LILITH BALANGANDÃ:
FEMINISMO E NEGRITUDE NA POESIA DE ELISA LUCINDA
(Uma leitura de Eu te amo e outras estréias e O semelhante)
Marciano Lopes e SILVA (UEM) i
1. INTRODUÇÃO
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e negra que se anuncia no título é muito atenuada – ou até mesmo dissolvida – no
transcorrer do poema por um discurso impregnado por imagens características de um
romantismo ingênuo, típico de conto de fadas, visto tratar a mulher como “Eva
encantada”, “princesa” e “Cinderela” – imagens que constroem uma identidade
feminina branca e dócil, castiça e cristã. Em outras palavras: o potencial subversivo da
eleição de Lilith como modelo feminino se desfaz numa retórica ingênua que
desconhece a dimensão filosófica existente no seu mito, ou que então tenta tornar-se
aceitável para o leitor mediano através da ocultação do seu caráter blasfematório,
reduzindo a contestação política ao poder patriarcal, branco e cristão, a uma atitude de
simples liberação sexual da mulher na sociedade burguesa. Mas o problema não é tão
simples assim. Tal conclusão seria correta e aplicável à sua poesia se nos limitássemos
exclusivamente ao poema “Lilith balangandã”, mas quando começamos a remexer com
atenção em seus demais textos, vemos que nem sempre a autora escreve uma poesia tão
bem comportada e que a necessidade de torná-la um produto mercadologicamente
viável (e, portanto, vendável) nem sempre termina por negar a identidade sugerida no
título em questão.
Eu te amo
entre chicória e feijão-fradinho
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(...)
Beijo a torre de sua igreja,
subo no seu tronco,
minha viril árvore
(...)
Eu arrisco, meu petisco,
Escuto teu verbo
mesmo quando arisco
(...)
Meu corpo, meu peito
minha xoxota, meu cu,
eu te amo entre chuchus.
Eu te amo
em pepino, cebola, ameixa
e alface.
Amo em nós
o amor sem disfarce.
(LUCINDA, 2006, p. 212 a 214)
Não creio que seja necessário gastar muita tinta e saliva para demonstrar que o
poema citado é uma ofensa à moralidade cristã. Lembremos: é na cozinha onde se faz e
se reparte o pão (alimento sagrado), é na cozinha onde se reúne a família, é na cozinha
onde se encontra – em quase toda a casa popular – uma cópia do quadro da Santa Ceia
de Leonardo da Vinci. Não digo que muitos não façam ou pensem tais coisas em tal
local, mas como se sabe, pensar é uma coisa, mas falar e publicar é outra bem diferente.
“Livre pensar, só pensar” – como escrevia o Millôr se não me engana a memória.
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Você me procura
você me busca
Adão invertido
Vertente veneno ativo
essa maçã que eu bebi;
inserpente me recomeço
nos teus braços, meu amor.
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ressignificação conforme os traços de Lilith, mulher que nasceu em igualdade com
Adão, pois também feita do barro, e que não aceitou a sua dominação, rebelando-se
contra a condição de tê-lo sobre si durante o coito, e revoltando-se contra o poder de
Deus.
É claro que o satanismo mórbido contido no mito de Lilith e tão presente na
poesia de Baudelaire e dos decadentistas não se encontra na poesia de Elisa Lucinda,
mas a atitude de negação ou contestação da moral cristã por ela se espalha, atingindo
momentos ofensivos como aquele que vimos acima em “Na salada da noite” ou
podemos ver no poema “Mistérios”, logo abaixo. No lugar da morbidez e do desencanto
que marcaram o citado satanismo, encontramos o riso popular da sátira menipéia, pois
novamente realiza-se uma inversão de valores que subverte o sagrado. Ao dessacralizar
o ritual da missa, os mistérios divinos, a noção de Direito e de Justiça divinas e o céu
concebido como paraíso distante, a poeta rebaixa-os na mesma medida em que eleva o
amor sexual:
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nem reparei de imediato
que dentro do manto
a santa no ponto
suava enquanto eu falava
Cida indagava detalhes
sobre nossas majestades
toda reza minha
era fofoca da intimidade
(...)
queria o auê
os suores da trepação
queria centímetro por centímetro
o enredo da penetração
(...)
Ela me lembrava a negra Clarinda
me lembrava a velha amiga
Eva antiga
da tribo de minha vó
Santa por descaso
Santa por acaso
ela queria Olodum
ela queria um homem
ela queria um.
(LUCINDA, 2006, p. 221-222)
Pareço cabo-verdiana
pareço Antilhana
pareço Martiniquenha
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pareço Jamaicana
pareço Brasileira
pareço Capixaba
pareço Baiana
pareço Carioca
preço Cubana
pareço Americana
pareço Senegalesa
em toda parte
pareço
com o mundo inteiro
de meu povo
pareço
sempre o fundo de tudo
a conga. O tambor
é o que nos leva adelante
pareço todos
porque pareço semelhante.
(LUCINDA, 2007, p. 86)
Em meio à esmagadora maioria de poemas que tem por tema o amor e a
sexualidade apenas quatro apresentam um sujeito lírico que se assume como mulher
negra e brasileira e que expressa a sua indignação e revolta contra o preconceito de cor,
a exploração sexual e a marginalização: “Profecia” (2007, p. 197),“Zumbi saldo”
(2007, p. 173), “Mulata exportação” e “Ashell, Ashell pra todo mundo Ashell”. Pela sua
importância, transcrevemos apenas os dois últimos, na íntegra:
“Mas que nega linda
E de olho verde ainda
Olho de veneno e açúcar!
Vem nega, vem ser minha desculpa
Vem que aqui dentro ainda te cabe
Vem ser meu álibe, minha bela conduta
Vem nega exportação, vem meu pão de açúcar!
(Monto casa pra você mas ninguém pode saber, entendeu meu dendê?)
Minha tonteira, minha história contundida
Minha confundida, meu futebol, entendeu meu gelo?
Rebola bem meu bem-querer, sou seu improviso, seu karaoquê;
Vem nega, sem eu ter que fazer nada. Vem sem ter que me mexer
Em mim tu esqueces tarefas, favelas, senzalas, nada mais vai doer.
Sinto cheiro doce, meu makulelê, vem nega, me ama, me colore
Vem ser meu folclore, vem ser minha tese sobre nego male.
Vem, nega, vem me arrasar, depois te levo pra gente sambar.”
Imaginem: ouvi tudo isso com calma e sem dor.
Já preso esse ex-feitor, eu disse: “Seu delegado...”
E o delegado piscou.
Falei com o juiz, o juiz se insinuou e decretou pequena pena
Com cela especial pra esse branco intelectual...
Eu disse: “Seu juiz, não adianta! Opressão, barbaridade, Genocídio
nada disso se cura trepando com uma escura!”
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Ó minha máxima lei, deixai de asneira
Não vai ser um branco mal resolvido
que vai libertar uma negra:
Esse branco ardido está fadado
porque não é com lábia de pseudo-oprimido
que vai aliviar seu passado.
Olha aqui meu senhor:
Eu me lembro da senzala
e tu te lembras da Casa-Grande
e vamos juntos escrever sinceramente outra história
Digo, repito e não minto:
Vamos passar essa verdade a limpo
porque não é dançando samba
que eu te redimo ou te acredito:
Vê se te afasta, não invista, não insista!
Meu nojo!
Meu engodo cultural!
Minha lavagem de lata!
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Tenho que ser sábia, tinhosa, sutil...
Ir à luta sem ser mártir.
Luther marketing
Luther marketing... in Brasil!
(LUCINDA, 2007, p. 171-172 – o grifo é de minha autoria)
A quase ausência de um discurso da negritude na poesia de Elisa Lucinda parece
decorrer de uma visão que considera o discurso de denúncia da discriminação racial
como uma estratégia negativa na medida em que reafirma a condição de “mártir” dos
negros, apresentando-os como pobres coitados no e pelo processo histórico. Tal
interpretação pode ser inferida do trocadilho com o nome do líder Martin Luther King
Jr. nos cinco versos finais do poema “Ashell, Ashell pra todo mundo Ashell”, onde se
afirma que, para ser livre, é preciso “ir à luta sem ser mártir”. Ao invés do discurso
voltado para a denúncia da exploração e da opressão, o poema sugere ironicamente
como estratégia de luta a apropriação pelos negros das mesmas armas de dominação
utilizadas pelas elites na sociedade de consumo, ou seja, a incorporação das estratégias
de marketing e a busca de inserção no mercado como forma de sobrevivência.
A hipótese acima encontra respaldo em vários aspectos que caracterizam a
produção artística de Elisa Lucinda. Entre eles, o primeiro que salta aos olhos é o uso da
sua imagem pessoal na arte das capas dos livros Eu te amo e suas estréias e o
Semelhante, assim como na separação das partes internas do segundo, que é feita com
fotos que apresentam sua imagem – estratégia de mercado não muito freqüente na
edição de livros de poesia, mas comum na indústria cultural ligada aos mercados
fonográfico, assim como do teatro, do cinema e da televisão. Em outras palavras, a
utilização de imagens do rosto do artista, comum à realidade do show business, é uma
estratégia de marketing incorporada nas edições dos CDs e dos livros de Elisa Lucinda
lançados pela editora Record.
A estratégia de uso da imagem pessoal na capa de seus livros e CDs ganha mais
força mercadológica quando consideramos os fatos de que Elisa Lucinda é atriz de
cinema, teatro e TV. Contribui especialmente para a popularização da sua imagem a
participação em novelas da Rede Globo (Mulheres apaixonadas e Páginas da vida,
ambas de Manoel Carlos) e na Rede Record (Caminhos do coração). Além disso,
realiza espetáculos e workshops pelo Brasil e exterior – ocasiões em que apresenta a
dramatização dos seus poemas, cujo estilo predominantemente dramático condiz
perfeitamente com a realização de recitais e apresentações de palco – e possui, desde
1988, a Escola Lucinda de Poesia Viva na cidade do Rio de Janeiro.
Considerando esse quadro extremamente positivo para a realidade cultural
brasileira, pergunto: teria Elisa Lucinda conseguido publicar suas obras pela editora
Record se não tivesse livre trânsito no meio cultural dos artistas e produtores ligados à
Rede Globo? Teria ela alcançado o sucesso editorial (O semelhante encontra-se na 6ª
edição) e de público para seus espetáculos se não tivesse espaço no meio televisivo e
ainda seguisse a trilha de uma poesia comprometida com algum discurso da negritude?
Questões difíceis de responder com isenção, além de muito delicadas, principalmente
porque entramos no terreno pantanoso das conjecturas... Mas arrisco dizer que a escolha
de uma poesia voltada predominantemente para as temáticas do amor e do erotismo,
deixando de lado delicadas questões sociais como a do preconceito racial e da
exploração e segregação de classes não seja apenas uma escolha afetiva, mas uma
decisão parcialmente (ou bastante?) guiada pelo gosto dominante do grande público,
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assim como pelos interesses da indústria cultural – os quais não costumam divergir dos
interesses das elites dominantes.
O fato, porém, é que apesar da sua aparência negra (indiscutivelmente
reproduzida na sua imagem pública) e de reconhecer-se como tal, Elisa Lucinda não
parece preocupada em se afirmar como afro-descendente em sua poesia e, por
conseguinte, não demonstra um compromisso permanente com uma poética engajada na
luta por uma consciência negra. Conforme vimos, raros são os momentos em que é
possível encontrarmos um sujeito lírico negro assim como a preocupação com o
racismo na sociedade brasileira. Por tal motivo, é discutível e temeroso afirmarmos que
a poesia dela seja um exemplo de “literatura negra” – salvo consideremos que o intenso
erotismo que subverte a moral cristã seja expressão da visão de mundo presente nas
religiões de origem africana. Erotismo pagão e panteísta que, nesse caso, estaria
expressando uma importante dimensão da sua identidade afro-descendente e, por
conseguinte, de um possível discurso da negritude nos dias atuais. Hipótese bastante
plausível, pois esse discurso de afirmação da sexualidade não se encontra marcado pela
idéia judaico-cristã do pecado original, expressando, em contrapartida, valores de uma
cultura que, “sendo essencialmente matriarcal, impõe sua resistência ao machismo” –
conforme observa Luiz Silva (Cuti) em seu artigo “Poesia erótica nos Cadernos
Negros”.
No lugar de uma orientação voltada para a expressão abertamente política e
crítica da negritude, a poesia de Elisa Lucinda encontra-se marcada por uma
religiosidade que considera todos os homens como criados à imagem e semelhança de
Deus, sendo, portanto, semelhantes entre si. É o que podemos ver nos poemas “Na
imagem da semelhança” (LUCINDA, 2006, p. 171-172), Mãe Água (Idem, ibidem, p.
50-53) e em “O poema do semelhante” (LUCINDA, 2007, p. 17-19). Nesse contexto, a
negritude surge de modo sutil, insinuando-se discretamente nas entrelinhas e nas
atitudes cotidianas, especialmente – ao que parece – através da expressão de uma
sexualidade feminina que renega a moralidade coercitiva do discurso cristão. Aliás, a
rejeição à instituição da Santa Igreja Católica, apresentada como hipócrita, é claramente
expressa no poema “Deus chora” (LUCINDA, 2006, p. 177).
O aspecto positivo da sua “poética da semelhança” é que ela abandona a idéia
de “raça” (embora a maioria dos militantes dos movimentos sociais de consciência
negra não concorde), há muito tempo considerado sem valor científico, o que permite
escapar das armadilhas de contribuir para a sua permanência no senso comum, assim
como de elaborar uma resistência que reproduza a atitude de rejeição da alteridade –
atitude que pode levar à elaboração de uma poética e uma identidade de gueto.
Entretanto isso poderia ser feito sem que a autora se restringisse a um ponto de vista
burguês – ou de classe média – que termina por silenciar e/ou ocultar identidades de
classes inferiores, especialmente se pensarmos que a maioria negra ou parda se encontra
nas classes mais baixas da sociedade brasileira. Ao privilegiar quase que
exclusivamente o amor e a sexualidade vivenciados na experiência de cidadã de classe
média e/ou alta, Elisa Lucinda deixa de lado a possibilidade de sua poesia aprofundar a
consciência social e política de seus leitores e especialmente de suas leitoras, uma vez
que desconsidera o fato de a identidade de gênero, a sexualidade e a liberação sexual
dependerem também da variável de classe. É muito fácil pedir para que se pare de falar
mal da rotina – conforme faz no poema “Termos da nova dramática (LUCINDA, 2006,
p. 78) – quando não se mora no subúrbio ou numa favela, quando não se tem que
acordar às cinco da madrugada, pegar vários ônibus ou um trem de metrô lotados para ir
trabalhar numa fábrica (ou em algum subemprego qualquer, como o de doméstica),
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receber um salário miserável e ter que retornar nas mesmas condições, chegando em
casa tarde da noite e extenuada, sem nenhum tesão para fazer amor, conforme podemos
ler no poema “Para além de tesão”, abaixo, do poeta Deley do Acari (apud ZALUAR,
1999, p. 339-340).
4. REFERÊNCIAS
ACARI, Deley do. Poemas. In: ZALUAR, Alba; ALVITO, Marcos. (Org.) Um século
de favela. 2 ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 1999.
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HOLLANDA, Heloísa H. O. Buarque de. Esses poetas: uma antologia dos anos 90. Rio
de Janeiro: Aeroplano, 1998.
SILVA, Luiz (Cuti). Poesia erótica nos Cadernos Negros. Disponível em:
http://www.quilombhoje.com.br/ensaio/cuti/TextocriticoErotismoCuti.htm - Acesso em
13 de Junho de 2008.
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Contato: etlopes@uem.br
ii
Comentário feito em mesa-redonda sobre “Teoria da poesia: discussões contemporâneas”, realizada no
XI SILEL e I Simpósio Internacional de Letras e Lingüística, eventos promovidos pela Universidade
Federal de Uberlândia, em 2006.
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