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Os idosos

Os idosos e a sociedade

Todos nos recor-


damos daquela história em
que, em determinado lugar,
os Pais, ao chegarem a
velhos, eram transportados
pelos filhos para um lugar
longínquo e frio, para aí
morrerem abandonados.
Certo dia, um ancião, ao
aperceber-se que o seu
filho se preparava também para o levar para esse lugar para aí passar os
seus últimos dias, preparou um cobertor.

No dia da partida, muniu-se do dito cobertor e levou-o com ele. Uma


vez no local onde seria abandonado e ao despedir-se do filho, com a sua voz
já trémula, disse-lhe:

-Olha filho, tens aqui este cobertor para quando o teu filho também
te trouxer para aqui, não venhas a passar frio como eu. E, dito isto,
entregou o cobertor ao filho e começou a caminhar, afastando-se dele.

O filho, olhando alternadamente para o cobertor e para o Pai, ali ficou


uns minutos. É bem obvio que não sabendo o que lhe passou pela cabeça,
certo é que atirou o cobertor ao chão e correu em direcção ao Pai, abraçou-
o e transportou-o de novo para casa.

A moral desta história tirá-la-á cada um por si.

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Entrevista a um idoso

Quando visitei em sua casa, o Ti João (como todos o conhecem cá na terra e


assim deve ser tratado, porque o povo deve ser tratado com simplicidade),
estava sentado na sua “prisão”, a cadeira de rodas, para ela atirado depois
de um A.V.C, há cerca de um ano. Cá está ele à porta da sua simples casa,
bem perto da eira onde outrora secava os cereais. Olhando ao redor, os
telheiros onde ainda guardam as alfaias agrícolas, a lenha para a lareira, as
forragens para alimentar o gado, o tractor e as alfaias agrícolas. Depois
daqueles, uma grande parcela de terreno ainda bem cultivada, com um
milheiral e muitos legumes próprios desta época. Algumas árvores de fruto
e as videiras ornamentam também aquele terreno.

O Ti João é uma criatura com 82 anos de idade, de 1,80 m de altura, cerca


de 90 kg de peso. Mãos, braços e pés bastante desenvolvidos, a condizer.
Homem, honesto, rude e outrora bastante lesto e com muita pujança física.

Face e mãos a puxar para o branco, antes bastante morenas, resultado da


constante exposição ao sol em resultado do seu trabalho.

Lavrador de profissão, alimentava-se de modo abundante, sendo que


também bebia despreocupadamente. É com bastante nostalgia que o Ti João
conta que trabalhava, desde bastante pequeno até que “me deu aquela coisa
que foi a minha “desgracia” (refere-se ele ao AVC) há pouco mais de um ano.
De sol a sol, primeiro com a sua junta de bois, e só “despois”, com a ajuda da
“minha infeliz” (é assim que se refere á sua falecida mulher) adquiriu o seu
“altemóve” [referindo-se ele ao tractor]. Porém, os últimos anos, dedicou-os
quase em exclusivo a pastorear as suas ovelhas. “Chiguei a ter mais de um
cento delas” diz ele entusiasmado.

Cá está ele, à porta de casa. Veste todo de negro pela “sua infeliz”. Na
cabeça um boné preto, camisa preta e calças… pretas. Nos pés, grandes, as
pantufas, de cor castanha.

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Depois de saber ao que ia este entrevistador improvisado, o Ti João ficou


surpreendido por ter sido o escolhido. Diz ele:

- “Ó pás, ainda vais apanhar uma raposa por causa de mim” [chama-se
apanhar uma raposa quando se não transita de classe].

Entrevistador - Então Ti João, como é que vai?

Ti João - Oh! pás, “bota” [escreve] aí que estou danado por estar aqui
assentado sem me poder mexer. É o que mais me custa. E eu que tinha umas
ricas pernas. Nada parava comigo. Agora esta danada [assinala ele a perna
direita com a da mão do mesmo lado] não me deixa andar. Esta dor na anca
mata-me

E - E quem cuida de si?

T. J. - É aquela “alminha de Nosso Senhor” [diz apontado para a sua filha


mais nova atarefada em alimentar alguns animais] que toma conta de mim.
Ai… Se não fosse ela “atão” ficava p´raí cheio de fome. Os outros malvados
[uma outra filha e um filho] não querem saber de mim.

E – Então e ainda não pensou ir para um lar?

T. J. – Ah, não. Daqui só saio a quatro [só morto]. Se eu algum dia deixar de
ver as minhas ovelhinhas e a minha seara, vou logo bater com o costado nas
raízes dos cedros. Enquanto aquela alminha de Nosso Senhor tratar de mim,
p´ra aqui hei-de estar. Mas vou olhando ao que ela me faz [vai-lhe
retribuindo com algum dinheiro]. E o que ela colheitar, [colher da terra]
dela é. Os outros são soberbos, pois que se amanhem [façam que
entenderem por correcto] lá que eu cá me vou arranjando. Se eu um dia for
obrigado a ir p´ro asilo, não duro lá muito tempo.

E - Se lhe perguntar do que é que tem mais saudades …

T. J. - Ai ó pás, nem me fales nisso que até me derrancas. Quando eu era


novo “chigava” a ir a pé aos fornos da cal (algures perto de Cantanhede) com
as minhas vacas. “Alevantava-me” cedinho e punha-me a andar. Levava a
“taleiga” [saco feito de pano que fechava com um fio que circundava a
abertura] com broa e umas sardinhas fritas que a “minha infeliz”, Deus a lá
tenha em descanso, me arranjava. Elas [a junta de vacas] coitadas, sempre

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atrás de mim. Não havia coisa melhor aqui em … Era coisa linda… No
caminho, assim que a “chigava” a hora, comia as sardinhitas e a broa. Os
outros “buiam” pirolitos. Lembras-te dos pirolitos? (aceno-lhe com a cabeça
afirmativamente). Eu cá malhava-lhe sempre do tinto. Nunca eu paguei auga
para buer [água para beber]. Ai que tempo! Agora, antes de me dar esta
coisa [refere-se ao AVC] andava-me “pr´aí” a criar [estava a apreciar] com
as minhas ovelhinhas… Esta malvada [ a perna] deita-me a terra [atira-me ao
chão], porque ó mais ainda me sinto bem.

Neste instante avoaçam cerca de meia dúzia de pombas em direcção ao


entrevistado que prepara o braço direito para local de poiso. Mas, por causa
da presença deste entrevistador, num último instante, a trajectória do voo
é corrigido e lá vão elas. E continua o Ti João.

T.J.- É pás, se não estivesses aqui, poisavam-me nos braços, estas danadas.
Isto é que me vai dando alma. Tudo isto que eu arranjei com o mi suor.
Sempre a trabalhar. E comprei os meus bocadinhos [parcelas de terra].
Foram elas que me foram safando para governar a minha vidinha.

E – Então e aqui, algumas vezes, não se sente sozinho?

T.J.- Olha, graças a Deus Nosso Senhor ainda cá vem muita gente. Novos e
velhos. Às vezes até me dá vontade de chorar por ter tanta gentinha que
gosta de mim. Aqui há dias disse à minha filhinha para cortar aquele valado
[vedação natural feita de marmeleiros, silvas e ervas] para poder ver as
pessoas que passam na estrada. Assim alcanço mais longe.

E - Ó ti João, conte lá uma maldade que tenha feito quando era novo.

T. J. - Ó pás, se calhar tenho que contar aquela da Maria Manhosa. Mas vê


lá, olha que é picante [dou-lhe o meu assentimento com um aceno de cabeça
e ele lá continua]. Um dia estava o Ti Germano a combinar a “gaitada” com
ela [Maria Manhosa] e eu estava a ouvir atrás do muro. Dizia ela que a chave
ficava atrás da porta e era só pôr a mão pelo buraco. Sabes, antigamente as
portas tinham um buraco por baixo para os gatos entrarem e saírem.
Lembras-te? Depois de darem as trindades [um toque feito pelo sacristão
no sino da igreja]. Pois olha, eu fui lá antes dele. Ó pás, tirei a chave, meti-a
à porta. Estava escuro como breu. Dantes não havia luz como agora [luz
eléctrica]. Ela já estava à coca [acordada, atenta] e vai começa a dizer: «és

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tu Germano?». E vai eu disse-lhe: «eu sou o João ó Maria». Ó pás, a


“danada" não se importou nadinha. Ela era da braga dum corno! Foi divinal! O
outro [o Germano] é que não gostou nada de me ter visto sair de lá. Outros
tempos. Tempos da miséria.

E – Em jeito de provocação perguntei-lhe: Ó Ti João agora não tem direito a


nada?

T.J. – Ó pás, aqui há dias vieram cá aquelas do posto médico [enfermeira,


fisioterapeuta e a condutora do carro]. Elas sabem que eu sou danado e
começaram a desafiar-me. “Atão” não é que me perguntaram qual delas era a
mais jeitosa. Até fiquei danado. Comecei a olhar para elas. “Atão” não que
aquela do cabelo loiro era da braga dum ladrão [expressão que o Ti João
utiliza quando gosta de algo]. Direitinha como uma vela de cera. Era mesmo
boa. Ó pás, elas estava a desafiar-me e eu disse que a melhor era a do
cabelo loiro porque tinha uma ricas pernas e um bom dote ao peito. Ó pás
tinha cá umas… (e leva as mãos à zona do peito). Ai Jassuuus! Despois até
contei à minha “alminha” de Nosso Senhor. Olha, “arrepindi-me” logo; danou-
se a ralhar comigo.

E – E de comer, ó Ti João, o que é que gosta mais?

T.J. – Ó pás e quando a minha filhinha faz um cozidinho à portuguesa?! Ai


quase que “inté” morro. No domingo da semana passada, “atão” não é que ela
fez aquele comerzinho. Eia! Comi que um desgraçadinho. Até começou a
ralhar comigo a dizer que era guloso. Já uma pessoa não pode fazer aquilo
que mais gosta. Sim porque a outra coisa… olha… (e encolhe os ombros). E
quando o peixeiro traz aquelas sardinhas grandes. Aquele molho a escorrer
no pão. Com uma “seladinha” de tomate e cebola; de alface não gosto, não
sou grilo. Mas olha que “intigamente” era uma sardinha para cada dois e a
sopinha e mais nada.

E- Diga-me lá, já não bebe o seu copito?

T.J. – Ó pás, a minha filhinha não me deixa… Só me dá um copito às


refeições. As mais das vezes até fico “augado” [com desejo de mais], mas
aquela malvada não me dá mais. Às vezes lá me choro e ela lá se dói e dá-me
mais um bocadito no fundo do copo. É por causa dos remédios.

O Ti João começa a apresentar sinais de cansaço e chega a hora de


satisfazer as suas necessidades fisiológicas. Despede-se e pede-me para
voltar sempre que puder e, depois de olhar á volta para se certificar que a
filha não está a ouvir, diz-me:

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- Traz a garrafa, que tu tens lá do que é bom. Tem que ser uma hora que a
“minha alminha de Nosso Senhor” vá regar o milho.

Não lhe respondi, mas dentro de mim ficou silenciosa a promessa que o hei-
de fazer. Mas vou levar também, talvez, umas fatias de presunto e queijo.
«Que tal Ti João?»

E pronto, lá foi ele. Foi limpar-se por dentro e lavar o corpo porque não
precisa de lavar a alma. O Ti João é um homem de alma sã, embora o corpo
já o esteja a trair. Ele é ainda um jovem na medida em que ainda é capaz de
gostar da vida, da comida, do vinho e de mais alguma coisa.

Eu gosto mesmo do Ti João.

Comentários

Pois, ainda nos lembramos que durante muito tempo, eram as famílias
que se ocupavam dos seus familiares idosos, sem que para isso reclamassem
quaisquer apoios por parte das entendidas públicas. Apesar de a velhice ser
um processo fisiológico e não uma doença, essencialmente nos idosos mais
velhos, a necessidade de ajuda começa a ser uma constante.

O agregado familiar, desde que exista, é a primeira a quem se


recorre, pois a família continua a ter um papel importante como suporte no
apoio às pessoas idosas. É no próprio cônjuge e na família que os idosos
procuram apoio para resolver as suas necessidades e problemas. Como
principal grupo social e pólo aglutinador, a família surge como suporte social,
sendo primordial na satisfação das necessidades do idoso e local privilegiado
de solidariedade, acolhimento e troca afectiva e material.

Com a evolução da sociedade a família também mudou os seus hábitos.


Essa mudança de hábitos traduziu-se sobretudo na também ocupação
profissional da mulher, até determinada altura limitada à função de dona de
casa e por conseguinte sempre disponível para superar todas as carências da
família.

Ora, com a ocupação diária profissional de ambos os cônjuges, deixou


de existir disponibilidade de tempo para dedicar aos idosos. A casa passou a
estar desabitada durante o dia e ocupada apenas à noite. Surgiu assim o
dilema: prioridade ao aumento dos rendimentos familiares ou a dedicação
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exclusiva ao idoso? A pergunta a esta resposta nem sempre é fácil de


responder e nem tão pouco de pôr em prática.

Daqui resulta a “consciencialização” de que não há muito tempo para


dedicar aos idosos e estes estão conscientes de que os seus familiares não
tem disponibilidade para lhes prestar apoio, tentando mesmo desculpabiliza-
los, justificando que não é por falta de vontade ou afecto mas pela
actividade profissional.

Contudo, nem sempre é fácil ao idoso deixar a sua casa e recolher-se


num lar, porque não tem ninguém ou foi esquecido pelos seus entes. Para uns,
os dias tornam-se um verdadeiro pesadelo, enquanto outros se vão
adaptando a novas vidas e novas experiências. Existem dados recentes que
nos indicam que, em algumas cidades, a sua população está envelhecida,
facto que também vai preocupando as respectivas autarquias, algumas das
quais, procuram por todos os meios estar atentas a essa realidade e actuar
em conformidade para minimizar as dificuldades daí emergentes.

Todos sabemos que, infelizmente, ser idoso, na sociedade actual,


significa, não raras vezes, ser votado ao esquecimento e conviver com as
agruras da vida. Mas não é só em lares de Terceira Idade, sem condições,
que os idosos são abandonados; muitos hospitais do país se convertem em
“orfanatos”, onde se acolhem pessoas abandonadas pelos familiares e que
não têm ninguém a quem recorrer nem outro lugar para viver.

Não é insignificante o número de idosos que é levado para as


urgências dos estabelecimentos de saúde, simulando doenças e aí deixados,
por períodos indeterminados de tempo, pelos seus familiares. Estes chegam
mesmo a indicar falsas moradas para assim não poderem vir a ser
contactados.

Recentemente, notícias tornadas públicas dão-nos conta que filhos


abandonam os pais até em estações de serviço, nas auto-estradas. Portugal
tem mais 42.559 idosos do que jovens, uma situação inédita no país, com
tendência a agravar-se por ser “complicado” mudar comportamentos de
fecundidade.

“Só te peço para que cuides de mim quando envelhecer! Não me


ponhas num lar ao abandono! …” – são, muitas vezes, estas as dolorosas

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palavras de homens e mulheres que estão no limiar da velhice e pedem aos


filhos para cuidarem deles.

As pessoas casam cada vez mais tarde, separam-se mais vezes, têm
filhos mais tarde e optam por ter cada vez menos filhos. Na Europa, a
esperança média de vida situa-se actualmente nos 80 anos, para os homens,
e nos 87, para as mulheres.

De todos estes factores resultou a proliferação de lares, que muitas


vezes não passam de armazéns de idosos, cujo único objectivo se prende
apenas com o lucro fácil e jamais proporcionar algum bem-estar aos seus
utentes. Casos há em que os utentes desses lares são, fraudulentamente,
espoliados dos seus bens, móveis e imóveis, pelos proprietários daqueles
“armazéns” de velhos que enriquecem facilmente à custa destes incautos.

O Envelhecimento em Portugal

Portugal tem seguido a tendência europeia, embora a evolução do


envelhecimento demográfico no nosso país tenha sido mais lenta do que a
sentida nos outros países europeus. No entanto, aproximamo-nos
rapidamente das médias europeias.

Entre 1960 e 2001, a população idosa aumentou cerca de 1 milhão de


pessoas. Este fenómeno de envelhecimento demográfico traduz
fundamentalmente, as seguintes situações:

-o aumento da esperança média de vida;


-a diminuição da taxa de mortalidade;
-a redução das taxas de fecundidade e de natalidade.

Em 2001, por cada 100 jovens tínhamos 127,4 idosos.

Os actos de violência contra idosos estão também a aumentar em


Portugal. Em 2002, chegaram à Associação Portuguesa de Apoio à Vítima
(APAV) quase dois mil casos de violência contra os mais velhos, mais de 261
queixas do que no ano anterior. O agressor tanto é o companheiro como por
vezes são os próprios filhos.

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O elevado número de suicídios na Terceira Idade é uma realidade a


ter em conta, resultado, muitas das vezes, da solidão, do receio de não ser
capaz de enfrentar a vida. Em Portugal, metade dos suicídios são praticados
por idosos. Os números mais recentes, apresentados num estudo da
Sociedade Portuguesa de Suicidologia (SPS), referem que, entre 1996 e
1999, registaram-se cerca de 540 suicídios por ano, sendo que metade
foram cometidos por pessoas com mais de 60 anos.

Mas nem sempre é verdadeira a ideia que se tem do que o idoso que
vive sozinho é uma pessoa infeliz. Idosos há que preferem ficar a viver
sozinhos quando ficam viúvos.

“O que eu quero fazer, eu faço”, dizem alguns. Observam também que,


actualmente, as pessoas não têm tempo, nem paciência, para conviver com os
velhos: “Ainda bem que hoje nós temos mais conforto e liberdade para
podermos decidir o que fazer e como viver”. Estes “jovens” referem que o
que lhes custa mais são as noites que “parecem infinitas”.

Muitos daqueles que optam pelos asilos, passam os dias a olhar pelas
janelas à espera de quem nunca chega: “a sua família”. Trabalharam uma vida
inteira, comeram o pão que o “diabo amassou”, construíram um lar e criaram
os filhos. Depois envelheceram. Os filhos casaram, tiveram outros filhos e
esqueceram-se dos pais. Colocaram-nos em lares, fechados a sete chaves,
para se libertarem do peso de uma velhice que um dia também hão-de
também carregar.

“Cá se fazem, cá se pagam”, dizem alguns dos idosos abandonados.

J. Rodrigues.

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