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Imunidade de Jurisdi¢ao do Estado estrangeiro: a questao da (in)responsabllidade da Unido pelo pagamento do débito judicial traball Claudinei Moser! 1. Introdugao A imunidade soberana possui raizes historicas ligadas aos templos de culto ao divino, que ali nao admitiam a jurisdigéo local das autoridades temporais, mas somente de seus representantes religiosos. O conceito moderno de imunidade soberana surgiu com os Estados modemos, donde a inviolabilidade da pessoa do soberano transmutou-se para o Estado. A imunidade dos agentes diplomaticos, no entanto, formou-se anteriormente a imunidade do préprio Estado. A imunidade de jurisdigéo 6 explicada como decorréncia do principio da igualdade dos Estados no plano do Direito Internacional, que traduz a velha maxima par in parem non habet judicium, ou, para alguns, mais acertadamente decorre de norma consuetudinaria internacional auténoma. Advogado da Uniao em Blumenau/SC Bacharel em Direito pela Universidade Regional de Blumenau - FURB 20C1; Especialista em Direito Empresarial pela Universidade Regional de Blumenau - FURB 20 Especialista em Direito Constitucional pela Universidade do sul de Santa Catarina - UNISUL 20C7) Mestre em Ciéncia Juridica pela Universidade do Vale do Ita-ai ~ UNIVALI 2CC5: Reconhecida através do direito internacional consuetudindrio, discute-se se tal imunidade alguma vez teve carater absoluto e qual sua atual conformagao na doutrina e jurisprudéncia nacional e internacional. © Supremo Tribunal Federal no caso Genny v. Alemanha em 1989, com base em norma costumeira internacional, reconheceu que a imunidade de jurisdigao do Estado estrangeiro em matéria trabalhista deixou de ser absoluta © passou a ser considerada relativa, admitindo, atualmente, penhora de bens dos Estados estrangeiros desde que nao afetados as legagdes diplomaticas ou consulares. A doutrina admite, também, a constrigao de navios e embarcacbes pertencentes a Estados estrangeiros (Convengéo das Nagées Unidas sobre Direito do Mar/1982), @, ainda. conforme a pratica internacional, os bens pertencentes a bancos centrais e autoridades monetarias de Estados esttangeiros (cf. Foreign Sovereign Immunity Act, EUA/1976, § 1.811, State Immunity Act, Reino Unido/978, Sec&o 14), bem como os bens de carater militar ou utilizados para fins militares. Parte da doutrina defende que o reconhecimento da imunidade soberana nega o acesso a jurisdigao © enseja a responsabilidade objetiva do Estado brasileiro, notadamente a Unido por ser a condutora das relagdes internacionais. Para os adeptos dessa corrente doutrinaria, o énus suportado pelo particular deve ser distribuido entre toda a sociedade, sob pena de ofensa ao principio da igualdade A presente pesquisa almeja trazer elementos para propiciar o debate sobre o tema, e negar qualquer responsabilidade da Unido pelo reconhecimento da imunidade soberana ou mesmo pelo inadimplemento do débito imputado ao Estado estrangeiro, por ndo se enquadrar em qualquer das hipéteses da teoria do tisco (administrative ou integral), que serve de fundamento para responsabilidad objetiva do Estado, e nem na teoria do risco social Fundamentos da Imunidade do Estado soberano As imunidades, segundo Guido Fernando da Silva Soares, emergiram, juntamente com o nascimento do Estado modemo, nas formas de diplomacia® dos Estados absolutistas do Século XVI. As imunidades tiveram uma primeira formulagao através do costume internacional,’ que consagrou a regra par in parem non habet judicium,* regra essa que teria sua reformulagao nos séculos posteriores, nas formas das imunidades absolutas e das imunidades relativas.® A origem remota das imunidades, ou seja, as primeiras manifestagoes a respoito de hipéteses de fenémenos subtraidos jurisdigao de uma autoridade local, pode ser atribuida a alguns determinados lugares que, consagrados ao culto divino, néo permitiriam o exercicio de atividades, que nao fossem esttitamente relacionadas aos servigos religiosos. Assim, consoante ensinamento de Guido Fernando da Silva Soares, na Grécia Classica @ em todos os periodos da Civilizagao romana, no interior de templos, cemitérios e locais onde se realizavam alividades religiosas, havia entendimento de que os poderes das autoridades locais cessavam, em respeito & superioridade dos setes e dos lugares que eram a eles dedicados.* 2 “Diplomacia € a cincia das relagdes exteriores ou neycios estrangeirus dos Estados, Ba arte ou ciBneia das negociagdes.” (ABRANTES, Abdias Duque de. Diplomacia: ferramenta das relag6es internacionais Correio da ‘Tarde. jul. 2006. Disponivet em: . Acess0 ce: 02 ago. 2006). “Para que se possa configurar uma norma costumeira no Direito Internacional, € necessério que se tenha umn ‘pritica geral aceita com sendo 0 Direito', nos previsos termos do artigo 38 do Estatulo da Corte Internacional de Justigaz” (SALIBA, Aviz Tuff. A imunidade ubsoluta de jurisdigdo de estados: “S6lida regra costumeira’ ou mito? Revista Brasileira de Direito Piblico, Belo Horizonte, a. 3, n. 8, p. 23, jan/mar. 2005), *44.| nenhum Estado soberano pode ser submetido contra sua vontade & condi de parte perante 0 foro doméstico de outro Estado.” (REZBK, Joxé Francisco. Direito internacional pablico: curso elementar. 9. ed. rev, $0 Paulo: Saraiva, 2002. p. 166. * SOARES, Guido Fernando da Silva. Origens e justficativas da imunidade de jurisdigio. In MADRUGA FILHO, Antenor Pereira; GARCIA, Marcio (Coord). Imunidade de jurisdi¢ao e 0 {judicidrio brasileiro, Brasiia: CEDI, 2002. p. 25 ® SOARES, Guido Fernando da Silva. Origens e justificativas da imunidade de jurisdigdo. In: MADRUGA FILHO, Antenor Pervira; GARCIA, Marcio (Coord,). Imunidade de jurisdigao e 0 {judicidrio brasileiro, Brasiia: CEDI, 2002. p, 25.26 Guido Fernando da Silva Soares explica que com o surgimento do Cristianismo a sacralidade de determinados locais se estendeu a outros lugares, como os mosteiros e conventos, mas sempre subordinada ao conceito de que deveriam eles estar fora dos poderes das autoridades leigas. por estarem consagrados ao culto de um Unico Deus ou, ainda, das pessoas a seu setvigo, A sacralidade de locais, logo se estenderia & sacralidade das funges neles exercidas, , portanto, aos poucos. emerge a nogao de que igualmente aS pessoas que as exercem se encontrariam fora do poder das autoridades leigas, uma vez que a elas se estenderiam os privilégios e regalias concedidas s suas fungdes, O instituto das imunidades passou, assim. a incorporar-se ao status da pessoa, sem que houvesse qualquer disting4o entre as qualidades da pessoa e os atos que praticava, Nao é de se estranhar, portanto, que os privilégios © imunidades, primitivamente ligados a uma fungao do monarca, investido nos seus poderes temporais e legitimados pelo entéo denominado “diteito divino dos reis’, viesse a irradiar-se para a sua pessoa, por tudo quanto a ela se referisse: seus familiares e, certamente, para seus representantes pessoais, em particular, quando em misses oficiais, nos relacionamentos com ‘outros monarcas,’ A imunidade diplomatica, segundo Antenor Pereira Madruga Filho, em relacdo a jurisdigao exercida pela autoridade local da missao, é um fenémeno mais antigo que o reconhecimento da imunidade do préprio soberano representado.® Registra-se. por oportuno, que modernamente nao se entende mais © local das legagées diplomdticas ou consulares como territério estrangeiro em solo nacional, mas. téo-somente, um local protegido por normas internacionais (costume internacional e Convengdes de Viena sobre relagées diplomaticas e consulares de 1961 e 1963, respectivamente).° Nesse sentido, Roberto Luis Luchi Demo, entre outros." 7 SOARES, Guido Fernando da Silva, Origens ¢ justficativas da imunidade de jurisdigto. In MADRUGA FILHO, Antenor Pereira; GARCIA, Marcio (Coord.). Imunidade de jurisdigao © 0 Judickiio brasilero, rasa: CLD, 2002 p26. MADRUGA FILHO, Antenor Pereira. A rendncia & imunidade de jurisdicio pelo estado brasileiro e novo direito da imunidade de jurisdigao. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 149, ° “Nao obstante ser ainda comum ouvir o racioefnio de que as restrigdes de acessa do poder plblico 20 terreno da representagio diplomdlica estrangeira justificam-se por ser ali ‘terrilério estrangeiro independent’, a evolugio do direito internacional e da concopeo de que suas normas impcem limites 2 Suber tornou desnecessdrio o recurso a fice da extraterritoriafidade, Antes da metade do século XX,

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