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SAPONACEOS E DETERGENTES BARTHES, Roland, Mitologias. Sao Paulo: Bertrand Brasil, 1993, O primeiro Congresso Mundial da Detergéncia (Patis, se- tembro de 1954) dew azo a que 0 mundo se abandonasse & cuforia do Omo: no s6 os produtos detergentes nfo. so noci- ‘vos para a pele, como podem até salvar os mineiros da silicose. Ora, estes produtos sfo, h& jé elguns anos, objeto de uma pu- Blicidade de tal modo maciga, que ja fazem parte, hoje, dessa zona da vide cotidiana dos franceses, onde as psicanélises, se s¢ atualizassem, deveriam tentar penetrar. Poderse-ia entio opor utilmente a ‘psicanilise dos liguidos pusificadores (Javel) a dos saponéceos em pé (Lux, Persil) ou a dos detergentes (Rat, Paic, Crio, Oma). As relagSes entre 9 remédio e 0 mal, 0 produto € a sujeita, so essencialmente diferentes num caso € noutro. Por exemplo, as solugdes de cloreto de sédio (Candida) fotam sempre consideradas como uma espécie de fogo liquido ‘cuja agio deve set cuidadosamente controlada, sem o que o préprio objeto pode set atingdo, “qucimado”; a, lenda implt cita deste tipo de produto repousa sobre a idéia de uma modi- ficagio violente, abrasiva, da matéria: 0s produtos sio de ordem cqufmica ou mutilante: “matam” a sujeira. Ao contrétio, os Bisse slementor separadores: osu papel idel conse’ em ibertar o objeto da sua imperfeigSo citcunstancial: “expulsese”” 8 sujeira, mas esta nfo morre; na propagenda visual do Omo, a sujeira € representada por um pequeno inimigo débil e negro que foge apavorado da roupa limpa e pura, sob a simples ama G2 do julgamento do Oreo. Os cloros ¢ os amonfacos so sem divide nenhuma os delegados de uma espécie de fogo tots, sal- vador mas cego; 08 pds so, pelo contratio, seletivos, empurram, conduzem a sujeira através da trama do objeto, desempenham uma funcio de policia, nfo de guerra. Esta distingdo tem o seu correspondente na etnografia: 0 liquido quimico ptolonga 0 gesto da lavadeira batendo a roupa, ¢ os pds substituem o da dona de casa comprimindo e torcendo a roupa 20 longo do Tevadouro. No entanto, dentro da propria classe dos pés, deve- -se ainda opor & publicidade psicolégica, « publicidade psicans- Iitica (nfo dando a esta palavta o significado preciso de uma 29 escola patticular). Por exemplo, a Brancura Persil fundamenta © seu prestigio na evidéncia de um resultado; apela-se para a vaidade, para o amor das aparéncias, apresentando e comparando dois objetos, um mais branco do que 0 outro. A publicidade Omo indica também 0 efeito do produto (aliés sob uma forma superlativa), mas revela sobretudo 0 processo da sua agio; fa- zendo assim com que o consumidor penetre numa espécie de ido da substancia, faz com ue ele se torne cdmplice Jo ¢ néo usufrua apenas de um resultado; a matétia adquite assim estados-valores. © Omo utiliza dois desses estados, bastante recentes na cordem dos detergentes: 0 profundo eo espumoso. Dizer que © Omo limpa em profundidade (ver o sainete do CinémaPa- blicité) equivale a supor que a roupa ¢ profunda, o que nunca se pensata antes, e que incontestavelmente a magnifica ¢ a estabelece como objeto sedutor perante os obscuros impulios de envolvimento e de caricia que existem cm todo o corpo huma- no. Quanto 4 espuma, todos conhecem o seu significado de tuxo: em primeiro lugar, aparenta uma cetta inutilidade; depois, a sua proliferacio abundante, facil, quase infinita, deixa suy na substincia que a geta um germe vitorioso, uma esséncia Potente, uma tiqueza de clementos etivos num pequeno volume de origem; enfim, predispde 0 consumidor a uma imaginacao aérea da matéria, @ um modo de contato simultaneamente ligei- ro e vertical, desejado e deliciosamente gozado, quer no setor gustativo (‘“foie-gras”, petiscos, vinhos) quer no do vestuério (musselinas, tules), assim como no dos sabonetes (vedete to» mando banho). A espuma pode mesmo ser 0 signo de uma certa espititualidade, na medida em que se considera 0 espitito capaz de tirar tudo’ do nada, uma grande superficie de efeitos de um pequeno niimero de causas (os cremes tém uma psica- nélise totalmente diferente, sio emolientes, calmantes, elimi- nam as rugas, a dor, 0 fogo ete.). © importante é ter conse- guido mascarar a fungio abrasiva do detergente sob a imagem deliciosa de uma substincia simultancamente profunda e aézea, que pode reger a ordem molecular do tecido, sem o atacar, Eu. foria que allds nfo nos deve fazer esquecer que existe um plano onde 0 Persil e 0 Omo se equivalem: 0 plano do truste anglo- cholandés Unilever. 30

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