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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ

SETOR DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES


DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA

A FILOSOFIA DA HISTÓRIA PARA KANT, HEGEL E MARX

Trabalho apresentado por Aline Baroni, Gabriel


Brum, Juliana Martins e Mariana Skraba para a
disciplina de Filosofia Política I, sob orientação do
professor André Duarte

Curitiba
2007
Pode parecer óbvio, mas a primeira consideração que se faz necessária ao
analisar Kant, Hegel e Marx é que todos têm em comum um pensamento filosófico da
história. É Kant que inaugura a história como objeto de reflexão filosófica; Hegel dá
ênfase a essa proposta ao defender que história e filosofia são indissociáveis; Por mais
que a história seja um lugar central no pensamento de Marx, pode-se dizer que ele
apenas sistematiza uma filosofia da história, mas não a cria efetivamente.

O que fazem todas as filosofias da história, seja marxista, hegeliana ou kantiana?


Submeter a história a um tratamento filosófico. Buscam-se, então, os fundamentos
últimos e o fio condutor que daria inteligibilidade às miríades de acontecimentos
aparentemente desconexos, ou seja, identifica-se por trás das várias histórias
particulares o elemento unificador, a regularidade; elabora-se uma explicação para
a história e explicita-se o seu sentido. Enquanto o historiador indaga sobre o que
acontece na história, o filósofo pretende responder o que é a história, ou seja, os
pressupostos de toda e qualquer história.(DANTAS, 2004, p.178).

Partindo disso, pode-se dizer que Kant, Hegel e Marx têm propostas semelhantes
da filosofia da história, por proporem uma história progressiva, linear e que tem uma
finalidade. Nos três autores, a finalidade da história é alcançada mediante a emancipação
dos homens. Para chegar a esse fim, a história faz avanços em relação ao período
anterior – daí ela ser progressiva e linear.
Segundo Hegel, por exemplo, nas sociedades orientais havia apenas um indivíduo
livre, o déspota; apesar dessa liberdade ser “deturpada” em arbitrariedade. Seguindo essa
sociedade, vem a sociedade grega em que alguns são livres e tem a consciência dessa
liberdade; no entanto não são livres como homem, mas como homens. É a partir da
Reforma Protestante, com as nações germânicas cristãs, que o homem, e todo homem, é
realmente livre. Hegel ainda afirma categoricamente, que “a história universal é o
progresso na consciência da liberdade” (HEGEL, 1837, p.25).

Ao falar de uma maneira geral sobre a distinção entre o saber e a liberdade, disse
que os orientais só sabiam que um único homem era livre, e no mundo grego e
romano alguns eram livres, enquanto nós sabemos que todos os homens em si –
isto é, o homem como homem – são livres. (HEGEL, 1837, p.25)

Kant, no texto “A idéia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita”


(1784), elabora nove proposições a respeito do desenvolvimento das disposições naturais
do homem. Em suma, essas proposições concluem que o homem alcançará a máxima
liberdade em um Estado cosmopolita, regulado pelo direito universal. Para Kant, a história
universal é progressiva por se tratar de um “curso regular de aperfeiçoamento da
constituição política” (KANT, 1784, p.23).
O que permanece estranho aqui é que as gerações passadas parecem cumprir
suas penosas tarefas somente em nome das gerações vindouras, preparando para
estas um degrau a partir do qual elas possam elevar mais o edifício que a natureza
tem como propósito, e que somente as gerações posteriores devam ter a felicidade
de habitar a obra que uma longa linhagem de antepassados (certamente sem esse
propósito) edificou, sem mesmo poder participar da felicidade que preparou.
(KANT, 1784, p.12,13)

Marx define que a história é a sucessão de revoluções:

Todas as relações de propriedade estiveram sujeitas a uma constante


transformação e a uma constante mudança histórica. Todas as relações de
propriedade do passado têm sido continuamente sujeitas às mudanças históricas
conseqüentes das mudanças de condições históricas. A Revolução Francesa, por
exemplo, aboliu a propriedade feudal em favor da propriedade burguesa (MARX,
1848, p.33)

Tendo a burguesia cumprido seu papel, ele chama os operários a fazerem a


próxima revolução. Assim, a sociedade deixaria de ser burguesa e passaria e ser
socialista; em seguida, se tornaria comunista. Nesse processo, há uma ampliação da
liberdade: inicialmente da liberdade econômica e, em seguida, a liberdade do homem
como um todo, uma vez que, sendo o homem dono de sua força de trabalho, ele
alcançaria a emancipação. “No lugar da sociedade burguesa antiga, com suas classes e
antagonismos de classes, teremos uma associação na qual o desenvolvimento livre de
cada um é a condição para o desenvolvimento livre de todos” (MARX, 1848, p.45)
Partindo dessa visão geral comum sobre a filosofia da história, os três autores
também partilham da idéia de que para se alcançar a emancipação e o fim da história, é
necessária a violência e a guerra. Para Kant, os homens precisam da violência, resultado
do confronto entre interesses particulares, para se organizarem com o objetivo de conter a
barbárie; para conter a barbárie, portanto, é necessária a sobreposição da razão à
natureza. Segundo Hegel, a guerra é uma forma de manutenção da liberdade atingida.
Para ele, as guerras médicas, por exemplo, só foram conquistadas pelo propósito que
defendiam, uma vez que os gregos já possuíam alguma liberdade, enquanto os persas
ainda não tinham nem a consciência dessa liberdade.
Marx, por sua vez, acredita que só com as lutas de classe o homem conseguirá se
libertar. “Os comunistas desdenham ocultar suas opiniões e metas. Abertamente,
declaram que seus fins só podem ser atingidos pela derrubada violenta de todas as
condições sociais existentes” (MARX, 1848, p.65).
É comum também a análise exclusiva das sociedades institucionalizadas e
“evoluídas”; Hegel e Marx descartam, por exemplo, o estudo de povos que não possuem
organização política e econômica. Hegel estuda as sociedades “civilizadas” porque a
auto-consciência da liberdade dos homens se manifesta em suas instituições; já Marx
estuda o desenvolvimento dos meios de produção capitalistas, portanto estuda as
sociedades com organização econômica. Para Kant, Hegel e Marx, o indivíduo não é
pensado como ser atomizado, mas sim integrado à espécie, à instituições e classes
sociais, respectivamente. Em Kant, as “disposições naturais que estão voltadas para o
uso de sua razão devem desenvolver-se completamente apenas na espécie e não no
indivíduo” (KANT, 1784, p.11)
A teoria de Kant e a de Hegel convergem em muitos pontos. O primeiro que se
pode apontar é que os homens agem por meio de suas paixões e vontades particulares e,
assim, acabam alcançando, ainda que inconscientemente, o progresso. Esse processo,
Hegel chama de astúcia da razão: “deixar que as paixões atuem por si mesmas,
manifestando-se na realidade, experimentando perdas e sofrendo danos, pois esse é o
fenômeno no qual uma parte é nula e a outra afirmativa” (HEGEL, 1837, p.35). Hegel
considera que o fim da história e essa razão “orgânica” dos homens são determinados
pela vontade divina, ao passo que Kant atribui essa orientação para o fim cosmopolita à
natureza.
Ambos os autores também concordam que o “bem comum” deve se sobrepor aos
interesses particulares – o que Kant define como “razão pública” em detrimento da “razão
particular”. Em Kant, há a necessidade de um senhor que regule esses interesses: “ele
tem necessidade de um senhor que quebre sua vontade particular e o obrigue a obedecer
a vontade universalmente válida, de modo que todos possam ser livres” (KANT, 1784,
p.15). Em Hegel, ter consciência é ser livre para escolher obedecer; o homem controla
seus impulsos por ter consciência de que os tem. “Que ele [o homem] assuma o
conhecimento e a confirmação do razoável e do universal em si; e esse conhecimento e
essa ação do universal tem que surgir no lugar do direito positivo pessoal” (HEGEL, 1837,
p.355).
No entanto, os autores têm visões diferentes quanto ao que conduz ao fim da
história e como se dá esse processo.
Kant, por exemplo, supõe que há um fio condutor que levaria o homem à
emancipação. Tal fio condutor seria guiado pela natureza, e essa razão é algo natural e
intrínseco ao homem. Kant afirma que

“Os homens, enquanto indivíduos, e mesmo povos inteiros, mal se dão conta de
que, enquanto perseguem propósitos particulares, cada qual buscando seu próprio
proveito e freqüentemente uns contra os outros, seguem inadvertidamente, como a
um fio condutor, o propósito da natureza, que lhes é desconhecido, e trabalham
para sua realização, e, mesmo que conhecessem tal propósito, pouco lhes
importaria” (KANT, 1784, p.10)

Já Hegel acredita que a razão a qual o homem segue é de natureza divina: é a


auto-consciência e a religião que levam o homem à liberdade.

Seu [da filosofia] interesse é conhecer o processo de desenvolvimento da


verdadeira idéia, ou seja, da idéia da liberdade que é somente a consciência da
liberdade. A história universal é o processo desse desenvolvimento (...). Só a
percepção disso pode reconciliar a história universal com a realidade: a certeza de
que aquilo que aconteceu, e que acontece todos os dias, não apenas não se faz
sem Deus, mas é essencialmente Sua obra (HEGEL, 1837, p.373).

Marx, por sua vez, entende que “a religião é o ópio do povo” e que o motor da
história são as lutas de classe, ou seja, o progresso da história acontece pelas mudanças
nos modos de produção econômicos.

A história de todas as sociedades que já existiram é a história da luta de classes


(...). Opressor e oprimido estiveram em constante oposição um ao outro,
mantiveram sem interrupção uma luta por vezes aberta – uma luta que todas as
vezes terminou com uma transformação revolucionária ou com a ruína das classes
em disputa (MARX, 1848, p.9-10)

Marx se opõe a Kant e Hegel também no que diz respeito à essência da história
universal. Para ele, essa essência é econômica: é através da infra-estrutura que se dão
as mudanças na super-estrutura; ou seja, o âmbito político é pré-determinado pelo
econômico. Já Kant e Hegel definem a história universal como essencialmente política.
Para eles, é por meio da mudança de pensamento do homem e das instituições políticas
que se alcança a máxima liberdade e o todo cosmopolita kantiano.
Marx também discorda dos dois autores no que concerne o Iluminismo. Para ele, a
burguesia perde seu potencial revolucionário e não cumpre sua promessa de
emancipação e acesso à razão – vê, portanto, o iluminismo de forma negativa. Enquanto
isso, para Kant e Hegel, o iluminismo é o que faz com que o homem se auto-conscientiza;
é a partir da Revolução Francesa e da Reforma Protestante que o homem passa a pensar
por si só. “O Iluminismo é a saída do homem da sua menoridade de que ele próprio é
culpado. A menoridade é a incapacidade de se servir do entendimento sem orientação de
outrem” (KANT, 1784, p.11).

Já que o indivíduo agora sabe que está plenificado com o espírito divino, ficam
suprimidas todas as relações da exterioridade: não existe mais diferença entre
sacerdote e leigo, não há mais uma classe que detenha exclusivamente o
conteudo da verdade (...). É o coração, a espiritualidade sensível do homem, que
pode e deve apoderar-se da verdade – e essa subjetividade é a de todos os
homens (HEGEL, 1837, p.345)

Enquanto Marx e Kant não acreditam que a história chegou a seu fim e à liberdade
e emancipação absoluta, Hegel discorda. Marx acredita que, para haver liberdade, é
necessário que a história ainda passe pelo socialismo e comunismo e Kant defende que
os homens ainda estão no meio do processo, mas se encaminhando para o fim
cosmopolita.

Se, pois, se fizer a pergunta – vivemos nos agora numa época esclarecida? – a
resposta é: não (...). Temos apenas claros indícios de que se lhes abre agora o
campo em que podem actuar livremente, e diminuem pouco a pouco os obstáculos
à ilustração geral, ou à saída dos homens da menoridade de que são culpados
assim considerada, essa época é a época do iluminismo (KANT, 1784, p.17)

Para Hegel, a sociedade germânica cristã (pós-Reforma Protestante) é o ápice da


representação da liberdade, uma vez que todos são conscientes de sua liberdade.
Kant e Hegel concordam entre si no que diz respeito à inconsciência do homem
em relação ao fim da história. Para eles, como já foi dito, o movimento da história se dá
organicamente. Já para Marx, o homem não age senão ao conhecer suas razões, só
interfere na história ao ser chamado à ação política – não há, em Marx, a ação
inconsciente. Isso pode ser ilustrado com as famosas últimas frases do Manifesto
Comunista: “Que a classe governante trema diante da Revolução Comunista. Os
proletários nada têm a perder fora as suas correntes; têm o mundo a ganhar.
PROLETÁRIOS DE TODOS OS PAÍSES, UNÍ-VOS! [sic]” (MARX, 1848, p.65). Portanto,
outra diferença (óbvia) para quem lê os autores é o caráter filosófico das obras de Kant e
Hegel e o aspecto sociológico e ativista da análise de Marx.
Enquanto para Hegel e Kant a liberdade e o pensamento têm valor em si
mesmos1, Marx acredita que só têm valor na medida em que se manifestam em todos
estruturais, ou seja, na dinâmica de luta de classes.

Será necessária uma profunda intuição para entender que as idéias, os pontos de
vista e as concessões do homem, resumindo, a consciência do homem muda de
acordo com as mudanças nas condições de sua existência material, nas relações
sociais e na sua vida social? (MARX, 1848, p.41)

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“O pensamento é agora o estágio a que o espírito chegou. Ele contém a reconciliação em toda a
sua essencialidade, já que se trata do exterior com a reivindicação de que essa existência tenha a
razão em si como sujeito” (HEGEL, 1837, p.361)
Nesse sentido, como já mencionado, a liberdade para Kant e Hegel é a liberdade
individual e de pensamento; Hegel ainda vai além dizendo que ser livre é saber-se livre.
Já para Marx, a liberdade se conquista histórico-socialmente, banindo-se os meios de
produção. Somente a classe social pode ser livre, e não apenas o indivíduo.

Referências bibliográficas

DANTAS, Leda. Pós-modernidade e Filosofia da História. Disponível em


<www.ipv.pt/millenium/Millenium29/25.pdf>. Acesso em 26/05/07.
HEGEL, Friedriech. Filosofia da História. trad. Mª Rodrigues e Hans Harden. Brasília:
UnB, 1999
KANT, Immanuel. A Paz Perpétua e Outros Opúsculos. Lisboa: Edições 70, 1988
KANT, Immanuel. Idéia de uma História Universal de um Ponto de Vista Cosmopolita.
São Paulo, Brasiliense, 1986
MARX, Karl e ENGELS, Friederich. O Manifesto Comunista. 14ed. São Paulo: Paz e
Terra, 2004

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