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Capítulo 2

O café da manhã está servido

O Império tinha medo do sul. Havia cidades e postos


avançados do Exército Imperial em todas as direções do Conti-
nente, e mesmo nas planícies do Vale Surenho havia fortalezas
com as bandeiras tricolores de Adânia. Mas, tive a impressão
de que a sede do Exército permanecia acuada, atrás de suas
muralhas colossais e suas colinas. Avvena esparramara-se,
sim, pela serra, mas sempre na direção do mar. A manhã co-
meçava a abrir-se quando apeei do carro oficial, após Platin
abrir a porta com gentileza, um tanto mais cerimoniosamente
que na véspera. À distância, pude vê-la, ainda envolta na ne-
blina. Entre a cidade-quartel e a Mansão Velasturvo, um amplo
vazio adormecido e nublado. Para mim, Avvena parecia um
rebanho de ovelhas apinhado no monte, e a Casa do General,
o cão pastor que as protegia – mas pronto para dilacerar qual-
quer uma que se comportasse de modo estranho.

Também por culpa de minha inventividade, antecipara


uma imagem da Casa. Para mim, uma mansão seria algo apro-
ximado das residências de Virbil, os solares e os jardins, as
fontes e as alamedas, as fachadas magníficas de muitas jane-
las e as portas majestosas como as das igrejas. A despeito do
nome, a Casa do General, definitivamente, não era como eu
imaginava.

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A residência era um sobrado de pedra – blocos regula-
res como as que se usa ainda nos calçamentos de ruas – sem
nenhuma pintura, apenas a cor do basalto. Atrás da casa, ain-
da mais para o sul, uma outra construção cilíndrica que poderia
ser um celeiro, uma torre de observação, ou ambas as coisas.
Ao lado desta, uma outra casa, menor, ligada à residência por
uma ponte que ia diretamente para o segundo andar. A poucos
metros das construções, uma mureta da altura da cintura de
um homem circundava a propriedade. Revestindo cada espaço
de chão no interior do círculo, um calçamento de pedra, idênti-
co ao material dos edifícios, dando a nítida impressão de que
não foram erigidos, mas que haviam brotado. A porta da resi-
dência, que nem vagamente lembrava a porta de uma igreja,
era de madeira pintada de vermelho, com batentes brancos,
assim como todas as outras aberturas. Isto sim não tinha nada
de espontâneo: vermelho e branco eram as cores do Exército
Imperial, e a porta de uma casa diz muito sobre quem mora
nela. Mesmo assim, na minha concepção, a Mansão Velasturvo
poderia ser qualquer outra coisa, menos uma mansão.

Platin fez um gesto, indicando-me a porta.


— Vamos, Guinen... perdão, Senhor Plumbeano —
disse, recriminando-se. Achei engraçado, mas não quis cons-
trangê-lo ainda mais. O jovem, que só então percebi ser real-
mente um rapazote, bem mais moço que eu, se antecipou, e
tocou a campainha.

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O som era o de três ou quatro sininhos, logo atrás da
porta. Foi naquele momento, naquele exato momento, que
percebi onde eu estava. Senti uma onda de calor subir pelo
pescoço, e meu rosto e minhas orelhas esquentaram muito.
Depois disso, o oposto: comecei a suar e sentir minha pele ficar
gelada. Não estava prestes a fazer uma mera entrevista, nem
era uma reportagem sobre fatos históricos, como estivera acos-
tumado a fazer desde antes de trabalhar para o O Noturno,
mas uma entrevista que seria ela própria um fato histórico: o
Lobo Vermelho abriria, pela primeira vez, as portas de sua casa
para a imprensa. Respirei fundo, e senti o aroma agridoce dos
pequenos ciprestes ornamentais que guardavam a entrada da
mansão. A fechadura moveu-se e as dobradiças rangeram. A
porta vermelha se abriu.

Diante de mim e do motorista surgiu uma criada, uma


menina de não mais de quinze anos, magra como uma garça,
pálida e tristonha como é comum aos avveninos. Vestia-se com
roupas de camareira, e seu único adorno era a medalhinha de
cobre de seu Ofício. Cumprimentou-nos sem esboçar nenhuma
emoção — não que fosse necessário, mas um sorriso para um
visitante viria a calhar — abrindo caminho para que entrásse-
mos. Logo adiante, a mesma anfitriã da noite anterior: Ágata
Velasturvo. Era de se esperar que às sete da manhã a tatara-
neta do General não estivesse mais vestida como uma diva do
rádio; contudo, também não esperava vê-la com a farda militar.
Hoje nem lembro como foi que tive a presença de espírito para

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analisar suas divisas — três faixas brancas e um rubi: era Pri-
meiro-Tenente.

— Bom dia, Senhor Plumbeano. Chegou bem na hora.


Acompanhe-me, por favor – disse-me ela, e fez um gesto com
a cabeça para Platin, que imediatamente sumiu de vista, não
sem antes dar-me um encorajador tapinha nas costas. E eu,
mal tive tempo de prestar alguma atenção àquele vestíbulo.

Não guardei uma impressão viva de como era o lugar.


Lembro-me apenas que era muito mal-iluminado. Tratei de
obedecer. Acompanhei-a, ou tentei acompanhar, por um corre-
dor largo e comprido que fazia uma curva à direita. Notei que
as janelas ficavam no alto da parede externa, e que havíamos
passado por apenas uma porta, na parede de dentro. Não ha-
via nenhuma decoração, nenhum quadro de família, nenhum
troféu, nenhuma obra de arte, nenhuma ferramenta Arcana, ou
Jóia, ou Arma para que eu pudesse me gabar de ter visto. A
Mansão Velasturvo estava sendo uma pequena decepção.

De repente, paramos. Era o fim do corredor, e à nossa


frente estava um lance de escadas que descia — e não o teria
percebido se não tivesse chegado até ali. Ágata virou-se e
falou comigo, mais naturalmente que o usual, num tom duro,
mas não rude. Fiquei surpreso.

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— Preste atenção, Plumbeano. Você está aqui pela
vontade do General. Eu fui contra essa entrevista desde o prin-
cípio, mas foi ele quem pediu. Você vai descobrir que é muito
difícil negar um pedido do General.

O que mais me intrigou foi ela ter enfatizado, claramen-


te, quando disse "você", referindo-se a mim. O Lobo Vermelho
queria falar, de fato. Mas porque que quereria falar comigo?

Subia por aquela escadaria o inconfundível cheiro de


café fresco e de pães recém tirados do forno, reanimando-me a
vontade de comer, perdida para os biscoitos do hotel. A Tenen-
te Ágata, segurando-me pelo braço, conduziu-me com gentile-
za na direção de onde vinha o aroma. Esboçou outra vez um
sorriso, o segundo desse tipo desde que a conhecera.

— Parece que o café da manhã está servido — disse,


ainda sorrindo.

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