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O papel da etica na pesquisa basica Partiremos, neste ensaio, de uma declaragao de James Watson, que propOs em 1953, com Francis Crick, omodelo daestrutura doDNA. Trata-sede um trecho reproduzido pela revista Veja, numa reportage sobre a recente polémica em tomo da clonagem de embri- Ges. Watson se refere 4 relaglo entre ética e cidncia, ¢ suas palavras despertam interesse especialmente porque traduzem uma opiniao predominante na comunidade cientifica, Diz ele que “a ciéncia nao pode se submeter a ética, sob pena de inibir a investigacio. A aplicagio das descobertas, sim, pode ser definida socialmente” (1). Em outras palavras, Watson pretende que a ciéncia pura se mantenha livre das consi deragdes éticas, pois estas podem se constituir em obstéculos para seu deserivolvimeitto. Idealmente, para Watson, a ética deve se restringir & aplicagao do conhecimento, Este ensaio tem por objeto uma andlise critica da proposigz0 de Watson, 0 que implica a discussAo de duas visdes alternativas averca das relagdes entre ética ¢ ciéncia: (a) consideragies éticas devem estar limitadas ao campo da aplicagiodoconhecimento, onde podem ter lugar as relagbes de pader, e devem deixar livre o campo da produgio do conhecimento, ou seja, da geracao do saber, (b) consideragdes éticas tém um papel a desempenhar tanto na produgao como na aplicagao do conhecimento, simplesmente porque no h4 uma distingfo nitida entre ciéncia pura e aplicada, entre saber © poder. ‘Ao longo deste ensaio estes dois pontos de vista serdo contrastados, com auxilio de exemplos retirados da pesquisa genética. A RELAGAO ENTRE CIENCIA PURA E APLICADA A tese de que a ética deve estar restrita a aplicago do conhecimento, deixando livre a pesquisa bésica, traz. consigo duas premissas: (a) a clara distingao entre ciéncia pura ¢ aplicada, e (b) a neutralidade da citncia. E necessario investigar estas premissas com mais detalhe. A definicdo de dominios sobre os quais as consideragGes éticas devem ser feitas pres- supSe que 0s critérios de demarcagdo entre estes dominios nao contém ambigiidades. A Proposicao de um modelo sobre a estrutura da molécula de DNA, por exemplo, resulta 1 cade en “Nis Ganpos se da pesquisa pura, fcita num ambiente livre ¢ desimpedido, Segundo a logica de Watson, Sovesener”—reflexdes éticas devem entrar em cenasomente no momento em que este conhecimenta 10 Revita USP, Sao Pauls (24): 10:19, dezembrolfivereire 1994195 Pet-Oe Conceges et Generasone tome passa a ser aplicado, podendo constituir-se num instrumento para 0 exerefcio do poder. como por exemplo através de métodos que permitem a manipulagio genética de seres humanos. A partir deste momento, a intervencao tica € vista como necessaria'e razosvel Entzctanto sua intervengao no estdgio anterior, em que a pesquisa bsica ¢ desenvolvida, para muitos cientistasconstitui uma ameacaconcretaao desenvolvimento dainvestigacao cientifica. A possibilidade de que Watson tivesse abandonado sua investigagdo acerca da estrutuira do DNA, em virtude de consideragbes sobre possfveis aplicagdes espuirias deste comhecimento, soa absurda. Nés achamos que a distingao entre o dominio puro e aplicado na atividade cientifica pode se mostrar artificial, Hi varias maneiras em que isto se evidencia. ‘Com freqiténcia vemos a defesa dapesquisa bésica apoiando-se na tese de queesta abre ‘caminho para avangos em éreas aplicadas. As pesquisas sobre a bioquimica da tegulagio do ciclo celular sdo vistas, de tuma 36 vez, como pesquisa bésica ¢ como o passo inicial para acura do cfncer. Demaneira semethante, no hi pesquisador que no pretenda que o conhecimento por ele produzido tena algum significado para a melhoria da condigdo da vida humana. Isto evidencia que, no cerne do proprio discurso cientifico, a unido entre produgao ¢ aplicagao do conhecimento é reconhecida. O proprio aparata instrumental, necessdirio & pesquisa pura em éreas como # biologia molecular, requer a aplicagdo de conhecimento produzide em outros campos da pesquisa baisica, como, por exempio, a cletrOniea, a biolisiea, a computagao, etc. Isto reforga aidéia de que 0 conhecitmento basico esté ligado A sua aplicago até mesme quando esta tem por objeto o préprio desenvolvimento de conhecimento basico. Poroutrolado,a propria hist6riada ciéncia moderna serve como base paraa tese de que ‘Mo hd distingao clara entresaber epoder. A raziio assume, na modernidade, opapel central na produgéo de conhecimento, ¢ ela implica, a um s6 tempo, as idéias de “ordem” ¢ “con= trole” (2),de modo que a tese subjacente &ciéncia moderna pode ser assim traduzida:se hé uma razo de ser dos provessos naturais, uma ordem que 0s rege, © eonhecimento desta orden ou de suas leis pode fornecer & razdio humana a condicae de dominagto, de controle ‘sobre estes mesmos processes, Logo. saber, o conhecimento das leis, «em como horizonte © exercicio do poder, do controle da natureza pelo homem, Revise USP, So Pavile (24); 10-19, dezembralfevertive 1994/95 DIOGO MEYER & ‘mestrando om Genética do inetinto, do Blociéncias da USP. CHARBEL NIKO. EL-HANI 6 professor sauxllar do Instituto de Biologia da UFBA ‘A Ormaiso Fre Peesos, por Con wetnto pare vom Se, ‘A citncia modema pode ser concebida como uma unido entre a teoria e a pratica, mediada pela aplicagio de uma linguagem maiemdtica ao estudo da natureza (3). O tratamento matemético dos fendmenosna- turais permite que estes revelem sua ordem interior, ou seja, as leis que essencialmente 0s dominam, ¢ estas leis formuladas como mecanismos surgem como relagdes entre causas pienase efeitos completos, permitin- doaprevissodcterministadocomportamen- todos corpos e, logo, 0 controle dos proces- Sos natuirais. A previstio deterninista 6 0 fundamento dos processos produtivos na sociedade industrial, onde as condiqdes exigidas de eficitnciae produtividadereque- rem a capacidade de previsio. A cigncia ‘guarda, decerto, em nossa sociedade uma re- lagéo intima com os processes produtivos, e viniculagdo prioritdria do saber, nesta rela- ‘s80, a um suber fazer que obscureve ademar- cagho entre a produgiio do conhecimento ¢ intervengio técnica sobre o mundo. Emsintese,adistingdoentreciénciapura eaplicada, saber e poder, ndo¢ oevidente quanto pressupSe Watson em sua proposi- 80. Como escreve Japiassu, significagao da ciencia deverd ser pro- curada no poder que o saber hoje em dia confere, Este poder daciéncia nose situa foradele. Nem tampouco é de grande uti- lidade a velha distinglo entre ciéncias fun damentais ¢ cigsicias aplicadas. Porque € nna experincia de seu proprio ‘poder’ que aciencia, mesmo te6rica ou fundamental, ‘constitui-se como saber” (4). Einteressante notarqueaoabrirmaode realizar consideragbes élicas sobre sua pes- quisa, ocientista esta depositando uma con- fianga praticamente irrestrita naqueles que irko refletir sobre as bases éticas da aplica- ‘dodo conhecimento. Desta forma,ele cor- Teo risco de nfo tera sua opiniao represen- tada. Encontramtos no fisico Oppenheimer um exemplo deste processo. Uma afirma- ‘sdosuatomnou-se famosa na Segunda Guer- ra Mundial: “Quando voets virem algo de tecnicamente delicioso,continuemem frente efagam-no,semse perguntaremsobreaque € preciso fazer, a no ser depais que vocts tiverem obtido seu sucesso técnico” (5), ‘Trala-se de uma afirmagao em tudo se- methante & de Watson: as consideragdes éticassfo restringidas a uma etapa posterior a prodhigao do conhecimento. Mas quando Oppenheimer ameagou desistir do Projeto Manhatan, em que foi produzida a bomba atémica, o general Leslie Groves, coman- dante do projeto, simplesmente the disse: “Com ou sem voot, onde estiver o fogo,nés vamos atrés do ogo" (6). Quseja,o produto de seu trabalho intelectual jd se encontrava forade seu controle; ele nao tinka dominio sobre'a aplicagao do conhecimento, ¢ suas Preocupagées Gticas, ausentes do processo de produgiio do conhecimento, nfo tinham mais qualquer fungo a. cumprir. ‘Um elemento-chave para se compreen- der, tanto 0 incidente enyolyendo Oppenheimer, quanto. possivel frustragio de um bidlogo molecular ao vero conheci- mento par ele geradousado paraaplicagdes diferentes daquelas que ele concebe como cticamente corretas, é a representatividade dos foros de decisdio que devem estabelecer alegitimidade das aplicagdes cientificas (7). Em. uma situago “plenamente demo- exética”,as decisis scriam tomadas par co- missdes que representassem os diferentes segmentos ¢ interesses de uma sociedade. Deste modo, atransformagiodasaplicagdes do conhecimento em instrumentos de do- minio 01 opressio seria impedida, poden- do-se dizer que haveria seguranga frente & ameaga de tuma ciéncia ndo-ética. Sem divida,a criagdo ea consolidagao de forosde discussiio demoeraticosacerca das aplicagdes do conhecimento cientifi- coconstituem um caminho para uma cién- ia ética (8), Porém, parece-nos que partir do pressuposto de que realmente existem foros plenamente democraticas,¢ que pos- lanto a ciéncia basica poderia prosseguir sem reflexdes ¢licas, poe este raciocinio a perder. E.de pouica utilidade dofender-se ‘umaatitude do cientista perante 0 produ- todeseutrabalhoque évdlida apenas para uma situacia idealizada. Se hd motivos parase duvidarde que 0s forosde decisio sejam representativos da sociedade, de modo que eles possam comprometer a prdtica de uma ciéncia ética, a solugio de depositar toda a responsabilidade sobre estes nto pode ser vistacomo uma diretriz prética para se lidar com aquestao da éti- cana genética. Por outro lado, seriairreal esperar asitu- agdo histérica-em que nossa organizagio Revista USP, Sto Paule (24): 10-19, deeembrolfeversire [994/95

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