Você está na página 1de 6

O DILÚVIO EM GILGAMESH E NO GÊNESIS

Por Edmilson do Nascimento Meireles

Introdução
A Epopéia de Gilgamesh é a história de um rei sumério governante da cidade-estado de Uruk
que teria vivido no século XXVIII a.C.. Seu registro mais completo provém de uma tábua de
argila em escrita cuneiforme do século VIII a.C. pertencente ao rei Assurbanipal e encontrada
nos primórdios do século XIX d.C. em meio às ruínas de sua antiga biblioteca situada na capital
do império Assírio, a saber, Nínive. Tendo sido, no entanto, também encontradas
posteriormente por toda a Mesopotâmia, tábuas com adições à narrativa que datam do século
XX a.C., sendo assim, este é considerado o mais antigo texto literário do mundo, superando
inclusive as odes homéricas.

A primeira tradução moderna foi realizada na década de 1860 pelo estudioso inglês George
Smith. Após ele, foi dado início a um trabalho de tradução e estudos das escritas cuneiformes
que se prolongaram até o século XX, trabalho este, que até hoje se encontra incompleto, pois
há passagens da Epopéia que ainda estão completamente perdidas.

Em função das muitas versões encontradas de seu texto, deduz-se que a história de Gilgamesh
devia ser bem conhecida no mundo antigo, estudiosos especulam inclusive que a esta poderia
ser creditada influência sobre muitas das conhecidas culturas do mundo antigo, inclusive a
grega e até mesmo a hebraica, visto as perceptíveis semelhanças entre determinadas
narrativas existentes nessas culturas e a grande capacidade da cultura suméria em sobreviver
em meio a culturas "rivais", fato notável, visto a sua considerável manutenção mesmo após
invasão semita. Além disso, a possível popularidade desta história, também poderia se dever
ao fato de ser uma das poucas histórias de rico valor literário em meio a grande superioridade
numérica de documentos comerciais e administrativos produzidos naquela época.

O desaparecimento histórico da Epopéia de Gilgamesh se deveu principalmente à queda de


Nínive, capital da Assíria em 614 a.C. pelas mãos do império persa, que não tinha o menor
interesse em preservar as culturas de antigos inimigos, bem como os hebreus, que após anos
de exílio em território babilônico, tinham motivos de sobra para querer esquecer a Assíria.
Além disso, o mundo mediterrâneo estava mudando e os caracteres cuneiformes estavam
sendo cada vez mais esquecidos.

O Ciclo de Gilgamesh é composto por vários poemas, divididos em 12 tabuletas contendo


narrativas diferentes. É provável que o poema tenha sido constituído e recitado oralmente
muito tempo antes de seus registros escritos. Os babilônios reuniram esses poemas e,
entrelaçando suas histórias, compuseram a Epopéia de Gilgamesh. Dessa forma, a descrição do
dilúvio na Epopéia de Gilgamesh é independente da narrativa, pois essa é oriunda de outros
textos sumérios, que se concentram inclusive com as narrativas do princípio do mundo.
A Epopéia narra os feitos do famoso rei Gilgamesh, cujo nome consta como o quinto monarca
da primeira dinastia pós-diluviana de Uruk, tendo reinado por 126 anos. Sua existência
histórica foi comprovada arqueologicamente: um homem, um rei, chamado Gilgamesh, viveu e
reinou em Uruk, em alguma época da primeira metade do terceiro milênio a.C. seus maiores
feitos foram provavelmente em torno da obtenção de madeira nas montanhas do norte e a
construção durante seu reinado de diversos monumentos, como templos e muralhas.

A história é dividida em episódios: 1º Um encontro de amigos, quando Gilgamesh e Enkidu são


apresentados e tornam-se amigos; 2º Uma jornada pela floresta, quando a dupla se embrenha
pela floresta e enfrenta o terrível Humbaba; 3º O insulto à deusa caprichosa, quando
Gilgamesh rejeita o amor de Ishtar e por sua vez, ela arma a morte de Enkidu e 4º a busca da
sabedoria ancestral e da imortalidade, quando Gilgamesh parte em busca de obter a vida
eterna. A morte de Gilgamesh, bem como o relato do dilúvio, trata-se de um conteúdo
encontrado à parte da narrativa principal.

O herói da Epopéia é descrito como dois terços deus e um terço homem, pois sua mãe era uma
deusa. Dela, Gilgamesh herdou grande beleza, força e inquietude. A tragédia do poema é o
conflito entre os desejos do deus e o destino do homem. A maior parte dos demais poemas
sumérios são hinos e lamentos dirigidos aos deuses, ou que se ocupam de seus atributos e
atividades. Conhecem-se alguns poemas "épicos" do período babilônico arcaico ou de períodos
mais recentes, mas seus protagonistas são em geral deuses ou monstros. Gilgamesh é o único
personagem humano de estatura heróica que chegou a nossos dias. Ele extrai o sentimento
puramente humano com relação ao mistério da morte, visto que os deuses não morrem e
logo, não podem sentir esta mesma emoção. Gilgamesh vive no decorrer de toda a história o
cruel dilema que assombra toda a humanidade: o que esperar após a morte? Após buscar pela
imortalidade de seu nome e feitos realizando aventuras memoráveis, o herói parte em busca
de obter a própria vida eterna, porém, Gilgamesh não a teve e deve, como todo mortal, aceitar
seu trágico destino. A Epopéia de Gilgamesh reflete bem o predominante pensamento
pessimista da sociedade mesopotâmica em geral.

A Epopéia de Gilgamesh apresenta uma linguagem altamente elaborada, utilizando-se de


trocadilhos, ambigüidades propositais, ironias e até mesmo alegorias. Repetições palavra por
palavra de passagens relativamente longas são vistas tanto nas mais antigas versões sumérias
quanto nas "recentes" versões semitas.

Comparação

Comparando a história do dilúvio descrita no livro do Gênesis bíblico com o semelhante relato
apresentado pela Epopéia de Gilgamesh, é possível perceber maiores diferenças nos detalhes
das histórias, pois seus atos principais são realmente os mesmos. Explica-se: as maiores
semelhanças se dão pela construção geral das obras, pois ambas se tratam de uma história
que narra o surgimento de uma terrível tempestade enviada por um ser divino com a
finalidade de destruir toda a raça humana, além disso, semelhança marcante também se deve
ao fato de sobreviverem alguns indivíduos à esse dilúvio mediante a construção de um grande
barco que os protege das águas. Dessa forma, as diferenças entre uma e outra narrativa só
saltam aos olhos quando analisamos em seus detalhes particulares. Abaixo, apresenta-se uma
lista com algumas das mais notáveis diferenças e semelhanças que podem ser observadas.

1. No Gênesis, Deus resolve destruir a Terra e seus habitantes vivos devido a grande maldade
do homem. Na Epopéia, os deuses, em conselho liderado por Enlil, decidem exterminar a raça
humana por causa de sua balburdia, o que incomodava e atrapalhava seu sono.

2. No Gênesis, Deus por compaixão a Noé, ordena que este construa a arca e se salve do
dilúvio. Semelhantemente, na Epopéia, o deus Ea alerta ao herói anônimo para que este
construa um barco e escape ileso da tempestade que viria. Obs.: Na Epopéia de Gilgamesh,
deus Ea ordena ao herói que engane seus contemporâneos, dizendo que estava construindo o
barco para partir dali, pois o deus Enlil enviaria uma grande benção para aquele povo, mas
estaria furioso com o herói e por isso ele estava partindo para viver com o deus Ea.

3. No Gênesis, a arca é feita de madeira e revestida com betume. Na Epopéia, o barco também
é feito de madeira, porém, calafetada com óleo.

4. O herói do relato diluviano na Epopéia de Gilgamesh conta com ajuda profissional para
erguer seu barco, Noé, aparentemente, projeta sua arca sozinho, apenas com a ajuda de seus
filhos e de Deus.

5. A arca de Noé é construída com trezentos côvados de comprimento, cinqüenta côvados de


largura e trinta côvados de altura formando um grande paralelepípedo dividido ainda em 3
andares e com o teto a um côvado mais alto. O barco da Epopéia tem formato cúbico de cento
e vinte côvados para cada lado, dividido em seis conveses de nove compartimentos cada, alem
do convés superior aberto.

6. Tanto Noé quanto o herói do relato diluviano da Epopéia de Gilgamesh levam em suas
embarcações, outros indivíduos além deles. Noé leva consigo na arca, sua família e os pares de
casais de cada espécie de animais. O herói anônimo da Epopéia, leva com ele em seu barco,
seu ouro, sua família e parentes, seus animais (domésticos e selvagens) e artesãos, além disso,
o deus Ea também o ordena que leve com ele "a semente de toda criatura viva".

7. O dilúvio de Noé dura quarenta dias e quarenta noites. Na Epopéia de Gilgamesh, a


tempestade dura apenas uma semana. Obs.: O dilúvio na Epopéia é dramaticamente descrito
não como apenas chuva, mas como uma tempestade tão terrível ao ponto de aterrorizar os
próprios deuses que a convocaram.

8. A arca de Noé encalha no monte Ararat, o mesmo morro em que o barco do dilúvio na
Epopéia fica preso, porém, nesta outra narrativa, ao mesmo morro é dado o nome de Nivir.

9. Em ambas as histórias, seus protagonistas utilizam-se de pássaros para verificar se as águas


já haveriam de ter secado. Ao aportar, Noé solta primeiro um corvo e depois uma pomba, de
maneira em que ambos os pássaros voltam, Noé espera mais sete dias e envia a pomba de
novo que dessa vez regressa trazendo consigo um ramo de oliveira, após outra semana, Noé
solta a pomba outra vez, mas enfim, esta não regressa mais. O herói do relato do dilúvio na
Epopéia de Gilgamesh solta primeiro uma pomba no sétimo dia após o barco atracar na
montanha, porém ela volta, seguidamente, o mesmo ocorre com a andorinha, mas ao soltar o
corvo, este não regressa ao barco.

10. Noé queima sacrifício a Deus, que aceitá-os. Em seguida, Deus ordena a Noé e sua família,
o mesmo que ordenara a Adão e Eva: que eles deveriam se multiplicarem e dominar a todos os
animais, sem jamais porém, comer do sangue destes, além disso, o final do relato diluviano no
Gênesis é caracterizado pela promessa de Deus a Noé que não mais destruiria o mundo sob as
águas de um dilúvio. De forma semelhante, mas diferente, o herói na Epopéia de Gilgamesh
também faz sacrifícios aos deuses, que se amontoam como moscas em volta. No fim, a deusa
Ishtar repreende o deus Enlil por ter enviado o dilúvio e destruído os homens, Enlil, por sua
vez, se enche de cólera de ver que alguns humanos sobreviveram e por isso, o deus Ea o
repreende, conduzindo o herói (apresentado apenas no fim como sendo Utnapishtim) e sua
esposa à vida eterna.

Crítica

Lidos de maneira superficial, a história da arca de Noé e o relato do dilúvio na Epopéia de


Gilgamesh parecem ser o típico caso onde o mesmo mito é narrado de duas formas diferentes,
entretanto, uma análise mais profunda dos textos, permite que o leitor perceba, além de
inúmeros pequenos detalhes díspares entre as histórias, uma série de profundas mudanças
tanto literárias quanto teológicas em torno das duas narrativas.

Literariamente, ambos os textos possuem grande qualidade, porém, seja devido ao pouco
contato com a cultura suméria ou pela recém adquirida familiaridade à Epopéia de Gilgamesh,
a narrativa do dilúvio no Gênesis aparenta ser mais coesa e coerente, mesmo em meio ao
anteriormente citado em aula problema de dupla tradição encontrado na passagem bíblica.

O intrínseco e problemático jogo de ideologias existente no panteão sumério, bem como seus
deuses caprichosos e dotados de sentimentos e fraquezas quase humanas, confunde o leitor
ocidental, acostumado à visão de um único Deus soberano, perfeito e plenamente razoável.

Na Epopéia de Gilgamesh, os deuses parecem não se dar conta das proporções catastróficas
que o dilúvio causaria, sobretudo nem se importam com os homens, a não ser pelo fato de que
a presença da humanidade os incomodava, não moralmente falando como Yahweh em
Gênesis, mas de forma caprichosa, pois os homens lhes perturbavam o sono com suas
balburdias. São deuses frios, aparentemente indiferentes à existência ou não da vida na Terra.

De maneira bem mais razoável, Yahweh em Gênesis é um Deus que se arrepende de sua
criação por causa do aspecto imoral com que ela se porta. Vivendo a maldade em seu íntimo, o
ser humano entristece a Deus por não ser este o plano divino para a criação, entristece de tal
maneira que o Senhor resolve recomeçar, destruindo o mundo, porém, salvando aquele
indivíduo que ainda se mantinha íntegro mesmo em meio a tamanha perversidade, a saber,
Noé.
Dessa forma, Deus em Gênesis tem completa convicção dos motivos, meios e fins que seu
dilúvio teria, bem diferente dos deuses no poema sumério que não tinham um motivo claro e
cabível para tal, visto que entre eles mesmos houve discordância quanto a vinda do dilúvio;
não conheciam os meios, pois o dilúvio os assustara; e, não entendiam os fins, de maneira em
que eles sequer planejaram o mundo pós-dilúvio, ao passo que somente o deus Ea decide
salvar alguém da enxurrada.

Yahweh é também apresentado em Gênesis como um Deus todo poderoso, cheio de


sabedoria, que não está sujeito a erros, fraquezas e necessidades humanas, é um Deus em que
se pode confiar, além disso, é também justo e misericordioso, prometendo ao fim de tudo, não
mais enviar outro dilúvio a Terra. Na Epopéia, os deuses são mesquinhos e individualistas,
precisam dormir como os mortais e cobiçam os sacrifícios ao final da história como moscas em
torno da carne morta, sentem medo da própria tempestade que conjuraram por motivos
fúteis e um deles ainda se enfurece ao ver alguns homens vivos, Enlil pode ser tomado como
um deus bastante impiedoso, pelo menos numa leitura ocidental e contemporânea da Epopéia
de Gilgamesh.

Quanto aos protagonistas, Noé é considerado um homem justo e bom, que crendo no aviso
divino constrói a arca sozinho, contando apenas com a possível ajuda de seus três filhos. O
herói da narrativa do dilúvio na Epopéia de Gilgamesh aparenta ser bem menos altruísta,
enganando seus conterrâneos quanto ao motivo pelo qual construía seu grande barco,
omitindo a vinda do dilúvio.

A história na Epopéia de Gilgamesh é contada em primeira pessoa, sendo o eu lírico tomado


pelo próprio protagonista, talvez seja esse um dos motivos pelo qual a narrativa preocupa-se
em ser detalhista quanto aos processos de construção do barco e aos efeitos do temporal,
visto que um relato pessoal exige maior número de particularidades do tipo, menos presentes
que na história de Noé, narrada em terceira pessoa.

Outra questão que também pode levar a explicar essa diferença entre a pessoa que narra as
duas histórias, talvez se deva ao fato de o dilúvio da Epopéia seu uma obra poética, enquanto
o dilúvio de Noé trata-se de uma prosa narrativa.

Mesmo permeada pela complicada e contraditória dualidade de tradições. a história do dilúvio


em Gênesis se preocupa em pautar cronologicamente todos os acontecimentos envolvendo o
dilúvio, desde a idade de Noé antes e depois de virem a chuva, até a duração da tempestade e
o tempo que as águas demoraram para secar, tipo de contextualização que se encaixa melhor
em uma prosa e por isso não tão presente na Epopéia de Gilgamesh.

Os propósitos envolvendo os dois escritos também perecem ser divergentes, a Epopéia é um


texto literário que busca contar como se deu os acontecimentos do grande dilúvio, marco
histórico que dá início a nova contagem da dinastia suméria, da qual Gilgamesh é o quinto rei
de Uruk, além disso, ela exprime a maneira pela qual Utnapishtim obteve a imortalidade que o
rei Gilgamesh tanto ansiava ter.
Em Gênesis, o propósito aparenta ser outro, o de narrar os fatos do dilúvio e, como a
humanidade sobreviveu a ele na pessoa justa de Noé, mostrando as conseqüências
devastadoras da maldade humana, bem como a implacável justiça e grandiosa misericórdia de
Deus, dando ao homem uma segunda chance, uma nova criação, com a promessa de que tal
destruição não mais se repetiria.

Em termos de valor literário, não se pode comparar o mito diluviano da Epopéia de Gilgamesh
com o do livro do Gênesis. Ambos possuem profundo valor histórico, um por fazer parte da
narrativa literária mais antiga do mundo, o outro por ser uma das mais belas e conhecidas
histórias da humanidade. Porém, sob aspectos éticos e morais e de riqueza de conteúdo
ideológico, a história de Noé supera e muito o relato da Epopéia de Gilgamesh, pois a história
de Noé se baseia em um único Deus, que além de perfeito em sua lógica, é impulsionado
apenas pela justiça e pelo amor, não sujeito a erros nem sentimentos meramente humanos.

Você também pode gostar