos interesses escusos
do establishment, em seus aspectos nacional e internacional. Ao menos,
uma de suas virtudes o brasileiro não perdeu: a de se adaptar. O brasileiro
aprendeu a cortar gastos, fazer horas extras, descobriu uma saída para o
desemprego e suas conseqüências no trabalho informal; tornou-se expert
em sobreviver, quando deveria se impor. Foi aí que sobreviver a cada dia se
tornou mais importante do que contribuir para uma vida digna para próxi-
mo e para si mesmo.
CORPO DISCENTE • GRADUANDOS 375
Ricardo Gonçalves dos Santos Júnior

O povo brasileiro é o sustentáculo de um modelo que não contribui


para o aumento de sua própria qualidade de vida, situação bastante clara
para nós, todavia, nem um pouco lógica.
Uma das medidas que podem ser tomadas para resolver o
desequilíbrio da relação entre aqueles que mandam e aqueles que obede-
cem no País, para além voto, é a fiscalização, por parte do povo, dos atos de
seus governantes e sua atuação no sentido de não permitir que sejam reali-
zados atos alheios ou, até mesmo, contrários ao interesse público. O instru-
mento jurídico dessa atuação é a ação popular.
Na lição de Hely Lopes Meirelles (10)

“a ação popular é o meio constitucional posto à disposição de


qualquer cidadão para obter a invalidação de atos ou contra-
tos administrativos - ou a eles equiparados - ilegais e lesivos
do patrimônio federal, estadual e municipal ou de suas
autarquias, entidades para-estatais e pessoas jurídicas sub-
vencionadas com dinheiros públicos”.

Esse dispositivo se encontra disciplinado no art. 5º, LXXIII do Cons-


tituição Federal vigente (11), artigo que diz respeito aos direitos e garantias
fundamentais:

“qualquer cidadão é parte legítima para propor a ação popu-


lar que visa anular ato lesivo ao patrimônio público ou de
entidade de que o estado participe a moralidade administra-
tiva ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural,
ficando o autor, salvo comprovada a má-fé, isento de custos
judiciais e do bônus da sucumbência”

é regulamentado pela Lei nº. 4.717 de 29 de junho de 1965 .


Tem-se um poderoso instrumento de defesa dos interesses sociais,
cujo titular é o povo. Fazer uso desse instrumento constitucional não é só
um direito de natureza subjetiva, mais que isso, segundo Pontes de Miranda
(12), também é público e político, posto que só pode ser exercido por brasi-
leiros eleitores – ativos com relação aos direitos políticos do cidadão - e
constitui a garantia ao direito a um governo comprometido como todo o
povo brasileiro, com seus fins e com a sua real e efetiva maneira de ser. O
povo é o beneficiário dos direitos defendidos por meio da ação popular.
Para explicar melhor o caráter político da ação popular, Di Pietro
(13) pontua que o autor de uma ação popular pede a prestação jurisdicional
para defender o interesse público, ou seja, a ação popular implica no controle
376 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

do cidadão sobre atos lesivos aos interesses que a Constituição almeja


proteger.
Definir o objeto da ação popular é uma tarefa complexa. Sua função
é desconstituir ato (entendido como decreto, lei, resolução, portaria, con-
trato e quaisquer outras manifestações especiais ou gerais de efeitos con-
cretos do Poder Público) ilegal ou ilegítimo, contrário ao Direito (seja posi-
tivo ou referente aos seus Princípios Gerais) do qual resulte lesão ao
patrimônio público.
Esta lesão - sempre relacionada à idéia de causar dano ou prejuízo,
ofender, violar ou ferir - possui um objeto bastante amplo; abrange danos
de natureza material, ética, moral, estética, espiritual, histórica, ambiental,
cultural, artístico e outras; entretanto Rafael Bielza(14) explica:

“o móvel, pois, da ação popular não é apenas restabelecer a


legalidade, mas, também, reprimir a imoralidade adminis-
trativa. Deste duplo fim, vemos a virtude deste singular meio
jurisdicional de evidente valor educativo”.

Dessa maneira o maior bem que nos pode advir do uso da ação
popular é a reeducação política dos detentores eventuais do poder, acostu-
mados a desrespeitar os limites de sua competência em função de interes-
ses particulares ou contrários ao bem público, por parte da sociedade civil.
Assim, a soberania popular, além de se tornar mais efetiva, tende a ampliar
seu alcance na medida em que o exemplo de sucesso de algumas ações
populares inspira a impetração outras ações populares.
Da mesma forma, o exemplo tornará mais precisa a enunciação dos
atos que podem ser objeto de ações populares, uma vez que o § 2º, do art. 5º
(15), a torna bastante abrangente:

“os direitos e garantias expressos nesta Constituição não ex-


cluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela
adotados, ou dos tratados internacionais em que a República
Federativa do Brasil seja parte”.

A intenção de se tornar mais precisa a referida enunciação não é


limitá-la, mas sim explicá-la. Assim, o povo brasileiro aprenderá a fazer o
melhor uso das ações populares e, conseqüentemente, os detentores even-
tuais do poder terão consciência de que não serão admitidos atos que im-
pliquem em qualquer tipo de lesão ao patrimônio público, ganhando tam-
bém um bom motivo para temer as suas conseqüências.
CORPO DISCENTE • GRADUANDOS 377
Ricardo Gonçalves dos Santos Júnior

É importante lembrar o caráter político da ação popular. Uma vez


que é impossível cobrar de um candidato a prefeito, governador ou presi-
dente, por exemplo, o cumprimento das suas promessas de campanha,
nem se admitiu o recall no Brasil. Isso significa que após as eleições, salvo
a possibilidade de um impeachment, os eleitores se tornam “escravos” de
sua decisão pelo tempo de duração do mandato conferido legitimamente.
A ação popular é a garantia constitucional de que caso o candidato eleito
não colabore com os fins de seus eleitores ao menos não poderá realizar
atos que os prejudiquem, ou seja, se um governante não contribuir com a
qualidade de vida do povo ao menos não a poderá prejudicar.
A emergência do uso da ação popular se torna mais grave ainda se
for verificado que o Direito foi construído sob a premissa de que sempre
serão conferidos direitos aos seus destinatários legítimos, o que não é sem-
pre possível, pois, explica Gustavo Amaral (16), nem sempre haverão bens
suficientes para todos. Nesses casos deve-se preferir satisfazer aos interes-
ses da maioria, do povo, ou seja, dos destinatários da ação popular.
Para salientar a importância da ação popular, vamos ressaltar três
de suas características, as duas primeiras na lição de José Afonso da Silva
(17):
a) a ação popular não é limitada no que diz respeito ao tempo; deve
desconstituir ato administrativo mesmo que este tenha sido praticado por
gestão anterior ao momento da sentença. A autoridade, administrador ou
funcionário público - responsável pelo ato - e seus beneficiários devem
responder por ele, da maneira que for conveniente, mesmo que não mais
estejam vinculados à função pública que lhe conferiu meios para realizar
ato lesivo ao patrimônio do povo;
b) a ação popular pode ser impetrada inclusive para fazer com que o
Estado atue. Isso deverá ocorrer sempre que, da omissão, resultar ato lesivo
ao patrimônio público. Nesta ocasião, revela-se o seu caráter preventivo:
supletivo da inatividade do Poder Público, nos casos em que deveria agir
por expressa disposição legal;
c) o titular da ação popular é o povo: mesmo que o impetrante aban-
done a causa ou venha a falecer, a ação subsistirá promovida pelo Ministé-
rio Público, se o seu julgamento for de interesse público. Só é permitida a
desistência da ação por parte do autor se esta for apoiada pelo Ministério
Público, se ambos se convencerem da inexistência de seu fundamento e
houver a concordância dos réus (18).
A ação popular representa um dos meios de o povo interferir no uso
do poder soberano do Estado, por ser seu titular e fiscal; o ente mais pode-
roso dentro de um país é o seu próprio povo, não se deve admitir que este
378 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

seja prejudicado, de maneira alguma, por aqueles os quais receberam po-


deres, por meio do voto, para representá-los. É assim que uma democracia
deve funcionar e só assim ela se justifica.
Infelizmente, a ação popular tem sido usada como meio político de
oposição entre uma administração e outra. Esse tipo de procedimento de-
manda uma atenção especial por parte do Poder Judiciário para que a ação
popular não se converta em instrumento de vingança partidária e
inviabilize atos que sejam positivos para a sociedade, sua beneficiária.
É detectável, também, o mau uso de ações populares por parte dos
integrantes da própria população. Não raro, vê-se cidadãos atuarem como
“testa de ferro” dos interesses de algum particular ou de todo o
establishment, mediante recompensa. Esse tipo de comportamento pode
ser considerado o maior entrave, por parte do povo, à efetivação da sobera-
nia popular por meio desse instrumento. A ação popular deve ser protegi-
da do descrédito para que possa atuar de maneira plena.
Por conta disto, existe a necessidade da reformulação do modus
operandi da ação popular para melhor precisar os seus fins e lhe dar mais
eficácia no que diz respeito ao seu próprio processo.
O mau uso dos instrumentos jurídicos incentivou, por exemplo,
Eduardo Novoa Monreal (19) a escrever “O Direito como obstáculo à trans-
formação social”. O Direito, entretanto, não pode se constituir um obstácu-
lo à transformação social, ao contrário, de se constituir elemento
estabilizador da sociedade diante de sua própria dinâmica.
O Engessamento da dinâmica social é contrário os fins do Direito. O
que há é uma pressão por parte das minorias que estimulam o uso torpe do
Direito de modo a prejudicar a sociedade.
O povo não deve se permitir ser ludibriado, cabendo lhe, de per si,
proteger aquilo que lhe é benéfico, seja usando do Direito ou até mesmo
fazendo uso das armas. Há uma divergência doutrinária com relação a
qual é o bem jurídico mais importante: a vida ou a liberdade, seja qual deles
for, o povo brasileiro vem sendo constantemente ferido no que diz respeito
a ambos. Segundo Hobbes (20), será necessário um contrato social que
estabeleça a paz, a qual levará os homens a abdicarem da guerra contra
outros homens. Mas, egoístas que são, necessitam de um soberano (Leviatã)
que puna aqueles que não obedecem ao contrato social. A partir de 1789
(21) a responsabilidade pelo cumprimento do papel do monstro bíblico
Leviatã passou a ser do povo, e, no Brasil, a ação popular um dos seus
intrumentos de ataque.
No entanto, parece-nos que os cidadãos brasileiros não assumem o
seu papel enquanto garantidores de seus próprios direitos, ao tornarem-se
CORPO DISCENTE • GRADUANDOS 379
Ricardo Gonçalves dos Santos Júnior

cúmplices do establishment - que os mal-trata - quando deveriam conver-


ter-se em sociedade civil, nos moldes do dever ser de Norberto Bobbio (22),
que aproxima seu significado da ideologia marxista ao enunciar:

“a Sociedade Civil é representada como o terreno dos confli-


tos econômicos, ideológicos, sociais e religiosos que o Esta-
do tem a seu cargo resolver, intervindo como mediador e
suprindo-os; como a base da qual partem as solicitações às
quais o sistema político está chamado a responder; como o
campo das várias formas de mobilização, de associação e de
organização das forças sociais que impelem a conquista do
poder político”.

O povo brasileiro necessita redescobrir a sua verdadeira identidade;


se “ser brasileiro é não desistir nunca”, é melhor que concentre seus esfor-
ços para almejar viver ao invés de meramente sobreviver. A esperança bra-
sileira não deve ser aquele último mal grego que permaneceu na Caixa de
Pandora, que consiste na recorrente esperança de, pelo meio impróprio, se
alcançar o querido resultado; mas sim, aquela esperança de viver e convi-
ver melhor, por meio da promoção do bem estar de todos, sempre fazendo
uso das ferramentas que forem as mais convenientes para tanto.
É por meio do amadurecimento do cidadão brasileiro que a sobera-
nia popular poderá verter a realidade do País num quadro mais igualitá-
rio; num modelo que possa fazer com que as leis brasileiras se tornem mais
efetivas, que, por completo, “saiam do papel”, e fazer do Brasil um exemplo
que possa ser admirado pelo mundo inteiro, como seu povo merece.

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9. ORTEGA Y GASSET, José. A Rebelião das Massas. São Paulo: Editora


Martins Fontes, 1987. 08 p.

10. MEIRELLES, Hely Lopes. Mandado de Segurança, ação popular, ação


civil pública, mandado de injunção, “habeas data”. 14. ed. atualiza-
da pela Constituição de 1988 e legislação posterior por Arnoldo Wad.
São Paulo: Editora Malheiros., 1990. 85 p.

11. BRASIL. Constituição (1988) Art. 5º, inc LXXIII, 2007.

12. MIRANDA, Pontes de. Comentários à constituição de 1967. São Pau-


lo: Editora Revista dos Tribunais, 1967.

13. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 18º ed. São
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14. BIELSA, Rafael. A ação popular e o poder discricionário da Adminis-


tração, apud MEIRELLES, Hely Lopes. Mandado de Segurança, ação
popular, ação civil pública, mandado de injunção, “habeas data”. 14ª
ed. atualizada pela Constituição de 1988 e legislação posterior por
Arnoldo Wad. São Paulo: Editora Malheiros, 1990. 90 p.

15. BRASIL. Constituição (1988) Art. 5º, § 2º, 2007.

16. AMARAL, Gustavo. Direito, escassez & escolha. Rio de Janeiro: Reno-
var, 2001.

17. SILVA, José Afonso da. Ação Popular Constitucional. São Paulo: Ed.
RT, 1968.
CORPO DISCENTE • GRADUANDOS 381
Ricardo Gonçalves dos Santos Júnior

18. LUIZ JOSÉ DE MESQUITA – “O MP na ação popular (A propósito da


proibição do art. 6º, § 4º, da Lei 4.717/65)”. Revista dos Tribunais, v.
574 apud MEIRELLES, Hely Lopes. Mandado de Segurança, ação
popular, ação civil pública, mandado de injunção, “habeas data”. 14ª
ed. atualizada pela Constituição de 1988 e legislação posterior por
Arnoldo Wad. São Paulo: Editora Malheiros, 1990.

19. MONREAL, Eduardo Novoa. O Direito como obstáculo à transforma-


ção social. Porto Alegre: Editora Fabris, 1988.

20. HOBBES, Thomas. Leviata. São Paulo: Editora Martin Claret, 2001.

21. FRANÇA, Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. 1789.

22. BOBBIO, Norberto, MATTEUCCI, Nicola e PASQUINO, Gianfranco.


Dicionário de Política, Brasília, vol. 2. Brasília: Editora da Universida-
de de Brasília (UNB), 1986.
382 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

A FALÊNCIA DAS TEORIAS JUSTIFICACIONISTAS


DA PENA FACE ÀS CRÍTICAS ABOLICIONISTAS

Gleison Soares
Bacharelando em Direito da Universidade Ca-
tólica do Salvador

RESUMO

O presente trabalho fora elaborado com o fito, único e audacioso, de trazer às


mentes dos operadores do Direito, ainda que de forma humildemente sintéti-
ca, os questionamentos tão esquecidos, e por muitos nem sabidos, frutos de
ebulições das mentes de ícones jurídicos como ZAFFARONI, FERRAJOLI,
BARATTA e ROXIN, que navegando pelas críticas Abolicionistas Penais bus-
cam respostas às indagações acerca da legitimidade da sanção jurídico-penal,
seu finalismo, bem como sua utilidade para as atuais sociedades democráticas
de natureza liberal

1. INTRODUÇÃO

Inúmeras teorias surgiram, e continuam a surgir, na busca de uma


melhor explicação acerca do utilitarismo da pena no sistema jurídico. Te-
nham condão mais normativo, psicológico, sentimental ou filosófico, to-
das, sem exceções a serem abertas, possuem uma linha de identidade que
as fazem se aproximar, qual seja: a incerteza de sua prestabilidade en-
quanto forma justificadora do preceito secundário da norma
incriminadora.
Ao passo que surgem novas teses utilitaristas da pena, a doutrina
se incumbe da difícil tarefa de desafiá-las com a intenção de verificar se
estas acobertam a verdadeira legitimidade do punir estatal. Embora haja
grande pluralidade de pensamentos, poucas são as teses que prospera-
ram e conseguem viger ao menos por algumas décadas, conseguindo agre-
gar ao seu redor muitos pensadores.
Contudo, ocorre que, como já tentou nos alertar o nobre doutrinador
Salo de Carvalho, antes de qualquer questionamento acerca da função
teleológica da pena é mister indagar se há necessidade em punir, fazendo
CORPO DISCENTE • GRADUANDOS 383
Gleison Soares

com que o debate sobre a real obrigatoriedade da existência de uma san-


ção penal anteceda àquele sobre o finalismo desta imposição coercitiva.1
Deixar levar-se pela aparência, tomando-se como verdade absoluta
a premissa de uma necessidade de aplicação de uma medida de segrega-
ção com força estatal contra os transgressores de uma ordem jurídico-
penal previamente estabelecida, sem indagar, em momento algum, sobre a
(i)legitimidade desta imposição, é, como disse certa vez Evandro Lins e
Silva, “lavar as mãos como o fez Pilatos” e então aplicar as bases penais
com argumentações insuficientes para o preenchimento de lacunas aca-
dêmicas.
É por conseqüência deste pensamento que necessário se faz reavivar
os questionamentos e críticas abolicionistas penais com a finalidade mí-
nima de sedimentar, ainda que em poucos, um maior interesse pela busca
de uma resposta cada vez mais completa às indagações: “por que punir?”
e “para que punir?”.

2. DA HISTÓRIA DA PENA

Precedente a um mergulho histórico sobre a pena, necessário é com-


preender os delineamentos de seu conceito, ainda que puramente
metalingüísticos, numa função de exegese restritivamente gramatical,
alheia a qualquer circunstância e valoração. Nesse sentido, entende-se a
pena como imposição de castigo, punição, aflição ou sofrimento, ou seja,
segundo dizer do sempre retratado Aurélio Buarque de Holanda Ferreira é
a “punição imposta pelo Estado ao delinqüente ou contraventor”.
Mister, entretanto, ressaltar que a sanção penal deve ser entendida
aqui lato sensu, tendo como espécies a prisão, multa, restritiva de direitos,
morte, tortura, dentre outras tantas que a história mostrou existirem.
Aos primórdios da humanidade não havia um direito exteriorizado
de forma escrita, haja vista a sociedade ser resumida a simples clãs ou
tribos, sendo proibidas todas e quaisquer intersecções entre estes, tendo-
se como a maior autoridade o patriarca. Este era o competente para delimi-
tar as normas que regeriam o seu clã onde, de uma maneira geral, eram
frutos de um direito sacro-consuetudinário. A visão dos fenômenos natu-

1
“É que as manifestações sobre as teorias da pena já pressupõem como imprescindí-
vel a existência mesma da sanção penal, excluindo do universo acadêmico as res-
postas teóricas negativas a respeito da real necessidade da sanção”. (CARVALHO,
Salo de (org.).Crítica à Execução Penal. RJ: Lumen Juris, 2002, p. 03)
384 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

rais era, outrora, incidente em uma realidade de ignorância causal dos


mesmos, considerando-os como retaliações sobrenaturais impostas aos
transgressores de uma vontade divina.2
Na busca de uma prevenção contra a ira dos Sobrenaturais, os po-
vos antigos estipulavam certas normas, denominadas de tabus, cujos con-
teúdos eram recheados de misticismos, e sua inobservância acarretava em
uma sanção, na qual se aplicavam mais comumente a pena de morte e o
banimento.3
Entretanto, antes mesmo de haverem existido entre nós os clãs e as
tribos, o que prevalecia, na individualidade das relações, era a denomina-
da vingança privada defensiva, a qual se fazia efetiva por meio autotutela,
ou seja, nesta, o ofendido detinha o direito de se vingar do ofensor, defen-
dendo-se, de próprio punho, contra a resistência daquele, face sua preten-
são.4 A dosimetria era subjetiva e a sua fundamentação fincava raízes na
retribuição “merecida” pelo transgressor, sendo pura e simplesmente uma
reação automática à injúria, pois àquele tempo, a punição era a ação refle-
xiva ao ferimento, onde o indivíduo tratado injustamente impõe, sobre o
ofensor, punições como em seu poder por seu próprio sentido de ferimento.

2
“Não podendo explicar os acontecimentos que fugiam ao cotidiano (chuva, raio,
trovão), os homens primitivos passaram a atribuí-los a seres sobrenaturais, que
premiavam ou castigavam a comunidade por seu comportamento. Esses seres, que
habitariam as florestas, ou se encontrariam nas pedras, rios ou animais, maléficos
ou propícios de acordo com as circunstâncias, eram os totens, e a violação a estes ou
a descumprimento das obrigações devidas a eles acarretavam graves castigos”.
(MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de Direito Penal. V.1. Atlas, 2001).
3
O homem primitivo, assinala Oswaldo Henrique Duek Marques “encontra-se muito
ligado à sua comunidade, pois fora dela sentia-se desprotegido dos perigos imagi-
nários. Essa ligação refletia-se na organização jurídica primitiva, baseada no cha-
mado vínculo de sangue, representado pela recíproca tutela daqueles que possuíam
uma descendência comum. Dele se originava a chamada vingança de sangue, defini-
da por Erich Fromm como ‘um dever sagrado que recai num membro de determina-
da família, de um clã ou de uma tribo, que tem de matar um membro de uma
unidade correspondente, se um de seus companheiros tiver sido morto’”. (MAR-
QUES, Oswaldo Henrique Duek. Fundamentos da pena. São Paulo : Juarez de Olivei-
ra, 2000. p. 2.)
4
Ferri, admitindo embora a vingança privada como forma primitiva da pena, propôs
que se ajuntasse ao vocábulo vingança, este outro: defensiva: “deve dizer-se vin-
gança defensiva e não, somente vingança (como fazem os criminalistas e os histori-
adores do direito), visto que na reação do ofendido contra o ofensor, além do
ressentimento de vingança pelo passado, há também a intenção, mais ou menos
consciente da defesa para o futuro, reduzindo o ofensor à impossibilidade de repe-
tir a agressão, matando-o ou dando-lhe a impressão de que tal repetição não lhe
convém” (FERRI, Princípios de direito criminal, p. 9)
CORPO DISCENTE • GRADUANDOS 385
Gleison Soares

A vigência da pena privada permaneceu em sua aplicabilidade


absoluta até o tempo da heterocomposição, e somente a partir desta é que
a pena viria adquirir a natureza pública que assume hoje, pois munidos
da necessidade de ver triunfar os interesses públicos sobre os particula-
res, os cidadãos, então, firmaram, o que Rousseau, no ano de 1757 denomi-
nou, em obra de mesmo nome, de Contrato Social.
Quando do período da Idade Média, surgiu, então, um movimento
que viria a mudar totalmente as estruturas do Direito Penal: o iluminismo,
trazendo consigo as bases ideológicas das sociedades contemporâneas:
liberdade, igualdade e fraternidade.
O iluminismo foi fruto direto da conexão havida no medievo entre
dois movimentos distintos, mas não opostos: o humanismo e o renascimento.
Ambos propagaram, conjuntamente, a retomada ao antropocentrismo da
antiguidade, pelo qual as ciências devem sempre ser direcionadas à figu-
ra do homem, ao passo que divulgavam a razão como única fonte gerado-
ra de conhecimento.
Pensadores penalistas começaram a se insurgir contra aquela or-
dem pré-estabelecida, dentre estes destacamos Beccaria, Benthan e Howard,
aos quais foram os persecutores mais influentes para uma sobreposição
da “autoridade da razão” em desfavor a “razão da autoridade” até então
existente.
Era, portanto, a ruptura esperada para com o privatismo da aplica-
ção da pena e a conseqüente repulsa às sanções com fito de tortura e
sofrimento do delinqüente, concomitante com o respeito à dignidade hu-
mana e proporcionalidade na aplicação das penas. Desse período se ex-
traiu o que hoje denominamos Direito Penal Humanista, baseado no prin-
cípio da legalidade e na diferenciação entre delito e pecado que
hodiernamente vivenciamos.

3. DOS FUNDAMENTOS JUSTIFICACIONISTAS DA PENA

3.1 CONSIDERAÇÕES GERAIS

Dizem-se justificações, as formas, científicas e filosóficas, de com-


provação de certa e determinada teoria com o fito de torná-la algo
inquestionável, encobrindo-lhe com o manto da razão e sobrepondo-a aos
questionamentos passados e presentes. É, portanto, uma cadeia de infor-
mações levada ao conhecimento de outrem, visando o seu convencimento.
386 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

Justificar a pena, por via de conseqüência, é utilizar-se de um discurso


metódico para legitimá-la dentro do sistema jurídico-penal existente.5
Ocorre, todavia, que, assim como já fora discorrido preliminarmen-
te, o Direito Penal, ao longo de toda história da humanidade, alterou,
incontáveis vezes, a forma de aplicação de sua sanção, fazendo com que o
discurso acerca do finalismo da imposição sancionatória modificasse-se
conjuntamente. Destas transmudações (do punir e da punição) sobrevie-
ram diversas teorias justificacionistas visando legitimar as ações estatais
no sentido de cumprir a sua volição, dentre as quais se destacam:
Retributiva, Preventiva Geral, Preventiva Especial e Substitucionista.

3.2 TEORIA ABSOLUTA DA PENA

A teoria absoluta da pena, hodiernamente mais denominada de


teoria retributiva, remete-nos a um direito pelo qual era, única e exclusiva-
mente, através da pena que se fazia a “verdadeira justiça”. Entende-se o
seu conceito através de sua própria denominação, pois, aqui, a finalidade
da sanção é retribuir o mal provocado pelo agente, com fundamentação
puramente ética. Entendiam Maggiore, Welzel, Kant e Hegel, dentre ou-
tros, que, em tendo, o autor do fato delituoso, a livre capacidade de decisão
e compreendendo o que a sociedade acha justo e injusto, deveria, portan-
to, caso negasse a legalidade estabelecida, responder pela atitude tomada.
A pena, sob este enfoque, fundamenta-se, sem mais delongas, na
simples quebra do equilíbrio legal existente, ou seja, somente em sua refe-
rência ao próprio delito. Dizia Kant que: “Se a sociedade civil resolver
autodissolver-se, com a concordância de todos os seus cidadãos, mesmo assim,
caso esta sociedade habitar uma ilha e resolver abandoná-la espalhando-se pelo
mundo, o último assassino condenado e preso teria que ser executado, antes do

5
Emprega-se o vocábulo ‘discurso’ no sentido atribuído por Chïm Perelman e Lucie
Olbrecht-Tyteca no livro Tratado de Argumentação. Explicitando ainda mais a
compreensão proposta, discurso aqui se refere às manifestações que legitimam a
ações repressivas do Estado contra o cidadão submetido. A partir de um local
simbólico, o Estado estabelece sua argumentação tendo por auditório universal (o
qual pretende convencer) o senso comum e auditório particular (o qual pretende
persuadir) a classe dominante. Evidente, portanto, que raramente as razões (ou
convicções) serão semelhantes às racionalizações (ou justificações) do discurso.
Desta forma, a melhor definição de ‘discurso de poder’ está relacionada com as
características típicas da propaganda: o discurso do poder na modernidade estaria
caracterizado como propaganda, pois não é porta-voz dos consensos, atuando no
convencimento e normalização até alcançar o custo de legitimação suficiente para
determinada ação política.
CORPO DISCENTE • GRADUANDOS 387
Gleison Soares

abandono final da ilha pelo último membro do povo. Isto deverá assim acontecer
para que cada um receba a punição equivalente aos seus atos e a dívida de sangue
não permaneça vinculada ao povo”.
A pena passa a ser, portanto, uma pura exigência de “justiça”, pois
como afirmara Hegel: “é a negação da negação do Direito”. A expiação do
delinqüente assume característica obrigatória, face à necessidade do
restabelecimento do equilíbrio legal, pois a sanção penal é a conseqüência
direta do crime e sua finalidade é devolver o mal provocado, sendo legiti-
mo a compensação de culpas.
Por via derradeira, a teoria retributiva da pena legitima, sem más-
caras e fantasias, o sentimento de vingança, que passa a ser protegido
pelo ordenamento jurídico, ainda que somente exercido pelo Estado.
Inexorável, entretanto, são as críticas veementemente realizadas por
Claux Roxin ao proceder as análises de tal teoria, entendendo como sen-
do-a concebível apenas por um ato de fé, posto que inadmissível é aceitar
que um mal (pena) possa, legalmente, compensar um outro mal (crime),
face aos direitos assegurados nas Constituições democráticas da
modernidade, que têm, em seus bojos, repúdio para com a vingança e o
princípio de Talião.6

3.3 TEORIAS RELATIVAS DA PENA

3.3.1 PREVENÇÃO GERAL

Na esteira da tentativa de romper-se com as idéias propagadas pe-


los defensores da Retribuição como forma justificadora e finalista da pena
surgiu-se, então, as denominadas Teorias Relativas da Pena, que posteri-
ormente foi subdividida em: a) de Prevenção Geral e b) de Prevenção Espe-
cial.

6
“A própria idéia de retribuição compensadora só pode ser plausível mediante um
ato de fé. Pois, considerando-o racionalmente, não se compreende como se pode
pagar um mal cometido, acrescentando-lhe um segundo mal: sofrer a pena. É claro
que tal procedimento corresponde ao arraigado impulso de vingança humana, do
qual surgiu historicamente a pena; mas considerar que a assunção da retribuição
pelo estado seja algo quantitativamente distinto da vingança, e que a retribuição
tome a seu cargo ‘a culpa de sangue do povo’, expie o delinqüente etc., tudo isto é
concebível apenas por um ato de fé, que, segundo a nossa Constituição, não pode
ser imposto a ninguém, e não é válido para uma fundamentação, vinculante para
todos, da pena estatal” (ROXIN, Claus. Problemas Fundamentais de direito penal.
Lisboa: Veja, 1986. p.19-20)
388 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

Pela primeira (Prevenção Geral), percebe-se a tomada, por parte do


Estado, do poder-dever de sancionar o delinqüente como forma de intimi-
dar a sociedade em geral, a não praticar, também, tais delitos, ou seja, a
pena imposta não mais tem caráter de retribuir o injusto, mas sim de de-
monstração à sociedade que quem cometer aquele tipo de infração será
punido, o que, por conseguinte, geraria uma idéia de diminuição da
criminalidade face ao medo da repreensão.
Temerosa deve ser, porém, a percepção idealística da prevenção
generalizadora, posto que, de acordo com suas bases, não se saberia ao
certo quais seriam as condutas em que o Estado teria a faculdade de inti-
midar. Ademais, inaceitável é deixar com que o Estado, atuando como um
verdadeiro “Leviatã”, determine, de per si, sem delineamento prévio, a
duração deste “tratamento terapêutico-social”, podendo, extrapolar as
fronteiras do admitido em um Estado de ordem jurídico-liberal.
O aceite à teoria da prevenção geral é, certamente, o estabelecimento
do Estado de Pânico, que vigerá enquanto perdurar o medo da punição.
Ademais, mister se faz indagar se é legítima a atribuição conferida por
esta teoria à conduta do ente estatal, que, envolta na missão de intimida-
ção da sociedade, castigue um indivíduo, desconsiderando-o quanto a
sua individualidade, mas sim em relação a outrem, ou seja, o castigo im-
posto se dará, não em representação ao próprio agente, mas sim como
tentativa de demonstração intimidatória do restante da sociedade.
Diante de tal constatação, inadmissível é, portanto, conceber a pena
como descrita pela teoria da prevenção geral, face a possibilidade real de
perda do caráter pessoal da pena e, por conseguinte, a geração de uma
falsa dosimetria da sanção e o estabelecimento do Estado de Pânico.

3.3.2 PREVENÇÃO ESPECIAL

A segunda espécie da Teoria Relativa da pena denomina-se: Teoria


da Prevenção Especial. Esta, embora a semelhança etiológica possa so-
bressaltar-se aos olhos, diferencia-se da prevenção geral quando do to-
cante ao sujeito principal do finalismo penal, pois, enquanto naquela (ge-
ral) há uma intimidação à sociedade como um todo, nesta (especial) a
atuação do medo recai sobre a figura do autor do delito.
A prevenção especial não busca uma intimidação social, nem tão
pouco a expiação do delinqüente, mas sim em manter o caráter individual
da pena sob a forma do temor imposto ao agente visando o não retorno
deste às atividades criminosas (ou criminalizadas).
CORPO DISCENTE • GRADUANDOS 389
Gleison Soares

Esta teoria, embora possa persistir na idéia falaciosa do temor


reverencial ao ente estatal, possui, entretanto, um caráter mais
humanista da pena, advindo, depois, o seu reconhecimento como sen-
do gênese do que hoje denominamos de Razoabilidade e Proporciona-
lidade na aplicação da sanção penal, ambos princípios modernos do
Direito Penal, haja vista tratar do utilitarismo da pena em sua forma
individualizadora.
De acordo com os ensinamentos de Von Listz, a teoria da preven-
ção especial está umbilicalmente ligada a três finalidades, quais sejam:
a) a preventivo-individual, resultante do medo imposto pelo Estado ao
condenado visando a não mais realizações de tais condutas ilícitas sob
pena de novamente ser punido da mesma forma ou mais gravosa; b) a
corretiva, exteriorizada pela ressocialização do delinqüente, sendo, em
última análise, o adequamento do mesmo para com os padrões sociais
existentes. Esta finalidade é uma conseqüência imediata da prevenção-
individual, pois somente quando a intimidação alcançar o efeito preten-
dido é que o indivíduo passará a agir conforme “os padrões”; c) o
asseguramento, que se baseia na manutenção do estado de paz por con-
seqüência da permanência subjetiva no delinqüente, quando
reincorporado à sociedade, do medo anteriormente imposto, sendo, por
derradeiro, a real segurança e certeza pelos demais cidadãos que aquele
não virá a reincidir, haja vista a repreensão contínua existente no subje-
tivo deste.
Contudo, convém destacar que tal teoria não poderia alçar grandes
vôos no Direito Penal moderno, pois reinantes seriam as incertezas gera-
das pela mesma, tal como a impossibilidade de punição nos crimes alta-
mente graves (homicídio qualificado, estupro, extorsão mediante seqües-
tro, genocídio, etc.) quando não existisse mais perigo algum na repetição
de tais condutas por parte de seus agentes (assassinos dos campos de
concentração II GGM) ficando, por fim, impunes. Nesta esteira, também
não se pode admitir que a socialização de determinadas pessoas sejam
realizadas de maneira coativa, imponderável, como uma imposição da
verdade absoluta de único dono.7

7
“Exprimindo numa só frase: a teoria da prevenção especial não é idônea para
fundamentar o Direito Penal, porque não pode delimitar os seus pressupostos e
conseqüências, porque não explica a punibilidade de crimes sem perigo de repetição
e porque a idéia de adaptação social coativa, mediante a pena, não se legitima por
si própria, necessitando de uma legitimação jurídica que se baseia noutro tipo de
considerações”. (ROXIN, Claus. Op. Cit., p.21)
390 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

3.4 TEORIA SUBSTITUCIONISTA DA PENA

Diante das inúmeras críticas realizadas por vários segmentos do


Direito Penal e Processual Penal, mais especificamente das correntes de
Direito Humanitário, que vêem no cárcere uma detestável solução para
manutenção do equilíbrio jurídico, o Mundo, então, passou a conhecer
das denominadas Penas Alternativas. Estas foram criadas, ao contrário
do que pensam alguns, não para retirar da existência as penas de segrega-
ção privativas de liberdade, mas sim com o intuito específico de substituí-
las paulatinamente, e por conseguinte, reduzir a dor sentida pelo conde-
nado.8
Por mais paradoxal que possa parecer, são as medidas
substitucionistas que vão relegitimar, em última razão, o sistema de segre-
gação precedente, posto que, com a troca da prisão pelas penas pecuniárias
e restritivas de direito, o Estado visa evitar, ou diminuir, os riscos de rein-
cidência. Ademais, como ocorre nos casos de Livramento Condicional e
Suspensão Condicional da pena, a intenção é reeducar o delinqüente sob
o enfoque psicológico para reduzir, ao máximo, a possibilidade de outros
crimes. É, por fim, o retorno inconsciente ao estado de pânico permanente
proclamado pelas teorias preventivas, como anteriormente expostas.
Mister se faz trazer, por conclusivo, o entendimento lapidado do
Inexorável criminologista Juarez Cirino dos Santos, quando afirma que:
“Os substitutos penais não enfraquecem a prisão, mas a revigoram; não diminuem
sua necessidade, mas a reforçam; não anulam sua legitimidade, mas a ratificam;
são instituições tentaculares cuja eficácia depende da existência revigorada da
prisão, o centro nevrálgico que estende o Poder de controle, com a possibilidade do
reencarceramento se a expectativa comportamental dos controlados não confirmar
o prognóstico dos controladores”. (Direito Penal: a Nova Parte Geral, p. 229).

4. DOUTRINA ABOLICIONISTA PENAL

4.1 INTRODUÇÃO

Da ineficácia das teorias justificacionistas da sanção penal na ex-


plicação do real motivo utilitarista da pena, adveio, como conseqüência, o

8
As penas alternativas advieram não para contestar a pena privativa de liberdade,
mas sim para substituí-la, como se meia-culpa estivesse assumindo, pois não
deslegitimava-a, nem tão pouco visava a sua abolição, porém assumia, simultanea-
mente, o perigo do cárcere e a necessidade de redução deste. Por isso há de denomi-
narem-se substitucionistas, e não abolicionistas.
CORPO DISCENTE • GRADUANDOS 391
Gleison Soares

surgimento de um movimento que posteriormente se tornaria o mais efeti-


vo emaranhado ideológico no enfrentamento direto à legitimação
sancionatória: o abolicionismo penal.
Preliminarmente, faz-se mister ressaltar que o abolicionismo penal
destaca-se das demais teorias e, simultaneamente, destas se distancia,
pois não se trata de uma escola, com delineamentos pré-determinados,
mas sim de um movimento, no sentido de traduzir inúmeras teorias, sem
organização didática conjunta, porém possuindo finalidades semelhan-
tes, onde ora, se pretende o fim do cárcere, tão somente, outrora se quer a
extinção do Direito Penal, ou ainda a substituição para uma justiça penal
administrativa.

4.2 CRÍTICA AO SISTEMA PENAL

Segundo José Antonio Pagnella Boschi: “a monopolizadora reação


punitiva contra um ou outro responsável por condutas conflituosas ou socialmen-
te negativas, a que se dá a qualificação legal de crime, gerando a satisfação e o
alívio experimentados com a punição e a conseqüente identificação do ‘inimigo’
do ‘mal’, do ‘perigoso’, não só desvia as atenções como afasta a busca de outras
soluções mais eficazes, dispensando as investigações das razões ensejadoras da-
quelas situações negativas, ao provocar a superficial sensação de que, com a puni-
ção, o problema já estará satisfatoriamente resolvido”.
Tomando por base as premissas supracitadas, o movimento
abolicionista, exteriorizado em sua essência por autores anarquistas, per-
cebeu, em uma nítida noção da realidade, o quão mal fazia-se ao legitimar
o Direito Penal, e por conseguinte, a pena privativa de liberdade. Conso-
ante as lições de Kropotkin9, Godwin, Nils Christie e Louk Hulsman dá-se
ensejo a uma série de questionamentos acerca da legitimidade do Direito
Penal, quais sejam: Quem é definido como desviante? Por que determina-
dos indivíduos são definidos como tais? Em que condições um indivíduo
pode se tornar objeto de uma definição? Que efeito decorre desta definição
sobre o indivíduo? Quem define quem? E, enfim, com base em que leis
sociais se distribui e concentra o Poder de definição?

9
“a prisão constitui um mal em si mesma, pois gera reincidência – a prisão não
impede que atos Anti-sociais se produzam; pelo contrário, aumenta seu número.
Não melhora os que vão parar nela... Não consegue o que se propõe. Mancha a
sociedade... É um resto de barbárie misturado com filantropismo jesuítico”
(Kropotkin, Peter. A Inutilidade das Leis, p. 104).
392 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

Abarcando-se pelo sentido empírico da ciência, como forma de


embasamento da falência do sistema repressor, 10 entende, a teoria
abolicionista, que a busca por soluções mais eficazes deve nortear toda e
qualquer doutrina penalista, posto que, se a pena não consegue se
autolegitimar, face a impossibilidade em assumir o caráter de retribuição
e de prevenção (geral e especial), como pode ser, esta, legalmente imposta?

5. CONCLUSÃO

Conclui-se, por derradeiro, na necessidade de se indagar: Se a pena


não justifica-se em si mesma e, por conseguinte, traduz-se mais em dor do
que soluções, então por que e para que punir? Responderia, então,
Alexandro Baratta, Luigi Ferrajoli e Eugenio Raúl Zaffaroni que a pena
não possui uma justificação jurídica, mas sim política, pois como bem
assevera Tobias Barreto: “Quem procura o fundamento jurídico da pena deve
também procurar, se é que já não encontrou, o fundamento jurídico da guerra”.
De logo, entendem os pensadores acima citados que a pena é um
fenômeno da política, e, assim como a guerra, não pode ser justificada
pelo direito. Ademais, em sendo o direito o limite da política, deve a pena
ser aplicada como parâmetro limitador daquela, ou seja, a sanção penal,
tem a função de atuar, não como repressão ou prevenção de um mal, mas
sim como limitação do poder punitivo do Estado, bem como da barbárie,
pois contém o jus puniendi e o desejo de vingança do ofendido e dos
demais membros da comunidade, sendo a única via de resistência do
agente contra a violência das penas arbitrárias e da autotutela.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal:


Introdução à Sociologia do Direito Penal. Rio de Janeiro: ICC / Revan,
1997.

BARRETO, Tobias. Fundamentos do Direito de Punir, RT nº 727.

10
Estudos feitos em 2005 pela Fundação Internacional Penal e Penitenciária (FIPP)
comprovam que o Brasil, ao chegar ao ano de 2010 terá uma população carcerária
de 1.000.000 (um milhão) de presos (mais de 0,5% de toda população do país).
Neste diapasão, Admite-se que querer combater a criminalidade com o Direto
Penal é querer eliminar a infecção com analgésico.
CORPO DISCENTE • GRADUANDOS 393
Gleison Soares

CARVALHO, Salo de. (org.).Crítica à Execução Penal. RJ – Rio de Janeiro:


Lumen Juris, 2002.

FERRAJOLI, Luigi. Diritto e Ragione: Teoria Del Garantismo Penale. 5ª


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ROXIN, Claus. Problemas Fundamentais de direito penal. Lisboa: Veja,


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ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em Busca das Penas Perdidas: A Perda de


Legitimidade do Sistema Penal. Rio de Janeiro: Renavan, 1991.
394 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

DA INCONSTITUCIONALIDADE DO REGIME
DISCIPLINAR DIFERENCIADO1

Igor Souza Marques


Bacharelando em Direito da Universidade
Católica do Salvador

RESUMO

Trata dos pontos de inconstitucionalidade da Lei 10.792/2003, que institui o


RDD (Regime Disciplinar Diferenciado). Investiga os pontos de
inconstitucionalidade sob uma ótica material e formal.Analisa as formas de
limitação das garantias constitucionais à luz do princípio da proporcionalidade
(ou razoabilidade).Afirma que o instituto é comprometido ideologicamente
como defensor dos interesses da classe dominante.

Palavras-chave: regime disciplinar diferenciado; RDD; sanção disciplinar; exe-


cução penal.

1. INTRODUÇÃO

O problema da violência decorrente do crime organizado vem as-


sustando a sociedade e incomodando as elites. O crescimento desse fenô-
meno tem gerado repercussões na sociedade brasileira, que se mobiliza e
clama por medidas como redução da maioridade penal, pena de morte,
entre outras. No ano de 2003, a morte de dois juízes de execução penal em
São Paulo e no Espírito Santo foi o estopim para que fosse votada a Lei
10.792 de 1º de dezembro de 2003, que altera a Lei 7.210 de 11 de junho de
1984 (Lei de Execução Penal) e o Código de Processo Penal, criando o
Regime Disciplinar Diferenciado (RDD). Essa medida, assim como seriam
a redução da maioridade penal e a pena de morte, é questionada por vári-
os juristas por ser uma medida emergencial e, por outro lado, defendida
por outros tantos. Ela visa principalmente evitar que os internos entrem
em contato com o exterior da casa de detenção com a finalidade de organi-
zar crimes (em particular no caso de organizações criminosas).

1
Artigo apresentado para publicação na Revista Jurídica dos Formandos em Direito
matutino da UCSal 2007.2.
CORPO DISCENTE • GRADUANDOS 395
Igor Souza Marques

O regime disciplinar diferenciado foi concebido para atender às


necessidades de maior segurança nos estabelecimentos penais. Promove
a “defesa da ordem pública” contra criminosos que são responsáveis por
constantes rebeliões e fugas. 2
O traficante Luiz Fernando da Costa, mais conhecido como
“Fernandinho Beira-mar”, líder de uma grande facção criminosa no Esta-
do do Rio de Janeiro, está cumprindo pena dentro deste regime. Justifica-
se, em seu caso, pelo comprovado envolvimento com organizações crimi-
nosas que consiste, como veremos neste trabalho, em uma das formas de
inclusão do preso no RDD. 3
O citado traficante, assim como vários outros líderes de grandes
facções criminosas que atuam nas grandes cidades brasileiras, continua-
va, mesmo depois de preso, com participação ativa na organização dos
feitos criminosos da quadrilha, através de uma simples ligação de um
aparelho celular, chefiando dessa forma a prática de crimes (muitas vezes
bárbaros).
A facilidade com que se adquire um telefone celular hodiernamente
torna quase impossível o controle de seu uso. Eles são práticos, baratos e
podem ser na modalidade “pré-pago”, o que dificulta ainda mais a fisca-
lização do seu uso. Essa modalidade vem sofrendo limitações quanto à
sua aquisição, inclusive exigindo-se a identificação (o que antes não acon-
tecia), mas, ainda assim, continua sendo enorme a facilidade com que
estes aparelhos são adquiridos.
Além disso, dada a grande difusão do serviço, praticamente não
existem mais localidades sem cobertura para telefones celulares e o Esta-
do brasileiro não tem (ou, pelo menos, afirma não ter) condições de inves-
tir em tecnologias bloqueadoras do uso desses aparelhos dentro dos esta-
belecimentos prisionais.
Nesse sentido, vale pensar sobre a colocação de CAPEZ4, quando
se pergunta: “O que é mais cruel ou degradante: restringir algumas rega-
lias dos prisioneiros, como banho de sol e visitas, ou deixar toda uma
população acuada, e que agentes penitenciários e policiais sejam brutal-
mente assassinados?”.

2
MIRABETE, Julio Fabbrini. Execução Penal: Comentários à Lei nº. 7.210, de 11-7-1984.
p. 149 – 152.
3
<http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernandinho_Beira-Mar>
4
Revista Consulex, A Intricada Questão Carcerária, ano X, nº. 230, agosto de 2006, p. 9
– 12.
396 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

Assim, faz-se mister ao pensador do direito processual penal tentar


trabalhar no sentido de cogitar possibilidades para tentar resolver este
grande problema, que afeta não só a classe média quando estes crimes vêm
a afetá-la, mas, principalmente, as comunidades mais carentes, que vivem
cotidianamente mergulhadas nesse mar de insegurança, onde a banalização
da violência e da barbárie já destroem a esperança de melhora.
Partindo-se do princípio da dúvida universal Cartesiana5, nosso
objetivo no presente trabalho é estudar, ainda que brevemente, as entra-
nhas dessa atitude legislativa e seus verdadeiros significados, duvidando
sempre da aparência e tentando buscar a sua essência. A respeito dessa
ação do legislativo, buscamos compreender suas implicações; sua prerro-
gativa legal e doutrinária e, principalmente, o seu verdadeiro objetivo,
tendo sempre ao horizonte uma visão constitucional, humanista e crítica.

2. O REGIME DISCIPLINAR DIFERENCIADO

O Regime Disciplinar Diferenciado (RDD) é uma modalidade de


sanção disciplinar. São sanções disciplinares aquelas medidas que ten-
dam a manter a ordem e a disciplina no âmbito penitenciário e também
assegurar a regular execução das penas não privativas de liberdade a fim
de que possa se desenvolver o processo destinado à reinserção ou adapta-
ção social do condenado. 6
O preso, provisório ou condenado, nacional ou estrangeiro, poderá
ser incluído no regime disciplinar diferenciado em três hipóteses: a pri-
meira é que este cometa, enquanto esteja cumprindo a sua pena, fato pre-
visto como crime doloso e que este crime ocasione “subversão da ordem
ou disciplina interna” (art. 52, caput da LEP). Pode ainda ser incluído no
RDD quando este apresente alto risco para a ordem e a segurança do
estabelecimento penal. Na última possibilidade, quando houver suspeitas
fundadas de “envolvimento ou participação, a qualquer título, em organi-
zações criminosas, quadrilha ou bando” 7 (art. 52, § 1º LEP).
Note-se que as duas últimas modalidades de inclusão do preso no
regime disciplinar diferenciado constituem claramente tentativas de con-
trole da criminalidade através de atitudes legislativas, quando o legisla-
dor usa expressões como “alto risco para a ordem e a segurança”.

5
DESCARTES, René. Meditações. São Paulo. Editora Nova Cultural. 1988, p. 20.
6
MIRABETE, Julio Fabbrini. Obra citada, p. 153.
7
Art. 52, caput, §§ 1º e 2º da Lei 7.210 de 11 de junho de 1984 (Lei de Execução
Penal)
CORPO DISCENTE • GRADUANDOS 397
Igor Souza Marques

Segundo a Lei, essa modalidade de sanção disciplinar deve ter du-


ração máxima de trezentos e sessenta dias; deve constituir no recolhimen-
to em cela individual; admite as visitas semanais de apenas duas pessoas,
com duração máxima 2 (duas) horas e o preso realizará saídas para ba-
nho de sol diariamente, mas por apenas 2 (duas) horas.
Além dessas restrições, o regime disciplinar diferenciado se distin-
gue das demais sanções também em relação à sua aplicação. Enquanto as
outras quatro modalidades serão aplicadas por ato motivado do diretor
do estabelecimento prisional, a inclusão no RDD se dará por prévio e
fundamentado despacho do juiz competente, sendo que esta autorização
dependerá do requerimento do diretor do estabelecimento prisional ou
outra autoridade administrativa. Além disso, a decisão que incluir o pre-
so no RDD será precedida de manifestação do Ministério Público e da
defesa, garantindo o contraditório e a ampla defesa.

3. DA (IN)CONSTITUCIONALIDADE DO REGIME DISCIPLINAR


DIFERENCIADO

Como podemos observar, o regime disciplinar diferenciado (RDD)


compreende uma modalidade de sanção disciplinar dentre as previstas
no art. 53 da Lei 7.210/84 (Lei de Execução Penal).
Tal instituto funda-se na idéia da supremacia estatal e legal em
franco detrimento do indivíduo e de seus direitos fundamentais. Trata-se,
portanto, de um Estado penal que abraça a ideologia do repressivismo sane-
ador. Essa ideologia tem raízes históricas bastante profundas, que não
cabe pormenorizar neste breve trabalho. Ela tem como mais recente exem-
plo o movimento da lei e ordem (law and order). Tal movimento seria uma
clara manifestação penal do modelo neoliberal (movimentos de extrema
direita) 8.
Todavia, esse modelo fracassa em sua tentativa de solucionar o
fenômeno da violência, fazendo com que pensadores levantem
questionamentos sobre os interesses difusos que camuflaram o verdadeiro
objetivo elitista do movimento law and order. Ademais, nas palavras de
LOPES Jr.9:

8
LOPES Jr., Aury. Introdução Crítica ao Processo Penal: fundamentos da instrumentalidade
constitucional, p. 12.
9
LOPES Jr., Aury. Obra citada, p. 16.
398 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

A idéia de que a repressão total vai sanar o problema é total-


mente ideológica e mistificadora. Sacrificam-se direitos fun-
damentais em nome da incompetência estatal em resolver os
problemas que realmente geram a violência.

Claro está que a Lei 7.210/84, antes de sua modificação em 2003,


continha em seu bojo um mínimo garantista quando previa como sanção
disciplinar mais grave o isolamento em cela própria (art. 53, IV da Lei
7.210/84). O prazo máximo de inclusão do preso nesse modelo de sanção
não poderia ultrapassar 30 dias (GOMES, 2005)10. Obviamente a Lei de
2003 agravou a situação dos presos que cometem faltas estando no estabe-
lecimento prisional alongando o período de cumprimento da sanção para
360 (trezentos e sessenta) dias.
Ao estudar o fenômeno da criminalidade, é preciso ter em mente
que este é extremamente complexo. A legislação e o sistema penal como
um todo desempenham papel bastante secundário, tendo como outros
fatores essenciais para o seu bom entendimento, a história, a economia, a
sociologia, a psicologia, etc. Pensamos como ZAFFARONI11, que diz:

Todo o discursus re está em crise. A pena de prisão não


ressocializa, não reeduca, não reinsere socialmente. Do dis-
curso “re” somente se efetivam a reincidência e a rejeição
social. É um discurso ao mesmo tempo real e falso. É falso o
conteúdo, mas o discurso é real, ele existe e produz efeitos
(legitimantes do poder de punir).

Consideremos ainda que, com as revoluções tecnológicas, as dis-


tâncias foram reduzidas, seja considerando a evolução nos meios de trans-
portes ou de comunicação. Esta mudança da sociedade fez com que sur-
gisse no espírito das pessoas um grande imediatismo, ou seja, a sensação
de não poder esperar (porque “tempo é dinheiro”!).
Desse imediatismo surge o Estado de Emergência – a urgência surge
como uma forma de correr atrás do tempo perdido (LOPES Jr., 2006) 12.
Esse imediatismo muitas vezes determina o trabalho de legislativo nessa
sociedade que vive em “estado de emergência”. A respeito dessa ‘urgên-
cia’ do legislador, dois aspectos destacam-se: 1º) ao correr atrás do tempo
(que não volta mais), atropela-se garantias individuais, sob a justificativa

10
<http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=9061>
11
ZAFFARONI, Eugenio Raul. Manual de Direito Penal Brasileiro. p. 67.
12
LOPES Jr., Aury. Obra citada, p. 32.
CORPO DISCENTE • GRADUANDOS 399
Igor Souza Marques

de que deseja garantir a ordem quebrada (que ordem?); 2º) essas medidas
emergências, que comovem o congresso fazendo com que os representan-
tes do povo apareçam em seus postos de trabalho para debater propostas
de leis são sempre voltadas para defender os interesses de uma classe – a
classe dominante.
Antes de tratar dos pontos de inconstitucionalidade do RDD espe-
cificamente, faz-se mister tratar das limitações dos princípios e garantias
constitucionais.
Celso Antônio Bandeira de Mello13 conceitua princípio como sendo
o mandamento nuclear de um sistema. Dele, consequentemente, emana todo o
ordenamento jurídico. Esse conceito afasta (ou faz com que o pensador
crítico do direito re-pense) o entendimento da Lei de Introdução ao Código
Civil (Decreto-Lei nº. 4.657, de 4 de setembro de 1942), que preconiza em
seu art. 4º que “quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo
com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito”. Em verda-
de, sendo mandamento nuclear, não há hierarquia entre a lei e o princípio,
sendo que a lei é que deverá se adequar ao princípio, e não vice-versa.
Com relação às liberdades ou garantias constitucionais, percebe-
mos que nenhuma das liberdades constitucionais é absoluta. As liberda-
des constitucionais são, por conseguinte, limitadas ou limitáveis. Essa
limitação observa um princípio bastante difundido nos ordenamentos ju-
rídicos dos Estados europeus, que foi desenvolvido pela doutrina alemã,
chamado princípio da proporcionalidade. Esse princípio se aproxima muito
de um princípio pensado pela doutrina norte-americana, chamado princí-
pio da razoabilidade, uma vez que ambos têm por escopo “oferecer critérios
à limitação da atuação do Poder Público, suporte jurídico à salvaguarda
dos direitos fundamentais dos cidadãos” 14 . O princípio da
proporcionalidade compreende três sub-princípios, quais sejam: adequa-
ção, necessidade e ponderação ou proporcionalidade stricto sensu. Pelo
sub-princípio da adequação entende-se que devem ser adotadas medidas
apropriadas ao alcance da finalidade prevista no mandamento que pre-
tende cumprir. O sub-princípio da necessidade exige que o Poder Judici-
ário apure se a medida ou a decisão tomada, dentre as aptas à consecução
do fim pretendido, é a que produz menor prejuízo aos cidadãos envolvi-
dos ou à coletividade. Por último, pelo sub-princípio da ponderação ou da
proporcionalidade em sentido estrito se pretende alcançar parâmetros para

13
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. p. 204.
14
<http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=3682>
400 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

a resolução dos conflitos entre princípios constitucionais, nos casos em


que o Poder Judiciário é chamado a decidir pela prevalência de um princí-
pio em detrimento de outro ou outros, reconhecidamente válidos pelo
ordenamento constitucional. Com essa lição sobre o sub-princípio da pon-
deração stricto sensu, podemos dizer que a colisão entre princípios consti-
tucionais não se resolve no campo da validade - como é o caso da lei - mas
no campo do valor. 15
A limitação desses princípios poderá ser: a) limitação positivada
ou b) limitação não-positivada. Por limitação positivada entende-se a li-
mitação que é prevista expressamente no texto constitucional ao passo
que a limitação não-positivada compreende aquela modalidade de limita-
ção que, embora não seja tratada de forma expressa no texto constitucio-
nal, entende-se pela sistemática do ordenamento jurídico. A limitação não-
positivada se dará por meio da ponderação, levando-se em consideração
os bens jurídicos tutelados, as circunstâncias, etc. Esse ensinamento con-
sagra que não há princípios absolutos em relação a outros princípios,
dependendo das circunstâncias a verificação de qual deles prevalecerá.
Vale frisar que a limitação de tais princípios segundo o critério da
limitação não-positivada somente se procederá com relação aos princípi-
os de hierarquia equivalente de tal sorte que jamais será limitada a norma
ou princípio constitucional quando em choque com norma ou princípio
infraconstitucional, pois a norma ou princípio constitucional é dotado de
superioridade hierárquica.
Dito isso, conclui-se, obviamente, que a Lei 7.210/1984, depois da
sua alteração pela Lei 10.792/2003 deverá se enquadrar à Constituição,
sendo esta a norma hipotética fundamental. Negamos aqui qualquer arbi-
trariedade defendida por alguns doutrinadores ao justificarem a
constitucionalidade da Lei 10.792/2003 por ser em defesa da sociedade e
por se tratar de um momento de emergência.

15
José Sérgio da Silva Cristóvam ensina que “Se uma determinada situação é proibida
por um princípio, mas permitida por outro, não há que se falar em nulidade de um
princípio pela limitação do outro. No caso concreto, em uma relação de “precedên-
cia condicionada”, determinado princípio terá maior relevância que o outro, pre-
ponderando-o. Não se pode aceitar que um princípio reconhecido pelo ordenamento
constitucional possa ser declarado inválido, porque não aplicável a uma situação
específica. Ele apenas recua frente ao maior peso, naquele caso, de outro princípio
também reconhecido pela Constituição. A solução do conflito entre regras, em sín-
tese, dá-se no plano da validade, enquanto a colisão dos princípios constitucionais
no âmbito do valor”.
CORPO DISCENTE • GRADUANDOS 401
Igor Souza Marques

A partir desse momento, tratamos dos diversos pontos de


inconstitucionalidade, trabalhando com os mesmos dividindo-os quanto
à sua natureza: num primeiro momento, tratamos das violações materiais
(quanto ao tempo exacerbado e quando à rigorosidade excessiva da san-
ção); em momento posterior, tratamos de garantias constitucionais for-
mais (art. 93, IX e art. 5º, LVII).
Acerca dos pontos de inconstitucionalidade material, considera-
mos como primeiro ponto o desacordo do RDD com o princípio constituci-
onal da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III da Constituição Federal).
Este se caracteriza por ser verdadeiro farol que guia a Carta Magna na sua
trajetória. Nas palavras de LACAMBRA (1952), “não há no mundo valor
que supere ao da pessoa humana”; a primazia pelo valor coletivo não
pode, nunca, ferir o valor da pessoa. A pessoa é, assim, um minimun, ao
qual o Estado ou qualquer outra instituição não pode ultrapassar. Segun-
do essa concepção, José Sérgio da Silva Cristóvam diz que o princípio da
dignidade da pessoa humana seria um princípio maior, que foge ao pano-
rama tratado neste trabalho quando dizíamos que nenhum princípio é
absoluto 16.
Nas palavras do consagrado constitucionalista Alexandre de
Moraes, o princípio da dignidade da pessoa humana:

Concede unidade aos direitos e garantias fundamentais, sen-


do inerente às personalidades humanas. Esse fundamento
afasta a idéia de predomínio das concepções transpessoalistas
de Estado e Nação, em detrimento da liberdade individual.

Assim, nem o tempo de duração, nem as condições de execução


podem violar a dignidade humana. Observamos que o prazo máximo de
360 (trezentos e sessenta) dias de duração é demasiado, caracterizando
pena desumana, tendo em vista a excessiva rigorosidade da sanção.
Ademais, fere o preceito do art. 5º, III, que diz que “ninguém será
submetido à tortura nem a tratamento desumano ou degradante”. Esse
dispositivo, sendo o mais próximo ao princípio fonte (dignidade da pes-

16
Diz José Sérgio da Silva Crittóvam que “A existência de princípios absolutos,
capazes de preceder sobre os demais em quaisquer condições de colisão, não se
mostra consoante com o próprio preceito de princípios jurídicos. Não se pode negar,
por outro lado, a existência de mandamentos de otimização relativamente fortes,
capazes de preceder aos outros em praticamente todas as situações de colisão.
Pode-se citar v.g. os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da
cidadania, da proteção da ordem democrática, etc”.
402 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

soa humana) dentre os preceitos encontrados no glorioso art. 5º, não care-
ce de delongas acerca de sua fundamentação, sendo a mesma da usada a
respeito do princípio maior.
A Lei Maior continua, no mais belo entre os seus dispositivos, ve-
dando as penas cruéis (art. 5º, XLVII) e assegurando aos presos o respeito
à integridade física e moral (art. 5º, XLIX).
Como dissemos acima, tanto o tempo determinado para cumpri-
mento da sanção quanto à rigorosidade podem caracterizar uma pena
cruel. Além disso, esses fatores também ocasionam lesão à integridade
moral do preso.
Em trabalho que trata do direito da personalidade das pessoas,
GOMES (2005) diz que este é absoluto, extra-patrimonial, intransmissível,
imprescritível, indisponível, vitalício e necessário, e que pode ser dividido
em: direitos à integridade física e direitos à integridade moral. Ao porme-
norizar os “direitos à integridade moral”, o autor diz que:

Quanto aos relativos à integridade moral, destacam-se o di-


reito à honra, liberdade, privacidade e numa esfera mais es-
treita à intimidade, imagem, ao nome, e direitos morais so-
bre as criações pela inteligência. (Grifos nossos)

Notamos que a integridade moral envolve, entre outros direitos, o


direito à liberdade. Vejamos: as penas no ordenamento jurídico podem ser
privativas de liberdade, restritivas de direitos ou pecuniárias. A pena pri-
vativa de liberdade é aquela que restringe, com maior ou menor intensida-
de, a liberdade do condenado; consistente em permanecer em algum esta-
belecimento prisional, por um determinado tempo17. Entretanto, embora
esteja cumprindo a pena privativa de liberdade, essa privação não pode
ser absoluta. A privação desse bem jurídico pode ser mais intensa ou
menos intensa, não podendo ser absoluta sob pena de caracterizar viola-
ção à integridade moral do preso, visto que, conforme o exposto, o direito
à liberdade está compreendido na noção de integridade moral. Observe-se
que está na Carta Magna, no seu art. 5º, XLIX, garantido o respeito à inte-
gridade física e moral do preso, caracterizando a inconstitucionalidade
da sanção.
A respeito dos pontos de inconstitucionalidade formais, cabe-nos
apontar dois posicionamentos distintos. De acordo com o art. 54 da Lei de
Execução Penal, todas as sanções serão aplicadas por ato motivado do

17
<http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=2069>
CORPO DISCENTE • GRADUANDOS 403
Igor Souza Marques

diretor do estabelecimento prisional, enquanto a inclusão no regime disci-


plinar diferenciado será por prévio e fundamentado despacho do juiz
competente. Essa possibilidade de aplicação por despacho do juiz teve
início no ano de 2003, uma vez que, antes da alteração da LEP que se deu
nesse ano, não havia essa modalidade de sanção disciplinar. Assim, faz-
se mister conhecer a natureza do ato do magistrado.
O entendimento sobre a natureza deste ato ainda não é consensual.
Considerando-se que, antes da alteração da lei em 2003, a aplicação se
dava pelo diretor do estabelecimento prisional e o juiz assume uma fun-
ção que seria deste, aparentemente tratar-se-ia de um ato administrativo.
Entretanto parece-nos trata-se de decisão judicial. O juiz estaria
usando da jurisdição que lhe é conferida e não das suas atribuições admi-
nistrativas. Se fosse o desejo do legislador que a natureza do ato fosse
administrativa, não teria porque restringir a regra geral, que é da aplica-
ção da sanção pelo diretor do estabelecimento prisional.
Dito isso, vale observar-se que no § 2º do art. 52 da LEP, uma das
modalidades de inclusão no RDD, o legislador diz: “estará igualmente su-
jeito ao regime disciplinar diferenciado o preso provisório ou condenado sob o
qual recaiam fundadas suspeitas de envolvimento ou participação, a qualquer
título, em organizações criminosas, quadrilha ou bando” (Grifos nossos).
Ora, se o ato que inclui o preso no regime disciplinar diferenciado é
ato judicial, há clara violação ao princípio do estado ou situação jurídica
de inocência. Além disso, arrepia a Carta Política no seu art. 93, IX, pois a
decisão do magistrado careceria de fundamentação.
A esse respeito, diz GOMES (2005)18 em trabalho sobre o Regime
Disciplinar Diferenciado:

Diferentes são as situações contempladas nos §§ 1º e 2º do art.


52, que se fundam em suposições ou suspeitas (ainda que
fundadas), de que se trata de agente perigoso ou de que o
agente participe de organização criminosa. Nenhum ser hu-
mano pode sofrer tanta aflição por suspeitas. Viola o princí-
pio da presunção de inocência agravar as condições de cum-
primento de uma pena em razão de suposições ou suspeitas.
E se o agente efetivamente integra alguma organização cri-
minosa, por isso irá responder em processo próprio. Aplicar-
lhe mais uma sanção pelo mesmo fato significa bis in idem
(dupla sanção ao mesmo fato).

18
<http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=9061>
404 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

O constitucionalista Alexandre de Moraes (2001)19, em suas lições


sobre princípios constitucionais, ensina:

A Constituição Federal estabelece que ninguém será considera-


do culpado até o transito em julgado de sentença penal condenatória,
consagrando a presunção de inocência, um dos princípios
basilares do Estado Democrático de Direito como garantia
processual penal, visando à tutela da liberdade pessoal. Des-
sa forma, há a necessidade de o Estado comprovar a culpabi-
lidade do indivíduo, que é constitucionalmente presumido
inocente, sob pena de voltarmos ao total arbítrio estatal.

O professor Eugênio Pacelli de Oliveira (2007)20, por sua vez, nos


brinda com seus ensinamentos sobre o princípio do estado de inocência,
quando diz que “O estado de inocência (e não a presunção) proíbe a anteci-
pação dos resultados finais do processo.
Dessa forma, o RDD viola não só o princípio do estado de inocência
como também o princípio do livre convencimento fundamentado (art. 5º,
LVII e art. 93, IX da Constituição Federal).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O Estado fracassou na sua sugestão de controlar a violência por


meio da prisão privativa de liberdade. Essa modalidade penal encontra-
se em profunda crise (para alguns autores, insanável), por não preparar o
indivíduo para o convívio social.
A pena privativa de liberdade, além de não cumprir com a sua
função primordial, não vem cumprindo se quer com a função que lhe foi
posta pela “nova ordem penal” (de cunho fascista e violadora de garanti-
as constitucionalmente tuteladas), a qual objetiva excluir o sujeito do con-
vívio social ao invés de preparar a sua reinserção. Isso porque, com a
mudança da tecnologia nos meios de comunicação, o sujeito não vem
sendo isolado, uma vez que pode comandar crimes estando dentro do
estabelecimento prisional.
No sentido de coibir a pratica de tais crimes, o RDD é, na verdade,
uma “solução” imediata, criada para dar satisfação à opinião pública e
uma resposta à violência urbana, sendo, em suma, uma medida que visa

19
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. p. 126.
20
OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal. p. 32.
CORPO DISCENTE • GRADUANDOS 405
Igor Souza Marques

esconder a deficiência da administração pública em gerir os estabeleci-


mentos prisionais e a combater o problema do crime organizado. Mas tal
regime ofende alguns princípios basilares da atual Constituição Federal,
ou seja, é uma “solução” inconstitucional, pouco preocupada com a pre-
servação dos direitos e garantias fundamentais do homem.
Como conseqüência dessa deficiência, vários crimes bárbaros têm
sido praticados resultado do planejamento de organizações criminosas
cujos líderes estão presos, chocando a sociedade e dando altos pontos de
IBOPE para os veículos de comunicação, particularmente quando os cri-
mes cometidos são contra o mundo burguês.
O regime disciplinar diferenciado está afirmando o tratamento de-
sumano que os presos recebem dentro dos presídios e a relação da admi-
nistração penitenciária com o preso de sujeição e poder. Na verdade, cria-
se uma medida de caráter urgente a fim de contornar exclusivamente aquele
determinado momento e acalmar a imprensa e que será legitimadora das
práticas abusivas da administração. Em contrapartida, são esquecidos,
ou melhor, aniquilados os direitos e liberdades fundamentais protegidos
pela Constituição. O RDD visa reprimir com medidas extremas e como
conseqüência irá favorecer para a dessocialização do preso, aumentando
o risco de violência e a desordem, como uma forma de represália a este
regime.
De acordo com Paulo César Busato, que traz uma análise sobre a lei
10.792/03, “é necessário centrar a atenção no fato de que legislações de matizes
como os da Lei 10.792/03 correspondem por um lado a uma Política Criminal
expansionista, simbólica e equivocada e, por outro, a um esquema dogmático
pouco preocupado com a preservação dos direitos e garantias fundamentais do
homem. Por isso, há a necessidade de cuidar-se com relação aos perigos que vêm
tanto de um quanto de outro”21.
Percebemos que, por trás desta alteração legislativa, está patente
este estado de emergência, pois se tenta resolver o problema que tem como
origem contradições muito mais profundas com excessos e atropelando as
garantias, não podendo ser resolvidas com um mero diploma legal. Não é
arrepiando as garantias mínimas que o nosso Estado poderá resolver o
problema. Essa seria a postura de um Estado autoritário, e não de um
Estado democrático de Direito.

21
“Regime Disciplinar Diferenciado como Produto de um Direito Penal de Inimigo”,
in Revista de Estudos Criminais nº. 14, Porto Alegre: NOTADEZ/PUC/!TEC, agos-
to/2004, p. 145.
406 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

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408 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

A SÚMULA VINCULANTE CONFORME


ESTABELECIDA NA EMENDA CONSTITUCIONAL
N°45 E SUAS CONSEQUÊNCIAS JURÍDICAS

Érica Rios de Carvalho


Bacharelanda em Direito da Universidade
Católica do Salvador

1. INTRODUÇÃO

Antes de mais nada, faz-se mister conceituarmos a súmula, a súmula


vinculante e esclarecermos sob que contexto são aplicadas. Elas advêm da
jurisprudência (costume do tribunal, suas decisões reiteradas acerca de
determinada matéria), influenciando a mente do julgador, uniformizando
os julgamentos, atualizando a interpretação jurídica e atuando como fon-
te informativa do modo de pensar dos tribunais. Nesse diapasão, conceitua
Luís Flavio Gomes que “Súmula é a síntese de um entendimento jurisprudencial
extraída de reiteradas decisões no mesmo sentido. Normalmente são numeradas.
Desde a EC 45/2004 (Reforma do Judiciário) as súmulas podem ser classificadas
em (a) vinculantes e (b) não vinculantes. Em regra (aliás, todas as vigentes até
hoje) não são vinculantes. Para serem vinculantes devem seguir rigorosamente o
procedimento descrito no art. 103-A da CF (inserido na Magna Carta pela EC 45/
2004).”
A súmula é um enunciado, é a formalização da jurisprudência,
vetor que indica um caminho (não o único, porém) a ser seguido. Não tem
eficácia obrigatória, mas geralmente é seguida pelos tribunais e juizes.
Poderíamos dizer que a súmula é menos do que uma ordem e mais do que
um conselho, para esclarecer melhor. Conforme o nome já diz, a súmula
vinculante vincula, ou seja, torna obrigatória a sua adoção para todos os
julgamentos de casos similares. Representa a transformação da jurispru-
dência em lei, sendo portanto fonte auxiliar (formal) do Direito.
Embora já inserida no ordenamento jurídico pátrio, a súmula
vinculante continua sendo alvo de controvérsias e discussões acirradas
entre os doutrinadores. Se por um lado alega-se vantagens, por outro ale-
ga-se desvantagens. A disparidade de opiniões mesmo entre os mais
renomados constitucionalistas e juristas em geral parece não ter fim, mas
trataremos aqui das principais questões pertinentes à divergência.
CORPO DISCENTE • GRADUANDOS 409
Érica Rios de Carvalho

2. DESENVOLVIMENTO

2.1. ARGUMENTOS CONTRA A SÚMULA VINCULANTE

A súmula vinculante foi introduzida no nosso ordenamento jurídi-


co pela Emenda Constitucional de número 45, emenda esta que trata da
reforma do poder judiciário. No entanto, já era assunto recorrente em to-
das as propostas de emendas constitucionais. É um resquício do
Positivismo (decisório/decisionário), uma tentativa de aprisionar os fe-
nômenos sociais em normas e leis, porém agora as regras estão dependen-
tes dos princípios. E as súmulas vinculantes, enquanto regras, pretendem
trazer juízos acertários, ou seja, sem princípios por trás. No entanto, elas
têm barreiras. Não têm substância para serem debatidas, recorridas, não
podem ser aplicadas sempre. E de acordo com o Art. 5º, II da Constituição
Federal, ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa
senão em virtude de lei.
As súmulas vinculantes vêm do Judicial Review americano, que
tem precedentes. Só que os precedentes americanos servem para resolver
questões futuras. As súmulas aqui são um problema hermenêutico, por-
que tendemos a condensar dentro delas a essência das coisas (metafísica
clássica). As súmulas são cronofóbicas, “seqüestram o tempo”, porque se
mantêm inalteradas através dos tempos. Daí surgir o argumento contrário
a tal fenômeno, que alega que a súmula vinculante traga o engessamento
do Direito.
As súmulas devem ser analisadas dentro de um contexto texto-
norma, de hermenêutica jurídica. Existem duas divisões entre as súmulas;
as vinculantes, que tratam de matéria constitucional e só podem ser insti-
tuídas pelo Supremo Tribunal Federal (doravante chamado STF), e as não-
vinculantes, que são as decisões reiteradas de casos semelhantes (despre-
zadas as singularidades dos casos) pelos tribunais. As últimas servem
apenas como referência.
O instituto da súmula vinculante pertence à velha (e ultrapassada)
metodologia do Direito, que era visto como um sistema jurídico coeso,
compacto e seguro. Esse modelo de Direito (e de metodologia), típico de
Estados autoritários, não levava em conta duas coisas: (a) a pluralidade
de pensamento dentro do Estado de Direito; (b) a justiça do caso concreto.
Preocupava mais a beleza do palácio do Direito (sua lógica interna), que a
justiça do caso concreto.
A nova metodologia do Direito está voltada para o caso concreto.
Estão perdendo valor as generalizações, o silogismo, os juízos dedutivos
410 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

etc. O Direito neste princípio de milênio já não tem preocupação com a


padronização (burocrática) da programação jurídica ou da sua aplicação,
senão a justiça de cada caso. Importa mais não a programação da norma,
senão o âmbito de incidência concreta dela.
Assim sendo, a discussão da súmula vinculante é uma questão
paradigmática. Foi instalada no ordenamento para teoricamente resolver
um problema de efetividade quantitativa (como por exemplo no caso do
Tribunal de São Paulo, onde a falta de pessoal torna morosa a justiça) e
qualitativa (acerca da qual discorre a Emenda Constitucional nº 45, ten-
tando senão resolver, melhorar a situação). Porém o Direito não é simples-
mente aquilo que o tribunal diz que ele é, portanto não podemos reduzir o
problema da morosidade da justiça apenas a tais fatores. A morosidade é
um reflexo do sistema jurídico brasileiro, que infelizmente tem problemas
estruturais históricos como o nepotismo, o corporativismo, a irregularida-
de em concursos públicos, etc. Calcula-se que a produtividade dos tribu-
nais brasileiros sejam de aproximadamente 40%, uma das piores do mun-
do, embora haja cerca de 14.500 juízes no país, o que dá uma média ligei-
ramente superior à mundial. Essas estatísticas, trazidas da palestra de
Paulo Luiz Netto Lobo no IV Congresso Brasileiro de Direito Constitucio-
nal Aplicado, revelam claramente que o problema da morosidade jurídica
não poderá ser resolvido simplesmente pela instituição das súmulas
vinculantes.
De acordo com o artigo 103-A da Constituição, alterado pela Emen-
da Constitucional nº 45, a súmula terá por objetivo a validade, a interpre-
tação e a eficácia de normas determinadas, acerca das quais haja contro-
vérsia atual entre órgãos judiciários ou entre esses e a administração pú-
blica que acarrete grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de
processos sobre questão idêntica. (A controvérsia deve ser atual, mas as
súmulas nem sempre o são). Nesse sentido, nem todas as súmulas são um
mal em si. Algumas colocam um selo jurídico em importantes conquistas
sociais. Mesmo assim, deve-se ter cuidado, pois a súmula pode ser cami-
nho e/ou obstáculo. Concordando com o professor Lênio Streck,
posicionamo-nos contra o Decisionismo e o Positivismo na hermenêutica
jurídica.
Alega-se, em favor da súmula, que ela diminuiria a dificuldade do
acesso à justiça, mas não podemos confundir o acesso à justiça com o
acesso ao STF. Em média, uma ação demora 9 anos para alcançar o STF,
indo de recurso em recurso. Porém a maior parte das ações propostas não
vai a recurso, é transitada em julgada na primeira instância mesmo. Tanto
é que o STF pode recusar em plenário (com 2/3 do quorum) um recurso
CORPO DISCENTE • GRADUANDOS 411
Érica Rios de Carvalho

extraordinário que não seja relevante, que não tenha repercussão geral.
Conforme já foi dito, a súmula vinculante foi inserida no nosso
ordenamento baseando-se no sistema jurídico americano; o que não faz o
menor sentido, uma vez que aqui adotamos o Civil Law e lá é adotado o
Common Law System. Sendo os dois sistemas totalmente diferentes, não
poderíamos jamais nos fiar no americano para criar novos institutos jurí-
dicos próprios.
Há uma crise atual entre a decisão judicial justa e a rápida. As duas
deveriam, idealmente, coexistirem, mas para o sistema brasileiro parecem
ser lados opostos de uma mesma moeda. Cabe citar aqui Frankfurt, que
dizia que o julgamento sábio tem seu próprio momento para acontecer. Por isso
o tribunal pode se recusar a julgar um recurso naquele momento.
A súmula vinculante provoca o já citado engessamento jurídico,
pois tolhe a apreciação valorativa livre do magistrado, garantida em Cons-
tituição Federal. Ao castrar os juízes, tendendo a abolir essa garantia indi-
vidual dos magistrados, a súmula vinculante trazida pela emenda consti-
tucional nº 45 ofende diretamente os artigos 60, §4º da constituição e 5º,
XXXVII. Ofende também as cláusulas pétreas ao atribuir função legislativa
ao poder judiciário, já que a súmula vinculante é, conceitualmente, a trans-
formação da jurisprudência em lei.

2.2. ARGUMENTOS A FAVOR DA SÚMULA VINCULANTE

Por outro lado, alegam os favoráveis à súmula vinculante que mes-


mo sem ela já há uma robotização dos juízes e julgamentos e o cidadão
comum enfrenta dificuldades para alcançar a defensoria pública e a justi-
ça em geral. Esse argumento contrapõe-se ao que afirma que a súmula
engessaria o Direito e que o acesso à justiça não deve ser confundido com
o acesso ao STF.
Segundo a Fundação Getúlio Vargas, 45 temas jurídicos são res-
ponsáveis por 58% das ações propostas. Assim, se fossem sumulados
alguns desses temas aplicados a casos concretos, inevitavelmente haveria
uma maior celeridade processual. O princípio da celeridade processual está
expresso desde a reforma judicial no artigo 5º da constituição. Com a
súmula vinculante (que vincula não só o Judiciário, mas também a sua
administração) ações mais simples e similares entre si sequer precisariam
ser ajuizadas, sendo resolvidas mais rápido. Por que então não racionali-
zar a máquina judicial? Se a súmula vinculante só deve tratar de matéria
constitucional, então o assunto chegaria inevitavelmente ao STF, cuja de-
cisão de qualquer forma se tornaria espécie de precedente. A súmula
412 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

vinculante torna todo esse processo exaustivo desnecessário,


automatizando-o.
De acordo com o princípio da igualdade, pessoas na mesma situação
deveriam receber tratamentos iguais. Porém na prática casos iguais são
resolvidos diferentemente. A loteria jurídica não é justa.
Isso sem citar o princípio da segurança jurídica, pois no momento em
que o STF toma uma decisão, automaticamente é gerada uma expectativa
legítima que essa decisão seja reiterada, seguida como guia pelos demais
tribunais.
Um dos argumentos contra a súmula vinculante é o que alega que
ela ofende as cláusulas pétreas. Elas protegem o povo das suas próprias
fraquezas. Sem limites, a democracia pode se tornar um processo auto-
destrutivo (v. exemplo da Alemanha – Hitler). Essas cláusulas são impor-
tantes, é evidente, mas não podem ser interpretadas de forma
maximizadora. A súmula vinculante não vai contra a separação dos po-
deres (expressa e protegida pelas cláusulas pétreas). Afinal, por que o
poder legislativo hodierno pode menos do que o que criou a constituição
em 1988? Por que o Congresso Nacional, igualmente representante do
povo brasileiro, tem menos poder do que a Assembléia Constituinte origi-
nária? A súmula vinculante é positiva se aplicada com moderação, sob
vigilância e controle atentos da sociedade civil.
Ainda assim, é preciso ter cuidado com que matéria é sumulável.
Deve-se seguir os limites estabelecidos pela constituição federal a fim de
evitar o engessamento da jurisprudência.
Parece-nos razoável a instituição da súmula vinculante com as se-
guintes condições:
• Introduzida por ofício do STF ou 2/3 dos seus membros (quorum
alto);
• Tratando de matéria constitucional;
• Permitida a sua revisão;
• Existência de objetivo comprovado;
• Propondo resolver grave controvérsia atual;
• Relevante à multiplicação de decisões reiteradas sobre mesma
matéria e
• Atentando-se para que matéria é sumulável (por exemplo, pode-
ríamos citar como razoavelmente sumuláveis alguns temas de
Direito Previdenciário, do Trabalho e Tributário).
As principais questões que envolvem as súmulas vinculantes são
as seguintes, de acordo com Luis Flávio Gomes:
CORPO DISCENTE • GRADUANDOS 413
Érica Rios de Carvalho

(a) somente o STF pode aprová-las; nenhum outro tribunal


do país pode fazer isso. Se o STF quiser transformar algu-
ma súmula já editada (não vinculante) em vinculante,
terá que seguir o novo procedimento constitucional.
Súmula vinculante e súmula impeditiva de recurso: a
vinculante só pode ser emitida pelo STF; a impeditiva de
recurso poderá ser criada pelo STJ ou TST (já houve apro-
vação dessa matéria na Câmara dos Deputados; resta pas-
sar pelo crivo do Senado); a súmula vinculante vincula
inclusive o juiz (que é obrigado a respeitá-la); a
impeditiva não limita (não engessa) a atividade
jurisdicional, podendo o juiz decidir contra a súmula;
caso, entretanto, decida de acordo com seu sentido, não
caberá recurso especial (nem para o STJ nem para o TST).
Interposto o REsp o STJ ou TST vai examinar o seu mérito
e só pode decidir contra a sua súmula (acompanhando a
decisão do juiz) se porventura cancelá-la;
(b) o STF pode agir de ofício ou por provocação: a aprova-
ção, revisão ou cancelamento de súmula poderá ser fruto
de atividade espontânea do próprio STF ou provocada
por aqueles que podem propor a ação direta de
constitucionalidade - CF, art. 103; lei futura, que cuidará
da matéria, pode ampliar esse rol de legitimados a pro-
por a aprovação, revisão ou cancelamento de súmulas
vinculantes;
(c) aprovação por 2/3 dos membros do STF: para aprovação
ou revisão ou cancelamento de uma súmula vinculante
exige-se quorum qualificado (dois terços: leia-se: oito
Ministros do STF);
(d) depois de reiteradas decisões no mesmo sentido: caberá
à lei futura dizer quantas decisões são necessárias para se
concluir que houve reiteração; a partir daí pode-se editar
uma súmula vinculante;
(e) sobre matéria constitucional (isto é, sobre norma consti-
tucional): mas cada norma constitucional afeta uma área
do conhecimento jurídico. Logo, teremos súmulas
vinculantes constitucionais penais, processuais, trabalhis-
tas, tributárias, comerciais etc.;
(f) acerca da qual haja controvérsia atual: a controvérsia ge-
rada pela norma constitucional tem que ter atualidade,
tem que ser relevante no momento em que se decide pela
criação da súmula;
(g) entre órgãos judiciários ou entre esses e a administração
pública: a controvérsia tem que envolver órgãos judiciá-
rios diversos (dois tribunais, por exemplo) ou um órgão
414 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

judiciário e a administração pública. Divergência só en-


tre órgãos da administração pública não permitirá a apro-
vação de súmula vinculante;
(h) e que acarrete insegurança jurídica: a controvérsia insta-
lada em torno da interpretação de uma norma está ge-
rando insegurança jurídica (e, com isso, certamente, cau-
sando prejuízos diversos);
(i) bem como multiplicação de processos sobre questão idên-
tica: na verdade, a multiplicação de processos deve girar
em torno da mesma norma constitucional controvertida;
(j) súmula com efeito vinculante: isso significa que
vinculante é não somente o sentido da súmula (o seu teor
interpretativo-descritivo e imperativo), senão também
os fundamentos invocados para a sua aprovação. Os fun-
damentos lançados nas várias decisões que autorizaram
a criação da súmula também são vinculantes. Não se pode
confundir eficácia erga omnes com efeito vinculante: efi-
cácia erga omnes é a eficácia da decisão em relação a
todos (não se refere aos fundamentos da decisão); efeito
vinculante: é a eficácia de decisão assim como dos funda-
mentos da decisão (ou, no caso das súmulas: é a eficácia
do sentido interpretativo e imperativo da súmula, mais a
vinculação dos fundamentos que levaram a essa súmula).
Ninguém pode questionar (em casos concretos) nem o
sentido interpretativo e imperativo da súmula nem os
fundamentos invocados para se chegar a ela;
(l) eficácia da súmula depois da sua publicação na imprensa
oficial: a vigência da súmula é imediata, isto é, ocorre
logo após a sua publicação na imprensa oficial;
(m) a súmula vincula os demais órgãos do Poder Judiciário
(vincula todos os juízes, os tribunais e até mesmo as Tur-
mas do próprio STF) assim como a administração públi-
ca, direta ou indireta, nas esferas federal, estadual e mu-
nicipal. Como se nota, todos os órgãos do Executivo tam-
bém estão vinculados. Mas ela não vincula, entretanto, o
Poder Legislativo em suas funções típicas, isto é, ele pode,
por emenda constitucional, aprovar novo texto contra o
sentido da súmula. E se a emenda constitucional for
inconstitucional? Cabe ADIn contra ela e, nesse caso, é o
STF que vai julgar a emenda inconstitucional; com isso a
súmula continua tendo eficácia, normalmente; o Poder
Legislativo como administração (em sua vida burocráti-
ca, orçamentária etc.) também fica vinculado à súmula
vinculante;
CORPO DISCENTE • GRADUANDOS 415
Érica Rios de Carvalho

(n) as súmulas podem ser revisadas ou canceladas na forma


estabelecida em lei. A lei dirá (ainda não existe essa lei)
como será feita a revisão e o cancelamento de uma súmula.
A norma que cuida da súmula vinculante (CF, art. 103-A)
seria hoje auto-aplicável? Há controvérsia. O regimento
interno do STF cuida da aprovação de súmulas, mas ficou
defasado depois da EC 45/2004. Logo, melhor entendi-
mento será: sem lei versando sobre o tema não pode o
STF aprovar súmula vinculante. É preciso aguardar lei
futura porque muitos pontos (decisões reiteradas, inse-
gurança jurídica etc.) previstos na constituição configu-
ram conceitos abertos (porosos, pendentes de interpreta-
ção e de definição). Se as súmulas vinculantes destinam-
se a evitar a insegurança jurídica, não se pode concebê-
las precisamente quando há insegurança em relação à
sua aprovação, revisão ou cancelamento;
(o) características essenciais da súmula vinculante: (a)
imperatividade (imposição de um determinado sentido,
que deve ser acolhido de forma obrigatória) e (b)
coercibilidade (se não observada essa interpretação cabe
reclamação ao STF, sem prejuízo de futuras e eventuais
sanções, que podem ser previstas em lei). Não importa
quem inobserva a súmula vinculante: judiciário ou exe-
cutivo (cabe reclamação em ambas as hipóteses). Julgada
procedente a reclamação, determinará o STF o efetivo
cumprimento da sua súmula;
(p) o juiz, quando acolhe a súmula vinculante, deve funda-
mentar a sua decisão? Sim, deve demonstrar que os fun-
damentos do caso concreto que está sob seu exame coin-
cidem com os fundamentos das decisões que autoriza-
ram a criação da súmula vinculante. Mas o juiz não pode
decidir contra a súmula. Se fizer isso, cabe reclamação ao
Supremo, que anulará o ato do juiz. O juiz, como se vê,
não conta com nenhuma margem de atuação eficaz. Tudo
que fizer contra a súmula, não terá valor (porque o STF
vai cassar esse ato);
(q) cabe ação direta de inconstitucionalidade ou declaratória
de constitucionalidade contra súmula vinculante? Não,
porque as súmulas vinculantes não são formalmente lei
ou ato normativo. Caso uma súmula venha a perder sen-
tido, será a hipótese de sua revisão ou cancelamento. Caso
não esteja sendo observada, é a hipótese de reclamação.
Não sendo a súmula ato normativo (sim, só
interpretativo), fica claro que ela não é fonte imediata do
direito (é só fonte mediata, porque, no fundo, é uma ju-
risprudência sumulada).
416 Revista Jurídica dos Formandos
em Direito da UCSal - 2007.2

3. CONCLUSÃO

Neste diapasão, concluímos que o instituto da súmula vinculante,


ao contrário do que muitos alegam, não causa efeitos lesivos ao Direito
Material Brasileiro. Em verdade, contribui para a aplicação de garantias
constitucionais comumente violadas como a razoável duração (celeridade)
e a economia processuais. Assim, por principiologia constitucional, to-
mamos como extremamente benéfica a instalação da súmula vinculante
no Brasil.

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