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1 Filosofia e pratica, um comentario ao prefacio de “Para a critica da economia politica” de Karl Marx Luigi Bordin Introdugao 0 Prefiicio de 1859 ao volume Para a eritica da economia politica & importante por ser © tinico texto de Marx que traga um perfil, ainda que breve, de sua hist6ria intelectual, e, por conseguinte, politica. E essencial por nele descrever, em uma pagina e meia, o nticleo de seu método. Gramsci dizia que 0 Prefiicio era a “fonte auténtica mais importante para a reconstrugao da filosofia da praxis”, termo que usava para indicar 0 marxismo.. O historiador marxista inglés, Eric Hobsbawn, define este texto breve de Marx ainda hoje como “soberbo” onde ele nos apresenta “o materialismo histérico em sua forma mais plena”. Todavia os préprios métitos desse Prefiicio podem trazer equivocos. Na verdade, trata-se duma exposigao essencial e suméria que deve ser lida tendo presente todo 0 pensamento de Marx. Caso contrério, pode-se chegar a uma interpretagao redutiva e deformada da sua doutrina, vendo na relagao estrutura-superestrutura uma relagdo determinista ¢ mecanicista. Nosso propésito é de apresentar através do comentario desse prefficio uma sucinta, mas densa introdugo 20 pensamento de Marx. Prefacio e comentario 1) Em 1842-43, na qualidade de redator da Rheinische Zeitung, ( Gazeta Renana) i-me, pela primeira vez, na embaracosa obrigagdo de opinar sobre os chamados interesses materiais Marx acena aqui para a batalha jornalistica de que foi protagonista, a dos “roubos da Ienha” onde defendeu o direito consuetudinario que consentia & “massa pobre” 0 corte da lenha contra uma aplicagdo rigida do direito de propriedade dos proprietérios dos bosques Marx como “jovem hegeliano” tinha em mente uma idéia de “Estado universal” contratio 20 particularismo dos interesses, mas cuja universalidade se manifestasse na livre consciéncia dos cidadaos. 2) O primeiro trabalho que empreendi, para resolver as diividas que me assaltavam, foi uma revisdo critica da Filosofia do Direito de Hegel. Esta a problemdtica que caracteriza seu primeiro trabalho te6rico: uma erftica & filosofia do direito de Hegel, que empreendeu depois de ter deixado o jornal. Tinha se tomado dificil dirigir a Gazeta Renana sob a pressio da censura do governo € a pressao dos donos do jomal. Nessa altura, Marx estava sob a influéncia cultural de Feuerbach, critico de Hegel. Segundo ele, a “Idéia” de Hegel era uma reedigao da teologia que relega 0 homem concreto ¢ sensivel ¢ todos os seus problemas a fungdo de determinagao da “Idéia” Sua forga tedrica consiste na idéia de revirar o pensamento de Hegel: Hegel revitou a realidade, ora a critica filoséfica, dizia Feuerbach, deve recolocé-la no seu justo lugar. ‘Marx era um jornalista politico ¢ tinha como central o problema do Estado. Utilizando a estrutura da critica feuerbachiana, criticou a falsa universalidade do Estado de Hegel, mostrando que cla deriva do truque filoséfico hegeliano: o de apresentar o Estado prussiano 2 existente, com seu monarca e burocracia , como a realizagio do Espirito e, portanto, como pura racionalidade, ‘A critica tedrica ao sistema filoséfico de Hegel como ideologia conservadora era assim feuerbachiana. O ideal politico que animava essa critica era democritico-rousseauniano, Nilo s6, segundo Marx, o Estado de Hegel é uma falsa universalidade, mas a idéia de Estado como universalidade juridica é uma “alienagio” do homem, exatamente como o Deus da teologia cristd e a “Idéia” da filosofia de Hegel criticados por Feuerbach. 3)Minhas investigagées me conduziram ao seguinte resultado: as relagées juridicas bem como as formas de Estado ndo podem ser explicadas por si mesmas, nem pela chamada evolugdo geral do espirito humano; estas relagGes tém, ao contrario, suas raizes nas condigées materiais de existéncia em sua totalidade, relagdes estas que Hegel, a exemplo dos ingleses e franceses do século XVII, compreendia sob o nome de “Sociedade civil”. Para Marx, o Estado, ¢ as relagGes juridicas que ele funda e que o caracterizam, ndo podem ser compreendidas por si mesmos prescindindo da sociedade. O Estado nio é também 0 resultado do assim chamado “desenvolvimento geral do espirito humano.” Para Marx, o Estado s6 se explica indo as suas rafzes, isto é, as relagdes materiais de existéncia. Estas so aquelas relagGes que em Hegel, como no pensamento precedente, so definidas como “sociedade civil” separada do Estado. ‘A concepgao liberal (John Locke) separa a sociedade civil da estatal para afirmar no campo privado toda uma série de direitos de liberdade , sobretudo, de liberdade econémica, Hegel tinha mostrado a autonomia da sociedade civil, isto é, 0 funcionamento das relagdes econdmicas com respeito ao Estado que constituia a sintese ética Marx, neste momento seguidor de Feurbach, procura mostrar como o estado de igualdade dos cidadios frente 3 lei é uma falsa universalidade na medida em que cria um “eéu” (0 Estado) em que os homens sio iguais, enquanto existe uma terra (a sociedade civil) onde vigoram as relagdes de propriedade e os homens sio, por conseqiiéncia, desiguais. ‘Marx retoma pois aos conceitos de “sociedade civil” e “sociedade politica”, mas para mostrar que as relagGes econémicas constituem a base da sociedade civil e politica, melhor dizendo: as relagdes econdmicas constituem a estrutura-base essencial de toda sociedade ¢ do Estado 4) O resultado geral a que cheguei e que, uma vez obtido, serviu-me de guia para os meus estudos, pode formular-se, resumidamente, assim. Devemos notar a expressio: “guia para os meus estudos". Marx aqui insiste sobre 0 caréter do método com que se apresenta a sua concepgio.Trata-se antes de tudo,de um método de pesquisa. Nao uma concepcio em si concluida, um sistema de “verdades” definitivas, mas um modo de pensar sempre aberto a novas aquisigdes, sempre pronto a colocar em diivida o ja adquitido. © método de Marx, que se traduz na analise a realidade social e dos processos histéricos € politicos duma realidade histérica ¢ determinada, visa, também ¢ sobretudo, guiar a uma agdo capaz de transformar a realidade social ¢ de incidir sobre os processos histéricos 5) Na produgdo social da propria existéncia, os homens entram em relagées determinadas, necessdrias, independentes de sua vontade; estas relagdes de produgdo correspondem a um grau determinado de desenvolvimento de suas forgas produtivas ¢ materiais. ‘A produgao da vida, da existéncia dos homens se cumpre, se dé, através do trabalho. Esta produgao é social, pois s6 na vida de grupo é possivel aquela reciprocidade de reagdes, de troca de experiéncias e de ajuda reciproca, que permite chegar 4 capacidade de trabalhar. Com efeito, o trabalho do homem exige cooperago entre os homens e, pois, vida social ¢ organizagdo em sociedade. Cada época da vida social, cada forma de vida social, tem em sua base o trabalho, a producio. Marx nfo aceita 0 materialismo antropolégico que busca reduzir todas as manifestagdes, também as sociais, 4 “natureza humana” concebida de forma estitica Opunha-se também aos filésofos que, como Hegel, tentam explicar 0 real a partir do conceito de “Espirito” concebido de forma totalizadora acabando em especulagdes abstratase vazias. Marx faz seu o tema hegeliano da relacio homem-natureza mas, revirando ¢ radicalizando a posigao de Hegel, d4 a énfase e a primazia 3 base material dessa dialética, isto 6, ao processo material de producdo. Para Marx, 0 mundo procede, evolui, se desenvolve a partir de relagdes reais de poder, na base das quais estio as relagées de produgao. Vimos que essas relagdes so sempre sociais. Mas s4o também “determinadas”, isto 6, mudam e assumem caracteristicas precisas segundo o desenvolvimento da economia. Tais relagdes sio também “necessdrias” pois elas obedecem a um determinado desenvolvimento das capacidades dos homens em produzir os bens necessirios para suas existéncias. Em conseqiiéncia, possum um cardter objetivo: obedecem a leis préprias da economia. Temos aqui dois conceitos-chave: “forgas produtivas” e “relagaes de produgdo”. Com a expressio “forgas produtivas”, Marx indica o homem que trabalha ¢ os meios com os quais ele trabalha. O meio de trabalho consente, segundo 0 grau_de sua evolugdo ( pedra talhada ou instrumento de ferro ou maquina), uma diferente relago com a natureza, com 0 objeto de trabalho, e, pois, a ctiago de bens diversos, sempre mais correspondentes as necessidades do homem. Da satisfago dessas necessidades derivam novas necessidades num processo incessante. O desenvolvimento das forcas produtivas incide também sobre as relagoes de producio. Quando as forgas produtivas so elementares, como por exemplo as da tribo que vive de caga e pesca, é evidente que as relagdes de produgdo que se estabelecem entre seus membros so muito simples. Todos concorem cooperando enite si, ndo existe propriedade privada etc. As coisas mudam com © modo de produgdo escravocrata, que pressupde o cultivo da terra e 0 pastoreio. Temos, de um lado, os proprietirios de escravos e, de outra parte, os escravos. Ou seja, com o desenvolvimento das forgas produtivas, os grupos. sociais colocam-se de forma diferente nas relagdes de produgdo, que se tornam mais complexas. Tudo isso aparece mais claro quando surgem as “manufaturas”, que dio lugar a uma nova divisdo de trabalho ¢ a relagdes sociais diferentes com respeito a0 modo artesanal (doméstico) anterior. E assim, quando nasce a grande indiistria mecdnica, temos nova divisio de trabalho e novas relagGes: as entre o capitalista de um lado e os operdrios, sem propriedade, do outro.

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