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PIERRE BOURDIEU QUESTOES DE SOCIOLOGIA “O autor reine nesia compllagio vinte € um textos que Sie todos eles trazos de paayras ditas, soba forma de confertncits, comunicagées e intervengies em coloquios, ou entrevistas daelas a diversos jornais. Ligeiramente retoca: ‘dos, estes textos guardam as virtues da orabelade:a complexidade das dei- nigGes e das anilises constr6i Operirosexpeilzaos ou qulifcados porn pa xeriio de wins eet ngs w mat enero neanicamenes peri (hl eT) 2 Centrais sindicais francesas,respectivamente Confédénation générale di travail (Confederecio Geral doTebulo) ¢ Codon fama dino Staal (Confedergie Bunce: Democrsica do Tiabalha}.NdoT) 1s 8 organizagdes, descobriciamos os eftitos de relagies diferentes com 6 sistema escolar que se retraduzem muitas vezes sob a forma de conflitos de geragSes, Mas para se precisarem estas intuigSes seria necessitio proceder a andlites empfricar que nem sempre sio posiveis P. Como se poderi constituir uma oposicao 4 imposicao dos valores dominantes? ~Correndo 0 risco de o surpreender, responderei com uma citagao de Francis Ponge: “E entio que ensinar a arte de resistir as palavres se torna dtil, a arte de no se dizer senio o que se quer dizer. Ensinar a cada um a arte de fandar a sua propria retérica é uma obra de salvagio piblica.” Resistir as palavras, no se dizer senio © que se quer dizer: falar ein vex de ser falado por palavras de empréstimo, carregadas de sentido social (como quando se fala por exemplo de um “encontro de iipula” entre dois respon siveis sindicais ou quando 0 Libfnation fala dos "*nosses” navios a propésito do Normandie © do France), ou flado por porta-vores que sio eles proprios falados, Resistie 48 palavras neutralizadas, ‘eufemizadas, banalizadas, em suma a tudo o que faz a solenidade ca da nova retdrica dos altos responsiveis administrativos, mas também 3s palavras gastas, repisadas, até ao siléncio, das mogoes, resolugdes, pltaformas ou programas. Toda a linguagem que & produto do compromisso com as censuras, interiares ¢ exteriores, exerce um efeito de imposicio, imposigio de impensado que desencoraja o pensamento Houve quem se servisse demasiadas vezes do alibi do realismo ou da preocupacio demagagica do ser-se “‘compreendido pelas ‘massas” para substituir 0 slagan 4 andlise. Penso que acabam por ter de se pagar todas as simplificagdes, todos os simplismos, ou por fazer com que os paguem os outros. + No original, réthorque émerchigue, gue serve para designar a retorica da Bal nationale d’adovinicration (eujasigla € ENA, de onde o adjective énarhigue ‘ou “enarea") que se destina a formar os quadres cuperiores da administragio © € ama das mais célebres “grandes escalas” de elite (ged foes) do ensina superior em Franga, (N, do) 20 P. Os intelectuais tém entio um papel a desempenhar? — Sim, evidentemente. Porque a auséncia de teoria, de anilise tedrica da tealidade, coberta pela lingaagem de aparelho, faz nascer monstros. © slogan e 0 anitema conduzem a todas as formas de terrorismo, Nao sou tio ingénuo que pense que a existéncia de uma andlise rigorosa ¢ complexa da realidade social baste para por ao abrigo de todas as formas de desvio terrorista ou totali- tirio. Mas tenho a certeza de que a auséncia dessa anilise Ihes deixa 0 campo livre. E por isso que, contra o amticientismo que anda no ar do rempo ¢ do qual os novos idedlogos se alimentarn abundantemente, defendo a ciéncia e até mesmo a teoria quando sta tem por efeito proporcionar uma melhor compreensio do mundo social. Nao temos de escolher entre © obscuraatisme € 0 Gieutismo. “Entre dois males”, dizia Karl Kraus, “reeuso-me a escolher © menor” © facto de nos darmos conta de que a ciéneia se tomou um instrumnento de legitimagio do poder, que 03 novos dirigentes governam em nome da aparéncia de ciéneia econdmico-politiea adquirida em Sciences Po* ¢ nas Businessschools, nio deve condu- Zit-nos a um anticientismo romintico e regressivo, que coexiste sempre, na ideologia dominante, com o professar do culto da ncia, Trata-se antes de produzir as condigées de um novo expirito cientifico ¢ politico, libertador porque liberto das census. P. Mas nao ha assim o risco de se recriar uma barreira de linguagem? —O meu objectivo é contribuir para impedir que se possa dizer seja 0 que for sobre 0 mundo social. Schoenberg dizia um dia que compunha para que as pessoas deixassem de poder escre- ver miisica. Escrevo para que as pesoas, ¢ antes do mais aqueles que tém a palavra, os porta-vozes, deixem de poder produzir, a propésito do mundo social, um ruido que tem as aparéncias da misica, * Quseja, Hele de Sciences Politiques (Escola de Ciénciss Politics), oucra das mais presigisdas grandes doles jf referidhs na nota de teadugio anterior. (Ndr) Quanto a dar a cada um 9s meios de fandar 2 sua propria retérica, como diz Francis Ponge, de ser 0 seu préprio porta-voz verdadeiro, de falar em lugar de ser falado, tal deveria sera ambi- so de todos os porta-vozes, que seriam sem davida coisa com- pletamente diferente do que sio se se dessem 0 projecto de tri- balhar pela Sua propria extinclo. A verdade é que podemos sonhar. por uma vez. 2 UMA CIENCIA QUE INCOMODA* P. Comecemos pelas questées mais evidentes: as ciénicias sociais, ea sociologia em particular, serio verdadeiramente ciéncias? Por que razio voce experimenta a necesidade de reivindicar a cien- tificidade? — A sociologia parece-me ter todas as propriedades que defi- nem wma ciéncia, Mas em que grau? A questio é essa. E a resposta que se lhe pode dar varia muito segundo os socidlogos. Eu ditia apenas que hi muitas pessoas q e que confesso ter certa dificuldade em reconhecer como tais, Ent sociologia aiu da pré-historia, quer dizer da época das grandes teorias da filosofia social com que os profinos muitas vezes a identificam. © conjunto dos socidlo~ 08 dignos desse nome pée-se de acordo em torno de um capital comum de aquisi¢ vetificagio. Resta 0 facto de, por razdes sociolagicas evidentes = entre outras porque desempenha mnitas vezeso papel de disci- c dizem & se eréem socidlogos todo 0 caso, hi muito que <, conceites, métodos, procedimentos de plina refiigio —, a sociologia ser uma disciplina muito disposa (no sentido estatistico do termo) ¢ isto de diferentes pontos de vista © que explica que 2 sociologia dé 3 aparéncia de uma disciplina dividids, mais préxima da filosofia que das outraé ciéacias. Mas © problema no esti af: se se manifestam tantos escripulos acerca da cientificidade da sociologis, @ porque 3 sociologia incomoda, + Entrevista com Piesre Thuillier. Lr Rechovhe, a." 112, Junho de 1980, ppT3E 7. P. Voeé nio é levado a par-se questdes que objectivamente se pdem 4s outras ciéncias, embora os cientistas nfo tenham, concretamente, de as por? — A sociologia tem o triste privilégio de se confrontar inces- santemente com a questio da sua cientificidade. B-se mil vezes menos exigente para com a histéria ou a etnologia, para ji no Galarmes da geografia, da filologia ou da arqueologia. Incessante- mente interrogado, 0 socidlogo intetroga-se € interroga inces- santemente. © que faz com que se acredice num imperialismo sociolégico: © que & esta ciéncia incipiente, balbuciante, que se permite submeter a exame as outtas ciéucias! Estou a pensar, cvidentemente, na seciologia da cigncia. De facto, a seciologia info Faz mais que por is out de maneira particularn nite agu critica, talvez seja por estar & prépria numa posigie iti A's0- ciologia constitui problema, como costunna dizet-se. Sabe-se por exemplo que The foi imputado Maio de 1968. Contesta-se nto 56 a sua existéncia enquanto cine pura e simples. Neste momento sobretudo, emt que alguns que tém infolizmente o poder de 0 conseguir, trabalham no sentido da sua destruiga meios 2 “sociologia” edificante, estilo Institut Auguste Comte ou Sionees Po. O que é amas também a sua existncia . Ao mesmo tempo que reforgam por todos os fo em nome da ciéneia, ¢ com a cumpli cidade activa de certos “cientistas" (no sentido trivial do termo). P. Por que azo sociologia constitui um problems particular? — Porqud? Porque desvela coisas eccondidas ¢ por vezes recal- cadas como 2 correlagio entre 0 sucesso escolar, que é identifi- cado com 2 “inteligéncia’”, ea origem social ou, melhor, o capital cultural herdado da familia. Sio verdades que os tecnocratas, os epistemocratas — quer dizer bom niimero dos que Iéem a socio- logia e dos que a financiam —nao gastam de ouvir. Outro exer plo: mostrar que © mundo cientifico € lugar de uma concorrén- cla que. orientads pela busca de ganhos especificos (prémios, Nobel ¢ outros, prioridade da descoberta, prestigio, ete.), e con duzida em nome de interesses especificos (quer dizer irredutiveis 24 20s interesies econémicos sob a sua forma comum e percebidos por isso como “desinteressados"), é pdr em questio uma hi grafia cientifica da qual participam muitas vezes os cientistas € da qual tém necessidade para acreditar naguilo que fazem. P. Deacordo: a sociologia parece agressiva ¢ ineémoda. Mas por que razio 0 discurso socioligico terd de ser “cientifico”? Os jomalistas também pdem questdes incémodas; ora nem por isso se reclamam da ciéncia. Por que é decisive que haja uma fronteira entre a sociologia € um jornalismo critico? = Porque hi uma diferenga objectiva, Nao é uma questio de ponto de honra, Hi sistemas coerentes de hipéteses, conceitos, métodos de verificagao, tudo 0 que comummente se associa 4 ideia de ciéncia. Por conseguinte, por que nao dizermos que ela € uma cigncia se é de facto uma? Tanto mais que a parada em jogo ¢ muito importante: uma das maneiras de pér de lado ver- dades incémodas é dizer adizer que so “politicas” a “paixio”, portanto relativas ¢ relativiziveis. ue nio so cientificas, 0 que equivale quer dizer suscitadas pelo “interesse”, P. Se se pe § sociologia a questio da sua cientificidade, sera também por ela se ter desenvolvido com um certo atraso em relagio as outras ciéncias? — Sem diivida, Mas isso deveria fazer ver que esse “atraso” se liga ao facto de a sociologia ser uma ciéneia especialmente dificil, especialmente improvivel. Uma das dificuldades maiores reside no facto de os seus objectos serem paradas em jogo de Incas; coisas que se escondem, que se censuram, pelas quais ha quem esteja disposto 2 morrer. O que é verdade para o proprio inves- tigador que esta em jogo nos seus préprios objectos. E a dificul- dade particular que hi em fazer sociologia liga-se muitas vezes 20 facto de as pessoas terem medo daquilo que vio encontrar. Asociologia confronta sem parar aquele que a pratica com reali- dades rudes; desencanta. E por isso que, contrariamente a0 que se cré muitas vezes, tanto dentro como fora dela, nio oferece nenhuma das satisfagOes que 2 adolescéncia procura muitas vezes no cometimento politico, Deste ponte de vista, situa-se inteica mente no pélo opasta dar cigneias ditas “puras” que, como a arte € muito especialmente a mais “pura” de todas, a musica, io em parte, sem diivida, refiigios para onde nos retiramos para es quecer o mundo, universos depurados de tudo 0 que consttut problemapcomo a sexualidade ou a politica. E por isso que os espiritos formais ou formalistas fazem em geral uma sociologia mediocre. P. Vocé mostra que a sociologia intervém a propésito de questdes socialmente importantes. O que pde 0 problema da sua “neutralidade”, da sua “objectividade”. O socidlogo poders ficar fora ca salvo da confusio, em posigio de obsecvador imparcial? — O socidlogo tem por particularidade ter por objecto cam- pos de lutas: nio s6 0 campo das hutas de classe, mas 0 proprio campo das lutas cientifieas. E 0 socidtogo ocupa uma posigio nestas lutas em primeiro lugar enquanto detentor de um cerco econémico ¢ cultural, no campo das elasies; em seguida, janto investigador dotado de um cesto capital especifico no campo da produgio cultural e di sociologia. Trata-se de um aspecto que ele deve ter sempre presente no espirito, pars tentar controlar tudo 0 que a sua pritica, oque d preeistmente, no subcampo vé e nio vé, 0 que ele faz ¢ nio faz — por exemplo ox objectos que escolhe estudar—, deve 4 sua posi¢io social. E por isso que a sociologia da sociologia nfo 6, para mim, uma “espe- Cialidade” entre outras, mas ums das condigdes primeiras de uma sociologia cientifica. Parece-me com eftito que uma das casas principais do erro em sociologia reside numa relagio incontrolada como objects. Qu mais exactamente na ignorincia de tudo 0 quea visio do abjecto deve ao ponto de vista, quer dizer & pasicie ocupada no espaco social e no campo cientifica As oportuntdades de se contribuir para produzir a verdade parecem-me com efeito depender de dois factores prineipais, que estio ligados 4 posigao ocupada: o interesse que se tem em saber e-em fazer saber a verdade (ow, inversamente, em a ewonder € em a esconder a st préprio) ea capacidade que se tem de pro- 26 duzi-la. E conhecida a afirmacio de Bachelard: “Sé hi ciéncia do que esti escondide.” O socidlogo estara tanto melhorarmado pera des-cobrir ese escondido quanto melhor armado estiver cientificamente, quanto melhor utilizar 0 capital de conceites, de métodos, de técnicas acumulado pelos seus predecessores, Marx, Durkheim, Weber, e muitos outros, e quanto mais “critico” for, quanto mais for subversive a inten¢io consciente ou inconsciente que o anima, quanto mais interesse tiver em revelar 0 que € censurado, recalcado, no mundo social. E se a sociologia nio avanga mais depressa, como @ ciéncia social em geral, talvez seja, em certa medida, porque os dois factores tendem a variar em razio inversa. Seo socidlogo consegue produzir um pouco que seja de ver- dade, nio apeser de cer interesse em producir essa verdade, mas porque tem interesse nisso ~ 0 que é muito exactamente o inverse do discurso um tanto estupidificante sobre a “neutralidade”’. Este interesse pode consistir, como em qualquer outro lugar, no desejo dese ser 0 primeiro a fazer uma descoberta ¢ de se apropriar de todos os dircitos a tal associados ou na indignagio moral ou a Fevolta contra certas formas de dominagio ¢ contra aqueles que as defendem no interior do campo cientifico, Em suma, nio hi imaculada concei¢io; aio haveria muitas verdades cientificas se tivéssemos de condenar esta ou aquela descoberta (basta pensar na ““dupla hélice”) a pretexto de as intengdes ou 0s procedimentos dos seus autores nio terem sido i muito puros. P. Mas no caso das cigncias sociais, o “interesce”, a “paixio", ‘0 “empenhamento”, aio poderio conduzir 4 cegueira, dando assim razio aos defensores da “neutralidade"? =De facto, ¢ ¢ isso que constitui a dificuldade particular da sociologia, esses “interesces”, essas “paixdes", nobres ou igndbeis, nio conduzem 5 verdade cientifica a nio ser na medida em que se acompanhem de um conhecimento cientifico daquilo que os esque impdem a0 conhecimento, Por exem- determina, ¢ dos li plo, todos sabemos que o ressentimento ligado ao fracasso s6 torna quem o experimenta mais lticido em relagio so mundo social cegando-o ao mesmo tempo em relacio ao proprio principio dessa lucidez. Mas isto ngo € tudo. Quanto mais ayangada é uma ciéncia quanto mais importante € o capital de saberes acumulados nel, anais as estratégias de subversio, de critica, sejam quais forem as suas “motivagSes”, devem, para ser eficazes, mobilizar um saber importante. Em fisica, € dificil triunfar sobre um adversario recorrendo 0 argumento de autoridade ou, como ainda acon— tece em sociologia, denunciando o contetido politico da sua teoria As arma: da critica devem sernela cientificas para serem eficazes Em sociologia, pelo contrério, toda a proposigio que contradiga as ideias feitas se expe a ser suspeita de preconceito ideologico, de tomada de partido politica, Fere interesses sociais: os interes sex dos dominantes que sio cdmplices do-siléncio, ¢ do “bom senso” (que diz que aquilo que ¢ deve ser, ou nao pode ser de outra maneita); os interesses dos porta-vozes, dos altifalantes, que tam necessidade de ideias simples, simplistas, de esteredti- pos. E por isso que lhe so pedidas mil yezes mais provas (0 que esti, com efeito, muito bem) que 20s porta-vores do "*bom senso”. E cada descoberta dla ciéneia desencadeia um imenso trabalho de “critica” retrograda, que tem a seu favor toda a ordem social (os créditos, 05 postos, as honras e, portanto, a crenga) e que visa recobrir © que tinha sido descoberto. P. Hai pouco, citou de um mesmo folego Marx, Durkheim ¢ Weber. O que equivale a supor que as respectivas contribuigdes sio curmulativas. Mas as suas abordagens sto, de facto, diferentes Como conceber que haja uma ciéncia tinica por tras dessa diver- sidade? ~ HA mais que um caso em que nfo podemos fazer avangar a ciéncia a nie ser na condigio de fazermos comunicar teorias opostas, que muitas vezes se consticuiram umas contra as outras Nijo se trata de operar essas falsas sinteses eclécticas que pulularam em sociologia. Diga-se de passagem, a condenacao do cclectismo tem servido muitas veees de alibi A incultura: € to facil e tio confortivel cncerrarmo-tios numa tradicae: 0 marxismo, infeliz 28 . mente, preencheu em grande medida esta fungio de teanquiliza~ ‘lo preguicosa. A sintexe ndo é possivel sendo ao prego de uma posigio em questio radical que conduz ao principio do antago- nismo aparente, Por exemplo, contra a regressio comum do marxismo no sentido do economicismo, que sd conhece a econo mia no sentido restrito da economia capitalista e que explica tudo pela economia assim definida. Max Weber alarga a analise econémica (num sentido generalizado) a terrenos habitualmente abandonados pela economia, como a religiZo. Assim eecae a Igreja, por meio de uma férmula magnifica, como detentora eoeaesle da manipulagio dos hens de salvacio. Convica a uum materialismo radical que investiga as determiinantes econdmicas, (no sentido mais amplo) em terrenos onde reina a ideologia do “desinteresse”, como a arte ou a religizo. [A mesma coisa se passa com a nogio de legitimidade. Marx rompe com a representario corrente do mundo social fazendo ver que as relagdes “encantadas” — as do paternalismo por exem- plo—escondem telacdes de forga. Weber aparenta contradizer tadicalmente Marx: lembra que a pertenca ao mundo social im- plica uma parte de reconhecimento da legitimidade, Os pro! sores — cis um belo exemplo de efeito de posigao ~retém a dife- renga. Preferem opor os autores a integri-los. £ mais cGmodo para claborar licdes claras: primeira parte Marx, segunda parte Weber, terceira parte cu proprio... Ao passo que a Kigica da investigagio conduz a superar a oposigo, remontando a maiz comum. Marx evacuou do seu modelo a verdade subjectiva do mundo social contra a qual estabeleceu a verdade objectiva dese mundo como relagie de forgas, Ora, se 0 mundo social se reduzisse sua verdade de relagio de forgas, se nio fosse, em certa medida, reconhecido como legitimo, as coisas nfo funcionariam. A repre sentaZo subjectiva do mundo social como legitimo faz parte da verdade completa desse mundo. P, Por outras palavras, vocé esforga-se por integrar num mes— mo sistema conceptual contributos teéricos arbitrariamente sepa tados pels Histéria ou pelo dogmatismo 2 ~ Durance # maior parte do tempo, o obsti conceitos, os métodes ou as téenicas de comunicar nio é logico sulo que impede os mus socioligico. Os que se identificaram com Marx (ou com Weber) no podem apoderar-se do que Ihes parece sera stia negacio sem terem 2 imprescio de se negar, de se renegar (nio devemos esqueter que para muitos dizerem-se marxistas nao € mais que uma profissio de fe—ou um emblema totémico). © que vale tam- bbém para as relaces entre “teéricos” e “empiristas”. entre defen- sores da investigaeio dita “fundamental” € da investigacio dita “aplicada”. & por isso que a sociologia da ciéncia pode ter um feito cientifico. P. Deveri entender-se que uma sociologia conservadora esti condenada a ser superficial? ~ Os dominantes véem sempre com maus olhos ¢ socidlogo, ou 0 intelectual que faz as suas vezes quando a disciplina ainda nao esti constituids ou nio pode fancionar, como hoje na Unss, Sio cimplices do silencio porque nada tén a replicar ao mundo que dominam ¢ que, por isso, [hes aparece como evidente, como “Sbvio social que podemos fazer depende da relagio gue mantemos com © mundo social, € portanto da posigio que ocupamos nesse mundo, . O mesmio € dizer, uma ver mais, que 0 tipo de ciéncia Mais precisamente, esta relagio com 0 mundo tradue-se na fungao que 0 investigador atribui consciente ou inconseientemente a sua pritica ¢ qu objectes escolhiddos, métodos usados, ete. Pode ter-se por fim compreender 0 mundo social, no sentido de compreender para compreender. Podem-se procurar, pelo contririo, técnicas que governa as suas estratégias de investigagio: permitam manipuli-lo, pondo assim a sociologia 20 servico da \gestao da ordem estabelecida. Para que se compreenda melhor, um exemplo simples: a sociologia religiosa pode identificar-se com uma investigagio de destino pastoral que toma por objecto os leigos, as determinantes sociais do praticar ou do nio-praticar, uma espécie de estudos de mercado permitindo racionalizar as estratégias sacerdotais de venda dos “bens de salvacic pode 30 pelo contrario dat-se por objecto compreender 0 fimcionamento do campo religioso, do qual os leigos so apenas um aspecto, ocupando-se por exemplo do funcionamento da Igreja, das estea- téias através das quais ela se reproduz ¢ perpetua 0 seu poder —e entte a quais se deve consar 09 inquéritos sociclegicos (otiginalmente levados a efeito por um cénego). ‘Uma boa parte dos que se designam como socidlogos ou econo Inistas Go engeniciros sociais que t8m por fangao fomecer receitas a0s ditigentes das empresas privadas ¢ das administragées. Oferecem uma racionalizagio do conhecimento pritico ou semi-instruido que os membros da classe dominante tém do mundo social. Os governantes tém hoje necessidade de uma ciéneia capaz de raciona- lizar, no duplo sentido, a dominagio, eapaz 20 mesmo tempo de reforgar os mecanismos que a asseguram e de a legitimar, £ Gbvio que esta cigncia encontra os seus limites nas suas fungdes priticas: 10 entre os engenheires sociais como entre os dirigentes da economia, nunca pode operar uma posigio em questio radical Por exemplo, a ciéncia do presidente do conselho deadministragao da Compagtie bancaire, que & grande, muito superior sob certos aspectos a de muitos socidlogos ¢ economistas, encontra 0 sett limite no facto de ter por fim Gnico ¢ indiseutido a maximizac3o dos ganhos desta instituicio. Exemplos desta “ciéncia” parcial, a sociclogia das organizagdes ou a “ciéncia politica”, conforme sio ensinadas no Instituto Auguste Comte ou em “Seienves Po", com ‘0s seus instrumentos dé predilecgio, como as sondagens. P._ A distingao que vocé fiz entre os tedricos ¢ 0s engentheiros sociais nio port a ciéncia na situagio da arte pela arte’ = De maneira nenhuma. Hoje, entre as pessoas das quis de- pende 2 existéncia da sociologia, sfo cada vez mais as que per- guntam para que serve 2 sociologia. De facto, a sociologia tem tantas mais probabilidades de frustrar ou contrariar os poderes quanto melhor preencher 2 sua funedo propriamente cientifica. Esta funcio nio servir alguma coisa, quer dizeralguém. Pedir 8 sociologia que sirva alguma coisa é sempre uma mancira de se The pedir que sirva o poder. Ao passo que a sua fungio cientifica 34 compreender © mundo social, a comegar pelo poder, Opera (Go que nio ¢ socialmente neutra e que preenche sem dévida alguma uma fungio social. Entre outras razdes porque no hi poder que nio deva uma parte — e nio.a menor ~ da sua eficicia a0 descenhecimento dos mecanismos que 0 fandarn. P. Gostaria agora de abordar 6 problema das relagdes entre a sociclogia e a8 ciéncias vizinhas. O seu livro sobre A Distingio comega com 2 seguinte frase: Jogia se assemelhe canto a tima psicanilise social como quando se confronta com um objecta como 0 gasto.”” Seguem-se quadros estatisticos, relatorios de investigagoes, mas também anilises de tipo “literirio”, como as encontramos em Balzac, Zola ou Proust. Como se articulam estes dois aspectos? =O livro ¢ 0 produto de um esforgo por integrar dois moos de conhecimento,.a observagio etnogrifica, que nio pode apoiar- -se seni num pequeno niimero de casos, ¢ a anilise estatistica que permite estabelecer regularidades e situar os casos observa~ dos no universo dos casos existences. E por exemplo a descrigia contrastada de uma cefeig2o popular ¢ de uma refeigio burguesa, reduzidas aos seus tragos pertinentes, Do lado popular, temos 0 prinado declarado da func, que se encontra em todos 0s const mos: quet-se que alimento sejasubstancal, que “figue no corpo”, Hii poucos casos em que a socio- como se pede a0 desporto, com © culturismo por exemplo, que dé forga (os mésculos aparentes). Do lado burguts, temos © pri- mado da formu ou das formas (“formas a observar") que implica uma espécie de censura ¢ de recalcamento da fiungao, uma este icizagio, que se encontrar por toda a parte, tanto no erotiamo enquanto pernografia sublimada ou denegada como na arte pure que se define pr detrimento da fungio. De facto as anilises declaradas “qualitati- vas" ou, pier, “literirias Jsamente pelo facto de privilegiar a forma em sio capitais para se compreender, quer dizer explicar completamente 0 que as estatisticas se limitam 2 semelhanga sob este aspecto do que fazem as estatisticas de pluviometria. Conduzem ao principio de todas as pritica: observadas, nos mais diferentes dominios. constatar, 32 P. Para volta com a psicologia, a psicologia social, ete? — A ciéncia social no tem parado de tropecar no problema do individuo e da sociedade. Na realidade, as divisoes da ciéneia social em psicologia, psicalogia social e sociologia constituiram- se, em meu entender. em torno de um erro de definigio inicial. “A evidéncia da individuacao biolégiea impede de ver que a socie- dade existe sob duas formas insepariveis: de um lado as insticui- Ses que podem revestir a forma de coisas fisicas, monumentos, livros, instrumentos, etc.; do outro as disposigdes adquiridas, as maneiras duradouras de ser ou de fazer que encarnam em corpos (ea que eu chamo os habitus). © corpo social se chama 0 individuo ou a pessoa) mio se opie a socicdade: uma das suas formas de existéncia minha pergunta, quais slo as suas relagSes do (aquilo a que P. Noutros termos, a psicologia estaria entalada entre a bio- logia de um lado (que fornece nentais) © 9 sociologia do outro, que estuda a maneira como essis invariantes se de de tudo, até mesmo daquilo a que se chama a vida privada, a amizade, 0 amor, a vida sexual, etc ~ Absclutamente, Contra a representagio comum que consiste em associ wariantes fund: cnvolvem, E que se encontra portanto habilitada a tratar sociologia ¢ colectivo, devemos lembrar que 0 eolec- tivo esti deposto em cada individuo sob 3 forma de disposigdes dara douras, como as estruturas mentais. Por exemplo, er A Distingao, esforgo-me por estabelecer empiricamente a relagio entreas classes sociais © 0: sistemas de classificagio incorporados que, produzidos na histéria colectiva, do aquisigSes na histéria individual, essas por exemplo que o gosto aplica (pesado/leve, quente/frio, bri- Thante/baco, etc.) P. Mas entio, o que é 0 bioldgico ou © psicologice para a sociologia? A sociclogia toma © bioldgico ¢ © psicolégico como um dado. E esforca-se por estabelecer como o utilira o munde social, © transforma, o transfigura: O facto deo homtem ter um corpo, 33 de esse compo ser mortal, pBe aos grupos problemas dificeis. Estow 4 pensar to livro de Kantoroviteh, Os Dois Corpoe do Rei, em que 0 autor analisa os subterfigios socialmente aprovados através ddos quais se arranja mancita de afirmar a existéncia de wma realeza sranscendente relativamente ao corpo real do ret, por intermédio do qual sobrevém a imbecilidade, 2 doenga, a fraqueza, a morte. “OQ rei morreu, viva o rei.” Nao podia deixar de pensar nele P. Voce fala também de descrigdes etnogriticas... ~ A distin¢io enue emologia ¢ sociologia & tipicamente uma falsa fronteira, Como tento fazer ver no meu tltimo livro, © Sen- tide Pritico (Le sens pratique), & um puro produto da hist6ria (colo~ nial) que nio com qualquer espécie de justificagio légica. P. Mas nio haverd diferengas de atitudes muito marcadas? Em etnologia temos a impressdo de que o observador permanece exterior a0 seu objecto © que regista, no limice, aparéncias cujo sentido nio conhece. O socidlogo, pelo seu lado, parece adoptar © ponte de vista dos sujeitos que estuda. — De facto, a velagio de exterinridade que voce descreve, ¢ a que chamo objectivisea, é mais frequente cm etnologia, sem davida porque corresponde & visio do esteangeira, Mas certos etnologos Jogaram também 0 jogo (0 duplo jogo) da participagio nas repre sentagées indigenas: 0 etndlogo enfeitigado ou mistico, Seria até mesmo possivel inverter a sua afirmagio. Certos socidlogos, porque trabalham as mais das vezes através da pessoa interposta dos inquiridores ¢ nunca tém contacto directo com os inquiridos, tendem mais para o objectivismo que os etndtogos (cuja primeita virtude profisstonal ¢ a capacidade de estahelecerem uma relagio real com os inguiridos). Ao que vem somar-se a distincia de classe, que nio é menos podeross que a distincia cultural. E por isso que nfo hi, sem diivida, ciéncia mais inumana que a produ- zida para os lados de Columbia, sob a férula de Lazarsfeld, e na qual a distincia produzida pelo questionirio ¢ pelo inguiridor interposto € redobrada pelo formalismo de uma estatistica coga. Aprende-se muito sobre uma ciéncia, sobre os seus métodos, os 34 seus contetides, quando se far como 2 sociologia do trabalho, ma espécie de descricio de posto. Por exemplo, 0 socidlogo burocritico trata 2¢ pessoas que estuda como unidades escatfsticas intercambiavais, submetidas a questbes fechadss e idénticas para todas. Ao passo que o informador do exnélogo ¢ um personagem eminente, longamente frequentado, com o qual se fazem entre- vistas aprofundadas. P. Vocé opde-se, portanto, 4 abordagem “objectivista” que substitui o modelo 4 realidade; mas também a Michelet, que via resusiar' oa Saree, que quer aprender ite oct meio de uma fenomenologia que the parece, a si, arbitriria ponmExactamente. Por excmpio, dado que wma das fungdes dos rituais sociais € dispensar os agentes de tudo 0 que pomos de- baixo do termo de “vivido”, nada & mais perigoso que por 0 vido” onde o nio hi, por exemplo nas priticas rituais. A ideia de que ado ha nada de mais generoso que projectar o proprio “vivido” na consciéneia de um “primitivo”, de uma “feiticeira proletirio” parecew-mte sempre ligeirimente etnocén~ far 08 efel~ ou de rica. O melhor que © socidlogo pode fazer & object tos incvitaveis das tenicas de objectivagio que & obrigado a empregar, escrita, diogramas, planos, mapas, modelos, etc. Por exemplo, em ( Seutide Pritico, tento mostrar que, 4 falta de terem apreendido os efeitos da situagio de observador ¢ das técnicas que empregam para captar 0 seu objecto, os etnologes consticuiram rimitivo" como tal porque nio souberam reconhecer nele © aque eles priprios sio assim que param de pensar cientificamente, quer dizer na pritica. As logicas ditas “primitivas” sto muito simplesmente Iogieas pritieas. como a que nés aplicamos para ajuizar de um quadro ou de um quarteto. P, Mac nio seri possivel descobrir 2o mesmo tempo a logica de tudo isco e conservar 0 “vivid”? Ny concepyde de Michelen.a hisebsia visava,com eftita "a ressnrreigao ineegral do passado”.(N-do“T) ~Hé uma verdade objectiva do subjective, sinda quando contradiz a verdade objectiva que deve ser construfda contra ele. A ilusio nio é, enquanto tal, luséria, Seria trair a objectividade fazer como se os sujeits sociais nlo tivescem representacao, expe- riéncia das realidades que a ciéncia conste6i, eome por exemplo as chases Sociais. E necessirio, portanto, aceder a uma objectivi- dade mais elevada, que da lugar a essa subjectividade. Os agentes tém um “vivido” que nio é a verdade completa daquilo que f1- zem e que faz, contudo, parte da verdade da sua pritica. Tomemos por exemplo um presidente que declara “esti abertaa sessio" ou um sacerdote que diz “eu te baptizo”. Por que é que esta lin- guagem tem um poder? Nao sio as palavras que agem, através de umm espécie de poder magico, Acontece que, em condigdes sociais dacs, certs terms tém forga. Tram a sua forga de urna institu que tem a sua Idgica propria, of titulos, o arminho © a toga, a catecira, o verbo ritual, a crenga do articipantes, ete. A sociolo- gia lembra que mio & a palavet que age, ema pessoa, intercam- brivel, que a pronuncia, masa instituigio. Mostea as condigSes objectvas que devem estar reunidas para que a eficdcia desta ou daquela pratica social se exerea, Mas nao pode fiear por ai, Nio deve esquecer que part que isso fancione é necessirio que o actor ¢reia que esti no principio da eficdcia da sua acgio, Ha sistemas que funcionam inteicamente a crenga ¢ nio hi sistensa ~ nena sequer a economia ~ que nio deva em parte i crenga 0 facto de poder fancionar, ¥. Do ponto de vista da ciéneia propriamente dita, come preendo ben a sua eperacio. Mas o resultado & que desvaloriza © “vivido” das pessoas. Em nome da ciéncia, arrisca-se a tirar as pessoas ay suas ravdes de viver. O que & que Ihe di o direito (se assim se pode dizer) de as privar das suas ilusdes? —Também me acontece perguntar-me se 0 universo social completamente transparente ¢ desencantado que seria produrido por uma ciéneia social plenamente desenvolvida (¢ largamente difuindids, se & que tal € possivel) ndo seria invivivel. Creio, apesar de tudo, que as rcligdes soviais seriam muito menos infelizes se 36 as pessoas controlassem pelo menos os mecanismos que as deter- minam a contribuir para a sua propria ee ee talver a finica fingio da sociclogia seja fazer ver, tanto pelas suas lacunas visiveis ‘como pelas suas aquisigSes, 0s limites do conhecimento do mundo social ¢ tornar assim dificeis todas as formas de profetismo, 4 comegar evidentemente pelo profetismo que se reclama da ciéncia P, Tratemos das relagdes com a economia, ¢ em particular com certas anilises neoclissicas como as da Escola de Chicago. De facto, 0 confronto é interessante porque permite ver como Poderio encontrar-se deseavolwimentos complementares em: P. Bour- cntilique”, Ade dels recherche en sions sociales, 2-3, Junho LOM; "Le langage autor. Note sur les conditions de efficacité res de la recherche en scence soles, 5-6, 1975, vif Les eelations entre "histoire rife et Thistoire incorporée”, Actes dele cherie en scones sociales, 32-33, Abrl-Junho de 1980, pp. S14. O SOCIOLOGO EM QUESTAO* P. Por que que emprega um jangio particular e particular- mente dificil que torna muitas vezes 0 seu discutso inacessivel 10 profino? Nao haverd uma contradigao em denunciar 0 monopélio que os cientistas se outorgam ¢ cm restauri-lo no discurso que 0 denuncia? Basia muitas vezes deixar-se falara linguagem comum, aban donarmo-nos a0 laisierfeire linguistico, para accitarmes sem 0 sabermos uma filosofia social, © dicionirio esti pejado de mito- logia politica (estou a pensar, por exemplo, em todos os pares de adjectivos: brilhante-sério, alto-baixo, raro-comum, ete.). Os amigos do “bom senso” peixes na Agua e que, em matéria de linguagem como noutras smatérias, rém as estruturas objectivas do seu lado, podem (ressal~ que estio na linguagem comum como vados os eufemismos) falar uma linguagem clara como agua de rocha dar guerra ao jargio. Pelo contririo, as ciéncias sociais devem conquistar tudo 0 que dizem contra as ideias feitas que veicula a linguagem comum e dizer 0 que conquistaram numa Tinguagem predisposta a dizer outra coisa inteiramente diferente. Quebrar os automatismos verbais no é criar artificialmente uma diferenga distinta que ponha © profine 4 distincia; & romper = Ess pergunus si as que mc pareceram mais importntes entre 26 que sme foram erst Faquentemente postarno decorrer de diferentes dixansiee aque ve recentemente em Pai (Eile plyteigue), em Lyon (ma Unwver= sidade Popular) .em Grenoble (na Faculdade de Letzas),em Troyes (xo Institut universities ce technologie), © em Angers [ma Faculdeds de Lema) a com 2 filosofia social que se encontma inscrita no diseursa espon- tineo. Par uma pslavea por outra é muitas vezes operar uma transformagio epistemolégica decisiva (que corre de resto 0 isco de passar desapercebida), ‘Mas nao se trata de escapar aos automatismas do bom senso Para cair nos automatismos da linguagem critica, com todas as palavras que funcionaram demasiadas vezes como estere6tipos ‘ou palavras de ordemt, todos os enunciados que serve nio para ‘enunciar o real mas para tapar os buracos do conhecimento (tal muitas vezes a fungio dos conceitos com mai proposigSes que introduzem, ¢ que muitas vezes pouco mais io que profisses de f por meio das quais o crente reeonhece 0 crente), Estou a pensar nesse “basic imnanism”, como diz Jear -Claude Passcron, que floresceu no decorrer dos dltimos anos scula & das cem Franga: essa linguagem automitica, que se move porsi propria, mas no vazio, permite falar de tudo economicamente, com um pequenissimo niimero de conccitos simples, mas sem que se pense grande coisa. O simples fieto ds conceptializagao exerce muitas veres unt efeito de neutraliz A linguagem sociolégica nio pode ser nem jo, senio de denegacao. neutea” nem “clara”. O termo de classe nunea seri um termo neutro enquanto 1 existéncin ou da nio-existéncia das classes & uma parada em jogo da luta entre as classes. trabalho de escrita que & necessirio para se chegar a um uso rigoroso € controlido da linguagem s raramente condur aquilo a que se chama clareza, quer dizer o reforco das evidencias de bor senso ‘ou das certezas do fanatismo. Por contraste com uma investigagio literdria, a busea do rigor conduz quase sempre a sicrificar a bela formula, que deve a sua forca ea sua clareza ao facto de simplificar ou falsificar, a uma expressio mais ingrara, mais pesada mas mais exacta, mais con- trolada, Assim a dificuldade do estilo provém muitas vezes de codos os matizes, todas as cortecces, todos as adverténcias, sem falar ds reiteracdes de definigBes, de prinetpios, que sto necessirias ara que o discurso veicule em si préprio todas as defesas possiveis contra os desvins e as versdes distorcidas. A aten¢do a estes signos houver classes: 2 questio 2 aiticas €, sem divida, directamente proporcional & vigilancia, © portanto & comperéncia, do leitor — 0 que faz com que as adver- ‘téncias sejam tanto melhor percebidas por um leitor quanto mais jniteis so para ele. Podemos esperar apesar de tudo que desen- corajem © verbalismo e ecolalia Mas a necessidade de recorrer a uma linggnagem antifcial talvez 2 imponha 4 sociologia mais fortemente que a qualquer outra cigncia. Para romper coma filosofia social que assombra os termos correntes e também para exprimir coisis que linguagem comum nao pode exprimir (por exemplo tudo 0 que se situa na ordem do iss0-€-dbvio). 0 sociélogo tem de recorrer a termos forjados = ¢ por isso protegidos, pelo menos relativamente, contta as pro- jeccdes ingénuas do sentido comum, Este; tanto melhor do desvio quanto mais a sua " 3 predisponha a resistir ds leit que evoca a aquisigao, ou até mesmo a propricdade, 0 capital) ¢ sobretude talvez na medida em que se insiram, se integrem numa rermos defendem-se iatureza Linguistica ws apressadas (€ 0 caso de habitus, rede de relagSes que acarretam as suas imposigdes ldgicas: por exemplo alodoxia, que diz de ficto uma coisa dificil de dizer ou até mesmo de pensar em poucas palaveas — 0 facto de se tomar uma coisa por outa, de crer que uma coisa é diferente daquilo gue &, etc. ~ & um termo que se insere na rede das palavras com a mesma maiz, doxa', doxéfo, ortodoxia, heterodoxia, paradoxo. Dito isto, a dificuldade da transmissio dos produtos da inves tigacdo sociolégica est muito menos associada do que se cré a dificuldade da linguagem. Uma primeira causa de mal-entendido reside no facto de of leitores, até mesmo oy mais no terem mais que uma ideia muito aproximativa das condiyoes de producio do discurso de que tentam apropriar-sc. Por exemplo, ° A dave € a opiniio por contraste com o saber on discurso racional, Esta ‘epusigio terminologies entre dave ¢ loos corresponde, porém, pomeadamente va filosofia platdnics, 2 uma oposicso oncolégicx entre o mundo do devir (accesariamente imperfeito ¢ deficiente) 2 0 dominio dis Ietas (subtraias 20 tempo do devir 6,56 eas, pasiveis de verdidciro conhecimento ou saber Proprismente ligiea). No uo que fa de dnva, Pierre Bonediew entende-a sobrerude como © dominio do sentido imadizto endo reflectido que dssco- hece a sa prépris génese 2 tania de ser. (N. de!) B ha uma leitura “flosdfiea” ou “teérica” dos trabalhos de ciéucias sociais que consiste em reseras “teses”, as “conclusdex™, indepen dentemente da operagao da qual sio 0 produto (quer dizer, conere~ tamente, crn “saltar” as analises empiticas, os quadros estatisticos, as indicagdes de método, etc,), Ler assim é ler uin outro livro, Quando “condenso” a oposigio entre as classes populares ¢ a classe dominance na oposigdo entre o primado dado 4 substincia (ow i fungio) ¢ 0 primado dado 3 forma, pode haver quem ovga um discurso filosdfico quando é preciso ter presente que uns comem feijdes © outros alface, que as diferengas de consumo, nnulas ou fiacas em matéria de roupa de dentro, sio muito fortes em matéria de roupa de fora, etc. E verdade que as minhas analises sio © produto da aplicagio de esquemas muito abstractos a coisas muito concretas, estatisticas de consumo de pijamas, de slips ov de calgas, Ler estatisticay de pijamas a pensar em Kant nio é li nuuito evicente... Toda a aprendizagem escolar tende a impedir de pensar em Kant a propésito de pijamas au a impedir de pensar em pijamas 20 ler Marx (digo Marx porque quanto a Kant voces concender-mo-do demasiado fieilmente, ainda que, deste ponto de vista, seja a mesma coisa). Ao que actesce o facto de muitos leitores ignorarem ou recusa- tem os proprios principios do modo de pensamento socioldgico, xplic Durkheim, que & muitas veres percebida como uma ambi¢io imperialista, Mas, mais simplesmente, a iguorincia da estatistica ou, melhor, a falta de habituagio ao modo de pensamento estatis- tico, conduzem a confiindir 0 provavel (por exemplo a relagio entre a origem social ¢ 0 sucesso escolar) com 0 certo, 0 necessiti. De onde todas as espécies de acusagées absurdas, como a deniincia do fatalisma, ou das objecgdes sem objecto, como 0 insucesso de uma parte dos fillos da classe dominante que é, muito pelo con- tririo, um elemento capital do modo de reprodugio estatistico (um “sociélogo”, membro do Institue, dispendeu grandes ener como a vontade de © social pelo social”, nos termos de 2 Teats-se do Insite Auguste Comes, vomado aqui como emblenitico da sociolowa oficsl,a que Bourdieu charna por vezes “huroceitica"’ (N do°T) “4 gas na demonstracao de que nem todos os files de diplomados pela Ecole polytechnique acabavam diplomades pela mesma esco- ial). ‘Mas a principal origem de mal-entendidos reside no facto de, comummente, quase nunca se falar do mundo social para dizer o que ele & e quase sempre para dizer 0 que ele deveria ser O discurso sobre o mundo social é quase sempre performativo: contém desejos, exortardes, acusagdes, ordens, etc. Segne-se que 2 discurso do socidlogo, embora se esforce por ser constativo, tem todas as probabilicades de ser recebido como performative. Se digo que as mutheres respondem menos frequentemente que os homens is perguntas das sondagens de opiniao ~ tanto menos quanto mais “politica” é a natureza da pergunta—, haverd semi~ pre alguém para me acusar de excluir as mulheres da politica. Porque, quando digo 0 que é, entende-se: ¢ esté bem que seja ‘assim, Do mesmo modo, deserever a classe operiria como ela éincorrer na suspeita de querer encerri-la no que é como num destino, de queter afindé-la ou de querer exalté-la, Assim, a cons- tatagio de que, a maior parte do tempo, os homens (e sobretudo. as mulheres) das classes culturalmente mais desprovidas de meios confiam as suay excolhas politicas ao partido da sua escolha e, na ocorréncia, 20 Partido Comunista, foi compreendida como uma exortagdo a entrega ao Partido. De facto, na vida comum, nia se ra considerar mata descreve uma refeigio popular a nio ser p: vilhosa ou repulsiva; nunca para se compreender a sua lgic: dar dela rizio, compreendé-la; quer dizer darmo-nos os meios dea tomar como 6, Os leitores sem a sociologia com os éculos do seu habitus, E alguns descobririo um reforgo do seu racismo de classe na mesma descriio realista que outros achario suspeita de sev inspirada pelo desprezo de classe. Hi aqui o principio de um mal-entendido estrutural na comu- nicagio entre 0 socidlogo ¢ o seu leitor. P. Nao pensa que, dada a maneira come se exprime, sé pode ter intelectuais como leitores? Nao serd um limite 4 eficdcia do seu trabalho? ~ A infelicidade do sociélogo & que, a maior pares do tempo, as pessoas que tm os meios tGenicos de se apropriarem do que cle diz rio tém a menor vontade de se apropriarem, © menor interesse em se apropriarem do que ele diz, tendo até mesmo interesses poderosos na sta recusa (0 que fiz com que pessoas sob outros aspectos muito competentes possam revelar-se intel ramente indigentes no que se refere 4 sociologia), a0 passo que aqueeles que teriam interesse em apropriar-se do que ele diz nao posstem os instrumentos de apropriagao (cultura teérica, ete.) © discurso sociolégico suscita resistencias que sao inteiramente analogas na sua Logica ¢ nas suas manifestagdes Aguclas com que depara o discurso psicanalitico. As pessoas que em que hi uma correlagio doy nuseus tém todas as probabilidades de frequencarem ox mu~ seu adores de ari¢ prontos a mosrer por amor da arte, de viverem o seu encontro com a arte como um amor puro, que s incendiow 4 primeira vista, ¢ de oporem intimeros siste- mas de defess 4 objectiva to forte entre o nivel de inscrugao a frequéncia de serem| (0 cientifica, Em suma, ay leis da difusio do discurso cientifico fazem com que, apesar da existéneia de instineias de transmissio e de media probabilidades de cheyar “la e muito poucas pro- dores, a verdade cientifica tenhs todas. 205 que estio menos dispostos a ae babilidades de aleangar aqueles que teria mais interesse em rece bé-la, No entanto, pode pensar-se que bastaria fomecer aos segu- dos uma linguagem ma qual se reconhegam ou, melhor, na qual se sintam reconhwcidas, quer dizer aceites, justificados de existie como existem (0 que necessariamente Ihes oferece toda a bea sociologia, ciéncia que, enquanto tal, dé razde), para provocar uma trinsformagio da sua relagio coms aguilo que sia, © que sena necessirio dimnlear, disseminar, &0 olhsr cientifico, esse olhar ao mesmo tempo objectivante © compreensivo, que, virado sobre s proprio, permite a cada um assumitete @ até mesmo, se assim posso dizer, reivindicar-se, reivindicar o direite a ser-se © que se é. Fstow a pensar em palavras de ordem como “Black is Beautiful” dos negros americanos e na teivindicacio do direito a0 natural look, & aparéncia “natural”, das ferninistas. Acusaram-me 16 de empregar por vezes uma linguagem pejorative para falar de todos aqueles que impSem necessidades novas ¢ de sacrificat assim uma imagem do homer que faz pensar no “homem de natu reza", mas numa versio socializada. De facto; nio se trata de encerrar os agentes sociais num “ser social original” tratado como jum destino, uma natureza, mas de Ihes oferecer a possibilidade de assumirem © seu habitus som culpabilidade nem softimento. Eo que se deixa ver bem no dominio da cultura em que a miséria vem muitas vezes de um despojamento que nio pode assumit- se. O que se trai sem dtivida na minha maneira de falar de todos os estetas, dietistas, conselheiros conjugais e outros vendedores indignagio contra essa forma de exploracio da miséria que consiste em impor normas impossivels para vender em seguida meios ~as mais das veres ineficazes — de preencher a distincia entre essas normas e as possibilidades reais que hi de as, realizar. Neste terreno, que ¢ completamente ignorado pela analise politica, embora seja lugar de uma ac¢ao objectivamente politica, 9s dominados sto deixados apenas com as suas préprias armas; estio absolutamente desprovidos de armas de defesa colectivas com que enfrentar os dominantes ¢ os seus psicanalistas do poly Ora, seria ficil mostrar que a dominacio politica mais tipica : por exemplo, na Distin- (9, eu queria abrir o capitulo sobre as relagSes enire a cultura € de necessidades, mente politica atravessa também estas v politica com uma fotografia, que acabei por nio indir, receando que fosse mal lida, cm que se viam Maire © Séguy* sentados numa cadeira Luis xv diante de Giscard, ele proprio sentado num canapé Luis xv. Esta imagem designava, da maneira mais evi- dente, através da mancira como extavam sentados, como cnbam, 35 mios, em suma de todo 0 estilo corporal, aquele dos partici- antes que tem do seu lado a cultura, quer dizer 0 mobiliirio, o cenirio, a5 cadeirss Lufs xv, mas também as maneiras de usar tudo isso, a maneira de estar, aquele que € © possuidor desta > Secrevirios-geris das Centra sindicals franceers CFDT ¢ CGT. res ‘ivamente ¢ na altura da eseritura da obra. (N. do T) 2 cultura objectivada ¢ aqueles que sie possufdos por esta cultura, em nome desta cultura. Se, diante do patrio, 0 sindicalista se sente, no fundo, “embaragado”, como coscumma dizer-se, € em parce pelo menes porque dispde apenas de instrumentos de anilise de auto-andlise, demasiado gerais e demasiado abstractos, que nio Ihe dio qualquer possibilidade de pensar ¢ de controlar a sua relagio com a linguagem ¢ com © corpo. E este estado de aban dono em que o deixam as teorias e as andlises disponiveis é pa ticularmente grava — ainda que o estado de ahindono em que se encontea a sua mulher, na sua cozinha de um apartament de bairro econdmico, frente 3s imposturas das apresentadoras da 272 ou de Europe também deva ser levado cm conta, porque ha uma quantidade enorme de gente que vai falar por seu intermé- dio, © porque é pela sua boca, pelo set: corpo, que vai passar a palavra de um grupo inteire, © porque as suas reacgoes assim generalizadas poderao ter sido determinadas, sem que ele 0 saiba, pelo seu horror aos meninos mimados que tsamn 0 cabelo com- prido ow aos intelectuais com dculos, P. A sua sociologia nao implicard uma visio deverminista do homem? Qual é a parte deixada a liberdade: humana? = Como toda a ciéneia, a sociologia aceita o principio do determinismo encendido como uma forma do principio de razio suficiente. A cigneia que deve dar rezdo daquilo que é postula por isso mesmo que nada é sem razio de se centa social: sem razio de ser proptiamente social. Perante uma ‘O socidlogo acres- distribuigio estatistica, postula que existe um, ictor social que explica esta distribuigio e se, tendo-o encontrado, hi um residao, postula a existineia de um outro factor social, ¢ assimn por diante. (E 0 que faz erer por vezes num imperialisme sociolégico: de facto, & de boa guerra ¢ toda a ciéncia deve dar conta, com 0s seus meios proprios, do maior nfimero de coisas possiv fo que inclui coisas que so aparentemence ou realmente explicadas por outras ciéncias. B sob esta condiedo que pode pdr is outras cién cins — ea si propria ~ verdadeinas questiies, e destruir explicagies aparentes ou pér claramente o problema da sobredeterminagic.) 48 e Dito isto, confiinde-ce muitas vezes sob 0 termo de deter minismo dias coisas muito diferentes: a necessidade objectiva, inscriea nas coisas, ¢a necessidade “vivida”, aparente, subjectiva, o sentimento de necessidade ou de liberdade. © grau em que o mundo social nos parece determinado depende do conhecimento qne dele temos, Pelo conttirio, o grau em que ¢ mundo € real mente determinado nio € uma questo de opiniao; enquanto soci Jogo, ndo renho de ser “pelo determinismo” ou “pela liberdade” mas de descobrir a necessidade, se existe, onde ela se cneontra. Pelo facto de todo 0 progresso no conhecimento das leis do mundo social elevar 0 grau de necesidade perecbida, € natural que a Giéncia social, quanto mais avangada estiver, mais seja acusada de “determinismo”. Mas, contrariando as aparéncias, ¢ clevando o grau de neces sidade percebida ¢ dando um melhor conhecimento das leis do mundo social, que a ciéneia social di mais liberdde, Todo © progresso no conheeimento da necessidade € tim progresso na liberdade posstv da necessidade encerra uma forma de reconhecimento da ne divida a mais absoluta, a mais toral, uma vez que se ignora como tal, o conhecimento da necessidade no implica de mancita nenhu- maa necessidade desse reconhecimento. Pelo conttitio, faz cer a possibilidade de excolha que esti inscrita em toda a rel: do tipo setemos isto, entdo teremos aquilo: a libercade que consiste Enqusnto o desconhecimento wsidade, € sem em escolher aceitar o s¢ ou recusi-lo é desprovida de sentido enquanto se ignorar a relagio que 6 une a um entay, O expor & luz do dia as leis que supdem o laisser-faire (quer dizer a aceitagao inconsciente das condicdes de realizagio dos efeitos previstos) estende 0 dominio da liberdade. Uma let ignorada é uma natu~ reza, um destino (@ 0 caso da relagio entre o capital cultural herdado ¢ sucesso escolar); uma lei conhecids aparece como possibilidade de uma hberdade. P. Nio & perigoso falar de lei? Sim, sem diivida alguma. E evito 0 mais possivel fazé-lo. Os que tém interesse no laisser-faire (quer dizer em que nao se 4“ modifique o se) véern a “lei” (quando a véem) como um desti- no, uma fatalidade inscrita na natureza secial (so, por exemplo, as leis de bronze das oligarquias dos neo-maquiavélicos, Michels ou Mosca). De faeto, 2 lei social ima lei histérica, que se per- petua enquanto se detea que fincione, quer dizer enquanto agueles que serve (por vezes sern que eles 0 saibam) estio em medida de perpetuar as condigdes da sua eficdcia. (O que devemos perguntar é aquilo que se faz quando se enun- ‘cia uma let social até entao ignorada (por exemplo a lei de transmis- so do capital cultural). Pode-se pretender fixar uma lei eterna como fazem os socidlogos conservadores a propésito da tendén- ia pata @ concentragio do poder. Na realidade, a ciéncin deve saber que nito faz mais que registat, sob a forma de leis tendenciais. a logica que € caracterfstica de um certo jogo, nuns certo momento, gue joga a favor dos que, dominando 0 jogo, esto em condicdes de definir de facto ou de direito as regras do jogo. Dito isto, a partir do momento em que € enunciada, a lei pode tormar-se unsa parada cm jogo de Iutas: lnta para a conservar conservando as suas condigdes de funcionamento; uta para a 3. O expor i luz do dia as leis tendenciais & a condigao de sucesso das acces que visam desmenti_las, Os dominantes estio cometides com a lei, ¢ portanto com uma interpretagio Fisicalista da lei, que a faz regressar 20 estado de mecanismo infraconsciente. Pelo conttirio, 08 domi- nados esto cometidos com a descoberta da lei enquanto tal, quer dizer enquanto lei histérica, que pode ser abolida se vierem a ser abolidas as condigdes do seu fancionamento. © conhecimento 4a lei di-thes uma oportunidade, uma possibilidade de contrariar os efeitos da lei, possibilidade que nio existe enquanto a lei é desconhecida ese exerce sem que o saibam aqueles que a sofrem. Em suma, do mesmo modo que desnaturaliza, a sociologia des fataliza também, transformar transformando estas condi P. Um conhecimento cada vez mais avan¢ado do social no se arriscari a desencorajar toda a aco politica de transformagio do mundo social? 50 — O conhecimento do mais provivel é 0 que torne possivel, em fangio de outros fins. 2 realizacio do menos provavel. E jo gando Conscientemente com a logica do mundo secial que se podem fazer advir os possiveis que nao parecem inscritos nessa legica ‘A verdadeira accio politica comsiste em servirmo-nos do conhe- cimento do provavel para reforgar as oportunidades do possivel. Opde-se 20 utopismo que, semelhante nisso 3 magia, prevende agir sobre o mundo por meio do discurso performativo. O que ¢ proprio ds acco politica ¢ exprimir ¢ explorar, muitas vezes mais inconsciente que conscientemente, as potencialidades inscritas no mundo social, nas suas contradiges ou suas tendéncias imanentes. Osocidlogo — é 0 que faz deplorar por vezes a auséncia do politico ino seu discurso ~ descreve as condigSes com as quaisa acgao politica deve contar € das quais dependerio o seu sucesso ou 0 seu insucesso (por exemplo, hoje, o desencanto colective dos jovens). Pde assim em guarda contra o erro que leva a tomar o efeito pela causa ¢ a fied ter por efeitos da acgio politica as condigdet histéricas da sua Gia, Isto sem ignorar efeito que a acgio politica pode & quando acompanha e intensifiea, pelo facto de as exprimir © de orquestrar a sua manifestagio, disposigdes que nio produz, € que Ihe preexistem. reer P, Sinto uma cerea inquietagio perante as consequéncias que se poderiam tirar, sem divida através de uma compreensio dis- da opiniao, tal como voce a mostrow. A sua anilise nio corre o risco de ter um efeito desmo~ bilizador? = Vou precisar um pouco. A sociologia revela que a ideia de opiniao pessoal (como a ideia de gosto pessoal] ¢ uma ilusio, mui que a sociologia € redutora, que desencanta, que, tirando as pessoas qualquer ilusio, as desmobiliza, Querer-se-i dizer que a mobilizagio 66 € posiivel na base de ilusSee? Se ¢ verdade que a propria ideia de opiniio pessoal € socialmente determinada, que é um produto da historia reprodu- zido pela educagdo, que as nossas opinides sio determinadas, mais torcida do que vocé diz, da natu: Conelui-se dai St vale sabé lo; € se temos alguma probabilidade de ter opinide: pessoais, € talvez na condigio de sabermos que as nessas opinides nao sio assim espontancamente 0 que slo. P. Asociologia é ao mesino tempo uma actividade académica © ums actividade critica, ou até mesmo polities. Nio seri uma contradigio? — A sociologia tal como a conhecemos nasceu, pelo menos no easo de Franga, de uma contridiggo ov de um mal-entendido. Durkheim foi alguém que fez tudo 0 que era necessétio para fazer existirs sociologia como ciéncia universitariamente recone: caida, Quando uma actividade € constituida em disciplina uni- versitéria, a questio da sua fungio e da fungao daqueles que a praticam deixam de se por: basta pensar nos arquedloges, fl6 logos, historiadores da Tdade Média, da China ov da filosofia clissica, aoy quaiy muna se pergunta para que server, para que serve aquilo gue fazem, para quem trabalham, quem tem neces sidade daquilo que fazem. Ninguém os poe em questo ¢ eles sentem-se, por isso, inteiramente juitificados ao fazer 0 que fi A sociologia no tem essa sorte... A questio da sua razio de ser pde-se tanto mais quanto mais eke se afista da definigio da pritica Cientifica que os findadores tiveram de aceitar e de impor, a de uma ciéncia pura, t3o pura como as mais puras, as mais “inciteis™ as mais “gratuitas” das ciéncias académicas— a papirologia ou os extudos homéricos ~, as que os regimes mais repressivos deixam sobreviver € mas quais se refugiam os especialistas das cigncias “quentes”. Sabe-se todo o trabalho que Durkheim teve de fazer para dar a sociologia esta apresentayio “pura” e purarente cienti- fica, quer dizer “neutra”, ser complicagées: empréstimos de ostentagio contraidos junto das eigneias da naturcza, multipli- cagio dos signos da ruptura com as fimgdes externas ¢ com a politica, como a definigio preliminar, ete Por outras palzvras, a sociologia é, desde a origem, ra sua propria origem, uma cincia ambigua, dupla, mascarada; que teve de se fazer esquecer, de se negar, de se renegar como cigneia politica ara se fazer aceitar como ciéncia universitiria. Néo é por acaso que a emologia poe muito menos problemas que a sociologia. 2 Mas a sociologis pode também usar da sua autonomia para produvir uma verdade que ninguém — entre os que estio em estado de a encomendar ou de a comanditar—Ihe pede. Pode encon- trar num bom uso da sutonomis institucional que Ihe garante 0 seu estatuto de disciplina universitiria as condigdes de umaauto- nomia epictemolégica ¢ tentar oferecer 0 que singnit naver= dade Ihe pede, quer dizera verdade sobre o mundo social, Com- preende-se que esta ciéncia sociologicamente impossivel, capar de desvendar 0 que sécio-logicamente deveria continuar mas- carado, s6 tivesse podido nascer de um ardil quanto aos fins, € que aquele que quer praticar a sociologia como wma cigncia tem de reproduzir sem parar esta fraude original, Lareais prodeo, A sociologia verdadeiramente cientifica € uma pritica social que, sécio-logicamente, nao deveria existir. A melhor prova disso E que, a partir do momento em que a ciéncia social se recusa a deixar-se encerrar na alternativa prevista, a da ciéncia pura, capa de analisar cientificamente objectos sem importincia social, ou da faka cigncia, poupande ¢ arranjando a ordem © fica ameagada na sua rcleeida, scéncia social P. A sociologia cientifica ndo pode contar com a solidarie~ dade das outras cincias? — Sim, evidentemente. Mas a sociologia, a dleima a chey a8, uma cigncia critica, de si propria e dhs outeas entre as ci as; critica também dos poderes, inclusivamente dos poderes c trabalha para conhecer asleis de produgio da ciéncia, formece no meios de dominagie, mas talvez meios de dominar a domina P. A sociologia problemas tradicionais da filosofia e em certa medida aculti-los jo procurari responder cientificamente 208 por meio de uma ditadura da ravi —Penso que isso foi verdade mac origens. Os firndadores da sociologia davam-se explicitamente exce objectivo. Por exemplo, no é por acaso que o primeiro objecto da sociologia foi a religiio: os durkheimianos ocuparam-se imediatamente do instrumento 3 por exceléncia (em certo momento) da construgio de mundo, ¢ ‘specialmente do mando social. Penso também que certas questdes tradicionais da filosofia podem ser repostas em termos cientificos (Goi o que tentei fazer com A Distingdo). A sociologia tal como a concebo consiste em transformar problemas metafisicos em probe mas susceptiveis de serem tratados cientificamente. ¢, portanto, politicamente. Dito isto, 2 sociologia, como todas as ciéncias, constrdi-se contra a ambig2o total gue éa da filosofia, ou. melhor, chs profecias, discursos que, como Weber indica, pretendem ofere- cer respostas totais a questes totais, ¢ em particular as “questoes de vida ou de morte”, Por outras palavras, a sociologia consti- tuiu-se com a ambigdo de roubar 3 filosofia alguns dos seus pro blemas, mas abandonando project profético que era muitas vezes 0 seu. Rompett com a filosofia social, © todas as questdes fltimas nas quais cla se comprazia, como as questdes do sentido da histéria, do progresso ¢ da decadéneia, do papel dos grandes homens na Historia, ete. Resta que estes iiltimos problemas, os socidlogos descobrem-nos nas opera mentares da pritica, através da maneira de pér uma questio, supondo, na forma e no proprio contetido da sua interrogacio, que as priticas so determinadas pelas condigdes de existéncia imediatas ou por toda a Historia anterior, ete. [na condi: disso € de orientarem a sia p ode terem conseigneia tica em consequéncia, que podem evitar entrar na filosofia da Historia sem 0 saberem, Por exemple, interrogar directamyente alguém sobre a classe social da qual faa parte ou, pelo contrino, tentar determinar “objectivamentel’ o seu lugar intertogando a pessoa sobre 9 seu salitio, 0 seu posto, o seu nivel de insteugao, ete., ¢ fazer uma escolha decisiva entre duas filosofias opostas da pritiea ¢ da Histaria, Escolha que no é stdadeiramente decidida, se no for posta como tal, pelo facto de se porem simultaneamente as duas questées P, Por que € que se serve sempre de palavras tia duras con- aa teoria, que parece identificar, quase sempre, cam floso- fa? De facto, voct também fiz teoria, ainda que proteste que nio. 7 —Aquilo 2 que se chama teotia, as mais das vezes, nao passa de um discurso de manual. A teorizargo nao € muicas vezes mais que uma forma de “manualizacdo”, como algures diz Queneau. (O que, para queo jogo verbal vos ndo escape, eu poderia comentar citando Marx: “A flosofia esti para o estudo do mundo real ‘como 0 onanismne para o amor sexual.” Se todaa gente em Franga soubesse que assim €, a cigncia social daria um “salto em frente”, como dizia 0 outro. Quanto a saber se cu fago ou nio teoria, ‘pasta que nos entendamos sobre as palavras. Um problema teorico a0 ser convertido em dispositivo de investigagio € posto em anda mento, torna-se de certo modo automével, propulsa-sea si proprio através das dificuldades que faz surgir, tanto como pelas solugSes i Oarsos segredos da profissio de socidlogo consiste em saber encontrar 08 objectos empiricos a propésito dos quais se podem por realmente problemas muito gerais. Por exemplo, a questio do realismo ¢ do formalismo na arte, que, em certos momen- tos, em certos contextos, se tornou uma questio politica, pode ser posta, empiricamente, a propésito da relagio entre as classes populares ea fotografia ou através da anilise das reacgdes perante certos especticitlos televisivos, etc. Mas pode também ser posta, € de resto simultaneamente, a propésito da frontalidade nos mosaicos bizantinos ou da representacio do Rei-Sol na pintura ‘ou na historiografia. Dito isto, os problemas tebricos assim postos transformados tio profundamente que os amigos da teoria jé no reconhecem neles os seus filhos. A lagica da investigacio € esta engrenagem de problemas cm que o investigador & apanhado e que o arrasta, como que contra a sua vontade. Leibniz acusava incansavelmente Descartes nas Animadversiones de pedir de mais A intuigdo, & atengio, a inteligén- cia, ¢ de nao se fiar 0 bastante nos automatismos do “pensamento cego” (Leibniz estava a pensar na dlgebra), capaz de supric as intermiténcias da inteligéncia. O que no se compreende em Franca. pais do ensaismo, da originalidade, da inteligéneia, ¢ que 0 método € a organizagio colectiva do trabalho de investigagio podem produzir inteligéncia, engrenagens de problemas ¢ de métodos mais inteligentes que os investigadores (¢ também, aum idade, a nica oniginaldade verdadeira, a que mio se procura— estou a pensar por exemplo na extraorhittiria exceprio que foi a escola dar kheimiana). Ser inteligente cientiticamente é pOr-se numa situa do geradora de verdadeiros problemas, de verdadeiras dificul- dades. Foi o que tentel fazer com o grupo de investigacao que animo: um grupo de investigacdo que funciona & uma engrenagem socialmente instituida de problemas de maneiras de os resolver, uma rede de controlos crazados, e, no mesmo lance, todo um conjunto de produgdes que, fora de qualquer imposigao de nor- mas, de qualquer ortodoxia ceérica ou politica, tém wn ar de familia, universe em que toda a gente procum a origina PQ ctnologia? ssa divisio esti irreversivel, al € a pertinéncia di distingay entre a sociologia ¢ nfelizmente insctita, ¢ sem ekivid de modo rias, quer dizer na onganiea~ is esteutucas tiniversi sao social da universidade ena organizagio mental dos univer sitirios, O meu trabalho nao teria sido possivel se eu nio tivesse tentado abordar conjuntamente problemiticas tradicionalmente consideradas como etnoldgicas ¢ problematicas tradicionalmente considendas como sociolSgicas, Por exemple, os etndloges poem. desde h3 um certo némero de anos 0 problema das taxinomias, das classiticagdes, problema que se pés na encruzilhada de um certo niimero de tneigdex da etnologia: alguns interessam-se pelos classificagdes aplicadas 46 plantas, is doengas, ete.; outros pelas taxinomias aplicadas para organizar o mundo social, sendo a ta nomia por exceléncia a que define av relagdes de parentesco. Esta tradigio desenvolveu-se em terrenos onde, dada.aindiferen lagi relativa das sociedades consideradas, 6 problema das classes iio s2 pe. Os socidlogos, pela seu lado, pier o problema das class _ mas scm se porem o problema dos sisternas de classifica cao usados pelos agentes e da relagio que mantém com as classi~ ficacdes abjectivas, O meu trabalho consistit em par em relagio de modo nao escolar (contado como estou a fazer, isto pode 56 evocar tia dessas fecundacdes académicas que se produzem no ensino) 0 problema das classes sociais ¢ 0 problema dos sistemas de classificagao. E em por questdes como as seguintes: as taxino- mias que empregamos para classificar os objectos € a8 pessoas, para julgar uma obra de arte, um aluno, chapéus, roupas, etc. = portanto para produzir classes sociais ~, ndo terdo alguma coisa aver com as classificacdes objectivas, sendo as classes sociais entent- diidas (grosseiramente) como classes de de condicdes materiais de existéncia’ (© que tento evocar ¢ um efeito tipico da divisio do trabalho cientifico: existem divisdes objectivas (a divisio em disciplinas por excmplo) que, tomando-se divisdes mentais, fincionam de maneira individuos igaday a classes a tomar impossiveis certos pensamentos. Esta anilise € uma (fo da problemitica teoriea que acabo de esbogar. As divisdes ins- titucionais, que so produto da Historia, funciona na realidad astra objectiva (por exemplo, se formo um jini com es socidlogos, seri uma texe de sociologia, exc.) sob a forma de divisdes objectivas tambérn carreins, ete. juridicamente sancionadas, inseritas hos cérebros, sob a forma de divisées mentais, de principios de divisio lagicos. Os obsticulos ao conhecimento si muritas vezes obsticulos sociolégicos. Tendo fianqueado a fronteira que separa do a por 4 etnologia uma quan~ rocamente a ctnologia da sociologia, fit le nologia nio p Hidade de questées que a oe rec P. Define a chase social pelo volume e pela estrutura do capi- nto ao capital econd~ >, die-se-ia que recorre unicamente 4s estatisiieas forneci~ pital cultural aos titulos escolares. A partir dai, poderio deveras construir-se classes sociais? ~ Trata-se de um velho debate. Explico-me sobre ele na Dis- fingio, Estamos perante a altemativa de uma teotia pura (e dura) das clases sociais, mas que no assenta em qualquer dado empirico {posicdo nas relagdes de producio, etc.) © que no tem pratica~ tal. Como define 2 espécie die capital? Qk das pelo wsee*, e quanto a0 © Instcur national des statistiques ot dee tinder Gormomiques (Instat No~ ional das Estatisacas e dos Estudos Econdimicos). (N. do) mente qualquer eficdcia para a descrigdo do estado da estratura social ou das suas translormagoes, € de trabalhos empiricos, como os do INSEE, que nio se apoiam em qualquer teoria, mas que fornecem 05 tinicos dados disponiveis para a andlise da divisio em classes. Pelo meu lado, centei superar aquilo gue tem sido tratado como uma oposigao teoligior entre as teorias das classes sociais ¢ as teorias da estratificaydo social, oposigao que faz muito boa figura nas aulas © no pensanento do tipo Diemer, mas que info pasia de facto do reflexo de um estado da divisio do trabalho intelectual. Tentei, portanto, propor uma teoria ao niesmo tempo mais complexa (tomando em conta estados do capital ignorados pela teoria classica) ¢ mais findada empiricamente, mas obrigada arecorrer a indi \dores imperfeitos como os que o Inst fornece Nao sou tio ingénuo que ignore que os indicadores que o ise fornece, que mais nao seja quando se trate da detengio de acgies, nnio sio bons indices do capital econsr ico detido. Nao & preciso ser-se bruxo para o adivinhar. Mas hia casos em que © purismo tedrico é um alibi da ignorincia ou da demiss2o pritica. A eiéneia consiste em fazer 0 que se faz sibendo-se ¢ dizendo-se que & tudo 0 que se pode fizer, enunciando os limites da validade daquila que se faz Dito isto, a questio que voe® me poe esconde de facto um outro problema. O que se quer dizer quando se diz, ou escreve, como muttas vezes se fiz: © que € que vim a ser finalmente as classes sociats em Fulano? Quem pae uma questio deste tipo tem a certeza de obter 4 aprovagao de todas os que, estando conver cidos de que o problems das classes sociais esta resolvido, ¢ de que basta recorrer aos textos candnicos— 0 que é muito comodo, ¢ muito econémico, quando se pensa bem no caso —, lancam a sus- peita sobre todos aqueles que, pelo facto de investigarem, traen gue pensar que nem tudo esti ainda descoberto, Esta estratégia da suspeita, que est inserita como particularmente provavel em cercos habia de classe, é imparivel, e dil muitas satisfagBes aos que a praticam, uma vez que Ihes permite satisfazerem-se sem custos com o que tém e com o que sio. E por isso que me parece cienti- fica © politicamente decestivel. 58 E verdade que fiz constantemente tibua rasa de coisas conside- radas como adquiridas. O capital, é coisa que se sabe bem 0 que &... Basta ler O Capttal ou, melhor, ler 0 Ler o Capital® (e assim por diante). Bem gostaria eu que assim fosse... Mas, seguado a minha maneira de ver, ndo & verdade, ¢ se houve sempre um abismo entre a tcoria tedrica € as descrigdes cmpiricas (abismo que faz com que as pessoas que no tém sendo 0 marxismo do papd se mostrem tocalmente desarmadas quando se trata de com- preender na sua originalidade histérica as novas formas dos econfli- tos sociais, por exemplo os que se ligam as contradiges resultan~ tes do funcionamento do sistema escolar), se houve sempre esse abismo, talvez tenha sido por ter ficado por fazer a andlise das espécies do capital. Para sairmos dai, era necessirio abalar evi déncias, ¢ nao pelo prazer de fazer leituras heréticas, ¢ portanto distintivas. Para voltar agora as espécies de capital, penso que é uma ques- tio muito dificil ¢ tenho a consciéncia de corer riscos, abordan- do-a, fora do terreno balizado das verdades estabelecidas, que nos G4 a certeza de obtermos imedistamente a aprovagia, a estima, etc. (Dito isto, penso que as posigdes mais fecundas cientifica- mente sio muitas vezes as mais arriscadas, ¢ portanto 28 mais impro- Jmente.) No que se refere 20 capital econémico, recor a outros, nio € 0 mew trabalho. Aquilo de que me ocupo ¢ aquilo que é abandonado pelos outros, porque nao tém o interesse ou io dispSem de ferramentas te6riens nessa niatéria, o capital cultural € 0 capital social, e foi muito recentemente que tentei introduzir vaveis 0. esclarecimentos ¢ precisbes pedagigicos sobre estas nogdes. Tento construir definigdes ngorosas, que nao sejam apenas conceitos descritivos, mas instrumentos de constnigao, que permitam produzir coikas que antes nao sé viam. Seja por exemplo 0 capital social: podemos dar dele uma ideia intuitiva dizendo que é aquilo a que a linguagem comum chama “as relagdes". (Acontece muitas vezes que a linguagem comum designe factos sociais maico importantes, mas mascara-os no mesmo acto, pelo efeito de fimiliaridade, que 5 Ou Lie fe Copal, tiulo de uma obri de Louis Althuser. (N. do i) 59 leva a erer que jé se sabe, que se compreendeu redo, e que péra a investigacio. Uma parte do trabalho da ciéncia social consiste em desscobrirtndo que é desvelado-velado pela linguagen comurn. Pelo que nos arriscamos a ser acusados de enuunciar evi pior, de retraduzir laboriosamente, nima linguagem pesadanente conceptual, as verdades primeiras do sentido comum ou as intui- Goes 20 mesmo tempo mais subtis e niais apradiiveis dos mora listas e dos tomancistas. Quando nao se vai 20 ponto de acusar © sociélogo, sequndo # légica do caldeirao enunciada por Freud, de dizer coisas ao mesmo tempo banais e filsas, dando-s testermunho as forimidiveis resistencias que a anilise sociolérica suscita) Para volkar ao capital social, canstrnir este conceito & produzir © meio de analisar a légica segundo a qual esta espécie particular de capital € acumulada, transmitida, reprodazida, 0 meio de com- preender como se transforma em capital econémico e, inversa~ mente, a prego de que trabalho pode o capital econdmico con- 1 capital social, o meio de captar a fungao We institvigdes assim verterse como os clubes ou, muito simplesmente, a,fimifia, lugar princi~ Pe Estamos longe, ao que me parece, das “relagdes” do sentido co: i entre outras do eapi~ tal social, As “mundanidades", © tudo © que refore o caderno mundano do Figaro, da Veque ow de Jours de France, deixar de ser, como comummente & eré, manifes da acumulagio ¢ da transinissio desta espécie de capital, ete mum, que iio sio sendo uma manifesta ‘bes exemplares da vida ocioss da “chsse ociosa” ou dos “eonsumos ostentatério:” de gente com meios, para aparece? como uma forma particular de trabalho social, que supde um dispéndio de dinheiro, de tempo euma competéncia espe (simples ou alargaca) do capital social. (Pademos ver assim, de passigem, criticos falham o ponto Porque os intelectuais nia social que se acumula e circula nas sairées mundanias e's atrata-h mento, mais do que a analisi-las.) fica ¢ que tende a asegurar a reprodugio mo certos discurses que se apresentarn como muito sencial; sem davida, no caso particular, io muito “sensiveis” 4 forma de capital Jevados com escirnto, nums mistura da fiscinio © de ressenti- o ‘Fra necessirio constrair portanto 0 objecto a que chamo capical social— 0 que faz ver desde 0 inicio que os cadkiails dos editores ou as trocas de recensdes s30 0 equ intelectual, do trabalho mundano dos aristocratas— para se en- ente, na ordem do campo tender que a vida mundana &, para certas pessoas, cujos poder ¢ autoridade se fundam no capital social. a principal actividade. ‘A empresa fundada no capital social deve assegurar a sua propria reprodu¢do por meio de uma forma expecifica de trabalho (inau- gurar monumentos, presidit < obras de beneficéncia, etc.), que supe uma habilitacio profissional, € portanto uma aprendiza- gem, ¢ um dispéndio de tempo e de energia. A partir do momento em que este objecto ¢ construido, tormam-se possiveis vercadei- ros estudos comparativos, torna-se possivel discutit com os his- toriadores sobre a nobreza na Idade Média, reler Saint-Simon ¢ Proust ou, evidentemente, os trabalhos dos etndlogos. Dito isto, teve toda a razio em levantar a questio que pos. Como o que figo nao é de maneira nenhuma trabalho teérico, mas trabalho cient ico que mobiliza todos os recursos tedricos em vista das necessidades da anilise empirica, os meus concei- tos nem sempre sio © que deveriam ser. Por exemplo, ponho sem parar, em termos que nio me satisfazem completamente a mim proprio, @ problema da conversio de uma exp tal numa outra; trata-se de um exemple de um problema que ie de capi nio pode ser posto explicitamente ~ punha-se antes de se saber que se punhs ~ senio porque tinha sido construida a nogio de espécie de capital. E um problema que a pritica conhece: em certos jogos (por exemplo, no campo intelectual, para se obter um prémio literirio ou, mais ainda, a estima dos pares), o capital econémico é inoperante. Para que se tone operante, é necessirio mplo do trabalho mundano que permitis transmutar o capital eeonémico fizd-lo softer uma transmutagio: é 4 fungio por ~ sempre na raiz em tltima anilise — em nobreza, Mas nio é tudo. Quais sio as leis segundo as quais se opera esta reconversio? Como se define 2 taxa de cimbio segundo 3 qual se troca uma espécie de capital por ontra? Em qualquer época, ha uma luts de todos os instances 2 propésito da taxa de conversio entre as diferentes 61 cspécies, lita que opde as diferentes fiacgdes da clase donti- ante, cujo capital global atribui uma parte maior ou menor & esta ou aquela espécic. Aqucles a que no século xix se chamava as “capacidades” tm um interesse constante na revalorizagio do capital cultural relativamente ao capital econémico, Vemos, ¢ € isso que faz a dificuldade da anilise sociolégica, que estas coisas que tomamios por objecto, capital cultural, capital econémico, et sio elas prdprias paradas em jogo de luta pa propria reali~ dade que estudamos ¢ que aquilo que delas dissermos se tornara uma parada em jogo de lutas. A anilise destas leis de reconversio nio esta concluida, longe disco, ¢ se ha alguém a quem ponha problema é bem a mim E esta bem que assim seja. Ha uma multiplicidade de questdes, na minha maneita de ver, muito fecundas, que me ponho, ou que me so postas, de objeccoes que me fazem e que nao se tomaram possiveis senao pelo facto de as distingdes em causa terem sido estabelecilas. A investigagio talvez seja a arte de nos, criarmos dificuldades fecundas~e de as criarmos aos outros. Onde havia coisas simples, fazemos aparecer problem: cobrimo-nos diante de coisas muito mais complicadas ~ nio sei es: se sabem, mas acho que seria capa de dar um desses cursos de marxismo puro ¢ duro sobre as classes sociais que se dido muito nos dltimos anos, sob o nome de teoria, ou até mes- mo de cigncia, ou ainda e também de sociologia ~, descobrimo- -nos diante de coisas ao mesmo tempo sugestivas ¢ inquictantes (ei 0 efeito que dizendo isto produto nos guardides da orto- doxia ¢ penso que sei também um pouco porque isto que digo produz o efeito que produz e fico encantado por isso produzir esse efeito). A ideia de ser sugestivo e inquietante convém-me perfeitamente P. Mas a teoria das classes sociais que voc’ propde nio teri qualquer coisa de estitico? Descreve um estado da estrutura social sem dizer como é que esse estado muda. = O que o inquérito estatistico apreende é um momento, um estado de um jogo de 2, 3, 4 on 6 jogaderes, pouco importa; 62 fomnece uma fotografia das pilhas de fichas de diferentes cores que ganharam nos lonces precedente: ¢ que vio mobilizar nos ances seguintes. © capital apreendido instantaneamente § um produto da Histéria que vai produzir histéria. Eu direi simples mente que 0 jogo dos diferentes jagadores entendido no sentido de estratégia — chamar-Ihe-ei doravante 0 jogo 1 vai depender do seu jogo no sentido de jogo na mio, jogo 2, € em particular do volume global do seu capital (ntimero de fichas) ¢ da estrutura deste capital. quer dizer da configuracao das pilhas (nao jogando ‘os que term muitas fichas vermelhas poucas amarelas, quer dizer muito capital economico ¢ pouco capital cultural, como os que tém muitas amarelas ¢ poucas vermelhas). © seu jogo 1 seri tanto mais audacioso (bluf) quanto maior for a sua pilha de fichas ¢ apostario tanto mais nas casas amarelas (sistema escolar) quanto iais fichas amarelas tiverem (capital cultural). Cada jogador vé 0 Jogo | dos outros, quer dizer a sua maneira de jogar, 0 seu estilo, ‘etira dele indicagdes relativas 20 seu jogo 2, em nome da hipdtese ticita de que aquele é uma manifestagao deste, Pode até mesmio conhecer directamente uma parte ou a totalidade do jogo 2 dos outros jogadores (desempenhando os titulos escolaces © papel das vozes no bridge). Em todo 0 caso, baseia-se no conhecimento que tem das propriedades dos outros jogadores, quer dizer do scu jogo 2, para orientar © seu proprio jogo 1, Mas o principio fio € outra coisa sendo 0 sentido do jogo, das suas antecipagdes quer dizer o contralo pritico da relagao entre o jogo 1 e 0 jogo 2 (aquilo que exprimimos quando dizemos de uma propriedade — por exemplo uma roups ou um mével— que é “tipo pequeno burgués"). Este sentido do jogo ¢ © produto da incorporagio Progressiva das leis imanentes do jogo. E, por exemplo, 0 que apreendem Thibaut e Riecken, quando observam que, interro- gados a propésito de duas pestoas que dio sangue, os inquiridos supdem expontanzamente que a pessoa de classe superior é livre € a pessoa de classe inferior forgada (sem que ce saiba, 0 que seria do mais elevado interesse, como varis a parte dos que formulam tal hipétese entre os sujeitos de classe superior e os sujeitos de classe inferior) 6 E ébvio que a imagem que empreguei para me fazer com- preender tem apenas o valor de um artificio pedagoyico, Mas pento que dé una ideia da légica real da transformagio social « que fiz sentir como é artificial 2 alternativa entre a estitica ea dinimica 64 OS INTELECTUAIS NAO ENTRAM NO JOGO? * I} P. Quando estudava a escoli e 0 ensino, a sua anilise das relagdes sociais no campo cultural remetia para uma andlise das instituigdes culturais. Hoje, quando analisa 0 discurso, dir-se-ia que curto-circuita as instituigdes: ¢, no entanto, vocé interessa~ -se explicitamente pelo discurso politico ¢ pela cultura politica, — Emibora 0 facto tenha apenas um interesse biogrifico, lem- bro-Ihe que os meus primeiros trabalhos incidiram sobre © povo argelino © que tratam, entre outras coisas, das formas da cons- Giéncia politica ¢ dos fundamentos das lucas politicas. Se, em seguids, me espécie de prioridade “ontolégica” e sobretudo nfo porque fizesse dela um factor de explicagio privilegiado para a compre mundo social. De facto, era um terreno que estava ao abandono, Os que se ocupav redutor ¢ um idealismo ov um espiritualismo, ¢ a coisa funcio~ nava como um “par epistemolégico” perfeito. Creio que no sou dos que transpem de modo rio critico os éonceitos econémi- ceresei pela cultura, nio foi porque Ihe desse uma nsio do dele oscilavam entre um economicismo cos para ¢ dominio da cultura, mas quis, ¢ nio sb metaforica~ mente, fazer uma economia dos fendmenos simbélicos e estudar -a especifica da produgio ¢ da circulagio dos bens culeurais. * Entrevista com Francois Hincker, La Nowelle aitigue, n™ WU/N12, Ferereira-Marco de 1978 (excerto). Havia como que um desdobramento do pensamento que fazia com que na cabega de muitss pessoas pudessem cocxistir um materialismo aplicével a0 movimento dos bens materiais © um idealismo aplicivel ao dos bens culturais. Um formulario muito pobre parecia satisfatorio: "A cultura dominante & a cultura das classes dominantes, etc.” © que permitia a muitos intelectuais viverem sem demasiado mal-estar as suas contradi¢des: a partir do momento em gue se estudam os fendmenos culturais como obedecendo a ums logica cconémica, como determinados por interessey especificos, irredutfveis aos interesses econémicos no sentido restrito, ¢ pela busca de ganhos espeeificos, ete., 0» prd~ prios intelectuais sio obrigados a aperceberem-se como determi- nados por esses interesses que podem explicar as suas tomadas de posigio, em vez de se situarem no universo do puro desinteresse, do“ cometimento” livre, ete. E compreende-se melhor por exem- plo por que é muito mais ficil, no furdo, para um intelectual, set progressista no plano da politica geral que no terreno da politica cultural, ou, mais precisamente, da politica universitiria, ete Se quiser, fiz entrar em jogo 0 que nao entrava no jogo: oF intelectuais esto sempre de acordo para deixarem fora do jogo © seu prdprio jogo € as suas proprias pacadas em joge. Volte assim 4 polit das representagdes do mundo social, que é una dimensi intental da luta politica, ¢ um quase-monopélio dos intelectuais: a luca pelas clasificagdes sociais @ uma dimensio capital da luta de classes ¢ é par esse lado que.a produgio simbdlica intervém na uta politica. As classes existem duas vezes, uma ver objectiva- mente, € umta segunda na representagio social mais ou. menos explicita que delas fazem os agentes ¢ que é uma parada em jogo de lutas. Dizer a alguém “o que te esté a acontecer, € porque tens uma rela¢ao infeliz com o teu pai” e dizer-lhe “o que te est’ a acontecer, € porque és um proletirio a quem roubam a mais- -valia" no é a mesma coisa. (© terreno em que se Tura por se impor a maneira adequada. justa, legitima de filar do mundo social nto pode ser etema- mente excluido da andlise; ainda se a pretensio 2 discurso legitimo partir da constatagio de que a produgie 6 implica, técita ou explicitamente, 2 recusa desta objectivagio Os que aspiram 20 monopélio do pensamento do munde social no entendem ser pensados sociologicamente. No entanto parece-me ainda mais importante pér a questio do que se joga neste jogo pelo facto de os que teriam ineeresse em pola, quer dizer os que delegam nos intelectuais, nos porta -vozes, © cuidado de defender os seus interesses, no terem os meios de a por e de aqueles que beneficiam desta delegigio nio terem interesse em po-la. Devemos levar a sério 0 facto de os intelectuais serem objecto de uma delegagio de facto, delegagio global ¢ técita que, com os responsiveis dos partidos, se tora consciente e explicita continuando a ser igualmente global (@ a cles que of outros se confiam) ¢ analisar as condigdes sociais em que essa delegagio é recebida e utilizada P. Mas poder falar-se da mesma maneita dessa delegacio, que, em certa medida, nfo é negivel, quando se trata de um trabalhador proximo do Partido Comunista ¢ quando se trata do trabalhador que se confia a um partido ou a um homem politico ~ A delegacao opera-se mutitas vezes corn fundamento em indi- ces que nio Sao os que se julgam. Um operirio pode “reconhe- cer"=se na maneira de ser, no “estilo”, no tom, na relagio com a Iinguagem do militante comunista, muito mais que no seu dis- curso que, por vezes, seria antes de molde a “sft iz para consigo: “Este no se havia de encolher diamte de um pattio.” Este “sentido de classe” elementar nio é infalivel, Sob este aspecto portanto, até mesmo no caso em que a delegasio no tem outro fundamento a nio ser uma espécie de “simpatia de classe", a dife- renga existe. Resta que, no que se refere ao controle do contrato de delegagdo, do poder sobre a linguagem ¢ as acgSes dos delega- dos, a diferenga nio é tio radical como poderfamios descji-to. As pessoas soffem com este desapossamento € quando se inclinam para a indiferenca ov para posigdes conservadoras, € muitas vezes porque, com razio ou sem ela, se sentem cortadas do universo dos delegados: “sio todos iguais", “valem todos © meio”. oa P. Ao mesmo tempo, ainda que aquilo que vocé const desapareca rapidamente, 0 comunista, ainda que silencioso quanto 20 discurso, age: a sua relagio com a politica nio € apenas a da linguagem. — A acedo depende em grande parte das palavras com as quais, 4 falada, Por exemplo, as diferencas entre as lutas dos os da “pri- meirs gerasio”, filhos de camponeses, ¢ as dos operirios filhos de operirios, enraizados numa tradigio, ligam-se a diferensas de consciéncia politica, e portanto de linguagem, O problems dot porta-vozes é oferecerem uma linguagem que permits aos indi- viduos implicados universalizarem as suas experiéncias sem com isso excluir de facta a expressio da sua prépria experiéneia, o que equivale uma ver mais a desapossi-los. Como tentei moe trar, o trabalho do militante consiste precistmente em transfor mara aventura pessoal, individual (“estou despedido”), em caso particular de uma relagio social mais geral ("foste despedido porque. ..”). Esta universalizagio passa necessariamente pelo con ceito; encetra portanto © perigo da formula feita, da linguagem auromética ¢ auténoma, da palavra ritual na qual aqucles dos {quais se fala © para 05 quais se fala j4 no se recomhecem, como costuma dizer-se. Esta palavra morta (estou a pensar em todos as grandes termos da linguagem politica que permiitem falar para ndo pensar nada) bloqucia © pensamento, tanto naquele que a pronuncia como naqueles 205 quais se dirige e que deveria mobi- lizar, ¢ antes do mais intelectualmente; que deveria preparar para a critica (inclusivamente de si propria) e nao apenas para a adesio. P. E verdade que hi um intelectual em cada militante, mas um militante no é ur cctual comp outro qualquer, por maio~ nt ria de razio quando a sua heranga cultural niio é a do intelectual. — Uma das condigdes para que no seja um intelectual como outro qualquer — digo bern; uma condigio entre onteas ~ que se acrescenta 2 tudo aquilo em que contumments se confia, como © “controlo das massas” (acerca do qual deveriamos perguntar- -nos em que condigSes poderia exercer-se deveras, ete.), & que esteja também em condigdes de s¢ controlar a si préprio (ou de 68 ser controlado pelos seus concorrentes, o que € ainda mais se- ger...) ent aome de uma andlise do que é ser-se um “intelectual”, ter-se © monopélic da producio do discurso sobre 0 mundo social, estar-se cometido com um espago de jogo, 0 espago poli- tico, que tei a sua légica, ne qual sio investidos interesses de um tipo particular, etc. A sociologia dos intelectuais é uma con tribuigio 4 sScio-anilise dos intelectuais: tem por fungio tornar jente triunfante que os intelectuais e os dici- gentes tm consigo priprios; lembrar que somos manipulados nas nossas categorias de pensamento, em tudo o que nos permite pensar e falar o mundo, Deve também lembrar que as tomadas de posicao sobre 0 mundo social devem talvez alguma coisa as condig&es nas quais se produzem, 3 légica especifica dos aparelhos politicos e do “jogo” politico, da cooptacio, da circulagio das ideias, ete. P. O que me incomoda é que o seu postulado da identidace entre militante politico € intelectual incomoda, proibe uma posicio adequada das relagdes entre acco e teoria, conse pritica, “base” e “ciipula”, ¢ por maioria de razio entre militan tes de origem operiria ¢ militantes de origem intelectual, para ja io falarmos das relagdes entre classes ~ classe operiina ¢ camadas incelectuais. —De facto, hi duas formas de discurso sobre o mundo social, muito difercntes. Verno-lo bem a propésito do problema da pre~ visio: se um intelectual comum, um socidlogo, faz uma previsio falsa, isso no tom consequéncias de maior uma vez que s6 0 implica a ele, s6 a ele 0 move. Um responsivel politico, pelo contririo, é algucm que tem o poder de fuzer existir aquilo que diz; € isto que caracteriza a palavra de ordem. A linguagem do responsivel é uma linguagem autorizads (por aqucles mesmos a quem se dirige), € portanto uma linguagem de autoridade, que exerce um poder, que pode fazer existir o que diz. Nese caso, 0 erro pode ser uma falta. E sem divida isso que explica—sem, no mew entender, o justificar nunca — que a linguagem politica sacti- fique tantas vezes a0 anétema, 4 excomunhio, etc. (“«raidor”, 69 “renegado”, etc.), © intelectual “responsivel” que se engana arrasta aqueles que o seguem com 0 seu erro porgue a sua pala~ vra tem uta forga na medida em que é crida. E possivel que uma coisa boa para aqucles pelos quais cle fala (devendo “pelos quais” ser entendido sempre no duplo sentido de “a favor dos quais” e de “em vez dos quais”), é possivel que essa tal coisa que se poderia fazer nfo se faga que pelé contririo uma coisa que poderia no se fazer se faga. As suas palavras contribuern para fazer a historia, para mudar a historia. Hi varias maneizas de produzir a verdade que se encontram em concorréncia e que tém cada uma delas os seus vieses, os seus limites. © intelectual “responsivel”, em nome da sua “respo1 bilidade”, tende a reduzir 0 set: pensamento pensante a um pen- samento militante, ¢ pode acontecer, como @ muitas vezes 0 exo, que aquilo que ert estratégia proviséria se tome habitus, maneira permanente de ser. O intelectual “livre” tem uma pro- pensio terrorista: transportaria de bom grado para o campo politica as guerras de morte que sio as guerras sobre a verdade que tem lugar no campo intelectual ("se tenho razio, tu estis errado”), mas que tomam uma forma completamente diferente quando © que esti cm jogo, nio & apenas a vida e a morte simbélicas. Parece-me capital para a politica ¢ para a ciéncia que os dois modos de producio concorrentes das representacdes do mundo social tenham igualmente direito de cidade e que em todo a caso © segundo nio abdique perante 0 primeito, somando o terrorismo ao simplismo, como foi largamentte praticado em certas épocas das relagdes entre os intelectu ome-fo que isto € 6bvio, tudo isto me lidade, em principio, mente nada disto é Sbvio. No meu jargio, direi que importa que 0 exparo no qual se produz o discurso sobre © mundo social continue a funcionar como um campo de luta no qual o pélo dominante no esmague © pélo dominado, a ortodoxia a heresia. Porque, neste dominio, enguanto ha luta hé histéria, quer dizer esperanca. Ll is © © Partido Comunista. Dis concedide com fici~ 40 mesmo tempo ew sei que socelogics~ 70 COMO LIBERTAR, OS INTELECTUAIS LIVRES? * P. Acusam-no por vezes de exercer contra os intelectuais uma olémica que raia 0 anti-intelectualismo, Ora, no seu timo livro, Le sens pratique (O Sentido Pritico), voce reincide Pée em questo a propria fngio dos intelectusis, a sua preten- sio 20 conhecimento objective ¢ a sua capacidade de dar cienti- ficamente conta da pritica.. E notivel que pessoas que, dia apds dia, ou semana apds semana, impSem de modo plenamente arbitririo os veredictos de um pequeno clube de-admiracio mvitua, éncia quando os mecanismos dessa violéncia sio por uma vez expostos 4 luz do dia, E que esses conformistas profundos se fem assim, por meio de uma extraordiniria inyersio, ares de audicia intelectual, ou até mesmo de coragem politica (quase nos fazem acreditar que se arriscam a ser enviados para 0 Goulag). © que nio se perdoa ao sociélogo é 0 facto de ele revelar ao primeiro que aparesa os segredos reservados aos iniciados. A eficd— cia de uma accio de violéncia simbélica é proporcional 20 desco- nhecimento das condigdes ¢ dos instrumentos do seu exercicio. Nio &, sem divide, por acaso que a produgio de bens culturais no suscicou ainda as suas associagdes de defesa dos consumidores, Imaginiem-se todos os interesses, econdinicos e simbélicos, liga- violencia * Enurevista com Didier Eribon, Le Monde Dinanile, de Maio de 19H pp bexvit dos & produgio de livtos, de quadros, de expecticulos de teatro, de danga, de cinema, que se veriam ameasados se os mecanisnos da produjdo do valor dos produtos culturais fossem completamente desvendados aos olhos de todos os consumidores. Estou a pensar, porexempla, em processos como a circulacio circular das recen- s0es elogiosas entre um pequeno niimero de produtores (de obras mas também de criticas), universitarios de estatuto superior que autorizam e consagram, jornalistas que se autorizamn ¢ celebram. As reacgbes que suscita a exposi¢ao & luz do dia dos mecamismos da produ¢io cultural fazem pensar nos processos que certas firmas moveram as associagdes de consumidores. © que esti em jogo com efeito € o conjunto das operagdes que permite fazer passar uma golden por uma maga, 05 produtos do marketing, do rewriting € da publicidade redaccional por obras inteleccuais P. Pensa que os inteleciuais ~ ou pelo menosaqueles de entre eles que tém mais a perder ~ se insurgem quando se desmasearam os eus ganhos ¢ 65 meios mais ou menos confessaveis que empre~ ‘gam em vista de os garantie? =Isso mesmo, As acusagées que me fizem s30 ainda mais abstrdas pelo facto de eu no me eansar de denunciac a propensio da ciéncia social a pensar na ligica do proceso ow a inclinagio dos leitores dos teabalhos de cién: fancionar segundo a seguinte logiea: onde a ciéncia quer enun- a social no sentido de os fazer iar leis tendenciais transcendentes as pessoas através das. quais clas se realizam ou se manifestam, © ressentimento, que pode tomar toda a expécie de méscaras, a comegar pela da ciéncia, vé a deninncia de pessoas. Estas advertincias parecem-me ainda mais necessirias pelo facto de, na realidade, a ciéncia social, que tem por voracio compreen- der, ter por veres servido para condenar. Mas hé alguma mi-fé em reduzir a sociologra, como fez sempre a tradigao conservadora, sua caricatura policial. E, em particular, em invocar o facto de uma sociologia rudimentar dos intelectusis ter servide de instru mento de repressio contra of intelectuais para recusar as questGes que uma verdadeira soctologia dos intelectuais poe aos intelectuais, 72 P. Poder dar um exemplo dessas questdes? —E claro por exemplo que 0 idanovismo! fornecen a certos intelectuais de segunda ordem (do ponto de vista dos critérios em vigor no campo intelectual) a ocasido de obterem 2 sua de forra, em nome de uma representacdo interessada das exigen- cias populares, sobre os intelectuais que tinham suficiente capital proprio para reivindicarem a suz autonomia frenite aos pederes. (© que nao basta para desqualificar toda ¢ qualquer intertogagao sobre as fun¢des dos intelectuais ¢ sobre 0 que a sue maneira de preencherem essas fuuncdes deve is condigdes sociais em que as exercem. Assim quando lembro que a distancia relativamente as necessidades comuns ¢ a condigao da percepgio tebrica do mundo social, no 0 figo para denunciar os intelectuais como “parasi- tas”, mas para lembrar os limites que as condigdcs sociais da sua cfectuagao impoem a todo © conhecimento tedrico: se hi uma coisa que os homens do écio escolar tém dificuldade em com- preender, é a pritica enquanto tal, até mesmo a mais banal, quer se trate da de um jogador de futebol, quer da de uma mulher cabila que observa um ritual ou de uma familia do Béarn que casa 05 seus filhos. P, Estamos perante uma das teses fiandamentais do sew dltime livro, O Sentido Prdtico: & preciso analisar a situagio social daque- les que analisam a pritica, os pressupostos que cometem ta sta anilise — O sujeito da ciéncia faz parte do objecto da ciéncia; ocupa cana condigio um lugar nele. So podemos compreender a pr de controlar, através da andlise tedrica, os efeitos da relagio com 2 pritica que esti inscrita nas condigdes sociais de toda a anilise teGrica da pritica. (Digo bem: através da anilise tedrica € nio, como muitas vezes se cré, awavés de uma qualquer forma de participagio pritica ou mistica na pritica, “investigagao partici- | Andrei Alexandrovitch Jdanov (ou Jdanov] dea vor, no auge do terror estalinists—membro do Praesidiwn do Soviete Supremo dh uss em 1937-, ante”, “intervengao”. etc.). Assim os rituais, sem divida as mais priticas das priticas, uma ver que sio feitas de manipulagies © de gesticulacées, ¢ de toda uma danca corporal, tém todas as probabilidaces de ser mal compreendides por pessoas que. nio sendo praticantes de danga nem de gindstica, se inclinam a ver eles uma expécie de légica, de célculo algébrico, P. Situar os intelectuais &, para si, lembrar que pertencem clase dominante, ¢ extrac ganhos da sua posicdo, ainda que tais ganhos nao scjam estritamente econdmicos ~ Contra a jlusio do intelectual sem amartas nem raizes", que & de certo modo a ideologia profissional dos intelectuais, lembro que 0: intelectuais si0, enquanto detentores de capital cultural, uma fracgio (dominada) da classe dominante ¢ que bom niimero das stias tomadas de posigio, em ma exemplo, se i ria politica por m.d ambiguidade da sua posigio de dominados entre os dominantes, Lembro também que a pertenga wo campo intelectual implica interesses vspecificos, nio 56, em Paris como ‘em Moscovo, postos académicos ou contratos de edigio, recen- S0es 04 postos t vensitirios, mas também signos de reconheci mento e pratificagdes muitas vezes inaproensiveis para quem seja membro do universo mas pelos quais se opera a exposi toda a espécie de imposigées e de censuras subtis P. E voc? pensa que uma sociologia dos intelectuais oferece 0s intelectuais a liberdade relativamente aos determinismos que se lhes impdem? — Oferece pelo menos a possibilidade de uma liberdade. Ox que div a ilusio de dominar a sua época sio muitas vezes domi- nados por eli e, terrivelmente datados, desaparecem com ela A sociologia di uma oportunidade de quebrar 0 encanto, de denuneiar a relagio de possuidor possuido, que acorrenta a0 sen tempo os que estio sempre em dia, segundo o gosto do dia. Hi qualquer coisa de patético na docilidade com que os “intelec- tuais livres” se apressam a aprontar as suas dissertagdes sobre os temas obrigatérios do momento, como hoje 0 desejo, 0 corpo m4 ou a seduedo, E nada & mais fimebre que a leitura, vinte anos depois, dewes exercicios obrigtérios de concurso que retmem, num conjunto perfeito, of aiimeros especisis das grandes revistas “intelectuais”. P. Poderia retorquir-se que esses inteleczuais tém pelo menos © mérito de viverem com o seu tempo... Sim, se viver com 0 seu tempo for deixar-se levar pela corrente da histéria intelectual, flutuar ao sabor das modias. N30, se o que é proprio do intelectual no for “saber © que ¢ preciso pensar” acerca de tudo 0 que a moda e os seus agentes designam como digno de ser pensado mas rentar descobrir tudo 0 que a historia ¢ a logica do campo intelectual Ihe impdem pensar, num certo momento, com a ihisio da liberdace. Nenbum intelectual mais que 0 sociélogo que fiz 0 seu oficio mergulha na Historia, no presente (0 que, para os outtos intelectuais, constitui object de um interesse facultativo, exterior ao trabalho profissional de fildsofo, de filélogo ou de historiador, é para ele 0 objecto prin cipal, primordial, ow até mesmo exclusive). Mas s sua ambicio & recolher do presente as leis que petmitem dominé-lo, desligar-se dele. numa dessas notas que sio como “o Inferno” dos seus textos, “as teansigdes insensiveis que leva sam em menos de trinta anos de um estado do campo intelectual em que era tio necestirio ser-se comumista que nio era preciso ser-se sequer marxista a. um estado em que era tio chique ser-se rmarxista que se podia inclusivamente ‘ler’ Marx, para se desem- bocar num estado em que o iiltimo must da moda é ter-se desfeito de tudo, ¢ antes do mais do marxismo” — Nio se trata de uma formula polémica mas de uma deseri- (¢do estenogrifica da evoluc3o de numerosos intelectuais franceses, Creio que resiste i critiea. E que convém dizer num tempo em que o: que se deixaram arrastar, como 4 limalha, a0 sabor das forgas do campo intelecraal, querem impor a sua diltima con- versio 208 que os nfo seguiram nas suas inconsciéncias sucessi- P. Voce evoca algures, vas. Nao & animador vermos praticar 0 terrorismo em nome do antitertorismo, 2 ciga &s bruxas em nome do liberalismo pelos mesmos que muitas vezes, noutros tempos, punham a mesma convicedo interestada em fizer reinar a ordem estalinista, Sobre- tudo no preciso momento em que © Partido Comunista © os seus intelectuais operam uma regressio a priticas © declaracdes dignas dos mais belos dias do estalinismno e, mais precisamente, ao pensimento maguinal ¢ a lingnagem mecinica, produtos da aparelho orientados exclusivamente para a conservagio do apa relho. P. Mas essa reitera¢3o dos determinismos sociais que peaam sobre os intelectuais nio levard a desqualificar os intelectuais ea desacreditar as suas produgdes? —Penso que o intelectual tem o privilégio de estar colocaco em condigdes que Ihe permitem trabalhar no conhecimento das suas determinagdes genéricas ¢ especificas. E, por isso, libertar-se delas (pelo menos parcialmente) ¢ oferecer aos outros micios de libertagio, A critica doy intelectuais, se critica hi, € 0 reverso de is, de uma expectativa, Parece-me que é na condi- de conhecer ¢ dominar o que o determina que o intelectual pode preenchera fungio libertadora que se atribui, muitas vezes de maneira puramente usurpada, Os intelectuais que a propria intencio de classificar esse inclassficivel escandaliza mostratn com isso a que ponto estio afastador de consciéncia da sua verdade da liberdade que ela Ihes poderia proporcionar. O privilégio do socidlogo, , L1 * Poderio encontrar-se desenvolvimentos complementires ein: P. Bour- lcs de la vecherche on senses soviles; 4, comomie des Schanges linguistiques”, Lonigne 34, Maio de 197, pp. 17-34; “Le langage autocisé, note sur les conditions sociales de lefficacité da discouis riuel”, Aces de la nelutche e1 7 ALGUMAS PROPRIEDADES DOS CAMPOS* Os campos apresentam-se 4 apreensio sinerdnica como espagos estruturados de posigdes (ou de postos) cujas propriedades de- pendem da sua posic3o nesses espacos ¢ que podem ser analisadas independentemente das caracteristicas dos seus ocupantes (em parte determinadas por elas). Ha leis gerais dos campos: campos tio diferentes como 0 campo da politica, 0 campo da filosofia, 0 campo da religiio tém leis de funcionamento invariantes (é isso que far com que o projecto de uma teoria geral no seja insensato e com que, desde ja sobre 0 funcionamento de eada campo particular para interrogar- mos e interpretarmos outros campos, superando assim a antino~ mia mortal da monografia ideogrifica ¢ da teoria formal e vazia). Sempre que se estuda um novo campo, seja 0 campo da filologia no século xtx, da mod2 hoje ow da religizo na Idade Média, descobrimos propriedades especificas, proprias de um campo particular, 20 mesmo tempo que fizemos progredir 0 conheci- mento dos mecanismos universais dos campos que se especificam em fungio de varidveis secunditias. Por exemplo, as variiveis nacionais fizem com que mecanismos genéricos tais como a luta entre os pretendentes ¢ 0s dominantes tomem formas diferentes Mas sabemos que em qualquer campo descobriremos unva lua, Exposcdo fica ma Bole nal sypétene can Novembro de 1976: Exposigio ftita em Ars, eat Novembro de 1974, ¢ publicado em Novcit, 192, Novembro de 1974, pp. 1-2, 7-17, ¢ 193-194, Dezembro de 1974 “aneiro de 1975, pp. 2-11. costura cu nao pare afinal de falar daalta cultura. Falarei da produ cio de comentirios sobre Marx ou sobre Heidegger, da producio de pintura ou de discuros sobre a pintura. Dir-me-do: “Parque nio falar entio directamente de tudo isso?" Porque estes objectos legitimos esto protegidos pela sua legitimidade contra 0 olhar Cientifico € contra o trabalho de dessacralizagio que pressupde 0 estudo cientifice dos objectos sagrados (pense que a sociologia da cukura ¢ a sociologia da religido do nosso tempo). Ae falar de um tema menos protegide, espero também fazer ouvir mais facil~ mente aquilo que seria, sem davida, recusado se eu o dissesse a proposito de coisas mais sagradas. ‘A minha intengio ¢ trazer uma contribuigio para uma socio- logia das produgdes intelectuais, quer dizer para uma sociologia dos intelectuais ao mesmo tempo que para a anilise lo fetichismo ¢ da magia, Também a este propésito me dirk as sociedades ‘primitivas’ em vex de o fazer 's de Dior ou Cardin?” Penso que uma das fungdes do dis curso emoldgico é dizer coisas que sio suportiveis quando se aplicam a populagdes distantes, com o respeito que lhes é devido, mas que 9 30 mitito menos quando as referimos as nossas soci dades. No final do seu ensaio sobre a magia, M: “Onde esti 0 seu equivalente na nossa sociedade?” Eu gostaria de mostrar que esse equivalente, devemos procurs-lo na Eile ou no jornal Le Monde (especialmente na pigina literiria), O terceiro tema de reflexio seria: Em que consiste a fungao da sociologia? Os socidlogos nao serio desmancha-prazeres que vem destruir as comunhoes magicas? Bis algumas das questOes a que voces terio © ensejo de responder depois de me terem ouvido. Comecarei por descrever muito rapidamente a estrutura do campo de producio da alta coseura, Chamo campo a um espaco de jogo, um campo de relagdes objectivas entre individuos ou inscicuigdes em competigao em corno de uma parada em jogo idéncica. Os dominantes neste campo particular que € 0 mundo da alta costura so os que decém no grau mais elevado o poder de constituir como rares certos objectos através do procedimento ch “assinarura”; so aqueles cuja assinacura € de mais alto prego. : "Mas porque pergunta-s 206 ‘Num campo, ¢ trata-se da lei geral dos campos, os detentores da posigio dominante, aqueles que tém mais capital especifico. ‘opdem-se sob uma grande multiplicidade de aspectos aos deten- ores de participacdes recentes (§ deliberadamente que recorro a esta formulaczo tomada de empréstimo a economia), aos recém— ~chegados, 20s que chegam tarde, 20s que cheyam de fora € que nao possuem muito capital especifico. Os antigos participantes tém estratégias de consenvagdo cujo objectivo & extiair ganhos de um capital progressivamente acumulado, Os participantes mais recentes tém estratégias de sutversdo orientadas para uma acumu- lacdo de capital especifico que supde uma inversio mais ou menos radical da tabua dos valores, uma redefinigdo mais ou menos revolucionatia dos principios de produgio ¢ de apreciagio dos produtos ¢, no mesno lance, uma desvaloriagio do capital de- tido pelos dominantes. No decotrer de um debate televisive entre Balmain e Scherrer, todos compreenderam imediatamente, que mais nio fosse pela sua dicgdo, quem estava i “direita” ¢ quem cstava 4 Nesquerda” (no espaco relativamente auténomo do campo). (Aqui tenho de fazer um parénteses. Quando digo “direita” ¢ “esquerda”, sci a0 dizé-lo que o equivalente pritico que cada um de nés tem — com uma referéneia particular a0 campo politico ~ da construgio tebrica que proponho supriri x insuficiéncia inevitavel da transmissio oral, Mas ao mesmo tempo, sei que exte equivalente peitico se arrisca a transformar-se numa i a Pp ' adircita barreira opaca; porque se eu nio tiveste na eabeqa sen: a esquerda pars compreender, nunca teria chegado a com- preender nada. A dificuldade particular da sociologia vem do facto de ela ensinar coisas que toda a gente de certo modo sabe, zmas que no se querem ou se no podem saber porque a lei do sistema 6 escondé-tas,) Volto a0 dislogo entre Balmain e Scherrer. Balmain formava frases muito compridas, um tanto pomposas, defendiaa qualidade francesa, a criacio, etc.; Scherrer falava como um lider de Maio de 1968, quer dizer com frases que nao con- cluiam, reticéncias constantes, etc. Do mesmo modo, relevei na imprensa feminina os adjectivos mais frequentemente asociados aos diferentes costureiros. De um lado, teremos: “Iuxuoso, exelu- sivo, prestigiado, tradicional, refinado, selecto, equilibrado, dura- douro”. F no outro extremo: “super-chique, kitsch, humorittica, simpatico, divertido, brilhante, livre, entusiistieo, estrarurado, funcional”. A partic das posigdes que os diferentes agentes ou instituigdes ocupam na estrutara do campo e que, neste caso, correspondem bastante estreitamente 4 sua antiguidade. podemos prever, ¢ em todo 0 caso compreender, as suas tomadas de posi¢ao estéticas, comforme se exprimem nos adjectivos utilizados para a descrigio dos seus produtos ou em qualquer outro indicador: quanto mais avangamos do polo dominante para 0 pélo dominado, mais calgas hi nas colecgdes; menos provas; mais a passadeira cinzenta © os monogtamas Sio substituidos por vendedoras de mini-saia ¢ por aluminios: mais passamos da rive droite & rive gauche! Contra as estratégias de subversio da vanguarda, os deventores da legitimidade, quer dizer os ocupantes da posig30. dominante, continuardo a sustentar 0 discurso vago © pomposo do “é obvio" inefavel: como os dominantes no campo das relagGes entre as classes, tém estratégias conservadoras, defensivas, que podem permanecer silenciosas, ticites uma vez que tém apenas de ser 0 que si0 para serem 0 que dever ser, Pelo contririo, 05 costureiros da rive gauche tem estratégias que visam inverter os prdprios principios do jogo, mas em nome do jogo, do espirito do jogo: as suas esteatégias de regresso is origens consistem em opor aos dominantes os prdprios principios em nome dos quais estes justificam 2 sta dominagio, Estas lutas entre os detentores ¢ os pretendentes, ox shall no boxe, estio condenados a gers, que, como “furer 0 jogo”, a assumir 06 riseos, est20 no principio das transformagdes das quais o campo da alta costura & lugar. ‘Masa condigio da entrada no campo é 0 reconhecimento da parada em jogo ¢ no mesmo acto 0 reconhecimento dos limites a nio ultrapsssar sob pena de exclusao do jogo. Segme-se que da ' Ouseja, “da margem direita & margem esquerd” do Sena, em Paris, Cia anterior nots de traducio (p. 164) sobre 9 seatida da posigao social e culoural rive dite “vive gauche. (N. do T.) 208 lua interna no podem sair senio revolugdes parciais, capazes de destruir a hicrarquia mas no 0 préprio jogo. Aqucle que quer fazer uma revolugio em matéria de cinema ou de pintura di “© verdadeiro cinema nio & isto” ou “A verdadeira pintura isto”. Langa andtemes mas em nome de uma definic3o mais pura, mais auténtica daquilo em cujo nome os dominantes dominam. Assim cada campo tem 2s suas formas préprias de revolugio, € portanto a sua propria periodizacio. E os cortes dos diferentes campos no io necessariamente sincrénicos, Rissta 0 facto de 3 revolugées especificas terem uma certs relagio com as transfor mages externas. Por que razio Courréges fez uma revolugio em que é que a transformacio introduzida por Courréges é dife- rente daquele que se introduzia todos os anos sob a forma “um tanto mais curto, um tanto mais longo”? O discursa que Cour- régesmantém transcende largamente a moda: ji no fala de moda, mas da mulher moderna que deve ser livre, desprendida, despor- tiva, cheia de 4-vontade. De facto, penso que uma revolucao especifica, alguma coisa que faz data num campo determinado, & 4 sineronizagio de uma revolugao interna ¢ de qualquer coisa que se passa no exterior, no universo englobante. Que fiz Cour réges? Nio fala da moda; fala do estilo de vida € diz: “Quero vestir a mulher modema que deve ser ao mesmo tempo activa e pritica.” Courréges tem um gosto “espontineo”, quer dizer produzido em certas condigées sociais, que faz com que the baste “seguir o seu gosto” para corresponder 20 gosto de uma nova burguesia que abandona uma certa etiqueta, que abandona a moda de Balmain, descrita como moda para mutheres velhas. Abandona essa moda por uma moda que mostra 0 corpo, que o deixa ver € que © supde portanto bronzcado ¢ desportiv. Courréges faz uma revolugio especifica num campo especifico porque a légica das distingdes internas o levou a encontrar qualquer coisa que j& existia no exterior. Alluta permanente no interior do campo & 0 moter do campo. Vemos de passagem que nio qualquer antinomia entre estrutura ¢ histéria ¢ que aquilo que define a estrutura do campo tal como a vejo é também o principio da sua dindmica. Os que lutam pela 209 dominagdo fazem com que © campo se transforme, com que ele se reestruture constantemente. A oposigo entre a dircita © a esquerda, a retaguarda ¢ a vanguarda, 0 consagrado € © herético, a ortodosia ea heterodoxia, muda constantemente de contcido substancial mas permanece estruturalmente idéntica, Os novos participantes s6 podem fazer com que os antigos definhem porque a lei implicita do campo & a distingio em todos o¢ sentidos do termo: a moda éa filtima moda, a iltima diferenga. Um emblema da classe (em todos os sentidos do termo) definha quando perde 0 seu poder distintivo, quer dizer quando & divulgado. Quando 4 mini-saia chega as “vilas” operirias de Béthune, regressa-se 20 ponto zero, A dialéctica da pretensio e da distingio que esta no principio das transformagdes do campo de produgio reaparece no espago dos consumos: caracteriza aquilo a que ncia, luta de classes continua e interminivel. Uma classe possi uma propriedade determinada, a outra aleanga e tudo recomega Esta dialéctica da concorréncia implica a corrida em direccio 20, niesmo fim € o reconhecimento implicito dese fim, A pretensio parte sempre batida uma vez que, por defini¢fo, deixa que Ihe seja imposto o fim da sua corrida, aceitando, no mesmo lance, a inferioridade que se esforga por vencer. Quais sio as condicdes favordveis (uma vez que tal nto se fard através de uma conversio da conscitncia) para que certs concortentes deixem de correr, saiam da corrida, ¢ em particular as classes médias, os concor io no meio do pelotio? Qual € © momento em que 2 probabilidacle de ver os interesses proprios satisfeitos per hamo a luta de concor= manecendo-se na corrida deixa de levar a melhor sobre a proba~ bilidade de os ver satisfeitos saindo-se da comida? Creio que € assim: que se pe a questio historica da cevolugio. Teaho de fazer aqui um parénteses a propésito das velhas alternativas como conflito/consenso, éstitica/dindmica, que x30 sem divida o principal obsticulo ao conhecimento cientifico do mundo social. De facto, hi uma forma de Inta que implica o consenso sobre as paradas em jogo da luta e que se observa de maneira particularmente clara no terreno da cultura, Esta luca, 210 que toma a forma de uma corrida-perseguicio (eu terei o que t tens, etc.) & integradora; € uma mudanca que tende a assegurar a Permanéncia. Tomo o exemplo da educagio porque foi nessa matéria que o modelo se me deparow com toda a clareza, Cal- culam-se as probabilidades de acesso ao ensino superior num instante f, encontra-se uma distribuicio comportando tanto pata 0s filhos de operirios, tanto para as classes médias, ete.; calculam- -se as probabilidades de acesso ao ensino superior no instante 1+ 1; encontra-se uma estrutura homéloga: os valores absoluves aumentaram mas a forma global da distribuicio no mudou, De facto, 2 transla¢ao assim observada nio é um fenémeno mecanico mas o produto agregado de uma multiplicidade de pequenas com ridas individuais (“agora podemos por 0 middo no liceu”, ete.}, a resultante de uma forma particular de competi 0 reconhecimento das paradas em jogo. Sio inumeriveis estraté- gias, constituidas em relagio com sistemas de referencias muito 19 que implica complexes, que se encontram no principio do process descrito pela me Pensamos demasiadas vezes pormcio de dicotornias simples: “Ou isto muda, ow niio muda,” “Estitica ou dinimica.” Auguste Comte pensava assim, 0 que nio é uma desculpa. O que tento mostrar é que ha win invariante que é produto da variacio. Como o campo das classes sociais ¢ dos estilos de vida, 0 campo de produgio tem uma estrutura que € 0 produto da sua histna anterior ¢ o principio da sua historia ulterior. O princi~ pio da sua transformagio & a luta pelo monopélio da di quer dizer 0 monopélio da imposigio da ultima diferenca legi- ima, a tkkima moda, e esta luta acaba pela queda progressiva do fora mecinica das tans! ingio, vencido no pasado. Chegamos assim a um outro problema que & oda sucessao. Descobri na “aire um magnifico artigo que se intitulava: Durante muito tempo houve interrogacdes acerca do que se passaria com a sucessio do general e Gaulle; era um problema digno do “lle ou na Marie~ ‘eri postivel substituir Chanel? ‘Monde; a substituicio de Chanel é um problema bom paraa Marie~ ~Claire; de facto, trata-se exactamente do mesmo problema. £ 0 problema daquilo a que Max Weber chama o problema da “roti- 2 nizagio do carisma” como transformar em instituicSo duradoure a emergéncia Unica que introduz a descontinuidade num uni- verso? Como fizer continuo com descontinuo? “Ha trés meses Gaston Berthelot, nomeado de um dia para 0 outro (‘nomeado’ Esobremido um termo do vocabuldrio da burocracia, © portanto completamente antinémico em relacao a vocabulirio da criacio) nomeado de um dia para 0 outro ‘responsive artistico’ (aqui 9 vocabulétio da burocracia combina-se com 0 vocabulirio da arte), ‘responsivel artistico’ da casa Chanel em Janeiro de 1971, a seguir 4 morte de Mademoiselle, foi nao menos rapidamente “dispensado’. O sew ‘contrato’ nio fo renovado. Murmtirios of- ciosos: nao soube “impor-se’. Deve dizer-se que a discrigio natural de Gaston Berthelot foi fortemente encorajada pela direccao.” Aqui, as coisas tornam-se muito interessantes; falhou mas porgue foi posto cm condigdes em que era inevitivel que falhasse. “Nao houve entrevistas, nada foi adiantado, nada transpirou” (trata-se de um aspecto capital, emibora os termos parecam simples frases de jornalista). Havia também 05 comentitios da equipa perance cada uma das suas propostas: “O modelo era como devia ser, fiel, respeitador? Par isso nllo € preciso modelista; vilo-se buscar os velhos tailleurs © recomega~se. Mas diante de uma saia nova ¢ de urn bolso transformado: a Mademoielte nunca teria toleradko uma coisa assim." O que aqui se desereve io as antinomias da sucessio carismatica, ‘© campo da moda é muito interessante porque ocupa uma posiedo intermédia (num espace tedrico abstracto naturalmente) entre um campo que ¢ feito para oxganizar a sucessi0, como © campo da burocracia onde ¢ necessirio que os agentes sejarn por definigao intercambiaveis, ¢ um campo em que as pessoas sto radicalmente insubstituiveis como o da criagio artistica ¢ literiria ou da criagio profética. Nao se diz: “Como substituir Jesus?” ou “Como substituir Picasso?” E inconcebivel, Aqui, estamos no caso de um campo em que hi a0 mesmo tempo afirmagio do poder carismitico do criador e afirmacio da possibilidade da subs- tituicdo do insubstituivel. Se Gaston Berthelot nfo foi bem suce- dido, foi por estar apertado entre dois tipos de exigéncias con- 212 tradit6rias. A primeira condigie que 0 scu sucessor pas foi a de poder falar. So pensarmos na pintura de vanguarda, na pinturs conceptual, compreenderemos que & capital que 0 criador possa eriar-se como criador sustentando o discurso que acredita 0 seu poder criador. © problema da sucessio faz ver que aquile que esti em qu tio é a possibilidade de transmitir um poder criador: os etnélo- g05 diriam uma espécie de Mana, © costureiro realiza uma ope- raglo de trensubstanciasdo. Tinhames um perfame Monoprix de tués francos.-A assinatura transforma-o num perfirme Chanel que vale trinta vezes mais. O mistério € 0 mesmo com o urinol de ‘Duchamp, que € constituido como objecto artistico, a0 mesmo tempo por ter sido marcado pot um pintor que 0 assinou e por ter sido enviado para um lugar consagrado que. acolhendo-o, 0 toma um objecto de arte, assim transmutado econdmica e sim- bolicamente. A assinatura é uma marca que muda nio a natureza material mas a natureza social do objecto. Mas esta marca € um nome proprio, E no mesmo lance poe-se 0 problema da sucessio porque se herdam apenas nomes comuns ou de fungSes comuns, mas nio um nome proprio. Dito isto, como se produz este poder do nome proprio? Tem-sc perguntado 0 que é que fiz com que © pintor por exemplo seja dotado deste poder de criar valor. Invocou-se o argumento mais facil, mais evidence: a unicidade da obra. De facto, © que esti em jogo, no a raridade do produto, odutor. Mas come se produz esta tileisa? Seria necessinio retomarmos 0 emsaio de Mauss sobre a magi, Mauss comega por perguntar: “Quais sio as propriedades parti- culares do migico?" Pergunta a seguir: “Quais sio as propric~ dades particulares das operagdes migicas?” Vé que a pergunti rio funciona. E pergunta entio: “Quais io as propriedades es2- cificas das representagdes migicas?” Acaba por descobrir que 0 motor é a crenga que remete para o grupo. Na minha lingua gem, aquilo que faz 0 poder do produtor é 0 campo, quer dizer Ga randade do py © sistema das relagdes no seu conjunto. A energia é 0 campo. © que Dior mobiliza ¢ qualquer coisa que nio & definivel fora do campo; 0 que todos mobilizam é aquilo que o jogo produa, quer dizer um poder que repousa na & na alta costura. E podem: mobilizar uma parte tanto maior desse poder quanto maisalto se situarem na hicrarquia constitutiva do campo em causa. Seo que digo é verdade, as eriticas de Courréges contra Dior, as agressbes de Hechter contra Courréges ou contra Scherrer contribuem para constituir 0 poder de Courréges e de Scherrer, de Hechter e de Dior. Os dois extremos do campo concordam pelo menos em dizer que o Rétto e as raparigas que se vestem de qualquer maneira, esc4 musito bem, @ muito bonito, etc... mas so até certo ponto. Que fazern com efeito as jovens que se vestemn de “erapos””? Contestam » monopélto da manipulagao legitima desse algo especifico que éo sagrado em matéria de costura, como os heréticos contestam o monopélio sacerdotal da Ieitusa le tima. Se se comegar a contestar o monopélio da leitura legitima, se © primeiro que aparece puder ler os Evangelhos ou fazer as roupas que veste, sera 0 proprio campo a ser destruido, por isso que a revolta tem sempre limites. As querelas de escritores tém sempre como limite o respeito da Tic © que faz com que o sistema funcione & aquilo a que Mauss chamava a cren¢a colectiva. colectivo. Mauss dizia a propésito da magia: "“A sociedade paga~ se sempre a si propria com a moeda falsa do seu sonho". © que quer dizer que neste jogo € necessirio entrar no jogo: 08 que enganam so enganados ¢ cnganam tanto melhor quartos mais enganados Si0; sio tanto mais mistificadores quanto mais mistifi- "ura 1 diria antes o desconhecimento cados, Para jogar 0 jogo, € necessirio acreditar-se na ideologia da criagio ¢, quando se é jornalista de moda, é bom nao se ter uma visio sociolégica da moda. que faz 0 valor, 0 que faa magia da assinatura, & a colusio de todas os agentes do sistema de produgio de bens sagrador. Colusio pericitamente inconsciente decerto, Os cireuitos de consagragio si tanto mais poderosos quanto mais longos sio, mais complexos e mais escondides, até mesmo aos préprios olhos dos que ncles participam e deles beneficiam. Toda a gente conhece ‘o oxemplo de Napoledo ao tomar a ¢oroa das mios do Papa para 2 pér ele préprio na cabega, E um ciclo de consagragio muito 2M corto, que tem muito pouca eficdcia de desconhecimento. Um ciclo de consagracio eficaz é um ciclo no qual A consagra B, que consagra C. que consagra D, que consagra A. Quanto mais com- Plicado € 0 ciclo de consagracdo, mais € invisivel, mais @ escra- tura é susceptivel de desconhecimento, maior é 0 efeito de crenea (Seria necessério analisar segundo esta ldgica a circulagio circular das recensdes clogiosas ou as trocas de referéncias rituals.) Para ‘um indigena, quer seja produtor ou consumidor, € o sistema que constitui uma barreira opaca. Entre Chanel ¢ a sua assinatura, hi todo o sistema, que ninguém conhece ao mesmo tempo melhor € pior que Chanel *. Poderdo encontrar-se desenvolvimentos complemeniazes eur: P. Dour dieu, “Le couturer cca griff, contibation § une théorle dels magic”, sletor ade La recherche en sciences sociales, 1, Janeiro de 1975, pp. 7-36. MAS QUEM CRIOU OS “CRIADORES”?* A sociologia e a arte nao se dao bem. © que se ficaa dever 3 arte fe aos artistas que suportam mal tudo o que Ihes parega atentar contra a ideia que tém de si proprios: 0 universo da arte € um tuniverso de crenga, crenga no dom, na unicidade do eriador incriado, e a irrup¢io do sociélogo, que quer compreender, ex- plicar, dar razio, faz escindalo, Desencantament, reducionismo, numa palavra grosseria ou, © que vem a dar no mesmo, sacrilé- gio: o soctdlogo é aquele que, como Voltaire expulsara os reis da Historia, quer expulsar os artistas da histéria da arte. Masa situagio fica a dever-se também aos soeidloges que se emeraram em con- firmar as ideias feitas acerca da sociologia ¢, muito em particular, a sociologia da arte e da literatura, Primeira ideia feita: a sociologia pode dar conta do consumo cultural mas nfo da produgio. A maior parte das exposigdcs gerais sobre a sociologia das obras culturais aceitam esta distingio, que € puramente social: tende com efeito a reservar 4 obra de arte € incriado um espago separado, sagrido, ¢ um trata mento privilegiado, abandonando & sociologia os cansumidores, quer dizer o aspecto inferior, ou até mesmo recaleado (em par- ticular na sua dimensio econdmica) da vida intelectual e artis~ tiea. E as investigagdes visando determinar os factores sociais das priticas culturais (requéncia dos museus, dos teatros ou dos con iewre desarts décortfiem Abal de certos, etc.) dio uma aparente confirmagio a esta distinglo, que nfo assenta em qualquer fundamerto teérico: com efesto, come rentarei mostrar, nJo se pode compreender propria produgic paquilo que ela tem de mais especifico, quer dizer enguanto producio de valor (e de crenca), ano ser tendo simultaneamente em conta o espace dos produtores © 0 espaga das consumidores. Segunda ideia feita: a sociologia—e 0 seu instramento de predilecedo. aestatistica~ minora € esmaga, nivela ¢ rediaz a eriagio atistica: pde no mesmo plano os grandes € os pequenos, deixando, ‘em todo 0 caso escapar aquilo que faz 0 génio dos maiores. Tam- bém aqui, ¢ sem divida mais nitidamente, 0s socidlogos tem tendido @ dar raza0 aos seus criticos. Deixo de lado sem insistir no caso a extatistica literdria que, tanto pelas insuficiéncias dos seus mézodlos como pela pobreza dos seus resultados, confirma, ¢ de maneira dramiitica, as visOes mais pessimistes dos guardides do cemplo literério. Mal evocarei a tradigao de Lukacs e Goldmana, que se esforca por por em relagio 0 conteiido da obra literiria e as caracteristicas sociais da classe ou da fracgio de classe que se supe ser 0 seu destinatirio privilegiado. Esta abordagem que, nas suas formas mais caricaturais, subordina o escritor ou 0 artista is imposigdes de um meio ou is procuras directas de uma clien~ tela, sucummbe @ um finalismo ou a um fancionalismo ingénuo, deduzindo directamente a obra ds fang3o que Ihe seria socialmente atribuids. Por meio de uma espécie de exo-cireuito, faa desaparecer a ldgica propria do espace de produgio artistica, De facto, sobre este ponto ainda, os “erentes" tém inteitamente razio contra a sociologja redutora quando lembram a autonomia do artista ¢, em particular, a autonomia que resulta da histéria propria da arte. E verdade que, como diz Malraux, “a arte imita 2 arte” © que no podemos dar rizo das obras a partir apenas da procum, quer dizer das expectativas estéticas¢ éticas das diferentes facgdes ds clientela. © que nfo significa que nos vejamos remeti~ dos para a histria iutema da arte, nico complemento autorizado da ieitura interna da obra de arte A sociologia da arte e da literatura na sua forma comum c= quece com efeito © esencial, quer dizer esse universo social, 218 dorado dis snas proprias tradigbes, das suas proprias leis de fun— cionamento e de recrutamento, portanto da sua propria histézia, que @ 0 universo dz producio artistica. A autonomia da arte do artista, quea tradicio geogrifica aceita como Gbvia, em nome da ideologia da obra de arte como “criagdo” e do artista como cfiador incriado, nio é outra coisa senio a autonomia (celativa) desse espaco de jogo a que chamo um campo, autonomia que se institu pouco a pouco, c sob certas condigSes, no decorrer da hist6ria. O objecto proprio da sociologia das obras culturais nio é nem o artista singular (ou este ov aquele conjunte puramente estatistco de artistas singulares), nem 2 relagio entre o artista (ou, © que vem a dir no mesmo, 3 escola artistica) ¢ este ot aquele ‘grupo social concebido ou como causa eficiente ¢ principio deter- minante dos contetidos e das formas de expressio, ou camo causa final da produg3o artistiea, quer dizer como procura, sendo a histéria dos contetidos e das formas ligada directamente & historia dos grupos dominantes e das suas lutas em toro da dominagio. Em meu entender, a sociologia das obras culturais deve tomar por objecto 0 conjunto das relagdes (objectivas ¢ também tuadas sob a forma de interacgdes) entve o artista e 0s outros artistas, ¢, para além dele, © conjunto dos agentes envolvidos na produgio da obra ot, pelo menos, do valor secial da obra (criticos, direc~ tores de galerias, mecenas, ete:). Opde-se a0 mesmo tempo a uma descrigio positivisea das caracteristicas sociais dos produtores (educagao familiar, excolar, etc.) ¢ a uma sociologis da recep¢io que, como faz Antal para a arte italiana dos séculos xiv xv, refecitia directamente as obras concepeao da vida das diferentes feacgdes do piblico des mecenas, quer dizer a “sociedade con- siderada na sta capacidade de recepcio perante a arte”. De facto, as mais das vezes, estas duas perspectivas confundem-se como se 58 supusesse que os artistas si predispostos pela sua origem so- cial a prescentir ¢ 2 satisfazer uma certa procura social (¢ noii- vel que, nesta lagica, a andlise do contetido das obras prime - 9 que € verdade até mesmo no caso de Antal—sobre a anilise da forma, quer dizer aquilo que pertence come Ihe sendo priprin an produtor) 219 Para finalizar © quadro, gostarip de indicar que o efeito de curto citcuito nio se encontra apenas entre as cabecas de turco dos defensores da estética pura, coma 0 pobre Hauser, ou ainda nui marxista Go preecupado coma distingio coma Adomo (quando fila de Heidegger), mas também num dos que mais se empenharam em denunciar © “sociologisme vulgar" ¢ 0 “ma terialismo determinista”, Umberto Evo. Com efeito, em A Obra Aterts, Eco poe directamente em relayio (sem diivida em nome daideis de que existe uma unidade de todas as obras culturais de uma época) as propriedades que atribui 3 “obra aberta", como a plurivocidade reivindicada, a imprevisibilidade deliberada, etc., 8 propriedades do mundo tal como a ciéneia 0 apresenta, tudo isto 4 forea de analogias selvagens, cujo fundamento € deixato na ignorincia Rompendo com estas diferentes maneitas de ignorar a propria produc, a sociologia das obras conforme 2 concebo toma por abject o campo de produgio cultural e, inseparavelmente, a Felacio entre © campo de produgio € © campo dos consiimi- dores. Os determinismos sociais de euje trago a obra de arte & portadora exercem-se por um lado através do habitus do produ- or, remetendo assim para as condigdes sociais da sua produc’ enquanta sujeito social (familia, ete.) ¢ enquanto produtor (escola, contactos profissionais, etc.), ¢ por outro lade através das exigéncias € das imposigdes sociais que estio inseritas na posicao que ocupa no interior de um certo campo (mais ou menos autonomo) de producio, Aquilo a que se chamaa “criagao” € 0 encontro entre um jbitus socialmente constituido ¢ uma certa posicio j4 ins- tieuida ou possivel a divisio do trabalho de produgio cultural (c por acréscimo, no segundo grau, na divisio do trabalho de dominagao); 0 trabalho através do qual o artista faz a sua obra e se faz, inseparavelmente, como artista (e, quando isso fiz parte dz procura do campe, como artista original, singular) pode ser descrito como a relagio dialéctica entre 0 seu posto que, muitas vezes, Ihe preexiste © Ihe sobrevive (com obrigacdes, come por exemplo a “vida de-artista”, atributos, tradigdes, modos de expres So, etc.) € © seu habitus que © predispde mais ou menos total 220 mente a ocupar esse posto ou~o que pode ser um dos pré- -requisitos inscritos no posto —a teansformi-lo mais ou menos completamente. Em suma, 0 hebitws do produtor nunca ¢ com- pletamente 0 produto do posto (excepto talvez em certas tradigaes artesanais em que formacio familiar, e portanto condicionamen- tos sociais originirios de classe, e formacio profissional se confun- dem por completo). E inversamente, nunca podemos passar direc- tamente das caracteristicas sociais do produtor—origem social — as caracteristicas do seu produto: as disposigdes ligadas a uma origem social determinada — plebeia ou burguesa— podem expri- mir-se sob formas muito diferentes, conservando embora um mesmo ar de familia, em campos diferentes. Basta compararmos, por exemplo, os dois pares paralelos do plebew ¢ do patricio, Rousseau-Voltaire e Dostofevsky-Tobtoi. Se 0 posto faz 0 habitus (mais ou menos completamente), 0 habitus que ¢ antecipada- mente (de modo mais ou menos compleco) posto no posto (devido 205 mecanismos gue determinam a vocagio € a cooptagio) © feito pelo posto, contribui para fazer 0 posto. E tanto mais sem davida quanto maior € a distincia entre as suas condigdes sociais de produgio € as exigéncias sociais inscritas no posto ¢ maior também amargem de libecdade e de inovagio implicita ow explici- tamente inscrita no posto. Hi os que sio feitos para se apoderarem das posiges feitas ¢ 0s que sio feitos para fazerem novas posigdes. Dar razio do facto requereria uma andlise demasiado longa e eu. gostaria apenas de indicar que é sobretude quando se trata de compreender as revolugies intelectuais ou artisticas que devemos ter presente que a autonomia do campo de produgio & uma auto- nomia parcial, que no exclui a dependéncia: as revolugdes es- ppecificas, que alteram as relagSes de forya no interior de um campo, 36 so possiveis na medida em que aqueles que importam novas disposigdes e querem impor novas posicdes encantrem por exemn- plo um apoio fora do campo, nos piblicos novos cujas exigen cias exprimem ¢ produzem ao mesmo tempo, ‘Assim, 0 sujeito da obra de arte nio é nem um artists singu~ lar, causa aparente, nem um grupo social (a grande burguesia banciria e comercial que, na Floreng2 do Quattracento, chega a0 221 poder, segundo Antal, ou a nobrezade toga, segundo Goldmann), mas ¢ campo de produpdo artisiica no seu eonjunto (que mantém uma telagio de autonomia relativa, maior ou menor segundo a: épocas 2 as sociedades, com os grupos em qne se recrutam 0s consumi- dores dos seus produtos, quer dizer as diferentes fracgGes da classe dirigente), A sociologia ou a historia social nada pode compreender da obra de arte, & sobretudo aquilo que faz a sua singularidade, quando toma por objecto um autor ¢ uma obra em estado isolado. De facto, todas os trabalhos consagrados a um autor isolado que querer ultrapassar a hagiografia e a anedota so levados a con siderar 0 campo de producio no seu conjunto, mas a falta de se darem esta construcio como projece expitdta, fazem-no em geral de maneira muito imperfeita e parcial. E, contrariamente 20 que se poderia crer, a anilise estatistica nfo faz melhor uma vez que. agrupando os autores em grandes classes pré-construidas (esco~ las, eragdes, néncros, ctc.), destréi todas as diferencas pertinen- tes A falta de uma anilise prévia da estrutura do campo que a levaria a dar-se conta de que certas posigdes (em particular as posigdes dominantes, come a que Sartre ocupou no campo inte lectual francés entre 1945 ¢ 1960) podem ser de wnt lugar sd e que as classes correspondentes podem nio conter mais que uma so pessoa, desafiando assien a estatistica, © sujeito da obra é, portanto, um habitus em relagao com um posto, quer dizer com um campo. Paro mostrar ¢, etcio eu, © demonstrar, seria necessirio retomar aqui as anilises que consagrei 2 Flaubert ¢ em que tentei fizer ver como a verdade do projecto Haubertiano, que Sartre procura desesperedamente (e intermina- velmente) na biografia singular de Flaubert, estd inserita, fora do individuo Flaubert, na relagio objectiva entre, por um lado, um habitus moldado em certas condigies sociais (deBinidss pela posigio “neutra” das profissBes liberais, das “‘capacidades”, na chuse domi- nante e também pela posi¢io que a erianga Gustave ecupa na familia em fiangio da sua condigZo por nascimento e da sua rela- ‘io com o sistema escolar) e, por outro lado, uma posi¢io deter minada no campo de producio literiria, ele proprio situado numa posigio determinada no interior do campo da classe dominante 222 Preciso um pouco: Flaubert, enquanto defensor da arve pela arte, ocupa no campo de producio literéria uma posigio neutra, definids por uma dupls relagio negativa (vivida como uma dupla recusa), com a “arte social” por um lado, com a “arte burguesa” por outro, Este campo, cle proprio globalmente situado numa posi¢io dominada no interior do campo da classe dominante (de onde as deniincizs do “burgués” eo sonho recorrente do “manda nnato” em torno do qual se pdem de acordo em geral os artistas do tempo). organiza-ce assim segundo uma estrutura hemdloga da da classe dominante no seu conjunto (endo esta homologia © principio, como se vera, de um ajustamento automativo, ¢ nio cinicamente buscado, dos produtos as diferentes categorias de consumidores). Seria necessério continuar. Mas vemos desde ji que, a partir de uma tal anilise, se compreende a logica de certas propricdades mais fundamentais do estilo de Flaubert: estou a pensar, por exemplo, no discurso indirecto livre, que Bakhtine interpreta como a marca de uma relagao ambivalente perante os entre a grupos cujas palavras refere, de uma espécie de hesit tentagio de uma identificagio com eles ea preocupagio de manter a distancia; estou a pensar também na estrutura quiasmatica que se encontra obsessi ‘nos projectos, ¢ em que Flaubert exprime, sob uma forma transfor. mada ¢ dencgada, a dupla relaio de dupla negagio que, enquanito “artista”, 0 opde a0 mesmo tempo 20 “burgués” e a0 “powo" e, enquanto artista “puro”, o faz levantar-se contra a “arte burguesn” ca “arte social”, Tendo construido 0 posto, quer dizer a posigio de Flaubert na divisio do trabalho literirio (e, no mesmo lance, na divisio do trabalho de dominagio), podemos ainda virar-nos para as condigSes sociais de produgio do habitus perguntanda- “nos o que devia Flaubert ser para ocupare produzir (inseparavel- mente) 0 posto “arte pela arte” e erar a posi¢io Flaubert. Pode~ mos tentar determinar quais sio os tragos pertinentes das con digdes sociais de produgio de Gustave (por exemplo a posicao de “idiote da familia", bem analisada por Sartre) que permitem compreender que ele tenha podido manter e produzir 0 posto de Flaubert ete nos romances ¢, mais claramente ainda, Ao conttirio do que deixa crer a representagao Funcionalista, © ajustamento da produgio a0 consumo resulta no essencial da homologia ertsutural entre 0 espago de produgio (o campo a rico) © 0 campo dos consumidares (quer dizer o campo da classe dominante): as divisées internas do campo de producto repro duzem-se numa oferta zutomaticamente (e também em parte conscientemente) diferenciada que se antecipa as procuras automa ticamente (¢ também conscientemente) dferenciadas das diferentes categorias de consumidores. Assim, fora de qualquer busea do ajustamento e de qualquer subordinagio directa a uma procara expressamente formulada (1a légica da encomtenda ou do mecenato}.. cada classe de clientes pode encontrar produtos a seu gosto ¢ cada uma das classes de produtores tem oportunidades de encon- trar, pelo menos a prazo (quer dizer, por vezes, a titulo péstumo), consumidores para os seus produtos. De facto, a maior parte dos actos de produgao funcionam segundo a légica do duplo golpe: quando um produtor, por exemplo © ctitico de teatro do Figaro, produz produtos ajustados a0 gosto do seu piblico (o que é quase sempre © caso, ele proprio 0 diz) io € que ~ podemos cré-lo quando o afirma ~ tenha procurado alguma vez lisonjear 0 gosto dos scus leitores ou obedecido a instruges estéticas ou politicas, a chamadas & ordem por parte do seu director, dos seus leitores ou do governo (ovtras tantas coisas pressupostas por fSrmulas camo “lacaio do capitalismo” ‘ou “porta-voz da burguesia” das quais as teorias comuns sio for~ mas mais ou menos eruditamente eufemizadas). De facto, tendo escolhido, porque af se ajustava bem, 0 Figaro, que o excolhers, porque o achava bem ajustado, s6 tem de se abandonar, como costuma dizer-se, a6 seu gosto (que, em matéria de teatro, tem implicagdes politicas evidentes), ou melhor 3c suns repulsas —sendo quate sempre o gosto a repulsa pelo gosto dos outros — 20 hor ror que experimenta pelas pegas que o seu parceiro-concorrente, o eritico do Nouvel Observateur, nao deixars de achar a sew gosto, ¢ ele sabe.o, para se encontrar, como por milagre, com 0 gosto dos seus leitores (que esto para os leitores do Nouvel Observateur como ele proprio est’ para o critico desea publicagio). E levar- 224 clhes-i por acréscimo qualquer coisa que incumbe ao profistio~ nal, quer dizer uma réplica de intelectual 2 outro intelectual, tnma critica, tranquilizadora para os “burgueses”, dos argumentos altamente sofsticados por meio dos quais os imtelectusis justificam seu gosto pela vanguarda. ‘A correspondéncia que se estabclece objectivamente entre produtor (artista, critico, jornalista, fil6sofo, etc.) ¢ 0 seu pablico nio é evidentemente 0 produto de uma busca consciente do ajustamento, de transacgdes conscientes ¢ interessadas ¢ de con- cesdes calculadss as procuras do pilblico. Nao se compreende nada de uma obra de arte, que mais nfo seja do seu conteado informative, dos seus temas, das suas teses, daquilo a que se chama por meio de um termo vago a sua “ideologia”, referindo-a direc: tamente a um grupo. De facto, uma tal relagio nido se realiza senio por actéscimo ¢ como por descuido, através da relagio {que em fungio da sua posigao no espago das posigdes constituti ‘vas do campo de produgio, um produtor mantém com 0 epaco das tomadas de posicio estéticas'e éticas que, dada a histéria rela tivamente auténoma do campo attistico, sto efectivamente pos- siveis num momento dado do tempo. Este espago das tomadas fo sistema de referéncias comum relativamente ao qual se véem definidos, objectivamente, todos of que entram no campo. O que faz a unidade de uma época é menos uma cultura comum que a proble- mitica comum que no € outra coisa senio 0 conjunto das tomadas de posigic hgadas a0 conjunto das posi¢des marcadas no campo. Nio hi outro critério da existéncia de um intelectual, de um artista ou de uuma escola senio a sua capncidade de s¢ fazer reconhe- cer como 0 acupante de uma posi¢io no campo, posicio por referéncia 4 qual os outros se tém de situar, de se definir, € a problematica do tempo nao é outra coisa sendo © conjunto destas relagses de posicio com posicao €, inseparavelmente, de tomadas de posi¢io com tomada de posicdo. Concretamente, isto significa que o aparecimento de um artista, ce uma escola, de um partido ou de um movimento a titulo de posicfo constitutiva de-um campo (artistico. politico ou outro) é marcado pelo facto de a de posigio, que é 0 produto da acumulagio histériea, sua exiseincia “pdr, come costuma dizer-se, problemas” aos ocupantes das outras posigdes, de as teses que afirma se tornarem ‘uma parada em jogo de lutas, de fornecerem um dos termos das grandes oposicdes em tomo das quais se organiza a luta ¢ que servern para pensar essa luta (por exemplo, diresta/esquerda, claro/ obscuro, cientifisto/anticientifismo, etc.) © mesmo é dizer que o objecto proprio de uma ciéncia da arce, da literatura ou da filosofia ndo pode ser outra coisa seno 0 Conjunto cos dois espacos insepariveis, o espago dos produtos ¢ 9 espago dos produrores (artistas ou escritores, mas também. cti- ticos, editores, etc.), que sio como que duas tradugdes da mesma frase. Isto contra a autonomizagio das obras que € Go injus- tificdvel tedrica como praticamente. Fazermos, por exemplo, @ anilise sécio-lgica de um discurso que se atennha 4 prépria obra proibirmo-nos © movimento que conde, num vaivésn inces- sante, dos tragos temticos ou estilisticos da obra em que se trai posigio social do produtor (os seus interesses, 09 seus fantasmas sociais, etc.) is earacteristicas da posisio social do produtor em que se anunciam as suas “opgder” estilsticas, ¢ inversamente. Em suma, é na condi 0 de superarmos a oposi (linguistica ou outra) interna © a anilise externa que podemos compreender completamente as propriedades mais propriamente ““internas” da obra. Mas é necessirio superarmos também a alternativa escolistica da estrutura ¢ da Hist6ria, A problemitica quese enconeea institu da no campo sob a forma de autores © de obras fardis, espécie de pontos de referéneia em fan © ponto, é histéria de extremo a extremo, A reacgio contra 0 passado, que far a Histéria, & também o que faz a historicidade do presente, negativamente definido por aquilo que nega. Par outras palavras, a recusa que esta no principio da transformacio, supe € poe, ¢ lemibra assim ao presente, opondo-

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