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AVALIAÇÃO DAS AÇÕES DE PROMOÇÃO DA SAÚDE EM CONTEXTOS DE


POBREZA E VULNERABILIDADE SOCIAL

Regina Bodstein

Lenira Zancan
“Os métodos e teorias da ciência social não estão sendo produzidos
por computadores, mas por homens e mulheres, e sobretudo por
homens e mulheres que trabalham não em laboratórios, mas no
mesmo meio social a que se aplicam os métodos e se transformam
as teorias. É isso que confere à empreitada como um todo o seu
caráter especial A maior parte das pesquisas em ciências sociais
envolve contatos diretos, íntimos e mais ou menos perturbadores
com os detalhes imediatos da vida contemporânea, contatos de um
tipo que dificilmente pode deixar de afetar a sensibilidade das
pessoas que os realizam” (Geertz, 2001:31).

INTRODUÇÃO

Programas com o perfil e as características do Desenvolvimento Local


Integrado e Sustentável (DLIS/PS) – baseados em uma concepção ampliada de
desenvolvimento e no tripé da participação, da intersetorialidade e da parceria –
trazem como marcas a multiplicidade de iniciativas, propostas, projetos e atores.
Constituem um permanente desafio aos enfoques avaliativos tradicionais.
Implicam na necessidade de revisão dos esquemas e conceitos consagrados no
campo da avaliação e na busca de novas abordagens. O fundamental na
avaliação desses programas é a compreensão sobre a dinâmica capaz de
desencadear mudanças mais consistentes, tanto na rede de sociabilidade local,
como na qualidade de vida (Bodstein et al., 2001a).

O modelo de avaliação proposto está centrado na necessidade de se analisar


a dinâmica de implantação do DLIS/PS em Manguinhos. Sob esse enfoque, a
perspectiva discutida por Denis & Champagne parece extremamente pertinente.
Os autores enfatizam que o contexto em que o programa está inserido tem
profundas implicações nas mudanças e efeitos pretendidos. Ressaltam ainda os
limites analíticos de uma avaliação baseada unicamente nos efeitos e nos
impactos observáveis do programa. (Denis & Champagne, 2000:50). Consideram
2
necessário reconhecer que os efeitos e impactos dos programas são
freqüentemente indiretos, e que o fundamental, principalmente em programas
complexos, é analisar os fatores que influenciam os resultados obtidos (Denis &
Champagne, 2000:51).

Louise Potvin, trabalhando com uma perspectiva semelhante, chama a atenção


para a dinâmica inerente e constitutiva dos programas sociais. Isto é, seu caráter
abrangente, mutante e reflexivo, envolvendo inúmeros executores, atores,
interesses e conflitos. Assim, é importante perceber como propostas e objetivos
iniciais se desdobram e se modificam pari passu ao desenvolvimento do programa
(Potvin, 2001). Partindo desse referencial, o artigo analisa a dinâmica e as
especificidades do processo de implantação do programa em Manguinhos. Trata
de pensar a adequação da proposta DLIS/PS ao contexto local. Em seguida,
enfatiza a importância da mobilização e participação para a implantação do
programa. Nessa perspectiva duas estratégicas mereceram destaque: o
diagnóstico participativo e o mapeamento das iniciativas, ações e equipamentos
sociais existentes no local. Finalmente, reflete sobre a efetividade e o alcance das
mudanças.

ADEQUAÇÃO DA PROPOSTA AO CONTEXTO LOCAL


Pobreza e desigualdade social formam um dos traços estruturais mais
perversos da sociedade brasileira, não se restringindo às áreas rurais e mais
remotas do país. Estão presentes tanto na periferia das grandes cidades, em
verdadeiros cinturões que reúnem milhões de pessoas em situação de
precariedade e exclusão, como também nas favelas cariocas, onde, não raro,
dividem e disputam espaços em áreas nobres da cidade. É o caso, por exemplo,
da zona sul da cidade do Rio de Janeiro, que abriga, lado a lado, os extremos da
pirâmide social - moradores do asfalto e moradores das favelas -, mesclando
distância social com proximidade territorial1.

A Fundação Oswaldo Cruz na zona norte do Rio de Janeiro, onde está


situada a ENSP, é cercada pelo Complexo de Manguinhos, Formado por onze
comunidades: (PCC) Parque Carlos Chagas; (PJG)Parque João Goulart; (POC)
3
Parque Oswaldo Cruz; (CSM)Comunidade Samora Machel ; (CNM)Comunidade
Nelson Mandela; (CMP)Comunidade Mandela de Pedra; (CAH)Comunidade
Agrícola de Higienópolis; (CHP2)Conjunto Habitacional Provisório 2; (VSP)Vila
São Pedro; (VT)Vila Turismo; (VU)Vila União.

Abrigando uma extensa população em condição de pobreza e miséria,


esses espaços concentram os principais problemas relacionados à insuficiência,
precariedade e ausência de serviços públicos em áreas tais como, educação,
saúde, infra-estrutura urbana, cultura, lazer e segurança pública. Com graves
problemas habitacionais e ambientais, essas áreas constituem um enorme desafio
à administração pública.

O conceito de Desenvolvimento Humano Sustentável, elaborado pelo


Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), sinaliza para uma
nova estratégia de combate à pobreza e enfrentamento dos problemas sociais.
Presente em inúmeros documentos recentes, gerados em eventos internacionais
de instituições como o próprio PNUD, o Banco Mundial e a Organização das
Nações Unidas (ONU)2, o IDH (Índice de Desenvolvimento Humano), criado pelos
economistas Mahbub ul Haq e Amartya Sen, em 1990, tem o mérito de permitir
comparar as condições de vida nos mais diferentes países e áreas, usando
indicadores de renda, longevidade e educação. Aponta para o fato crucial de que
pobreza não deve ser medida unicamente pelo nível de renda da população, mas
através de outros indicadores de qualidade de vida, como nível de escolaridade e
saúde (esperança de vida ao nascer). Enfatiza assim a relação entre pobreza e
ausência (precariedade) de acesso da população aos bens e serviços essenciais
para a qualidade de vida.

No Brasil, a partir dos dados do Censo Demográfico de 1991, do IBGE, foi


elaborado o Mapa do Desenvolvimento Humano do país que possibilita a
mensuração das desigualdades de renda e das condições de vida em escala
municipal. O Rio de Janeiro foi uma das primeiras cidades do mundo a obter seu
IDH para cada um dos seus 161 bairros, calculado com base na renda familiar per
capita (soma dos rendimentos dividida pelo número de moradores de uma casa),
na expectativa de vida, na taxa de alfabetização de maiores de 15 anos e no
4
número médio de anos de estudo da população. Esses dados estão apresentados
na publicação intitulada “Relatório de Desenvolvimento Humano”3. O índice, em
vez de medir unicamente o poder de compra representado pela renda, retrata a
qualidade de vida, sendo um instrumento sensível para guiar os investimentos e
as políticas públicas. O índice é expresso através de um número que varia de zero
a um de forma que quanto maior o índice, mais alto é o grau de desenvolvimento
humano de determinada localidade.

O Relatório ao analisar as condições de vida revela os contrastes entre os


bairros cariocas, tendo por base o IDH da cidade, calculado em 0,766. Constata,
por exemplo, que a Lagoa é o melhor bairro do Rio, com um IDH de 0,902, cujo
nível de desenvolvimento é comparável aos de países de desenvolvimento médio.
No outro extremo está o bairro de Acari, com IDH de 0,573, índice semelhante aos
de países do continente africano. Em relação ao IDH, portanto, o bairro de
Manguinhos fica em torno de 0,606, isto é, dentre os 161 bairros da cidade,
Manguinhos ocupa a 155ª posição, tendo somente seis bairros em pior situação
quanto à qualidade de vida: Guaratiba, Complexo da Maré, Rocinha, Complexo do
Alemão, Santa Cruz e Acari4.

O Complexo de Manguinhos - situado na Zona Norte do Município do Rio


de Janeiro, no IV Distrito Sanitário (antiga Área de Planejamento 3.1), ao longo da
Estrada de Ferro da Leopoldina -, ocupa uma área localizada nas Xa (Ramos) e
XIIa (Inhaúma) Regiões Administrativas. É cortado pelos rios Faria e Jacaré, que,
juntos, encontram o Canal do Cunha. Ao longo do seu trajeto, os rios são bastante
poluídos, tanto por servirem de escoamento às indústrias, como por receberem
dejetos das populações que vivem às suas margens. Os constantes aterros,
pavimentações irregulares e demais construções contribuem para dificultar a
absorção da água da chuva, facilitando inundações e desabamentos. É comum
que as chuvas de verão provoquem enchentes, quando as famílias perdem suas
casas e, muitas vezes, tudo o que possuem. A área do Complexo possui cerca de
12.000 domicílios, ocupados por 3,7 habitantes, em média. A maior parte destes
domicílios, cerca de 70%, é construída em assentamentos regulares. Os demais
30% estão construídos em áreas consideradas irregulares, provisórias ou de risco.
5
Nesta região, é evidente o processo de crescente favelização. Há um grande
número de famílias morando em situações de risco: barracos improvisados,
construídos embaixo de viadutos, das linhas de alta tensão, ao lado dos leitos dos
rios e da tubulação da Adutora do Guandú.

Longe de ser uma região homogênea, o Complexo possui condições de


vida e configurações sociais de ocupação das áreas geográficas marcadas por
expressivas diferenças e contrastes socioeconômicos. A comunidade de Mandela
de Pedra é a que apresenta em seu conjunto condição de vida mais precária
dentro de Manguinhos. Verifica-se neste local que quase 15% das crianças em
idade entre 7 a 14 anos está fora da escola. Quase 13% da população acima de
15 anos é analfabeta e só 2,6%, aproximadamente, possuem segundo grau
completo. A taxa média de desemprego entre jovens de 15 a 24 anos chega a
quase 30% em Mandela de Pedra, seguida pela de 20% no Parque João Goulart.5

Quanto à qualidade do ar, Manguinhos está localizada na segunda área


mais poluída do Município. Próxima à Avenida Brasil (entrada/saída do Rio de
Janeiro), Refinaria de Manguinhos, Estação de Transferência de Lixo do Caju,
além de várias outras indústrias, apresenta índice diário de “partículas em
suspensão” no ar com um padrão acima de 480 ug/m3, quando o aceitável seria
até 240 ug/m3.

Desemprego, insuficiência e precariedade dos postos de trabalho, trabalho


informal, renda per capita baixíssima, baixos indicadores de educação e saúde,
analfabetismo entre adultos, presença da desnutrição, alto índice de gravidez
entre adolescentes, péssimas condições de habitação, saneamento e ambiente,
ausência de oportunidades culturais e de lazer, revelam a ausência ou
insuficiência de serviços dirigidos ao atendimento das necessidades essenciais6.

Manguinhos, tal como as grandes áreas faveladas da cidade do Rio de


Janeiro, concentra, assim, os principais problemas relacionados à insuficiência na
oferta de serviços e a falência das políticas públicas em setores essenciais como
educação, saúde, infra-estrutura urbana, segurança pública, cultura e lazer. É
muito visível em todo o complexo de Manguinhos um aspecto crucial para
6
entender o fenômeno da miséria e da exclusão social. Como nos mostra Alba
Zaluar, uma clara manifestação de injustiça distributiva se revela quando pessoas
são sistematicamente excluídas dos serviços, benesses e garantias oferecidos ou
assegurados pelo Estado, pensados, em geral, como direitos de cidadania.
(Zaluar,1997: 31).

Assim, políticas públicas exercem um papel crucial, não só reinserindo os


excluídos, mas, sobretudo, promovendo a cidadania e evitando a reprodução e
perpetuação das condições de exclusão. Nesse cenário, a violência não pode ser
subestimada, gerando na compreensão da autora “padrões alterados de
sociabilidade e de negociação de conflitos” (Zaluar,1997:39). Uma das
conseqüências desse padrão é a perda de confiança dos moradores nas
instituições e no poder público, que por sua vez exercem e demonstram poder e
autoridade através do uso sistemático da violência.

O desenvolvimento local, a melhoria da qualidade de vida e o reforço à


cidadania em locais como Manguinhos é um desafio permanente. Certamente
passa pela mudança de padrão na relação entre poder público e comunidade,
bem como pelo aumento da oferta de investimentos sociais em serviços básicos.
Espaços públicos absolutamente degradados e mesmo inexistentes vis-à-vis
questões de exclusão social e violência exigem novas estratégias de intervenção,
quando o que está em jogo é a efetividade ou eficácia dos programas sociais.
Uma gestão participativa para o desenvolvimento local e a melhoria da qualidade
de vida, integrando os diversos setores, interesses em prol de uma agenda
comum parece um caminho promissor.

Assim, pensar estratégias de desenvolvimento local e promoção da saúde


diante deste cenário de absoluta falência dos serviços públicos e de direitos
básicos da cidadania não é um problema simples. O quadro de carência e
precariedade em termos de infra-estrutura urbana é tão acentuado que a
prioridade passa a ser recuperar os déficits já existentes. Enfim, a integração de
Manguinhos e seus moradores à cidade, se, por um lado, é responsabilidade
intransferível do poder público, por outro, mostra o quanto é crucial a mobilização
e participação da comunidade no processo. Igualmente importante é evocar a
7
responsabilidade social das empresas e instituições vizinhas do Complexo de
Manguinhos tais como, FIOCRUZ, Correios, EMBRATEL e Refinaria de
Manguinhos. A integração dessas empresas em parceria e interlocução
permanente, visando a mudança da qualidade de vida na área, é certamente uma
prioridade. Nessa medida, qualquer programa mais efetivo de desenvolvimento e
promoção da saúde nessas áreas implica na participação do poder público sob
novas bases, onde o reforço da cidadania e garantia de direitos é fundamental
para mudanças mais sustentáveis na qualidade de vida local.

MOBILIZAÇÃO E PARTICIPAÇÃO COMO ESTRATÉGIA DE IMPLANTAÇÃO


DO DLIS
O programa de DLIS-Manguinhos se estruturou em torno dos seguintes
objetivos:

• identificar, articular e integrar as diversas iniciativas de desenvolvimento


econômico e social presentes nas 11 comunidades que compõem o chamado
Complexo de Manguinhos;

• promover um processo de interlocução e co-responsabilização entre o poder


público, as entidades privadas e a população organizada através da
constituição de instâncias de gestão das políticas de desenvolvimento local;

• formular agendas locais com demandas e prioridades pactuadas, tendo em


vista o impacto efetivo sobre a qualidade de vida da população.

Um passo fundamental para a concretização desses objetivos e para a


implantação do Programa de Manguinhos foi a realização do Diagnóstico Rápido
Participativo e, posteriormente, do levantamento dos equipamentos e iniciativas
sociais da área. O diagnóstico, em particular, foi visto como estratégia capaz de
contribuir para orientar ações de desenvolvimento local e incentivar a participação
comunitária, visando o fortalecimento da auto-estima e da consciência da
cidadania (Fundação Bento Rubião, 2000).

Nesse processo, foi crucial identificar valores ligados à consciência social e


à capacidade associativa, reforçando as redes de solidariedade existentes e as
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expectativas e responsabilidades compartilhadas dentro de um contexto
sociocultural específico. A idéia básica vem da necessidade de atrelar as
iniciativas e intervenções à formação do chamado “capital social”, reforçando a
interdependência entre os moradores, com vistas a facilitar a ação coletiva e a
promoção de bens públicos (Coleman, 1990: 300-304). Alia-se a essa estratégia o
objetivo de potencializar investimentos sociais e atividades comunitárias que,
mesmo em comunidades vulneráveis e extremamente carentes, precisam estar
sintonizadas com as demandas locais. Isto é, trata-se de uma perspectiva de
trabalho em que o importante é respeitar a percepção e a maneira com que os
moradores identificam as necessidades e demandas locais.

O diagnóstico participativo realizado em Manguinhos cumpriu, assim, dois


objetivos fundamentais: discussão em torno das necessidades/ demandas das
comunidades e a mobilização dos moradores para a reflexão e aprimoramento das
propostas que possam reverter a situação de exclusão social e reforçar a
cidadania ativa. Nessa perspectiva foi fundamental a identificação dos moradores
mais antigos e respeitados pelas comunidades, permitindo a discussão de
diversos aspectos da vida associativa no local. Esses moradores, personagens
reconhecidos e respeitados, são cruciais para a permanência de valores ligados à
sociabilidade, solidariedade e confiança. Enfim, o diagnóstico participativo
desencadeou novas estratégias de articulação com a comunidade, incentivando a
base associativa, os canais de participação e de ação coletiva existentes.
(Fundação Bento Rubião, 2000).

Os problemas e demandas vocalizados pelos moradores e lideranças


locais através do diagnóstico participativo, permitiram que a equipe de
monitoramento fizesse uma análise desse conjunto de reivindicações e demandas,
que foram sistematizadas no Quadro I. O quadro hierarquiza as principais
demandas do complexo, permitindo observar sua distribuição por cada
comunidade em particular.
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QUADRO I

PRINCIPAIS REIVINDICAÇÕES
REIVINDICAÇÕES COMUNIDADES7
1. Implantação de cursos POC,PCC,PJG,CHP2,VSP,CNM,CSM,MP,
2. Construção de um posto de saúde na PCC,PJG,CHP2,VU,CNM,CSM,AH
3. Implantação de atividades culturais e POC,PJG,VT,CHP2,CSM,AH
4. Construção de creches comunitárias POC,PJG,VU,VSP,MP,AH
5. Ampliação do ensino fundamental até a PCC,VU,CNM,CSM,MP
6. Reurbanização ampliada (novas PCC,PJG,CNM,MP
7. Construção de rede de esgoto PJG,CHP2,CNM,CSM
8. Reparo e limpeza da rede de esgoto POC,PCC,VU,AH
Fonte: Relatório do DLIS baseado nos dados coletados pela Fundação Centro de Defesa dos
Direitos Humanos Bento Rubião/ Diagnóstico Rápido Participativo das Comunidades de
Manguinhos RJ. , dezembro de /2000.

A implantação de cursos profissionalizantes foi considerada pelo conjunto


das comunidades como a principal reivindicação. A questão, evidentemente
relacionada com a visível ociosidade dos adolescentes e adultos jovens no
Complexo, reproduz uma situação comum entre grandes aglomerados de
população de baixa renda. Os baixos níveis de escolaridade dessa população
jovem acabam por reforçar o despreparo dos jovens para o mercado de trabalho.
A ausência de qualificação profissional agrava ainda esse despreparo afastando
os jovens do mercado de trabalho. Assim, como vimos, são elevadas as taxa de
desemprego em geral na comunidade e, especialmente, alarmante nessa faixa
etária. Convém lembrar que a média de anos de escolaridade da população
favelada do Rio de Janeiro está em torno de quatro anos8 e que este também é o
caso de Manguinhos. Como a relação entre anos de estudo e nível de renda (ou
entre anos de estudo e desemprego) é bastante conhecida, a população traduz e
percebe com clareza esta relação.

A preocupação com o futuro dos jovens e com o que ficou conhecido como
processo de “exclusão digital” é bastante real para os moradores da área.
Reivindicam cursos profissionalizantes, sobretudo de informática, porque além do
fascínio que novas tecnologias exercem, vislumbram aí um caminho para a
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inserção no mercado de trabalho, melhoria do emprego e, possivelmente, como
acesso a um mundo crescentemente informatizado.

O desafio em Manguinhos, como em outros grandes complexos de favelas


da cidade, é acima de tudo desenvolver estratégias para capacitação de jovens e
geração de emprego e renda. As iniciativas existem, porém ainda são tímidas e
pouco desenvolvidas como veremos a seguir. Prevenir, retirando um contingente
considerável de jovens da fronteira tênue entre a desocupação pura e simples, o
subemprego ou desemprego e a influência do tráfico, constitui assim uma tarefa
urgente. As soluções não são simples. A complexidade do problema exige novos
investimentos sociais, a introdução de experiências exitosas e já testadas em
outras regiões de grande contingente de população favelada, bem como a
ampliação ou reforço das parcerias existentes. Trata-se de buscar soluções que
integrem a escolaridade formal – através da ampliação de matrículas e de
medidas para evitar o fracasso escolar – com programas de aceleração escolar,
cursos supletivos, cursos de capacitação profissional, cursos de informática, entre
outros.

Há um relativo consenso entre o poder público e a sociedade quanto à


importância de se buscar soluções para o problema, que se agudiza em uma
conjuntura de aumento explosivo da violência. A preocupação da Secretaria
Municipal de Desenvolvimento Social (SMDS) fica visível a partir do elenco de
projetos e iniciativas voltados especificamente para o adolescente e o adulto
jovem em situação de vulnerabilidade ou de risco social, convergindo para a
proposta de implantação dos Centros Municipais de Atendimento Integrado –
CEMASI.

O quadro das escolas (quadro II) mostra a precariedade da oferta de


ensino formal no complexo, limitada ao ensino básico até a 4ª série. Daí em diante
os alunos têm que se deslocar para disputar uma vaga em outras escolas públicas
dos bairros vizinhos. Existe um Centro Integrado de Educação Pública (CIEP) no
local com amplas instalações, vinculado à Secretaria Municipal de Educação,
porém compreende apenas o ensino até a 4ª série. Assim, há ausência de ensino
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de segundo grau em Manguinhos, responsabilidade da Secretaria Estadual de
Educação. A ampliação do ensino fundamental até a 8ª série, o que aparece como
uma conquista do ensino público no Brasil na última década, é ainda hoje uma
reivindicação do conjunto de comunidades de Manguinhos.

QUADRO II

ESCOLAS DO ENSINO FUNDAMENTAL LOCALIZADAS NO


INTERIOR DO COMPLEXO

Denominação Série
Nº de Nºde Alunos/
alunos turmas Turmas
Emma Negrão de Lima (Vila Turismo) C.A à 4ª 359 10 28.9
Albino Souza Cruz (Vila Turismo) série 364 12 30.3
Prof.ª Mª Cerqueira e Silva( Pq.Carlos C.A à 4ª 766 29 26.4
Chagas) série 565 20 28.3
Ciep JK (Pq. Carlos Chagas) JI à 4ª série
CA à
4ªsérie
TOTAL 2.054 71 28.9
Fontes: Descrição detalhada da Área e da população de Manguinhos IV Distrito Sanitário – Rio de
Janeiro-RJ. Else Bartholdy Gribel e Maria Cristina Botelho de Figueiredo, janeiro de 1999 (mimeo).

Outro ponto importante relacionado à questão do ensino, que aparece e


ganha visibilidade através do Guia de Equipamentos, como veremos a seguir, é a
alfabetização. Merece registro que em pleno século XXI, na cidade do Rio de
Janeiro, a alfabetização das crianças é ainda um problema sério e provavelmente,
principal fator de exclusão social. Assim, é surpreendente a limitação da oferta
pública de classes de alfabetização, o que certamente tem efeitos na qualidade
destes cursos, justificando a presença na área de escolas e iniciativas
particulares, estas também de qualidade duvidosa. Apesar do relativo crescimento
do número de creches existentes no Complexo, crescimento ocorrido nos anos 90
através de programas e incentivos específicos do município, existem somente
doze creches em toda a área de Manguinhos (Bodstein, et al, 2001b) e, como se
viu, é uma importante reivindicação da população.
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Entre as onze comunidades do Complexo, sete revelam a necessidade de
ter um serviço de saúde na localidade. A demanda pela construção de postos de
saúde está presente nos levantamentos de opinião dos moradores e consta em
toda a pauta de reivindicação das comunidades carentes. Configura um ótimo
exemplo de uma demanda que não pode ser ignorada. Por outro lado, atesta a
importância de se trabalhar na qualificação das reivindicações da comunidade,
tendo em vista a existência de um Centro de Saúde Escola (CSESGF), situado no
próprio campus da ENSP/FIOCRUZ, responsável pelo atendimento básico da
população local.

Como veremos em outro capítulo dessa publicação, no bojo do programa


de DLIS e de Promoção da Saúde emerge a proposta de reorientação do modelo
assistencial do Centro de Saúde da ENSP, visando a inclusão e potencialização
das práticas de saúde comunitárias e de intersetorialidade, bem como a criação de
duas equipes do Programa de Agentes Comunitários de Saúde e do Programa de
Saúde da Família (PACS/PSF) do governo federal. Isto é, no âmbito do DLIS
ocorreu a assinatura de um convênio entre a Secretaria Municipal de Saúde e o
CSESGF/ ENSP, visando a implantação de duas equipes do PACS/PSF em
Manguinhos. A estratégia define não só a ampliação da cobertura de um elenco
de procedimentos de atenção básica e de promoção e prevenção da saúde, como
também o deslocamento das equipes para as comunidades. Ou seja, o PACS/PSF
aparece como programas fundamentais para a reorganização da porta de entrada
da população no sistema de saúde e também de mudança de modelo assistencial.

A ausência e absoluta precariedade de áreas de lazer, praças, quadras


esportivas, entre outros equipamentos urbanos parecem evidentes (Bodstein et
al.2001b), e representam uma demanda da população não só diante da
ociosidade dos jovens e adolescentes, mas na perspectiva de o acesso dos
moradores às atividades de esporte, cultura e lazer ser um direito de cidadania. A
exceção é a presença de alguns campos de futebol. Sem dúvida, a implantação
de um Centro Olímpico, parques e quadras de esportes é muito importante para a
auto-estima da comunidade, e, principalmente, para os jovens. Em grandes
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complexos de áreas faveladas, como é o caso de Manguinhos, são importantes a
construção e conservação desses espaços públicos.

Vale ainda registrar que apesar da área possuir um sistema de coleta de


lixo e de abastecimento d’água, cobrindo a quase totalidade das moradias, a
qualidade e precariedade dos mesmos são referidas por toda a comunidade. Isso
se traduz, em outras palavras, na demanda pela melhoria da qualidade da água e
na freqüência no abastecimento e não na extensão pura e simples da rede.
Problemas que se referem às questões ambientais constituem, sem dúvida, uma
prioridade para as populações faveladas e um desafio permanente para o poder
público. Como vimos anteriormente, a precariedade da infra-estrutura urbana,
traço característico de áreas faveladas e a existência de uma área com famílias
vivendo em condições subumanas, o caso da comunidade denominada de
Mandela de Pedra, que choca até mesmo a vizinhança e os moradores mais
próximos do complexo, colocaram como medida emergencial a reurbanização
ampliada e a construção de moradias. Esta questão específica da área de
Mandela de Pedra foi um dos principais pontos discutidos no âmbito do DLIS com
todas as autoridades e agentes responsáveis.

Outra significativa reivindicação da população local que o diagnóstico


mostrou foi justamente a integração dos equipamentos públicos da área,
revelando a importância da intersetorialidade, da articulação permanente com a
comunidade e da ampliação das parcerias para a solução dos problemas locais.
Como se sabe, é enorme a dificuldade de diálogo, não só entre setores diversos
da administração pública, mas sobretudo entre os três níveis de governo. Esta é
uma situação comum na administração pública, prejudicando os moradores. A
ação intersetorial e a formação de parcerias para o desenho de uma agenda
integrada são grandes desafios para uma gestão social mais eficiente e um dos
pilares dos programas de DLIS.
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GUIA DE EQUIPAMENTOS E INICIATIVAS SOCIAIS DE MANGUINHOS

As informações coletadas pelo diagnóstico participativo serviram de base


para um trabalho de campo realizado no âmbito do Projeto de Monitoramento e
Avaliação com a participação direta dos moradores e de seus órgãos de
representação (Bodstein, et al.2001c). As informações contidas no Diagnóstico
Participativo foram assim sistematizas e complementadas, objetivando mapear e
destacar os equipamentos, iniciativas, projetos e ações existentes no complexo.
Tarefa aparentemente simples, mas que em aglomerações urbanas precárias,
formadas por inúmeras e intrincadas favelas, comunidades, ruas, becos e vielas,
torna-se uma atividade extremamente complexa. A dificuldade veio, sobretudo, do
fato de que se buscava identificar e localizar com precisão não só os grandes
equipamentos públicos existentes no complexo, como também iniciativas sociais
pontuais e até mesmo personalizadas, como no caso da “Explicadora Estela” e do
“Eli Damaceno – professor de violão”. Para o trabalho de campo foram envolvidos
moradores e jovens representantes das associações locais, tendo em vista seu
conhecimento da área e a facilidade de circulação no local. A estratégia mostrou-
se inteiramente acertada e estimulante, na medida em que envolvia e capacitava a
equipe enquanto pesquisadores de campo.

O material coletado e sistematizado serviu de base para a edição do Guia


de Equipamentos e Iniciativas Sociais de Manguinhos (Bodstein et alii, 2001b). A
publicação compreende um conjunto abrangente de informações sistematizadas e
classificadas, traduzindo a rede de serviços, programas, projetos, experiências
associativas e atividades sociais existentes no local, desenvolvidos por entidades
públicas e privadas. Representa um mapeamento do espaço público e da vida
associativa local, consolidando um conjunto significativo de informações destinado
à população e a todos os parceiros envolvidos na proposta de DLIS e de
Promoção da Saúde. Tem o mérito de mostrar claramente as deficiências da rede
de serviços e equipamentos públicos, acentuando, porém, a potencialidade das
iniciativas e projetos existentes nos limites do Complexo de Manguinhos. Vem
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servindo como subsídio para a formulação de propostas e qualificação de novas
políticas e projetos para a área.

Diante do quadro de demandas e reivindicações de Manguinhos, o Guia


explicita, sobretudo, o campo de atuação do poder público, sua abrangência e
limitação no atendimento dos problemas e demandas locais. Retrata também o
envolvimento e o capital social presentes nas comunidades através de um
conjunto de iniciativas próprias, forjadas a partir da experiência e recursos dos
próprios moradores. Representa, ainda, a percepção dos moradores sobre a área
em que vivem, seus limites e potencialidades.

Para efeitos de apresentação, os equipamentos e iniciativas foram


classificados em seis grandes grupos temáticos: Associativismo; Assistência
Social; Educação; Cultura Esporte e Lazer; Geração de Trabalho e Renda e,
finalmente, Saúde, identificando o perfil de atuação de cada entidade cadastrada,
sua abrangência e especificidade das ações e dos serviços oferecidos. O quadro
III totaliza o conjunto de equipamentos e iniciativas existentes na região,
separando os grupos temáticos por cada uma das comunidades que compõem o
Complexo de Manguinhos. Traz, portanto, a possibilidade de um enfoque
descritivo, abrangendo todo o universo dos equipamentos e iniciativas registradas.

QUADRO III
SÍNTESE DOS EQUIPAMENTOS E INICIATIVAS
MANGUINHOS
Comunidades CHP AH VU PC PJ PO VT VS CNM MP CSM MANG TOTAL
2 C G C P

Associativismo 2 6 1 1 2 4 8 1 1 1 1 - 28

Assist. Social 3 2 1 2 - 4 5 - 2 - 1 3 23

Educação 1 5 2 3 1 4 10 3 4 - 3 - 36

Cultura 2 3 1 1 2 8 9 - 1 - 1 1 29

Trabalho 1 3 - 2 - 4 3 - - - - 2 15

Saúde 3 1 - 1 2 1 - - 1 - 1 1 11

TOTAL 12 20 5 10 7 25 35 4 9 1 7 7 142
Fonte: Guia de Equipamentos e iniciativas sociais em Manguinhos (2001b).
16
Chama a atenção a presença de diversas associações locais (28 no total),
que abrangem, além da representação política exercida pelas associações de
moradores presentes em cada uma das onze comunidades, várias outras
iniciativas associativas voltadas para a discussão de questões referentes às
mulheres, jovens, etc.

Por outro lado, um enfoque mais analítico é possível através da


desagregação dos equipamentos que compõem os grupos temáticos. Assim, de
maneira geral, foi possível observar a presença de algumas organizações sociais
que não tendo interlocução com o DLIS, vêm desenvolvendo projetos na área há
algum tempo. São inúmeras as atividades voltadas, direta ou indiretamente, para a
população jovem. O número relativamente significativo de iniciativas na área da
educação e cultura, em relação às demais, reforça a importância atribuída a esta
temática para o desenvolvimento local, assim como o necessário questionamento
em relação à cobertura e à qualidade do acesso à educação pelos diferentes
segmentos das comunidades. Revela-se, assim, a urgência em estabelecer a
interlocução entre essas diversas organizações, potencializando e ampliando as
intervenções e, sobretudo, evitando, quando for o caso, a duplicação de esforços.

Outra questão que merece destaque diz respeito à presença de treze


igrejas evangélicas e espíritas no complexo, todas envolvidas quer na distribuição
de cestas básicas quer no fornecimento e repasse do chamado “cheque cidadão”.
Ora, como se sabe, essa prática atrela-se a uma estratégia de populismo
evangélico, onde a ação social acaba por criar um vínculo de dependência direta
das famílias beneficiadas com os pastores, bispos e representantes das igrejas. O
fundamental é que tais práticas aparecem como favores prestados e que nesta
condição podem ser cobrados em períodos eleitorais, o que nada acrescenta na
perspectiva dos direitos e da promoção da cidadania.

As iniciativas para os jovens, em especial aquelas referentes a cursos e


atividades profissionalizantes, ainda que presentes, parecem muito limitadas
diante da gravidade do problema da violência na região. A ausência de atividades
e equipamentos culturais ficou bastante evidenciada. Por outro lado, percebe-se
que as atividades tradicionais como futebol e esportes em geral podem ser
17
facilmente potencializadas, bem como a criação de praças e parques infantis que
têm um papel fundamental na auto-estima da comunidade. A criação de uma Vila
Olímpica aparece como uma reivindicação e um desejo antigo de toda a
comunidade.

O ponto de vista do monitoramento e da avaliação enfatiza a


democratização das informações como um elemento crucial na qualificação da
participação das organizações e associações locais, servindo de matéria prima
para discussão, e subsídio para novas interlocuções e parcerias para o
desenvolvimento social e a promoção da saúde na região.

A CONSTITUIÇÃO DO FÓRUM ACORDA MANGUINHOS

A partir da dinâmica estabelecida em torno das discussões sobre o


programa DLIS e do diagnóstico participativo, ocorre um processo de mobilização
e de revitalização da comunidade, cujo principal indicador é dado pelo surgimento
de espaços, iniciativas e novas formas de organização, voltadas para a discussão
das questões referentes à problemática das mulheres, dos idosos e dos jovens.
Isto é, merece referência o fato de que a proposta de DLIS vem permitindo uma
indiscutível renovação nas formas de associação e de representação dos
interesses locais.

O marco nesse processo ocorre com a constituição do “Fórum Regional


Acorda Manguinhos”. O Fórum foi instalado oficialmente em julho de 2001, com a
participação de 67 membros, representando os Fóruns Locais por comunidade. Na
primeira reunião do Fórum Regional foi aprovada a constituição de uma Comissão
Executiva, que atualmente está composta por 16 membros representativos das
entidades populares e comunitárias do Complexo de Manguinhos. A Comissão
Executiva tem como objetivo estratégico promover e fortalecer a sociedade civil
em Manguinhos, estimulando o Coletivo de Mulheres e a construção do Coletivo
de Jovens.

Com a mobilização social para constituição do Fórum Comunitário


Regional, realizou-se, em seguida, o I Encontro de Mulheres, com participação de
18
representantes das onze comunidades de Manguinhos. O Encontro estabeleceu
como objetivos a troca de experiências e a reflexão do cotidiano das mulheres, na
busca de soluções para melhorar a qualidade de vida da população do complexo
de Manguinhos. O coletivo de mulheres, reunindo lideranças das cinco
associações de mulheres existentes na região, está organizando grupos temáticos
para discussão e estratégias coletivas de equacionar os principais problemas de
saúde, de educação, de cultura e lazer, de geração de trabalho e renda e, por fim,
de questões ligadas ao urbanismo e à habitação.

O Fórum teve o mérito de ampliar a diversidade de atores sociais e assim


contribuir para o crescimento da participação mais qualificada nos vários setores
de atuação do DLIS. Representou, portanto, um marco na reorganização da vida
associativa local, potencializando a discussão e a formação de novas parcerias
em torno da melhoria das condições de vida e saúde em Manguinhos. Importa
perceber que as organizações e lideranças locais responderam prontamente e de
forma propositiva ao DLIS, assumindo um papel fundamental no encaminhamento
das ações e iniciativas de desenvolvimento local e de promoção da saúde no
complexo.

Porém, é forçoso reconhecer a dificuldade em se agregar e discutir as


propostas vocalizadas pelos diferentes segmentos que representam a população
de Manguinhos, fortalecendo uma agenda comum a ser negociada com o poder
público e que beneficiaria a comunidade como um todo. A situação de violência e
a falta de segurança dos moradores devem ser vistas como um obstáculo à
formação da cidadania e da consciência social em Manguinhos, impedindo
inclusive a implementação de políticas públicas locais.

O quadro se complica diante das próprias características das instituições


públicas marcadas pela ausência de diálogo e pela competição entre os diversos
setores e serviços. A base não cooperativa entre os diferentes níveis de governo,
gerando conflitos e oposição é uma constante na administração pública. Além
disso, o peso das políticas de viés assistencialista e clientelista é ainda muito forte,
conformando um circuito de interesses e conveniências de difícil reversão diante
do quadro de carência da população local.
19
É esta mesma situação de carência e enorme precariedade nas condições
de vida que permite a presença e a manutenção de programas assistencialistas. A
perversidade, neste caso, reside em manter a população carente em relação de
dependência diante de determinado político, partido e/ou seitas religiosas,
reforçando a relação de “favor”. Além do forte apelo “eleitoreiro”, estas estratégias
debilitam o sentido dos direitos sociais e da cidadania ativa. A paternidade dos
programas sociais e sua vinculação direta com determinados partidos políticos
e/ou governo é outra característica muito presente na gestão pública. Acaba por
dificultar o diálogo e até mesmo impedir o reconhecimento e aceitação de
programas e ações sociais com comprovada efetividade, porém vinculados a
outros grupos políticos.

EM BUSCA DA EFETIVIDADE E DA SUSTENTABILIDADE

A avaliação de iniciativas e ações locais de caráter participativo e


multisetorial pressupõe, como vimos, um modelo de avaliação que ultrapassa e
rompe com os desenhos avaliativos tradicionais, baseados na medição de efeitos
e impactos. Em programas como o DLIS as mudanças são amplas, complexas,
difusas, polissêmicas e, quase sempre, sujeitas a uma série de contingências,
exigindo um longo processo de amadurecimento. As estratégias de Promoção da
Saúde incluem, como dizem Potvin & Richard (2001), novas formas de
organização e ação política, como também, novos arranjos institucionais. As
atividades e iniciativas são modificadas com enorme rapidez de acordo com a
dinâmica e o contorno das relações sócio-políticas. Deixam entrever processos
contraditórios e idas e vindas nas práticas democratizantes e participativas.

A metodologia de avaliação adotada para o DLIS Manguinhos coloca o


processo de avaliação como parte integrante da análise estratégica e da reflexão
sobre a pertinência e a viabilidade da proposta em cenários de enorme volatilidade
na política institucional e na vida associativa e cultural local. Discute a
problemática da sua implantação e sustentabilidade, onde o protagonismo da
população vis-à-vis mudanças nas práticas institucionais são imprescindíveis e
20
fatores cruciais para a efetividade do programa. Assim, o modelo pressupõe uma
avaliação comprometida com as mudanças, buscando subsidiar tecnicamente as
ações sociais em curso.

Cabe observar que os mecanismos de democratização, participação e


inovação na gestão dos problemas sociais são de mão dupla. O poder público
abre “canais de participação”, ampliando o espaço público e capacitando os
representantes comunitários que se co-responsabilizam pelas mudanças
programadas. No caso do poder público, o que se viu nestes dois anos de DLIS foi
um processo profundamente incerto, de relativa abertura, seguido de um visível
recuo e distanciamento. Um diálogo e uma interlocução ampliada e transparente
entre os atores envolvidos no DLIS-Manguinhos foram atropelados, ao que
parece, pela lógica da política partidária e por uma espécie de neo-clientelismo,
em que programas sociais são implantados, visando efeitos eleitorais imediatos.
Assim, a sustentabilidade política do processo – passando pelo compromisso do
poder público com o desenvolvimento local e com investimentos de médio e longo
prazos, através da elaboração e pactuação de uma agenda local – não se
viabiliza. Um planejamento compartilhado entre os diversos parceiros do programa
ainda está longe de se concretizar, o que significa que teremos ainda que conviver
com a lógica do velho circuito populista e assistencialista. Segundo nos lembra
Pedro Jacobi (2002) a cultura política dominante leva a uma participação
vinculada à noção de utilidade/objetividade.

Mudanças e inovações nas práticas e iniciativas comunitárias em


Manguinhos são inúmeras e serão apresentadas e discutidas nesta publicação.
Aqui interessa pontuar que a sistematização bem como a disponibilização das
informações sobre as ações, projetos serviços e iniciativas são condições
necessárias para o exercício da cidadania e para uma participação ativa e
qualificada no processo de desenvolvimento local. Tendo objetivos tão
ambiciosos, é claro que os caminhos são incertos e os efeitos visíveis a médio e
longo prazos. Os avanços, porém, ainda que incertos parecem evidentes
21
NOTAS

1
Retratos do Rio, O GLOBO, 28/04/2001.
2
Desenvolvimento Humano e Condições de Vida: Indicadores Brasileiros,
PNUD/IPEA, 1998.
3
Com mil páginas, o Relatório é dividido em dez capítulos, entre os quais
Educação, Saúde, Meio Ambiente, Violência, Distribuição de Renda e Habitação.
Ao todo, foram produzidos 55 mapas e 600 tabelas. A publicação é resultado de
uma parceria entre o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento
(PNUD), a Prefeitura do Rio de Janeiro e o Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada (IPEA).
4
Retratos do Rio, O Globo, 24/03/01.
5
Em todo o bairro de Manguinhos, somente 3,2% da população maior de 25 anos
possuem nível superior, segundo dados do Relatório de Desenvolvimento Humano
do Rio de Janeiro. Retratos do Rio, O Globo, 12/05/01.
6
Projeto Desenvolvimento Humano Sustentável em Nível Local da Perspectiva da
Saúde, ENSP/FIOCRUZ, novembro de 1997.
7
Sigla das Comunidades do Complexo de Manguinhos: (PCC)Parque Carlos
Chagas; (PJG)Parque João Goulart; (POC)Parque Oswaldo Cruz;
(CSM)Comunidade Samora Machel ; (CNM)Comunidade Nelson Mandela;
(CMP)Comunidade Mandela de Pedra; (CAH)Comunidade Agrícola de
Higienópolis; (CHP2)Conjunto Habitacional Provisório 2; (VSP)Vila São Pedro;
(VT)Vila Turismo; (VU)Vila União
8
Retratos do Rio, O Globo, 28/04/2001.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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BODSTEIN, R. C. A. et all., 2001b. Manguinhos – Guia de Equipamentos e


Iniciativas Sociais. Rio de Janeiro: FIOCRUZ.

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Monitoramento e Avaliação do Programa de Desenvolvimento Local Integrado
e Sustentável de Manguinhos. Rio de Janeiro: DCS/ENSP/FIOCRUZ.
22

BODSTEIN, R. C. A. et all., 2002. Segundo Relatório Técnico – Projeto de


Monitoramento e Avaliação do Programa de Desenvolvimento Local Integrado
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