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“…encosto a cabeça no vidro semiaberto e fecho os olhos por segundos… pela frincha

sai o fumo do cigarro ao mesmo tempo que as gotas da chuva varrida pelo vento
entram com força... não há lágrimas que se comparem às que batem no tejadilho do
carro… o vento sopra forte de sul e as ondas alterosas mostram-me um mar agitado
porque de si próprio aquelas lágrimas haviam saído uns dias antes... percorro a
visão até ao horizonte cinzento-escuro e vejo um relâmpago descer sobre as
águas... imagem bela e soberba... o céu zangado como me ensinaram em criança... o
interessante era terem mais medo do trovão do que do relâmpago... havia uma
cantilena que rezavam fechadas no quarto… no meio das palavras semi comidas pela
reza eu percebia algo como santa bárbara… mais tarde vim a saber que Santa Bárbara
tem a ver com as trovoadas, dizem... imagens da infância que recordo com
saudade... um corpo deitado no chão da sala, uma chupeta e um açucareiro ao lado…
e lá ia eu molhando a chupeta no açúcar e chupando… ainda hoje gosto de comer
açúcar… um corpo escondido no meio do centeio que não se dobrava pelo vento… um
corte num pé provocado por um vidro escondido… umas mãos pequenas pegando nas
pombas que existiam no pombal do pai... uma gaveta com postais antigos do Brasil
que meu avô trouxera... um retrato enorme dele e de minha avó no dia em que
casaram, pintado a carvão... era imponente... um fogão de lenha crepitando… a
chuva que entrava pelo vidro começou a molhar-me a face e a cabeça e o cigarro já
me estava a saber mal... liguei o motor, fiz marcha-atrás e arranquei dali para
fora... para lá do mar ficava o sonho, o sonho que sempre tive de o enfrentar, o
sonho que sempre tive de me meter dentro dele e o amansar... nunca conseguido… os
faróis foram ligados porque a penumbra já era demasiadamente escura para ser
dia... a noite que se aproximava iria brindar-me com mais recordações… é isso que
faço para adormecer todas as noites… relembro imagens distantes e tento
reconstruir a vida que já não existirá nunca mais... puzzles de imagens, de sons e
de choros e de risos, de quedas, de corridas, de corpos cheios de calor abraçando-
nos… porque me fazem tanta falta esses abraços de outrora?... continuei a andar
pois ainda havia muita estrada a percorrer… a chuva continuava a cair…”

joaquim nogueira

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