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Prof.

José do Carmo Toledo

DEPARTAMENTO DE MATEMÁTICA, ESTATÍSTICA E CIÊNCIAS DA COMPUTAÇÃO – DEMAT

Introdução à História da Matemática

Concepções de história – fundamentos teóricos

Há uma espécie de história que é “construída com base na extração e combinação dos
testemunhos de diversas fontes” e que pode ser designada por “história de cola-e-
tesoura”. Esta forma de história vive a ilusão de alcançar um conhecimento cem por
cento objetivo, onde o papel do historiador é silenciado. As fontes têm a verdade
inscrita, salvo se se verificar que estamos perante uma falsificação. A verdade
resultaria, assim, do somatório dos fatos organizados numa narrativa homogênea e
convincente. Esta história esquece que as fontes não conservam a verdade. Desde
logo, os caprichos da vida natural e humana fizeram com que tenham “desaparecido”
muitos eventos históricos. Com efeito, o que nos foi legado é, desde logo, uma seleção
produzida pela própria história da Humanidade. Os contemporâneos dos eventos
foram os primeiros a selecionar. Se o critério para a verdade é o da objetividade, então
convém dizer que há muita subjetividade no trabalho do historiador (como no de
qualquer outro cientista).

Há outra questão afeta ao trabalho do historiador e que aqui será discutida apenas
sumariamente – o anacronismo. Fazer ao passado perguntas que habitam o presente
requer, normalmente, uma série de cuidados: evitar levar para o passado palavras,
conceitos e convenções que não lhe pertencem; evitar comparações entre concepções
de hoje e de ontem. Estes são alguns cuidados que um historiador deve ter para não
incorrer no anacronismo.

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Entretanto, esses cuidados, quando excessivos, tornam-se verdadeiras barreiras que
impedem o conhecimento de facetas potencialmente fecundas para uma visão
ampliada do período estudado e do próprio presente, barreiras que dificultam o
compreender o presente pelo passado e o passado pelo presente. É importante que o
historiador ouse mais em suas pesquisas sem, contudo, negligenciar a sutileza
necessária para esse ‘jogo anacrônico’. Entre o atual e o antigo é preciso saber ir e vir,
e sempre se deslocar para proceder às necessárias distinções.

Percebe-se aí a importância de pensar a história como uma via de mão dupla e a


necessidade de importarmos e exportarmos questões, não com o intuito de mudar o
passado, mas de repensar o presente. Não se pretende defender a apologia da
continuidade ou a afirmação de uma possibilidade de igualdade em relação aos gregos
da Antiguidade, mas apreender o que nos faz diferentes, percebendo as
potencialidades de mudança que o conhecimento de outras formas de pensamento
nos oferece. O fazer o tempo é para o historiador sua ação primordial.

Basicamente, a história pode ser vista de dois modos: primeiro, podemos supor que
os fatos históricos seguem uma linha de evolução constante desde o aparecimento
do homem na Terra até os dias de hoje. Então, cada século é enriquecido com as
conquistas do século precedente e, assim, os tempos atuais seriam a culminação de
todo o trabalho da humanidade do passado. Dentre os fatos que parecem corroborar
esse ponto de vista apontamos os seguintes:

1. O progresso tecnológico:

Cruzamos os oceanos em aviões a jato, vamos até a lua, recebemos pela


televisão imagens situadas a milhares de quilômetros de nós, recebemos
pelo computador fotos, músicas, vídeos e filmes via Internet (com fio e
wireless) etc.

2. O progresso científico:

Armados de computadores e aparelhos sofisticados, sondamos os mais


íntimos segredos dos átomos, das estrelas, das galáxias, o que pode nos dar

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a sensação de sermos semideuses com domínio quase completo das forças
da natureza; e a medicina, que maravilha! Já conseguimos curar uma enorme
quantidade de doenças e, com os progressos da genética, até já
vislumbramos a possibilidade de criar seres vivos e até mesmo seres
humanos com inteligência superior programados como robôs de carne e osso!
E assim por diante. Diante de tudo isso, os vagabundos de plantão – que
poluem o mundo com o furto e as negociatas indecentes – ficam
boquiabertos com “tanto progresso”, uma vez que eles se fartam com os
lucros que abastecem suas contas bancárias e aplicações financeiras de toda
espécie. Entre os intelectuais, o mito do progresso é engolido por vaidade
pessoal. A psicologia nos ensina que, salvo raras exceções, nada é mais
agradável do que pensar na grandeza das nossas criações nas ciências, nas
artes e nas letras. Olhando para o passado como um degrau para galgar
níveis mais elevados, são arrogantes e se sentem superiores.

É importante mencionar o seguinte:

• Uma atitude de soberba é mais comum entre os homens de ciência do que


entre os artistas. Uma catedral gótica não é superior – nem inferior – a um
templo da Grécia antiga: é apenas diferente! Mas dizer que a geometria
diferencial moderna não é nem superior nem inferior à geometria de Euclides,
“oh! Isso não!” O curioso é que, com todo esse “progresso”, poucas pessoas
tomam consciência de que nunca houve tanta gente morrendo de fome,
doenças e guerras de todo o tipo. Esse pode ser um argumento emocional e
muito gasto pelo uso. Mas, verdade seja dita: a vergonha da desigualdade
entre os homens continua berrante. Ancorados solidamente na filosofia,
podemos ultrapassar os argumentos emocionais, e elaborar pontos de vista
que evidenciem a ilusão desse mito do progresso que, em particular, na
história, contamina como uma doença contagiosa, afetando até mesmo
mentes mais esclarecidas de nossos tempos. Nessa ilusão do novo, o velho é
descartado ou tido como “coisa para museu”.

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Alternativa metodológica:

Uma segunda linha de interpretação da história, a ser assumida nesta disciplina, não
a vê como uma evolução constante, mas, sim, como uma sucessão de organismos,
que evoluem segundo certas leis que denominamos culturas ou civilizações.
Portanto, a história pode ser definida como o estudo das culturas históricas e suas
relações. Como um organismo, as culturas históricas se exteriorizam através de
formas expressivas associadas a um grupo de povos que possuem uma imagem
comum do Universo.

Nesse âmbito, é importante notar que o método de estudo da História não pode ser
apenas o dedutivo – como causa e efeito –, mas, principalmente, necessita do
método indutivo que, pelo uso do princípio da analogia, permite sentir e apreender
a evolução global das culturas históricas harmonizando os fatos num quadro geral
em que seja possível explicar um grande número de situações absolutamente
incompreensíveis no contexto da corrente filosófica anterior. O fenômeno
matemático vai aparecer, então, em sua essência, de maneira harmônica com as
outras criações humanas, fato este completamente obscurecido e distorcido pela
ideia nefasta contida no entendimento do progresso como um fenômeno
ascendente e contínuo.

Da Filosofia da História surgem as seguintes ponderações:

I. A natureza toda – que inclui também a história – é um grande organismo que


evolui com uma lógica interna que precisa ser compreendida.

II. Na visão que desejamos adotar nesta disciplina, os fatos históricos se tornam
consequências das diferentes manifestações do ESPÍRITO e que, usando os
homens, lhe dá a forma. Os grandes gênios e as grandes figuras da história,
em vez de serem vistos como heróis ou dominadores, são compreendidos
como manifestações visíveis da ação do Espírito.

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III. A história pode ser assumida como uma sucessão de culturas ou civilizações.

IV. A história é o desenvolvimento do Espírito no Tempo, enquanto a Natureza é


seu desenvolvimento no Espaço. Existe uma entidade superior – denominada
IDEIA ou ESPÍRITO – que se manifesta no tempo (HISTÓRIA) e no espaço
(NATUREZA). Na sua primeira forma de manifestação (no tempo), a IDEIA se
expressa em formas, usando, para isso, os seres humanos – por possuírem
razão – e essas formas se sucedem no tempo dando origem aos Estados –
que correspondem às várias Cultura Históricas ou Civilizações. Essas culturas
nascem, crescem e morrem e, então, o ESPÍRITO, em seu processo constante
de aperfeiçoamento, dá origem a uma nova cultura que também evolui e
morre. Dessa maneira, a história pode ser vista como sucessão de culturas
consideradas como organismos com uma vida própria e, consequentemente,
com uma fisionomia própria que aparece com formas expressivas: escultura,
arquitetura, pintura, música, matemática etc.. Quando nos envolvemos com o
estudo da evolução do conceito de número, por exemplo, decorre dessa
concepção de história que, em cada uma das civilizações, o ESPÍRITO ou a
IDEIA imprime ao conceito de número uma forma expressiva peculiar; assim,
advém que as matemáticas de duas culturas diferentes não são nem mais
avançadas nem mais atrasadas uma em relação à outra, mas são
simplesmente distintas, do mesmo modo que, por exemplo, a arquitetura
gótica não é mais evoluída do que a arquitetura grega, mas apenas diferente
dela.

Vamos assistir ao filme “The story of 1” – produzido pela Rede de Televisão BBC de
Londres – em que é possível vislumbrar algumas destas questões teóricas aqui
tratadas. A tradução literal do título do filme é “A História do Número 1”; prefiro
assumir que se trata de UMA história do número 1.

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Os primórdios da Matemática
A fim de colaborar para uma necessária reflexão sobre as histórias do Universo, da
vida sobre a Terra e da dramática trajetória do Homem desde o seu surgimento,
vamos assistir em seguida o filme “Quest for Fire” que pode ser traduzido para
“Guerra do Fogo”.

Para complementar as informações oferecidas pelo supracitado filme, serão


relacionados, na sequência, alguns dos mais importantes marcos da história
universal:

Retroativamente aos
Marco
nossos dias
15 bilhões de anos “Big Bang” dá origem ao Universo
14 bilhões de anos Surgem as primeiras galáxias
10 bilhões de anos Surge a Via Láctea
Forma-se o Sistema Solar; cristais assumem certas
5 bilhões de anos formas geométricas; corpos celestes orbitam em
elipses
2 bilhões de anos Primeiras formas de vida
600 milhões de anos Profusão de vida no mar

500 milhões de anos A vida migra para a terra

300 milhões de anos Plantas cobrem o planeta

250 milhões de anos Proliferação de insetos e flores

200 milhões de anos Começa a era dos dinossauros

150 milhões de anos Surgem os primeiros mamíferos

65 milhões de anos Fim súbito dos dinossauros

50 milhões de anos Vivem os ancestrais dos primatas

40 milhões de anos Proliferação dos mamíferos


Vivem os ancestrais dos primatas superiores,
abelhas e vespas constroem favos de secção
30 milhões de anos
hexagonal; pétalas do girassol dispõem-se
conforme a sequência de Fibonacci

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Hominídeos adotam caminhar bípede e liberam as
6 milhões de anos
mãos

3,5 milhões de anos Vários tipos de australopitecos povoam a África


Surge o primeiro membro da família Homo – o
2 milhões de anos
Homo Habilis – capaz de construir instrumentos
Surge o Homo Erectus que dominou o fogo e que
1,6 milhões de anos
deixou a África há 1.400.000 anos

300 mil anos Surge o Homem de Neandertal

Entre 250 e 200 mil anos Surge, na África, o Homo Sapiens Sapiens
O Homo Sapiens Sapiens deixa o continente
100 mil anos
africano e começa a povoar todo o planeta
• O Homo Sapiens Sapiens chega à Austrália,
atravessando pleo menos 60 km de mar aberto.
• Surgem utensílios mais bem elaborados o que
50 mil anos
sugere pensar numa “revolução cultural”
cusada, talvez, pela melhoria da linguagem
entre os Homo Sapiens Sapiens

35 mil anos O Homo Sapiens Sapiens chega à Europa


• Desaparecem os neanderthais.

30 mil anos • Possivelmente, o Homo Sapiens Sapiens


chegou à América (há controvérsias!)
Arco e flecha – talvez inventados muito antes – são
usados correntemente; surgem as lâmpadas a óleo,
20 mil anos
agulha de coser, arte pictórica de alta qualidade
(em cavernas europeias)
Domesticação de animais; o homem já não é
14 mil anos
intensamente nômade
A agricultura é praticada na Mesopotâmia (local
11 mil anos (em torno de
9000 a.C.) onde, hoje, é o território do Iraque)

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Atenção!
Em torno de 9000 a.C., a História da
Humanidade atinge um marco crucial: a prática
da Agricultura.

Ao aprender a cultivar as plantas para delas obter alimentos e insumos, o Homem


deu início à primeira grande revolução em sua forma de viver. A Agricultura permitiu
o aumento mais rápido da população, fixou o Homem à terra, obrigando-o a se
organizar socialmente de forma mais complexa: foi preciso aprender a planejar e a
dividir o trabalho, além de compartilhar o território e os seus frutos. O entendimento
dos ciclos das estações do ano e a contagem do tempo por meio de calendários
também se tornaram atividades imprescindíveis; consequentemente, os astros
passaram a ser observados. Houve também, nesse período histórico, o
aprimoramento da percepção sobre o que hoje chamamos de número.

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Detalhe relevante:
A noção de quantidade nunca foi privativa de nossa
espécie: experiências com animais – inclusive
pássaros – mostram vestígios da noção de contagem,
na medida em que alguns deles conseguem distinguir
quantidades maiores de outras menores. Portanto,
certamente, o Homem dispunha dessa noção
numérica muitos milhares de anos antes da invenção
da Agricultura, mas ela teve que ser aprimorada no
contexto da Revolução Agrícola porque o comércio
foi sendo praticado, as cidades – com seus templos,
monumentos e edifícios – foram sendo levantadas;
surgiram, assim, os governos e os inevitáveis
impostos.

Outra questão de grande importância:


Seria um exagero – e uma ingenuidade
sem medida – afirmar que não existia
uma Matemática antes do início da
Revolução Agrícola; estudos
arqueológicos e antropológicos permitem
admitir que, muitos milênios antes desse
contexto da história, já existia um
volume razoável de comércio entre
pessoas e entre as tribos e, nesse caso, é
inconcebível admitir que era possível
comerciar sem qualquer rudimento de
uma Aritmética.

Vamos continuar nossa revisão cronológica. Estamos há cerca de 9000 a.C., quando
já havia pequenas cidades na Mesopotâmia, sendo presumível que a cerâmica fosse
produzida, usando-se, provavelmente, a roda de oleiro.

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Retroativamente aos
Marco
nossos dias
Por volta de 6000 a.C. Com a tecelagem de fibras de linho, produziam-se
roupas e cordas
5000 a.C., A irrigação é praticada na agricultura
aproximadamente
No entorno de 4500 a.C. Um calendário é instituído por um povo pré-sumeriano
Em torno de 4000 a.C. O metais (inicialmente o cobre) estão em uso
Na vizinhança do ano O bronze (liga de cobre com estanho) – mais
3600 a.C. consistente e útil – passa a ser usado
• As primeiras carroças (com rodas) são construídas
Cerca de 3.500 anos pelos sumérios, na Mesopotâmia.
antes de Cristo • Barcos egípcios já navegavam ao longo do Rio Nilo e
faziam pequenas incursões no Mar Mediterrâneo

E já que alcançamos o terceiro milênio e meio antes de nossa Era, é importante parar
para dar destaque à invenção máxima desse período: a escrita. É nessa época que os
sumérios desenvolveram um sistema de símbolos que evoluiu até se tornar uma
forma abrangente e completa de escrita cuneiforme, isto é, traços em forma de
cunha. Alguns séculos mais e os egípcios criaram seu próprio sistema de escrita
através dos hieróglifos.

Nas raízes da escrita, sempre estiveram presentes as necessidades de se


efetuarem assentamentos numéricos, em especial os referente à produção,
estoques, transações comerciais e arrecadação de impostos. Alguns especialistas
acreditam, inclusive, que a escrita foi criada primordialmente para tornar possíveis
os registros numéricos, somente mais tarde passando a ser utilizada para relatos
históricos dos povos e de seus soberanos.1

1
Aqui cabe observar que foram os sumérios e os egípcios que inauguraram o registro escrito dos
acontecimentos através do tempo – a História.

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Voltemos a traçar aspectos sumários da nossa cronologia.

Retroativamente aos
Marco
nossos dias
Os grandes monumentos de pedra surgem no Egito.
Uma pirâmide de degraus é erguida destinada a servir
de sepultura ao faraó Djoser. Tal obra indica que os
egípcios já dispunham, à época, de conhecimentos
práticos de Geometria que, certamente, aumentaram
significativamente com a elevação da pirâmide de
Por volta de 2700 a.C.
Quéops, de base quadrada, com impressionantes 230
metros de lado – inaugurada em 2650 a.C. – tendo 146
metros de altura. Cerca de 2.300.000 blocos de pedra
foram erguidos na execução desse projeto que incluía
galerias, câmaras mortuárias e uma série de detalhes
de grande complexidade geométrica.

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12
Tablete numérico pré-cuneiforme,
Suméria, c. 3100 a.C.

Tablete numérico cuneiforme,


Suméria, c. 2000 a.C.

13
14
“Livro” de exercícios sobre Geometria,
Babilônia, c. 1700 a.C.

15
Tablete Plimpton 322, Babilônia, c. 1800 a.C.

16
17
Volume do tronco de uma pirâmide (“receita egípcia e fórmula moderna)

Questão geométrica no Papiro de Ahmes, c. 1500 a.C.

18
Símbolos para a soma e subtração no Pairo de Ahmes, c. 1650 a.C.

Área do círculo no Papiro de Ahmes


Conjectura sobre a origem da regra de Ahmes

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Diagrama encontrado no Chou-Pei Suann King, relativo aos triângulos retângulos,
Século XII a.C.

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Origens da cultura grega
O historiador ateniense Tucídides (c. 460-400 a.C.) descreve a Grécia primitiva
evidenciando a instabilidade da população da época. Afirma ele:

“Parece-me, por exemplo, que o país, hoje denominado Hélade, não tinha
população sedentária nos tempos antigos; em vez disso, havia uma série de
migrações constantes, pois as várias tribos aí existentes viviam sob
frequente pressão de invasores mais fortes que os forçavam a abandonar
seus territórios. Não havia comércio e facilidades de comunicação, quer por
terra, quer por mar; o uso da terra era limitado às necessidades diárias e não
se preocupavam em armazenar bens de consumo para transações comerciais,
nem no estabelecimento de uma agricultura regular, pois, devido à falta de
fortificação, a qualquer momento poderiam ser obrigados a deixar suas terras
por força de invasores inesperados. Portanto, como suas necessidades
diárias poderiam ser obtidas não importa onde, eles não hesitavam em
transferir sua residência de um lugar para outro e, portanto, não construíam
cidades de tamanho razoável nem se preocupavam com o aproveitamento de
recursos naturais.”

De fato, o que denominamos cultura grega é o resultado da fusão de grande número


de povos provenientes da Ásia, África e de inúmeras regiões banhadas pelo Mar
Mediterrâneo, com destaque para Creta. O cenário onde teve ação o drama
maravilhoso da origem, evolução e declínio dessa cultura restringiu-se, inicialmente,
a algumas ilhas do Mar Egeu e da costa da Ásia Menor, passando, em seguida, para a
região hoje chamada de Grécia. Depois, começou a expandir-se pelo sul da Itália e
norte da África, constituindo a Magna Grécia que, finalmente, sob dominação
romana, atingiu tamanho considerável no período de 117-138 d.C. com o imperador
Adriano. Sobre seus limites sabem-se que:

• ao leste, eram com a Armênia, com a Assíria e com a Arábia, regiões vizinhas
das províncias de Bitínia e Pontus, Capadócia, Síria e Egito;
• ao norte, as fronteiras terminavam com os acampamentos das tribos
germânicas limítrofes das províncias da Dácia, Panônia e, no extremo norte, a
Britânia;

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• ao oeste, o limite natural era o Oceano Atlântico e
• ao sul, a fronteira era com o deserto do Saara e com as províncias da
Mauritânia, da Numídia e do Egito.

Mapa do Mundo Grego Antigo (Sul da Itália, Grécia e Ásia Menor).

Fonte: <http://plato-dialogues.org/tools/gk_wrld.htm>. Disponível em 30. Jul. 2009.

Do ponto de vista de suas origens, a cultura grega foi precedida pela assim chamada
cultura minóico-micênica 2 que se constituía de elementos das mais variadas
civilizações da Ásia e do Egito. Durante escavações arqueológicas em Creta, uma
grande quantidade de objetos do Egito evidenciou, senão um domínio, pelo menos

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A civilização minóica foi uma civilização que se desenvolveu na ilha de Creta, a maior ilha do
mar Egeu, entre 2700 a.C. e 1450 a.C., o período anterior ao da Civilização micênica. Teve como
principal centro a cidade de Cnossos. O termo minóico deriva de Minos, título dado ao rei de
Creta. Os minóicos foram uma civilização pré-helênica da idade do bronze, em Creta, no mar
Egeu. Baseando-se em descrições da arte minóica, essa cultura é frequentemente descrita como
uma sociedade matriarcal voltada para o culto à deusa. O termo Minóico foi criado pelo
arqueólogo inglês Sir Arthur Evans (1851-1941) a partir do nome do rei mítico Minos, associado
ao labirinto, que Evans identificou como sendo o sítio de Cnossos. É possível, embora incerto, que
Minos fosse um termo usado para identificar um governante minóico específico. Pode também ter
sido usado para descrever o governante minóico da época. Como os minóicos chamavam a si
mesmos ninguém sabe, mas a palavra egípcia Keftiu e a semítica Kaftor ou Caphtor e Kaptara nos
arquivos de Evans, se referem evidentemente à Creta minóica.

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um intenso comércio e movimento de viajantes. Além disso, um alto número de
crenças e costumes cretenses denota uma incontestável origem asiática e egípcia.

A cultura grega antiga é uma maravilhosa fusão entre mito e realidade, aspecto que
merece atenção quando estudamos o conceito de número dessa civilização. De fato,
o número tinha influência nos feitos heroicos e cerimônias religiosas. Por exemplo,
foram doze os trabalhos de Hércules (o maior de todos os heróis gregos) e o número
de prisioneiros troianos sacrificados no funeral de Pátroclo (um dos personagens
centrais da mitologia grega no episódio da guerra de Tróia). Aliás, doze – que sempre
teve importância central nas considerações dos matemáticos gregos – é o número
de faces do dodecaedro regular que, desde tempos imemoriais, se liga a uma série
de mitos da Grécia.

Os nomes “Grécia” e “gregos” foram tomados pelos romanos de uma antiga e


obscura tribo – Graii – que praticamente desaparecera muitos séculos antes de
Cristo. Anterior aos tempos dessa tribo, no período Micênico, teve lugar um grande
movimento migratório das ilhas do mar Egeu (em particular de Cíclades) de raças –
os Pelasgos – provenientes da Ásia Menor e de Creta. Tal informação advém do fato
de haver evidências de conexões entre uma série de deuses e heróis da mitologia
grega cuja procedência oriental é bastante certa. Para os nossos propósitos aqui,
esta informação é particularmente importante sob o ponto de vista das
influências da matemática das culturas orientais na formação da matemática
grega.

Uma outra corrente migratória veio do norte da Grécia e destruiu completamente a


civilização micênica, encerrando, assim, a pré-história da cultura grega. Esses povos,
supostamente descendentes de Hércules, eram denominados, de acordo com as
lendas, de Heráclidas. Contudo, eles mesmos se chamavam de Aqueus e seus
principais seguidores foram os Dóricos, cuja língua se tornou o mais difundido dos
dialetos gregos. Por falar nisso, convém observar que a língua grega já estava mais
ou menos estabelecida por volta de 1500-1400 a.C. e era, por exemplo, a língua
falada nos grandes palácios de Cnossos na ilha de Creta, muito embora a sua escrita

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só se tenha firmado no início do ano 1000 a.C.. Os dóricos estavam subdivididos em
três grupos principais – Hylleis, Dymanos e Pamphylios – e, em pouco tempo,
espalharam-se por todo o continente grego e a eles devemos a formação da
arquitetura primitiva na Grécia, que examinaremos mais adiante, pela sua
importância na formação da geometria, expressão básica do número grego.

Finalmente, os habitantes da Grécia ficaram conhecidos pelo denominação geral de


Helenos e o que hoje conhecemos como Grécia era denominado de Hélade. O nome
provém de Helen um dos filhos de Deucalião e Pyrrha, casal que o historiador grego
Hesíodo refere-se como a origem dos Heráclidas.

Terminamos, assim, os nossos breves comentários sobre a formação da cultura


grega que entra, desse modo, na sua infância ou início do estágio de ornamentação
primitiva. Vamos estudar o conceito de número neste período. Evidentemente, é
importante frisar que essa abordagem não aparece sob a forma que usualmente
esperamos quando nos referimos à matemática, mas sim sob a forma da arte
plástica da época em que predominavam a cerâmica e os primeiros ensaios de uma
forma arquitetônica.

As manifestações primitivas do conceito de número

Depois da invasão dórica, formam-se na Grécia Antiga os primeiros conceitos sobre a


origem do Universo, a interpretação dos fenômenos naturais, o sentimento
profundo do espaço e, consequentemente, do número, que é um dos mais poderosos
e primitivos símbolos de toda a humanidade. As fontes que nos permitem elaborar
uma análise dessa imagem do Universo, da qual a matemática faz parte, são as
obras dos primeiros escritores e poetas, as criações dos artífices na cerâmica, na
ornamentação de edifícios, na confecção de roupas e demais utensílios de uso diário
e, finalmente, na construção dos edifícios primitivos, principalmente templos e

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santuários, pois, afinal, a arquitetura é sempre a primeira forma expressiva de
qualquer estilo que surge em todas as civilizações.

Em qualquer civilização, sua matemática contribui para a imagem do Universo por


ela criada e, portanto, a forma de que se reveste o conceito de número depende de
seus símbolos primários. No caso da cultura grega, estes símbolos são dominados
pela paixão aos finito, ao plástico, ao visível e, portanto, a imagem do Cosmo por ela
criada tem, necessariamente, que possuir essas características e, em consequência,
o mesmo devemos esperar de sua matemática, que deverá contribuir para essa
imagem finita e plástica do mundo. Todo o modelo matemático do Universo, criado
pelos gregos, está fortemente impregnado desses conceitos e, desse modo, o
estudo de sua matemática deve estar intimamente ligado ao estudo de sua
astronomia e de sua física.

A Ilíada é um poema épico grego que narra os acontecimentos ocorridos no período


de pouco mais de 50 dias durante o décimo e último ano da Guerra de Tróia e cuja
gênese radica na cólera de Aquiles. O título da obra deriva de um outro nome grego
para Tróia, Ílion. A Ilíada e a Odisséia são atribuídas a Homero que, se supõe, teria
vivido por volta do século VIII a.C, na Jônia (lugar que hoje é uma região da Turquia).
Essas obras constituem os mais antigos documentos literários gregos (e ocidentais)
que chegaram aos nossos dias. Ainda hoje, contudo, se discute a sua autoria, a
existência real de Homero e se estas duas obras teriam sido compostas pela
mesma pessoa.

Polêmicas à parte, é na Ilíada que tomamos contato com as ideias sobre a origem do
Universo segundo nos contam Homero e Hesíodo. No capítulo XIV, versículo 201 e
seguintes declara-se que

O Oceano era não só a origem de todos os deuses, mas


também de todas as coisas.

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Isto nada mais é do que a ideia de que o mundo provém da água, como elemento
primordial, fato sustentado pelo matemático Tales de Mileto, como veremos na
sequência. Isso não era uma unanimidade. Aristóteles, por exemplo, considerava
essa afirmativa com certa reserva. De qualquer modo, sob a forma de mito, Homero
conta-nos o fato importante da origem das coisas, de elementos primordiais, no caso
a água. Também quando ele nos diz que a constelação de Ursa Maior nunca se
banha no Oceano, isso quer dizer que na Grécia esse grupo de estrelas próximas
entre si estava sempre acima do horizonte, o que era um fato importante para a
navegação, uma vez que a estrela polar estava próxima à tal constelação.

Por sua vez, Hesíodo – o mais antigo poeta grego do qual se tem alguma certeza sob
sua vida, e que vivei no século VIII a.C., – coloca a origem do mundo no elemento
primitivo terra, personificado por Gaia que, gerando Urano – o firmamento – foi
fecundada por ele por influência de Eros – o amor – que era ao mesmo tempo o mais
antigo e mais jovem de todos os deuses. Seu filho – Cronos – simboliza o tempo e,
para indicar a sua influência natural, ele aparece devorando os seus filhos até que
um deles – Zeus – consegue sobreviver, devido a um hábil truque de sua mãe – Rhea.
Depois de vencer o próprio pai, Zeus tornou-se o chefe de todos os deuses. Homero
coloca-o como senhor do Armament, descrevendo-o como o “deus de cabelos azuis”
e isto, por influência provável do Oriente uma vez que, em Khorsabad (no Iraque),
encontram-se inúmeras estatuetas de deuses que tinham os cabelos e as
sobrancelhas azuis.

Toda a mitologia grega, como descrita por Homero e Hesíodo, está impregnada de
ideias que depois se revestiram de uma roupagem própria nas Ciências. Isso
evidencia que o período mitológico do pensamento científico, em todas as
civilizações, é um fenômeno natural e não um período de atraso ou misticismo como
pejorativamente abordam as correntes materialistas da interpretação dos fatos
históricos.

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Do mesmo modo, as
explicações de fenômenos
naturais são ligadas às
entidades mitológicas:
• os deuses viviam lá no
Olimpo, o mais alto pico
de uma cadeia de
montanhas que se
estende da Tessália até
o golfo de Salonica, a
segunda maior cidade
da Grécia.

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