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Gizeli Gondim
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RESUMOS DOS LIVROS UFMS-2009

1) ENCONTRO MARCADO - 1956 A história, porém, vai mostrar o contrário. Eduardo consegue
FERNANDO SABINO articular com certa facilidade seus interesses, mas nem sempre
seu interior está em paz; a busca por esse momento será o fio
O Encontro Marcado de Fernando Sabino é obra que nos faz com que o narrador tecerá a intriga. Um episódio marcante na
passear pelas ruas de Belo Horizonte conhecendo um pouco vida de Eduardo foi o suicídio de um amigo, o Jadir. Esse rapaz
das gerações que por elas passaram e, de alguma forma, tinha uma família complicada, o pai bebia, a mãe era meio
marcaram a cidade. A obra neste tocante é muito feliz. A história desregrada, a irmã era saliente, o que bastava para que não
se passa na década de quarenta e tem como protagonista fosse uma boa companhia aos olhos de dona Estefânia. Um dia
Eduardo Marciano, personagem que serviu de alento a uma antes, Eduardo comentava com Jadir que, às vezes, tinha
juventude que, como ele, tinha um pacto de amizade, angústias vontade de morrer. Falaram sobre suicídio, cada um emitiu sua
existenciais e muitas perguntas por fazer. O incrível dessa opinião. Eduardo dizia que era covardia, a menos que se fizesse
história é que ainda hoje ela serve de referência para as um estrago louco antes, algo que o marcasse na História. Jadir
gerações que buscam um encontro interior que as tornem mais dizia que "quem quer morrer mesmo, não pensa em nada disso,
satisfeitas com a vida. só pensa em morrer." Acabou dando tiro no peito. Isso
naturalmente tirou o sono de Eduardo por muito tempo.
PRIMEIRA PARTE Ao contar a história de Eduardo, o narrador fornece um retrato
A PROCURA dos costumes de uma época, em especial o preconceito próprio
de uma cidade ainda provinciana em que o sujeito está a mercê
I – O ponto de partida de julgamentos preestabelecidos, especialmente em relação ao
II – A geração espontânea comportamento de um determinado grupo social. É o que
III – O escolhido acontece com a interferência de Dona Estefânia no namoro de
Eduardo com Letícia, por exemplo. Para ela a menina não é
A história de Eduardo Marciano nos é contada por um narrador uma boa companhia ao filho. Isso certamente porque não se
que parece ser muito próximo da personagem, pois acompanha simpatizou com a liberdade que a mãe dava à garota.
passo a passo a sua trajetória e conta com o domínio de quem Seu Marciano resolve ficar sócio de um clube, onde certamente
conhece tudo sobre o rapaz. É o que chamamos de narrador em o filho terá uma vida mais saudável. Eduardo decide fazer
terceira pessoa. Esse narrador abre a história propondo um natação e em pouco tempo é um dos melhores em sua
pacto com o leitor, chamando-o a participar do que vai contar: categoria. Sentia prazer com as vitórias, "Uma espécie diferente
"Que significava o quintal para Eduardo?". Mais do que de emoção - a de poder contar consigo mesmo, e de saber-se,
depressa queremos saber a resposta e, conhecendo-a, numa competição, antecipadamente vencedor." Foi um
queremos saber mais sobre o garoto que parecia ter toda a vitorioso, mas sua obstinação deixava o pai preocupado,
liberdade para ser feliz e, no entanto, não a tinha. Sua primeira sempre às voltas com o estudo de Eduardo. Formar-se era um
derrota já aparece no início do relato: a galinha de estimação valor para seu Marciano, uma promessa que Eduardo não
Eduarda vira o almoço de domingo. Eduardo era filho único. cumpriu. No colégio, não foi bom aluno. Era questionador,
Fazia de tudo para manter sempre seu lugar de destaque rebelava-se contra a estrutura da instituição, acabou formando-
naquela família. Era mimado, cheio de vontades e de se aos empurrões. Certa vez o monsenhor do colégio chama-
atrevimentos, estava sempre a testar o limite das pessoas, lhe a atenção, após uma briga que teve com o colega Mauro.
como qualquer garoto de sua idade. Os pais não sabiam muito Eduardo foi atrevido, mas o seu argumento era forte. Não foi
bem como lidar com as estranhezas temperamentais do filho, expulso, mas Monsenhor Tavares imprimiu-lhe uma pergunta
que amolava a empregada, esperneava para ir à escola, que ele só pôde, de fato, responder muitos anos depois: "Você
chantageava por qualquer coisa. Uma vez descobriu que acredita em Deus?"
arranhando o rosto deixava os pais atônitos. Pronto! Por Eduardo decide que será escritor. Seu Marciano o apresenta a
qualquer bobagem machucava-se até sangrar. Era um Toledo, um escritor seu amigo, que será uma espécie de ídolo
desespero de menino mimado, prenúncio de um jovem sem para o rapaz. Por seu intermédio, Eduardo inicia-se na leitura de
limites. Eduardo sempre precisava de um desafio para atingir grandes escritores. Para Toledo, "A arte é uma maneira de ser
alguma conquista. Certa vez, interessou-se por uma colega da dentro da vida. Há outras. É uma maneira de se vingar da vida.
escola que era ótima aluna. Foi o prenúncio da paixão pela Assim como se você procurasse atingir o bem negativamente,
menina e pela vontade de ultrapassar seus limites. Estudou até esgotando todos os caminhos do mal. É preciso ter pulso, é
conseguir o primeiro lugar na sala, ao lado de Lêda, a garota preciso ter estômago." Por toda a trajetória de Eduardo e seus
das notas boas. Alcançando assim o objetivo, Lêda deixa de ser amigos, a voz narrativa evidencia o gosto de uma geração pela
o alvo de suas atenções. leitura e o interesse, em especial de Eduardo, pela palavra
O episódio deu a Eduardo a medida exata de suas escrita e pelas descobertas que se podem fazer com o
possibilidades. Estava, então, com onze anos. Tinha todas as conhecimento literário. Apesar disso, a luta que Eduardo
curiosidades de sua época, como a descoberta de sua empreende para ser um escritor não se efetiva, pois ele não
sexualidade, por exemplo. Era um garoto precoce. Logo cedo, consegue escrever o romance que tanto quer.
destacou-se por seu talento na escrita; inscreveu-se numa Chega, afinal, o tempo da formatura do colégio. Uma nova
maratona intelectual e ganhou o segundo lugar, um prêmio em etapa se descortina para Eduardo e seu grupo, um mundo que
dinheiro que foi buscar no Rio de Janeiro. Ficou por lá gastando eles desconhecem está prestes a se impor. Na despedida,
o dinheiro do prêmio até acabar. "Saiu pela rua, mão no bolso, Eduardo, Mauro e Eugênio decidem marcar um encontro dali a
sentindo que naquele momento começava a viver. Pobreza, quinze anos, naquele mesmo lugar. Cada um segue seu destino
fome, miséria - tudo era preciso, para tornar-se escritor. em busca do grande encontro consigo mesmo. Eduardo leva
Escrevera um conto em que dizia isso, mandara para um uma vida boêmia, o que implica pouco estudo, pouco trabalho e
concurso de contos". Ganhou algum dinheiro como premiação e muita aventura. Ele e os amigos estão sempre desafiando o
tirou disto uma lição: "Na vida tudo seria assim, a solução se perigo. O mundo está vivendo os reflexos da segunda guerra
apresentando imediatamente, mal começasse a buscá-la, mundial. A ideologia dos oprimidos é a voz geral que permeia os
gozando assim as dificuldades do problema. Na vida tudo lhe discursos da rapaziada. Do grupo, Mauro é o rebelde mais
seria assim." Assim foi que Eduardo enfrentou a vida, sempre entusiasmado. Discursa em lugares públicos, gera polêmicas,
achando que a solução se apresentaria a ele quando uma espécie mais de modismo que de luta política. Eduardo
precisasse. começa a escrever artigos para o jornal e a incorporar um novo

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grupo de amigos. Juntos, Eduardo, Mauro e Hugo têm uma vida realmente tivesse urgência de ir a qualquer parte." Há na
mais ou menos desregrada e audaciosa. Bebem muito desafiam descoberta de Eduardo, um prenúncio de que seu olhar começa
a cidade, buscam um destino. Hugo acaba sendo professor; a se voltar para o exterior. Vejamos se isso de fato acontece.
Mauro, médico. Eduardo arranja um bom emprego público no Eduardo percebe a cidade diferente, sem talvez o encanto de
Rio de Janeiro, por via dos auspícios de seu futuro sogro sua juventude. Encontra os amigos, Mauro está casado e Hugo
ministro. parece feliz como professor. Continua um intelectual, cada vez
Tudo começou quando conheceu Antonieta, num baile no mais se dedica ao estudo acadêmico, vive rodeado dos alunos.
Automóvel Clube. Apesar de todas as diferenças entre eles, Eduardo comparece ao encontro marcado e encontra o ginásio
iniciam um namoro que vai acabar em casamento. em férias. Os dois amigos não compareceram. "Saiu da cidade
como de um cemitério". Na volta, faz uma parada em Juiz de
SEGUNDA PARTE Fora, revê lugares e pessoas que já não dizem mais nada para
O ENCONTRO ele e segue de volta ao Rio.
Começa sua peregrinação interior, na tentativa de se encontrar.
I – Os movimentos simulados Aos poucos, vai filtrando a vida e reconstituindo o fio de sua
II – O afogado identidade: "Agora via em volta que seu mundo era dos outros
III – A viagem também, carregando cada qual a sua cruz - pobres criaturas de
Deus. E como eram simpáticas, essas criaturas. Nada de
Eduardo não dá conta de nenhum tipo de relacionamento; nada sordidez que via antes em cada olhar, da miséria em cada
que implique um convívio consegue tirar o rapaz de seu gesto, o cotidiano sem mistério, a surpresa adivinhada em cada
individualismo exagerado. A trajetória de seu casamento serve corpo, o segredo assassinado em cada boca." Reencontra-se
de pretexto para um questionamento sobre os padrões dessa com Eugênio, agora frei Domingos. Passa a visitá-lo no
instituição. Os casais se desagregam, sempre em busca de um convento, onde parece sentir um pouco de alento. Perambula
conhecimento pessoal que está longe de se alcançar nesse pela cidade, revê Neusa, que diz estar esperando um filho seu.
romance. Conforme Eduardo caminha em busca desse Eduardo não consegue assumir essa nova situação e a moça
encontro, outros desencontros se sucedem na narrativa. decide não ter o filho.
Sempre a bebida é o anestésico para os males de Eduardo. Há Aos poucos, Eduardo vai se desligando das relações com as
sempre um pretexto para estar longe do compromisso com pessoas e a cidade. Toma uma atitude, afinal, a seu favor.
Antonieta. Ora são os amigos do bar, ora é Neusa, a vizinha Desliga-se do emprego, deixando assim, a sua vaga para o
insinuante, ora são os encontros clandestinos com Gerlane, a colega Misael. Dá seus livros para o filho desse amigo, rapaz
nova namorada, tudo mostrando a incapacidade de assumir a interessado em literatura e deslumbrado com Eduardo, como
vida como ela se apresenta. Até o filho com Antonieta lhes certa vez, ele o fora com Toledo. Desfaz-se do apartamento e
escapa. Eduardo parece estar sempre na contramão de seu empreende uma grande viagem na busca e compreensão de si
destino. mesmo.
O relacionamento do casal, desde o início, aponta para um
desencontro. Ela é uma moça rica, de pai influente na política. ANÁLISE DA OBRA
Ele é de uma família de classe média. Ela mora no Rio de
Janeiro, a capital. Ele é de Belo Horizonte, uma cidade ainda Apesar de ter escrito duas pequenas novelas, A marca e A vida
marcada pelo provincianismo. Ela sabe o que quer; ele se real, Fernando Sabino consagrou-se como um cronista de
apresenta sempre em perspectivas. Não há entre eles brigas ou primeira linha. Contudo, em 1956, ele surpreendeu os leitores
discussões acirradas, apesar do comportamento irreverente e com a publicação de uma narrativa longa, O encontro marcado.
descompromissado do rapaz; nesse relacionamento percebe-se A repercussão foi espetacular, tornando-se de imediato o livro
que Antonieta é o elemento que tenta a harmonia do de cabeceira de milhares de jovens que nele se reconheciam
casamento. Procura compreender o temperamento depressivo por verem expostos ficcionalmente os seus próprios dramas
de Eduardo e tenta ajudá-lo, mas ele sempre se mostra incapaz existenciais.
de qualquer reflexão. O encontro marcado seria assim um típico romance de geração,
Nessa relação, evidencia-se o crescimento pessoal de Antonieta isto é, um relato centrado nos problemas específicos de um
e a estagnação comportamental de Eduardo, um sujeito sem grupo etário/social de uma determinada época e cujo alcance
referências. Ela acaba desistindo da relação e parte para cuidar esgota-se naquela geração. No entanto, examinado hoje, o
de sua vida e fica perdido em sua nova vida de solteiro e de texto de Fernando Sabino mantém o seu interesse e muitos
desencontros. A trajetória de Eduardo está sempre marcada por leitores, sobretudo os adolescentes, ainda o cultuam. As razões
alguma perda. Além de sua galinha Eduarda e de seu amigo do sucesso e da atualidade da obra são várias:
Jadir, morre seu Marciano, sem mesmo que ele pudesse estar
presente. Rodrigo, um amigo do tempo da natação, morre a) Mais do que um romance de geração, trata-se de um
afogado, preso às ferragens do avião que pilotava. Morre seu romance de formação, pois trata de Eduardo Marciano, em sua
filho, ainda no ventre de Antonieta. Vítor, casado com Maria trajetória que vai da infância à vida adulta, traduz os anseios de
Elisa morre tragicamente atropelado. Essa perda também deixa uma juventude que – do fim da II Guerra a meados da década
Eduardo muito abalado, principalmente pelo inusitado dos fatos. de 1950 – transformara as angústias ideológicas e políticas em
Uma semana antes do acidente, Vítor esteve com Eduardo e inquietações pessoais como a da sexualidade insatisfeita, a da
contou-lhe sobre um exame médico que havia feito e que dera existência de Deus e da luta pela felicidade pessoal.
um resultado fatal, um câncer, mas que estava errado, pois b) Tanto Eduardo Marciano quanto seus melhores amigos,
haviam trocado sua radiografia do pulmão com o de outra Mauro e Hugo, realizam parte de sua formação numa sociedade
pessoa. Nesse ínterim, Vítor fez uma promessa, caso já livre da guerra e da ditadura e também menos rígida na
conseguisse sarar. Estavam discutindo exatamente se a obediência aos valores patriarcais. Isso significa que já podem
promessa deveria ser cumprida, mesmo que sua "cura" se escolher livremente os seus destinos individuais. Porém esta
desse pela via do engano. Para Eduardo, a morte do amigo foi liberdade de optar causa-lhes vertigens e dilaceramentos
uma fatalidade. A própria trajetória de Eduardo evidencia uma íntimos. Num plano mais singelo, estamos diante da experiência
morte lenta e gradual dos sentimentos e atitudes diante da vida. da náusea que Sartre espalhara pelo Ocidente, sobremodo em
Em O Encontro Marcado, acompanhamos o crescimento de fins dos anos de 1930.
Eduardo, e com ele, o da cidade. No entanto, só, em sua volta a c) As experiências amorosas e profissionais do personagem-
Belo Horizonte após a separação é que ele se dá conta disso: narrador levam-no primeiro à exaltação e à euforia e em
"Encontrou a cidade diferente, mudada. Agitação pelas ruas, seguida à frustração. O fracasso de suas expectativas
prédios novos, gente andando para lá e para cá, como se existenciais não o inibe na procura incessante de um sentido

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para a vida. O relato termina com a idéia de que a passagem Ingressa no curso secundário do Ginásio Mineiro, onde
pelo sofrimento amadurece o indivíduo e abre-lhe novos demonstra grande interesse pelo estudo de Português. Suas
caminhos para que busque valores autênticos no mundo. primeiras tentativas literárias sofrem influências dos livros de
d) O encontro marcado é um dos primeiros romances brasileiros aventuras que vive lendo, principalmente Winnetou, de Karl
da época em que os protagonistas não são originários nem May, e dos romances policiais de Edgar Wallace, Sax Rohmer e
possuem qualquer ligação com a zona rural. É uma narrativa Conan Doyle, entre outros. Nessa época, por iniciativa do irmão
totalmente urbana. A parte principal da mesma transcorre em Gerson, tem seu primeiro conto policial estampado na revista
Belo Horizonte, então capital pacata e modorrenta, o que "Argus", órgão da Secretaria de Segurança de Minas Gerais.
acentua o contraste entre o provincianismo do meio e a ânsia Passada a primeira emoção vem o desapontamento: o nome do
cosmopolita dos jovens personagens que sonham com a autor, na revista, consta como sendo Fernando Tavares
literatura, com a grandeza e com a glória. "Sobrinho".
e) Outra razão importante para a acolhida favorável da obra Em 1938, ajuda a fundar um jornalzinho chamado "A Inúbia"
decorre de sua linguagem coloquial. Poucos relatos brasileiros (mesmo sem saber exatamente o que isso vem significar) no
apresentam uma tão bem sucedida simplicidade de estilo. Este Ginásio Mineiro. Ao final do curso, embora desatento, "levado" e
tom espontâneo de narrar foge ao prosaísmo* e alcança irrequieto, conquista a medalha de ouro como o primeiro aluno
diretamente o coração dos jovens, dando-lhes uma vigorosa da turma. Começa a colaborar regularmente com artigos,
impressão de autenticidade confessional. crônicas e contos nas revistas "Alterosas" e "Belo Horizonte".
Em 1979, Fernando Sabino voltou ao romance com O grande Participa de concursos de crônicas sobre rádio e de contos,
mentecapto. Apesar de seu caráter divertido e do êxito editorial, obtendo seguidos prêmios.
a obra pouco acrescentou à carreira do escritor. Nadador, em 1939, bate vários recordes em sua especialidade:
o nado de costas. Compete e ganha inúmeras medalhas em
*Prosaísmo: Redução da linguagem coloquial a uma espécie de campeonatos nas cidades de Uberlândia, São Paulo e Rio de
trivialidade estilística. Muito comum a cronistas e jornalistas que Janeiro. Participa da Maratona Nacional de Português e
produzem ficção. Gramática Histórica, empatando com Hélio Pellegrino no
segundo lugar em Minas Gerais e em todo o Brasil. Viajam
Aspectos Relevantes juntos ao Rio para receber em sessão solene o prêmio das
É preciso que você fique atento para o capítulo "A geração mãos do mineiro Gustavo Capanema, então Ministro da
Espontânea", vários discursos se entrelaçam marcando a fase Educação.
agitada das grandes descobertas da rapaziada. Certamente isto Aprende taquigrafia, em 1940, para escrever mais depressa.
poderá ser alvo das questões no vestibular: Veja Começa a ler, com grande obstinação, os clássicos portugueses
Discurso existencialista: Tema habitual de Hugo; o efêmero a partir dos quinhentistas Gil Vicente e João de Barros, entre
da existência. Nada valia nada, tudo precário, equívoco, outros, até os romancistas como Alexandre Herculano, Almeida
contraditório. vinha escrevendo um livro, uma espécie de ensaio Garrett e Camilo Castelo Branco. Antes de chegar a Eça de
poético, em que procurava traduzir este sentimento da Queiroz e a Machado de Assis, aos 17 anos, está decidido a ser
inutilidade das coisas. era a palavra-chave; bastava dizer, a gramático. Escreve um artigo de crítica sobre o dicionário de
certa altura, com um suspiro de desalento: "mas que Laudelino Freire, que tem o orgulho de ver estampado no jornal
coooooisa!"e a angústia baixava logo as asas negras sobre os de letras "Mensagem", graças ao diretor Guilhermino César,
três." escritor mineiro que se torna amigo de Fernando Sabino e seu
Discurso Psicanalítico: "...subjugadas pelos preconceitos. A grande incentivador. João Etienne Filho, secretário de "O
moral burguesa. As convenções sociais. O lugar-comum. essa Diário", órgão católico, é outro a estimulá-lo no início de sua
coisa toda. Uma espécie de subconsciente coletivo, de que carreira. Nele publica artigos literários, juntamente com Otto
Freud não pensou, nem ele, nem ninguém". Lara Resende, Paulo Mendes Campos e Hélio Pellegrino,
Discurso político-ideológico: "abaixo os burgueses donos da formando com eles um grupo de amigos para sempre.
vida. abaixo os exploradores do povo, abaixo os fascistas, No período de 1941 a 1944 presta serviço militar na Arma de
abaixo a tirania, viva a liberdade! Cavalaria do CPOR. Inicia o curso superior na Faculdade de
Discurso Literário: não ligavam: eram superiores. Juntos Direito. Convive com escritores e, por indicação de seu amigo
faziam suas descobertas literárias. Que literatura proletária! Murilo Rubião, ingressa no jornalismo como redator da "Folha
Verlaine, isso sim; Rimbaud e Valéri. Juntos choraram de Minas". Orientado por Marques Rebelo, reúne seus primeiros
Baudelaire, Neruda, Garcia Lorca, Fernando Pessoa... contos no livro "Os Grilos não Cantam Mais", publicado no Rio
Prof. Célia Flud Glaeser editado pelo Jornal "O Estado de de Janeiro à sua própria custa. Bem recebido pela crítica, lhe
Minas" vale principalmente pela carta recebida de Mário de Andrade, a
partir da qual inicia com ele uma correspondência das mais
BIOGRAFIA DE FERNANDO SABINO preciosas para a sua carreira de escritor. (veja em Lições do
Fernando Tavares Sabino, filho do procurador de partes e Mestre). Colabora no jornal literário do Rio "Dom Casmurro",
representante comercial Domingos Sabino, e de D. Odete revista "Vamos Ler" e "Anuário Brasileiro de Literatura".
Tavares Sabino, nasceu a 12 de outubro de 1923, Dia da Em 1942, é admitido como funcionário da Secretaria de
Criança, em Belo Horizonte. Finanças de Minas Gerais e dá aulas, nas horas vagas, de
Em 1930, após aprender a ler com a mãe, ingressa no curso Português no Instituto Padre Machado. Conhece pessoalmente
primário do Grupo Escolar Afonso Pena, tendo como colega o poeta Carlos Drummond de Andrade, dele se tornando amigo
Hélio Pellegrino, que já era seu amigo dos tempos do Jardim da através de correspondência e, mais tarde, no Rio, de
Infância. Torna-se leitor compulsivo, de tal forma que mais de convivência.
uma vez chega em casa com um galo na testa, por haver dado No ano seguinte é nomeado oficial de gabinete do secretário de
com a cabeça num poste ao caminhar de livro aberto diante dos Agricultura. Faz estágio de três meses como aspirante no
olhos. Desde cedo revela sua inclinação para a música, ouvindo Quartel de Cavalaria de Juiz de Fora, período que serviria de
atentamente sua irmã e o pai ao piano. inspiração para hilariantes episódios no livro "O Grande
Em 1934, entra para o escotismo, onde permanece até os 14 Mentecapto". Inicia uma colaboração regular para o jornal
anos. "Correio da Manhã", do Rio e conhece seu futuro amigo Vinicius
Com 12 anos incompletos, em 1935, torna-se locutor do de Moraes. Prepara sua mudança para o Rio de Janeiro.
programa infantil "Gurilândia" da Rádio Guarani de Belo Publica o ensaio "Eça de Queiroz em face do cristianismo" na
Horizonte. Freqüenta o Curso de Admissão de D. Benvinda de revista "Clima", de São Paulo (SP).
Carvalho Azevedo, no qual adquire conhecimentos de gramática Integra, em 1944, a equipe mineira na Olimpíada Universitária
que lhe serão muito úteis no futuro em sua profissão. de São Paulo, como pretexto para conhecer pessoalmente

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Mário de Andrade. Lêem, em voz alta, os originais da novela "A


Marca", que é publicada em seguida pela José Olympio Editora. 2) URUPÊS - 1918
Muda-se para o Rio, assumindo o cargo de Oficial do Registro MONTEIRO LOBATO
de Interdições e tutelas da Justiça do Distrito Federal. Convive
com Rubem Braga, Vinicius de Moraes, Carlos Lacerda, Di ANÁLISE DA OBRA
Cavalcanti, Moacyr Werneck de Castro, Manuel Bandeira e
Augusto Frederico Schmidt, entre outros. Publicado em 1918, Urupês é basicamente uma série de 14
Participa da delegação mineira no Congresso Brasileiro de contos, tendo como ênfase a vida quotidiana e mundana do
Escritores em São Paulo, no ano de 1945, onde, durante a caboclo, através de seus costumes, crenças e tradições.
sessão plenária de encerramento, em desafio à polícia ali Monteiro Lobato reuniu na obra alguns contos que a experiência
presente, sugere ao publico que seja lida a Moção de Princípios de fazendeiro do Vale do Paraíba lhe proporcionou. É a obra de
proclamada pelo Congresso, exigindo do ditador Getúlio Vargas estréia de Monteiro Lobato.
a abolição da censura e a restauração do regime democrático Urupês não contém uma única história, mas vários contos e um
no Brasil, com convocação de eleições diretas. Conhece Clarice artigo, quase todos passados na cidadezinha de Itaoca, no
Lispector, dando início a uma intensa amizade. interior de SP, com várias histórias, geralmente de final trágico e
No ano seguinte forma-se em Direito e licencia-se do cargo que algum elemento cômico. O último conto, Urupês, apresenta a
exerce na Justiça, embarcando com Vinícius de Moraes para os figura de Jeca Tatu, o caboclo típico e preguiçoso, no seu
Estados Unidos. Passa a residir em Nova York, trabalhando no comportamento típico. No mais, as histórias contam de pessoas
Escritório Comercial do Brasil e, posteriormente, no Consulado típicas da região, suas venturas e desventuras, com seu
Brasileiro. Começa a escrever o romance "O Grande linguajar e costumes.
Mentecapto", que só viria retomar 33 anos depois. Colabora Para uma melhor compreensão da temática da obra, o próprio
com o jornal "Diário de Notícias", do Rio. escritor nos dá pistas ao citar, em um dos seus contos, Meu
Em 1947, envia crônicas de Nova York para serem publicadas Conto de Maupassant. De fato, sua literatura vai pela mesma
aos domingos nos jornais "Diário Carioca" e "O Jornal", do Rio, rota do literato francês, já que se baseia em ações extremas e
que são transcritas por diversos jornais do resto do país. patéticas norteadas pelo amor e pela morte.
Começa a escrever "Ponto de Partida" (romance), e outro, O tom exagerado também se manifesta em sua linguagem.
"Movimentos Simulados", os quais não chega a concluir mas Além dos traços expressionistas (na descrição das personagens
que serão aproveitados em "Encontro Marcado". Realiza uma Lobato utiliza técnicas expressionistas que as deformam,
série de entrevistas com Salvador Dali e faz reportagem sobre quando se dedica a caracterizar a natureza passa a vazar
Lazar Segal. metáforas de bela plasticidade que em vários pontos lembra a
Volta ao Brasil em 1948, a bordo de um navio cargueiro que se idealização romântica. Afasta-se, no entanto, dessa escola
incendeia em meio a uma tempestade, a caminho de Bermudas. literária por utilizar uma linguagem mais simples, arejada,
No Rio, é transferido para o cargo de escrivão da Vara de moderna) usados nas descrições das personagens, Lobato
Órfãos e Sucessões. Crônica semanal no Suplemento Literário utiliza constantemente a ironia, o que revela uma emotividade
de "O Jornal". extremamente carregada, fruto de um misto de indignação,
Em 1949, escreve crônicas e artigos para diversos jornais impaciência e até intolerância ao enxergar os problemas
brasileiros. Em 1950, reúne várias delas sobre sua experiência brasileiros e como eles são provocados pela lassidão, fraqueza
americana no livro "A Cidade Vazia". e indolência do caráter de nosso povo.
Publicação em tiragem limitada do livro "A Vida Real", em 1952, A linguagem lobateana ainda inspira alguns comentários
composto de novelas sob a inspiração de "emoções vividas interessantes. É fácil perceber como antecipa o Modernismo, já
durante o sono". Escreve, sob o pseudônimo de Pedro Garcia que não apresenta a elaboração rebuscada então vigente em
de Toledo, diariamente, "O Destino de Cada Um", nota policial sua época (Monteiro Lobato criticou ferozmente a moda
no jornal "Diário Carioca". Escreve crônicas com o título geral parnasianista de elaboração preciosista e purista da linguagem.
"Aventuras do Cotidiano", no "Comício", "semanário Suas idéias combativas aparecem até mesmo em trechos que
independente" fundado e dirigido por Joel Silveira, Rafael podem ser entendidos como pequenas digressões dentro das
Correia de Oliveira e Rubem Braga. Colaboração com a revista narrativas de diversos contos de Urupês). Defensor de um estilo
"Manchete" a partir do primeiro número, que se prolongará por mais simples, prático, direto, sem elucubrações lingüísticas,
15 anos, a princípio sob o título "Damas e Cavalheiros", chega até mesmo a aproveitar o andamento coloquial brasileiro
posteriormente "Sala de Espera" e "Aventuras do Cotidiano". dentro de sua narrativa, o que o torna embrião de feitos vistos
Em 1954 faz campanha política no Recife e em Fortaleza, a em obras importantíssimas do Primeiro Tempo Modernista,
convite de Carlos Lacerda. Lança tradução do dicionário de como Macunaíma, Memórias Sentimentais de João Miramar,
Gustave Falubert. Viaja pelo sul do Brasil em companhia de Brás, Bexiga e Barra Funda e Libertinagem. É só notar
Millôr Fernandes. Em companhia de Otto Lara Resende, então expressões como “Filho homem só tinha o José Benedito,
diretor da "Manchete", antecipa em entrevista pessoal e d’apelido Pernambi, um passarico desta alturinha” ou “E a prova
exclusiva o lançamento da candidatura do General Juarez foi roncarem logo p’r’ali como dois gambás”, dois exemplos
Távora à Presidência da República. tirados a esmo do conto A Vingança da Peroba.
Juscelino Kubitscheck, governador de Minas Gerais, também Outro aspecto moderno é a construção de uma metaforização
candidato à Presidência, o convida para jantar no Palácio nova, em certos aspectos inusitada, se comparada ao padrão
Mangabeiras, em 1955. Decepcionado com a conversa, assume parnasianista então em moda, mas mais comum no movimento
no "Diário Carioca" a cobertura da agitada campanha de Juarez que surgiria praticamente meia década depois desse livro de
Távora. Viaja por todo o país — mais de 150 cidades — em Lobato.
companhia do mineiro Milton Campos, candidato a vice. Prefácio da 2ª Edição de Urupês – Explica-se aqui o que levou
Em 1956, publica o romance "O Encontro Marcado", um grande Lobato a produzir seus textos sobre a indolência do caipira.
sucesso de crítica e de público, com uma média de duas Tudo havia começado com um comentário para o jornal em
edições anuais no Brasil e várias no exterior, além de linguagem vazada de emotividade e estilo, o que despertou nos
adaptações teatrais no Rio e em São Paulo. leitores um desejo por mais textos do mesmo quilate.
(...)
O autor faleceu dia 11 de outubro de 2004 na cidade do Rio de ENREDO
Janeiro. A seu pedido, seu epitáfio é o seguinte: "Aqui jaz
Fernando Sabino, que nasceu homem e morreu menino". OS FAROLEIROS
Em 2006, é lançada a 82ª edição de "O encontro marcado". O narrador, em meio a um bate-papo, propõe-se a contar uma
história surpreendente. Relata que, seduzido pelo ar solitário e

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isolado de um farol, consegue realizar seu sonho passando uns Note como a decadência em que a menina mergulha é um
dias nesse local. É quando conhece duas figuras misteriosas símbolo da decadência rural. Note também o colorido da
que não se conversam: Gerebita e Cabrea. O primeiro defende linguagem do contista, que retrata com fidelidade o andamento
a idéia, insistentemente confessada para o narrador, de que o do registro oral de suas personagens, como no trecho “Des’que
segundo está louco. Pergunta então se seria crime se defender caí daquela amaldiçoada ponte”, entre tantos outros.
de um ataque de um maluco matando-o. É uma premonição,
além de deixar nas entrelinhas que o que está para ocorrer tinha A VINGANÇA DA PEROBA
sido premeditado. Pouco depois, os dois mergulham num duelo Mais um conto que critica a decadência rural provocada pela
sangrento, em que Gerebita consegue matar o seu oponente indolência dos fazendeiros. Há aqui uma oposição entre duas
com dentadas na jugular. Quando o narrador abandona o farol, famílias, os Porunga, fortes e de vida bem estabelecida, graças
massacrado por experiências tão carregadas, toma à força de vontade de suas ações, e os Nunes, mergulhados na
conhecimento dos motivos que levaram a essa tragédia. preguiça, desorganização e cachaça. Os dois clãs
Gerebita fora casado com uma mulher chamada Maria Rita, que desentendem-se por causa de uma paca, há muito desejada
o trocou por Cabrea, que também é trocado por outro homem. pelo Nunes, mas que acabou sendo caçada por um Porunga.
Tempos depois o destino fez com que os dois fossem Movido por uma mistura de rivalidade e de inveja, Nunes
nomeados para trabalhar no mesmo farol, passando a resolve finalmente investir em suas terras. Seus esforços têm
estabelecer uma convivência de tensão surda. fruto, gerando uma boa colheita de milho. Resolve então
Não deixe de notar que a narrativa várias vezes se abre para construir um monjolo, pois não quer ficar atrás do seu vizinho
que haja comentários dos ouvintes com o enunciador. É uma em desenvolvimento. Corta uma peroba imensa, que estava na
maneira de o texto não ficar pesado, cansativo. Além disso, divisa das duas terras. Já há aqui motivo de desentendimento,
deve-se observar as técnicas expressionistas (o exagero que que arrefece quando os Porunga resolvem não brigar mais pela
beira o grotesco) e naturalistas (preferência pelos aspectos árvore. Semelhante ao conto “Faroleiros”, há o emprego da
escabrosos do comportamento humano). Finalmente, não se premonição no meio da narrativa. Um aleijado, que havia sido
deve perder de vista que este conto foge ao padrão de Monteiro contratado por Nunes para ajudar na construção do engenho,
Lobato, já que não é regionalista. Passa-se no litoral, ou seja, conta uma história de que certas árvores se vingam por terem
bem longe do seu conhecido Vale do Paraíba. sido cortadas. O fato é que o monjolo é construído, mas todo
torto, produzindo mais barulho do que outra coisa, o que justifica
O ENGRAÇADO ARREPENDIDO o seu apelido: Ronqueira. Decepcionado e envergonhado,
Trata-se da história de Pontes, um típico piadista, que consegue mergulha na cachaça. Um dia, depois que ele e seu filhinho se
arrancar risos nos atos mais simples. Até que um dia resolve ser embebedaram, acaba adormecendo na rede. Acorda com a
sério, desejo que não consegue realizar, pois sempre imaginam gritaria das mulheres de sua casa: o engenho havia esmagado
que é mais uma peça que está pregando. Tenciona, pois, a cabeça da criança no pilão. Irado, Nunes destrói a
arranjar um cargo no funcionalismo público, o que só obterá se machadadas a máquina assassina.
surgir uma vaga, conforme avisa seu padrinho. Resolve, de
forma maquiavélica, atacar Major Antônio, homem UM SUPLÍCIO MODERNO
extremamente sério e que sofre de um aneurisma prestes a Este conto apresenta o estafeta, uma espécie de carteiro, como
estourar por qualquer esforço. Seu plano, pois, é matá-lo com o tipo mais humilhado das cidades do interior. Trata-se da
suas piadas e assim ficar com o seu emprego. No começo história de Biriba, um pobre coitado que acaba se tornando o
parece difícil, devido ao caráter circunspeto do doente. Até que, burro de carga de todas as pessoas de Itaoca, que ainda
depois de muitas pesquisas sobre o gosto humorístico da cometem o desatino de reclamar dos favores que faz para elas.
vítima, consegue dar o golpe fatal. Mergulha, a partir de então, Sua paciência esgota-se a ponto de pedir demissão, mas não o
no remorso, isolando-se de todos. Semanas depois, deixam levar adiante seu plano. Era interesse de todos ter
recuperado, volta à ativa, mas descobre que havia perdido a alguém tão submisso. É quando resolve se vingar, traindo
vaga, pois a demora provocada por seu sumiço forçara a Fidêncio, seu superior. Recebe um pacote muito importante
nomeação de outra pessoa. O protagonista enforca-se com uma para as eleições. Não o entrega, sumindo com ele por dias. É o
ceroula, o que para a cidade acaba sendo visto como mais uma motivo da queda do maioral, provocando a subida do inimigo,
piada. Evandro, que não poupa quase ninguém do antigo governo,
Note como neste conto o psicológico acaba se resvalando para apenas o pobre Biriba, recebido de forma bastante atenciosa.
o patológico, para o anormal, o patético, o exagerado. Observe, Provavelmente desconfiando que tudo iria continuar como
também, que ainda não é aqui que se manifesta o caráter antes, mudados apenas os personagens, some de Itaoca.
regionalista do autor.
MEU CONTO DE MAUPASSANT
A COLCHA DE RETALHOS Essa narrativa é norteada pelos temas do amor e da morte,
Neste conto já se manifesta a temática que tanto consagrou o comuns em Maupassant e grandes elementos vitais de Lobato.
seu autor: a crítica à decadência da zona rural. O narrador faz O narrador, ao passar de trem diante de uma árvore, um
uma visita a Zé para propor-lhe negócios. No entanto, este saguaraji, lembra-se de um crime ocorrido há muito. Tudo havia
recusa, o que revela sua indolência. Esse seu caráter é começado com o aparecimento, nas redondezas daquele
responsável pela decadência e atraso em que se encontra sua vegetal, do cadáver decapitado de uma velha. Investigações
fazenda, reforçada pelo desânimo de sua esposa e pelo caráter são feitas e tem-se como principal suspeito um italiano, que
arredio de sua filha, Pingo ou Maria das Dores. A única firme, consegue se safar, já que não havia provas. Os anos passaram-
forte, é uma velha, verdadeira matriarca. Mas é por pouco se e novos indícios surgem sobre o caso, levando o italiano, que
tempo. Anos depois surge a notícia de que Pingo, verdadeiro havia sumido no Brás, a ser mais uma vez conduzido para a
bicho do mato, havia fugido com um homem para manter uma justiça. Durante toda a viagem de trem, o acusado não deu
relação desonrosa. É a derrocada final. A mãe da moça morre, trabalho algum, mostrando-se por demais submisso. Até o
o pai mergulha mais ainda na decadência e a matriarca já não momento em que o veículo passa diante do saguaraji. É quando
encontra mais motivos para sua existência. O momento mais o sujeito se atira para fora do transporte, sendo depois
tocante é quando ela passa a descrever para o narrador a encontrado morto junto à árvore. Fica a idéia, por muito tempo,
colcha que estava costurando durante anos, toda composta de de que o remorso pelo crime cometido o havia conduzido ao
peças de roupa que Pingo ia usando e dispensando desde suicídio, no entanto, tudo é desfeito quando o filho da
recém-nascida. O último pedaço estava reservado para um assassinada confessa o delito. Mergulha-se, pois, no clima de
retalho do vestido de noiva, que não chegou a existir. mistério à Maupassant.

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POLLICE VERSO Quase como para aliviar a leitura depois de dois textos tão
Narra-se a história de Inácio, alguém que já de criança mostrava pesados, este conto mostra-se mais jocoso. É a história de
um gênio negativo ao gostar de dissecar pássaros. Seu pai, Moreira, dono da fazenda decadente – mais uma vez esse
homem dotado de linguagem empolada (o que o tornava uma tema! – Espiga, que não consegue ser vendida, assim como sua
ilha em seu meio tão pobre intelectualmente) via nesse filha Zilda não consegue arranjar casamento. Até que surge
costume, no entanto, uma tendência para a Medicina e dedica Trancoso, sujeito bem afeiçoado e que se mostra interessado
todas as suas forças em ver seu filho seguindo essa carreira. O em comprar a propriedade. Surpreendentemente, é o primeiro
rapaz acaba realizando o sonho do pai, mas torna-se um que se mostra a elogiar tudo, o que faz com que seja bem
pelintra, mais preocupado em se exibir e conseguir o mais tratado, podendo até cortejar Zilda. Parte, prometendo fechar
rápido possível dinheiro para voltar aos braços da amante negócio em uma semana. Com a demora da resposta, Moreira
francesa, Yvonne, que havia conhecido nos tempos da faz pesquisas, descobrindo que o indivíduo ganhava a vida
faculdade. Seu bilhete de loteria é conseguir cuidar de um andando de fazenda em fazenda, sempre se mostrando
ricaço, Mendanha. Sua intenção não é curá-lo, pois não seria interessado em comprar, o que lhe garantia casa e comida por
tão lucrativo quanto a morte, que lhe possibilitaria cobrar uma alguns dias. O proprietário, frustrado, fica irado. Tempos depois,
quantia exorbitante. Com o falecimento do paciente, a família Trancoso ganha na loteria e retorna à Espiga, dessa vez para
recebe a conta, que acha exorbitante, levando a questão ao comprá-la realmente, mas é recebido com uma surra de rabo de
tribunal. Ali, Inácio conta com o corporativismo, já que os outros tatu. Vai-se, aí, o sonho de vender a fazenda e de casar Zilda.
médicos (tão menosprezados pelo recém-formado) dão-lhe
parecer favorável. Viaja, pois, para Paris, enganando a todos, O ESTIGMA
dizendo que tinha se estabelecido na carreira e estava em Bruno, narrador, conta a história de seu amigo, Fausto, que se
contato com gente do alto quilate da medicina. Estava mais era casou praticamente interessado em dinheiro, já que o
curtindo a vida. relacionamento era o que se chamava “face noruega", ou seja,
semelhante ao lado de uma vegetação em que não bate sol.
BUCÓLICA Tudo se complica quando o marido se envolve com uma prima,
Outro conto regionalista que critica a “lassidão infinita” da zona Laurita, muito mais jovem do que a sua esposa. Até que a
rural. Narra-se o atraso em que vivem Veva e seu marido, Pedro mocinha aparece morta com um tiro no peito. Suspeita-se que
Suão. Os dois têm uma filha, Anica, deficiente. Esse é o motivo tenha se suicidado e o narrador chega a pensar que de remorso
que faz sua mãe tratar-lhe mal, desejando a morte da pequena, por manter um relacionamento adulterino. Tempos depois, o
já que não vê utilidade em sua existência quase paralítica. O filho de Fausto nasce, apresentando uma marca no peito, na
clímax, temperado a doses de crueldade absurda, está no relato mesma região que Laura havia atingido para pôr fim a vida.
que Libória, a empregada do casal, faz ao narrador. A menina Desenvolve então a teoria de que aquela criança, quando feto,
havia morrido de sede, pois a mãe havia-lhe negado água, fora a única testemunha do crime cometido por sua mãe. Em
mesmo sabendo que a coitada estava com febre. O mais trágico outras palavras, não houve suicídio, mas um crime passional e
é que a única que atendia às vontades da enferma era a criada, a criança veio ao mundo para denunciar sua progenitora. Assim
que naquele momento estava retida fora da casa graças a uma que vê esse sinal, mostra para a esposa, dizendo: “Olha,
chuva torrencial que aparecera. O funesto está no fato de a mulher, quem te denuncia!”. Em pouco tempo está morta. O
mocinha ter se arrastado até o pote d’água, morrendo ao pé narrador, que visita a personagem muitos anos depois, pôde ver
deste. o sinal e descobrir que era tudo ilusão, pois não havia como a
Note como o título do conto estabelece uma gigantesca ironia marca presente no peito da criança provar ou mesmo denunciar
com relação ao seu conteúdo. qualquer coisa.

O MATA-PAU VELHA PRAGA


A história deste conto é introduzida por meio da simbologia do O artigo que transformou um “fazendeirinho” em literato
mata-pau, planta que surge discretamente numa árvore, mas disserta, de forma indignada e irônica, sobre o atraso do
que com o tempo cresce a ponto de sugar-lhe toda a seiva. comportamento do caboclo, que praticamente põe toda a
Estabelece-se, pois, relação com Elesbão e Rosa, que há muito validade do solo e da agricultura a perder por causa de seu
queriam um filho, mas não conseguiam. Até que no meio de costume bárbaro de realizar queimadas.
uma noite surge uma criança na terra deles. Adotam-na,
batizando-a de Manuel Aparecido. Quando cresce, acaba tendo URUPÊS
um caso com a madrasta. Dominado por sentimento Este é um dos mais famosos textos de Monteiro Lobato. Nele,
malignamente possessivo, mata o padrasto e depois consegue desanca uma crítica das mais ferozes que já se fez sobre
fazer com que Rosa passe a fazenda para o nome dele. Vende qualquer tipo nacional. O alvo de seu ataque é o caboclo.
tudo e some com o dinheiro, não sem antes trancar a ex-amante Derrubando uma tradição cara, inaugurada por José de Alencar,
em casa, que incendeia. A sorte dela é que, além de conseguir que apontava como a mestiçagem do índio com o branco como
escapar, enlouquece, o que é-lhe um alívio, pois não tem noção geradora de uma nação forte, Lobato crê no contrário. Sua
da miséria em que caiu a sua vida. teoria institui a tese do caboclismo, ou seja, a mistura de raças
gera um tipo fraco, indolente, preguiçoso, passivo. Sua religião
BOCATORTA manifesta-se por meio das mais primitivas formas de
Conto carregado de elementos macabros e expressionistas. É a superstição e magia. Sua medicina é mais rala ainda. Sua
história de Bocatorta, uma figura hedionda e deficiente que vive política é inexistente, já que vota sem consciência, conduzido
isolado no meio do mato. Sua biografia é relatada numa reunião pelo maioral das terras em que mora. Seu mobiliário é o mais
familiar, o que desperta a curiosidade em vê-lo. Uma das escasso possível, havendo, no máximo, apenas um banquinho
meninas, Cristina, fica com medo, mas acaba indo, encorajada (de três pernas, o que poupa o trabalho de nivelamento) para as
pelo noivo. Assolada pelo medo e fragilizada pela mudança de visitas. Não tem sequer senso estético, coisa que até o homem
clima que ocorre durante a viagem, fica doente, terminando por das cavernas possuía. E quanto à produção, dedica-se apenas
morrer. Mais tarde, um rapaz que gostava muito dela percebe a colher o que a natureza oferece. É, portanto, o protótipo de
algo estranho no cemitério e corre para pedir ajuda. Quando tudo quanto há de atrasado no país.
todos chegam lá, descobrem Bocatorta violando o cadáver da
moça, em pleno ato de necrofilia. Acaba sendo perseguido,
morrendo afogado num atoleiro que existia lá por perto. 3) MELHORES CONTOS
MACHADO DE ASSIS
O COMPRADOR DE FAZENDAS

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TEORIA DO MEDALHÃO DONA BENEDITA


Um pai dá ao filho Janjão dicas de como proceder na Dona Benedita está com 42 anos, um padrão de bons
sociedade. Diz para nunca ter idéias próprias, escondê-las até a costumes. O marido mora no Pará, dizem amasiado com uma
morte. Sobre a publicidade, é necessário puxar o saco das viúva. A filha, Eulália, tem dezoito anos.
pessoas com pequenos mimos. Ë interessante citar frases de Dona Maria e o cônego começam a freqüentar a casa de Dona
efeito e clássicos, como “Antes das leis, reformemos os Benedita, porque querem casa o filho de Dona Maria (
costumes”. Pede ao filho para que fuja de tudo que possa Leandrinho) com Eulália. Dona Benedita aprova o namoro e diz
cheirar originalidade e reflexão. Termina com a seguinte frase que vai escrever uma carta para o marido, pedindo autorização.
“A conversa de hoje vale mais que o Príncipe, de Maquiavel. Eulália convida a mão para uma festa. Dona Benedita conhece
um oficial da marinha e os dois conversam bastante. O oficial
O ESPELHO quer ir à casa de Dona Benedita para uma visita, o que é
Quatro cavalheiros discutiam, quando Jacobina, um deles, falou prontamente aceito. O oficial pede a mão de Eulália para Dona
sobre as duas almas que o homem possui. Para defender a tese Benedita.
das duas almas, Jacobina conta um caso que aconteceu com Após alguns anos, Eulália, o marido e o filho partem. Dona
ele há anos. Foi nomeado alferes, todos na família estavam Benedita pensa em casar novamente. Aparece-lhe uma fada e
contentes. Convidado a passar alguns dias na chácara de uma lhe diz”casa, ...não casarás...se casas...casarás...não
tia, levou sua farde de alferes. A tia teve que se ausentar por casarás...e casas...casando...”. Meu nome é Veleidade,
uns dias, ver uma parenta doente. Os escravos fugiram. concluiu, e sumiu na noite.
Jacobina ficou sozinho. Ao se olhar no espelho, não via a sua
própria imagem. Só a viu com nitidez quando vestiu a sua farda VERBA TESTAMENTÁRIA
de alferes. Um narrador em terceira pessoa conta a história de Nicolau. De
início, diz ao leitor que, apesar de muito rico, Nicolau
O SEGREDO DO BONZO encomendou o seu caixão de morte, para a indignação da
O narrador diz que o narrado se passou na cidade de Fuchéu, família, a um simples marceneiro, Joaquim Soares.
em 1552. Ele estava passeando com Diogo Meireles, que Na infância, Nicolau, por ser muito danado, apanhava muito de
traduzia o que ouvia pelas ruas. Diogo Meireles disse que ouviu seu pai. Certa vez, o vice-rei deu títulos a quem ajudasse
um tal de Patimau afirmar que havia descoberto a origem dos financeiramente na construção de um cais. Um menino foi
grilos. A população tratou Patimau como um Deus. Outro nomeado alferes, causando a fúria de Nicolau, que lhe rasgou a
habitante, conhecido como Langaru, afirmou ter descoberto o farda. Nicolau também agredia os meninos ricos da rua ou nos
princípio da vida na gota de sangue de uma vaca. Titané, outro alunos adiantados na escola.
nativo, afirmou que os dois estavam divulgando uma nova Na adolescência se envolve com amigos antipáticos, vulgares e
fórmula. Diogo Meireles e o amigo foram procurar um grande ínfimos. Nicolau adorava os bajuladores, dava-lhes dinheiro,
filósofo, chamado Pomada, que tinha 108 anos e lhes explicou a mimos.
nova doutrina. Como nunca trabalhou, Nicolau decidiu entrar para a política e
Uma doença atacou a cidade, os narizes das pessoas ficavam em 1823 tornou-se constituinte. Casou-se, mas a mulher logo
inchados. A partir do que havia aprendido com o filósofo, Diego morreu.
Meireles começou a pregar uma nova medicina. Persuadiu os Para surpresa da família, despediu o cozinheiro que o atendia
doentes a aceitarem um nariz invisível. Todos retiraram os há anos e solicitou a Joaquim Soares, em seu testamento, a
narizes inchados e receberam um nariz invisível. Diogo Meireles confecção do caixão. Morreu em 1855, com 68 anos
foi aclamado pela população.
A SERENÍSSIMA REPÚBLICA
O ANEL DE POLÍCRATES Um narrador, numa conferência, fala sobre uma descoberta que
Dois homens, A e Z discutem sobre um outro, chamado Xavier, fez: decifrou o sistema de linguagem das aranhas.
muito rico, gastava bastante, gostava das rodas da sociedade. Diz que descobriu uma nova espécie araneída e que a agrupou
Um belo dia, de tanto gastar com suas excentricidades, ficou socialmente. Deu-lhes um tipo de governo, como uma república,
pobre. à maneira de Veneza. Logo se fez uma eleição, mas foi anulada
Xavier viu um cavaleiro domar um cavalo e percebeu que todas por fraude.
as pessoas ficaram admiradas. A partir daí, criou uma teoria Na outra eleição, aparecem dois importantes candidatos:
baseada na idéia de que os homens deveriam se assemelhar Hazeroth e Magog, chefes do partido retilíneo e do partido
aos cavaleiros. Mesmo que não pudessem domar a vida, curvilíneo. Nenhum dos dois foi eleito.
deveriam transmitir a idéia de que a domavam. Fez-se uma eleição para escolher um cobrador de impostos.
Outra teoria do Xavier era a do anel de Polícrates, rei que Surgiram como candidatos Nebraska e Caneca. Apareceu um
governava a ilha de Santos e jogou seu valioso anel ao mar, filólogo e discutiu o nome dos dois candidatos. Também
mas conseguiu recuperá-lo, pois um peixe o engoliu e foi parar discutiram a forma do saco que continha os votos, talvez
em sua mesa . Quando Xavier encontrava um amigo, falava-lhe cilíndrico, talvez em forma de uma ampulheta, etc.
de idéias fantásticas e lançava-lhe um “anel”na boca, isto é,
incutia-lhe a idéia que queria transmitir. O ALIENISTA
Pires, um conhecido de Xavier, levou a idéia do cavaleiro para o Simão Bacamarte chega a Itaguaí, no Rio de Janeiro. Casa-se
teatro, Xavier assistiu à peça e foi visitá-lo alguns dias depois. com Dona Evarista, uma viúva de 25 anos, apta a lhe dar filhos.
Pires estava morrendo, apenas lhe disse “Cá vou, meu caro Com verbas da prefeitura, Simão funda uma casa de loucos, a
Xavier, o cavalo xucro ou manhoso da vida deitou-me no chão: casa verde. Começa a internar os doentes das imediações. O
se fui mau cavaleiro, não sei; mas forcejei por parecê-lo bom. primeiro é o Falcão, rapaz de 25 anos, que se julga uma estrela.
Um outro procurava o fim do mundo, pois a mulher o havia
UMA SENHORA abandonado.
Dona Camila tinha 36 anos, era bonita, casada e honesta. A Um outro era escrivão, que se julgava mordomo do rei. Outro se
filha, Ernestina, de dezenove anos, começou a flertar com julgava João de Deus.
Ribeiro, e Dona Camila viu iminente o neto, por isso rejeitou o Como a mulher sentia-se sozinha, mandou-a ao Rio de Janeiro.
namoro. Ribeiro desistiu. Apareceu outro namorado, 27 anos, Para surpresa da população, interna o Costa, um homem que
viúvo, que também se retirou. emprestava dinheiro, e por isso ficou pobre. Depois internou o
Um belo dia, chegou um marido para a filha e um neto para Matheus, porque não saia da janela de sua casa. Martim Brito,
Dona Camila. um rapaz de 25 anos, fez um discurso muito bonito sobre Dona
Evarista. Dias depois, foi recolhido à casa verde. Foram

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recolhidos também o Fabrício, o José Borges, o Chico das Um dia, Camilo recebe um bilhete de Vilela, numa letra
Cambraias, o Gil Fernandes. A cidade ficou vazia. estranha; “Vem já, já a nossa casa; preciso falar-te sem
Fez-se uma rebelião, comandada pelo barbeiro Porfírio. A demora.” Camilo vai até a casa de Vilela, mas sua carroça
revolta foi denominada Canjica, em homenagem ao barbeiro. Ao quebra em frente à casa da cartomante. Ele desce e vai falar
tomar o poder, a primeira coisa que Porfírio fez foi pedir apoio com a mulher. Ela lhe diz que ninguém sabe do caso, “pode ir
ao derrotado, Simão Bacamarte. Crispim Soares, amigo de sossegado”, Chama-o de “ragazzo innamorato”. Camilo chega a
Simão, afastou-se dele, por covardia. casa, percebe o cheiro de pólvora no recinto, vê Rita morta.
Simão reabre a casa verde e interna a dona Evarista, sua Vilela lhe deu dois tiros de revólver.
esposa. Com medo, os vereadores tentam apresentar um
projeto que impeça o internamento de representantes da A CAUSA SECRETA
Câmara. O vereador Galvão se opôs veementemente, por isso Garcia e Fortunato ajudam um negro que foi esfaqueado,
foi internado por Bacamarte. Golveia. O negro visita Fortunado, para agradecer. Este o
Um belo dia, Simão Bacamarte solta os presos e se interna na humilha. Após alguns anos, Garcia reencontra Fortunato,
casa verde. casado. Maria Luísa, sua esposa, vivia sozinha, pois Fortunato
montou um hospital.
CONTO DE ESCOLA Numa das cenas do livro, Garcia e Maria Luísa viram Fortunato
O narrador, de nome Pilar, conta o que lhe aconteceu na escola. deliciar-se ao matar um rato lentamente. Os dois se espantaram
Um aluno da sala, Raimundo, pede ajuda a Pilar, pois tinha com a frieza. Fortunato chamou a mulher de fraca.
dificuldades em algumas matérias. Em troca, Pilar recebia Após algum tempo, a mulher morreu. Garcia chorou
algumas moedas. Curvelo, um outro aluno, observava copiosamente. Fortunato ficou feliz com a dor do amigo.
atentamente.
O professor, pai de Raimundo, descobriu tudo e aplicou a UNS BRAÇOS
palmatória em Pilar. O narrador aprendeu duas lições, a Inácio, 15 anos, um vagabundo, morava com o pai e com a
corrupção e a delação. madrasta, dona Severina. Um dia começou a olhar para a
mulher do pai com olhares sensuais. Dona Severina desconfiou.
O ENFERMEIRO Numa tarde, ela o olha na rede. Admira seu corpo jovem. Em
O fato ocorre em 1840. Procópio, o narrador, tem quarenta anos sonho, beija Inácio. Inácio também sonha com ela.
e começa a trabalhar para o coronel Felisberto. O velho coronel
era muito chato e às vezes até agredia Procópio. Cansado, o A MISSA DO GALO
narrador mata o velho. A grande ironia machadiana se dá O narrador, Nogueira, tem 17 anos e estava hospedado na casa
quando Procópio descobre que o coronel lhe deixou uma do Escrivão Meneses, casado com Conceição. O escrivão traía
herança. Doa uma parte do dinheiro, sofre um pouco com tal a mulher que fingia não saber dos casos do marido.
situação, mas, com o tempo se esquece do fato. Nogueira convida um amigo para ir à Missa do Galo. Fica
esperando na sala, lendo um romance. Conceição desce e os
NOITE DE ALMIRANTE dois conversam falas ambíguas, cheias de insinuações. Nada
Deolindo Venta Grande se apaixona por Genoveva. Por acontece.
trabalhar na marinha, Deolindo tem que se ausentar por uns dez Depois de alguns meses, sabe que o escrivão morreu e Dona
meses. Prometem fidelidade. Genoveva junta-se com José Conceição se casara com o escrevente do marido.
Diogo.
Ao voltar de viagem, Deolindo sabe do caso e resolve visitar a CAPÍTULO DOS CHAPÉUS
adúltera. Conversam, ele lhe dá brincos. O marinheiro vai Mariana, esposa de Conrado, pede-lhe que não use mais um
embora e não conta nada para os amigos. determinado chapéu. Diz que é feio, deselegante. O marido faz
pouco caso. Na verdade, o pai de Mariana lhe havia falado da
A IGREJA DO DIABO deselegância do chapéu, a filha apenas acatou a vontade do
O Diabo funda uma igreja, mas, com o tempo, os fiéis começam pai.
a praticar alguns pecados, como a bondade e a caridade. O Nas conversas com Sofia, Mariana cita o chapéu. Sofia pede
Diabo pergunta a Deus como isso é possível. Deus lhe fala para não abrir mão, ser forte. No dentista, Mariana revê seu
sobre as contradições inerentes ao homem. primeiro namorado. Conversam sobre frivolidades: festas e
corridas de cavalo.
A SENHORA DO GALVÃO No final do dia, o marido chega com um outro chapéu, aquele
Maria Olímpia recebeu um bilhete e vários outros sobre o caso indicado por Mariana. A mulher pede que use outro, o de antes.
de seu esposo, Galvão, com uma viúva. O marido começa a
chegar atrasado, diz que comprou ingressos para o teatro. Ela CANTIGA DOS ESPONSAIS
ficou muito contente. A viúva estava no camarote ao lado. O conto se passa em 1813. O mestre Romão queria escrever
Maria Olímpia e Galvão começaram a sair bastante. Eram uma música, mas não conseguia. Era feliz em sua orquestra,
festas, teatro, bailes, etc.. Viviam uma nova lua de mel. Um dia, porém queria fazer uma música. Sentia-se frustrado.
o marido descobriu que a mulher lhe ocultava algumas cartas. Morreu sua esposa. Ficou mais triste. Doente, mestre Romão
Quis ler. A mulher recusou. Insistiu. Maria Olímpia lhe entrega tenta escrever a bendita música. Não consegue. Uma mulher
as correspondências. Ele as lê constrangido. Ela diz que são começa a cantarolar uma música. Era ela, a que mestre Romão
bobagens. queria compor. Naquele momento, mestre Romão morreu.
Maria Olímpia, ao ver a viúva em uma festa, diz-lhe: “Ipiranga,
você está uma viúva deliciosa... vem seduzir mais algum UM HOMEM CÉLEBRE
marido?”. As duas romperam para nunca mais. Pestana compunha várias polcas, mas queria compor uma
música clássica. Nunca conseguia. Até que um dia casou-se
A CARTOMANTE com uma cantora lírica, mas de nada adiantou, a criatividade
Vilela era casado com Rita, amante de Camilo. Os três eram não lhe habitava o cérebro.
amigos, mas Camilo, por prudência, pára de freqüentar a casa Pestana era muito famoso, suas polcas faziam sucesso. O seu
do casal. empresário vivia muito feliz com os lucros que Pestana lhe
Rita gosta de ir à cartomante, porém Camilo, um homem cético, dava. Só que tudo isso de nada adiantava, pois o músico não
lhe diz para evitar essas visitas, pois poderiam denunciar o caso era feliz. O seu objetivo era compor uma música clássica.
dos dois.

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A mulher morreu. Pestana resolve passear pelo bairro, para Sales tinha uma esposa que estava muito doente, uma erisipela
aliviar o sofrimento. Escuta uma composição sua tocando numa na perna esquerda. Há cinco dias vive aflito porque o mal não
festa. Fica chateado. se cura e a ciência não dá jeito. Todos comentam que Sales
À beira da morte, Pestana recebe a visita de seu empresário, não quer gastar dinheiro com a mulher.
que lhe pede mais uma polca. Pestana morre bem com os O marido promete trezentos padre-nossos. Depois sobe para
outros e mal consigo mesmo. quinhentos padre-nossos. Depois para mil. Como se fosse um
comércio, tenta comprar um milagre.
EVOLUÇÃO Os outros santos riram um riso modesto, tranqüilo, beato e
Inácio e Benedito eram amigos. Conheceram-se em Vassouras católico. Quando o padre acordou, já era dia claro.
e travaram conversas sobre o transporte férreo. Inácio diz a
Benedito “O Brasil é uma criança que engatinha; só começará a TRIO EM LÁ MENOR
andar quando estiver cortado de estradas de ferro”. Maria Regina possuía a admiração de dois homens ao mesmo
Após alguns anos, os dois se reencontram na Europa. Benedito tempo, Maciel e Miranda. Ela encontrou Maciel durante um
levou muito a sério a conversa dos trens e do progresso. Está acidente, quando uma criança foi atropelada por uma carroça.
na Europa viabilizando projetos para o Brasil. Maciel salvou o menino. Os dois conversaram bastante e
Depois de algum tempo, Benedito torna-se deputado e usava marcaram um encontro à noite.
nas tribunas, as palavras de Inácio : “O Brasil é uma criança que Numa das visitas à casa de Maria Regina, Maciel conversou
engatinha; são começará a andar quando estiver cotado de bastante com sua avó. O que se admirava no rapaz era a sua
estradas de ferro”. conversa interessante, a sua juventude. Nisto apareceu o outro,
o Miranda. Cumprimentaram-se rapidamente. Miranda tinha
O CASO DA VARA cinqüenta anos. Seu rosto era envelhecido. A avó achava-o
Damião fugiu do seminário e ficou na casa de uma conhecida, antipático e aborrecido. Não cabia a comparação com Maciel.
Sinhá Rita. Ela conversa com o padrinho de Damião, João Passaram-se trinta dias depois daquela noite. E mais trinta.
Carneiro, e os dois acham necessário tirá-lo do seminário. Maria Regina não se decidiu. Ela viu-os ir pouco a pouco. Maria
À noite, Damião conhece cinco moças, vizinhas de Rita e se Regina compreendeu que estava acabado.
interessa por Lucrecia, uma das crias de Sinhá Rita. Em sonho, ela escutou “É a tua pena, alma curiosa da
Como Lucrecia não fez o dever de casa, Sinhá Rita decide bater perfeição; a tua pena é oscilar por toda a eternidade entre dois
nela com uma vara. Damião entrega a vara à Sinhá Rita. Em astros incompletos, ao som desta velha sonata do absoluto:
troca, ela ajuda a tirá-lo do seminário. lá,lá,lá.

PAI CONTRA MÃE CONTO ALEXANDRINO


Existiu, no tempo da escravidão, uma máscara que impedia os Capítulo Primeiro – No Mar
escravos de beberem pinga. Havia, também, um ferro que lhes Stroibus e Pítias, dois filósofos nascidos no Chipre, não eram
prendia pelo pescoço, impedindo fugas. Quem perdia um reconhecidos em seu país, por isso viajaram para Alexandria.
escravo, logo publicava um anúncio no jornal. Stroibus defende a tese de que os deuses colocaram nos
O ofício de Cândido Neves era capturar escravos fugitivos. Ele animais as características humanas. Pítias acha engraçado e
se gabava de prendê-los. Dizia-se o melhor caçador de sorri.
escravos. Um belo dia, chegou a paixão e ele se casou com
Clara, moça de vinte e dois anos. Capítulo II – Experiência
Os amigos e os familiares de Clara advertiram que o rapaz não Ao Chegarem a Alexandria, recebem o respeito e a admiração
tinha emprego fixo e eles poderiam passar dificuldades. Clara de todos. Começam a fazer experiências com ratos, para tentar
não se importou e casou com Cândido. Tia Mônica passou a incutir nos homens a desonestidade. Tíbias diz a Stroibus para
ajudá-los. que incuta nos dois a desonestidade.
Cândido quase não arranjava escravos para capturar. Ficou Stroibus começou a fazer experiências com vários ratos,
desempregado um bom tempo. Vieram as dificuldades e as retirava-lhes o sangue, bebia e esperava o resultado. Um belo
humilhações, como o despejo da casa onde moravam, pois não dia, os dois se tornam ladrões, confirmando a tese de Stroibus.
pagaram o aluguel.
Chegou também um filho. Tia Mônica sugeriu que os pais Capítulo III – A Vitória
dessem o filho à roda dos enjeitados, uma espécie de orfanato Stroibus venceu. Dentro de pouco estavam larápios acabados.
para crianças carentes. Cândido resistiu um bom tempo, mas Sumiram três rolos de manuscritos persas, dois de samaritanos,
quando viu que não conseguiriam criar a criança, levou-a para a um exemplar de Homero. Ptolomeu entregou-os à justiça.
roda. No caminho, viu uma negra fugitiva, de nome Arminda. Herófilo, inventor da anatomia, interveio.
Cândido deixou o filho no farmacêutico, perseguiu a fujona e a
capturou, após uma luta. Arminda estava grávida e abortou. Capítulo IV – Plus Ultra!
Cândido voltou ao farmacêutico, recuperou o filho, recebeu cem Herófilo começou a fazer experiência com os dois filósofos.
mil réis e levou o dinheiro para casa. Tia Mônica perdoou a volta Mandou cortar-lhes a mão para verificar onde se localizava o
do pequeno, principalmente por causa do dinheiro. nervo do latrocínio. E continuou a rasgá-los fibra por fibra,
Nem todas as crianças vingam, pensou Cândido. durante oito dias.
Os ratos celebraram esse caso com danças e festas,
ENTRE SANTOS convidaram cães, rolas, pavões e outros animais ameaçados
Um padre velho conta uma aventura extraordinária. Um dia, pelo igual destino.
antes de dormir, foi verificar algumas luzes na igreja. Percebeu
que alguns santos estavam conversando. São José, São O CÔNEGO OU METAFÍSICA DO ESTILO
Miguel, São Francisco de Sales e São João falavam cobre as Matias, um cônego, fui incumbido de compor um sermão. No
implorações dos fiéis naquele dia. começo não gostou da idéia, depois de alguns minutos já
São Francisco quer contar um caso interessante. Antes São trabalhava com amor.
José falou de uma mulher que confessou o pecado da Luxúria. O narrador sugere que entremos na cabeça de Matias. Quer
São Francisco retoma a palavra e fala de um tal Sales, que era saber onde nascem os substantivos e adjetivos, e qual a relação
conhecido como muito avarento, não gastava com nada. entre eles. O narrador dá o nome de Sílvio e Sílvia ao
Quando uma de suas escrava morreu, enterrou-a como substantivo e ao adjetivo. Diz que estão unidos por laços
indigente para não ter despesas. sexuais. Enfim Silvio achou Sílvia. As idéias brotaram na cabeça
do cônego. O sermão estava pronto.

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Que é como comparo o papel que o senhor Fernando Henrique


O DICIONÁRIO Cardoso faz. Ele está entregando o Brasil! É um governo que
Bernardino tomou o poder e seu primeiro ato foi abolir a vende a pátria! Isso aí não há a menor dúvida...”
tanoaria. Para não se indispor com os tanoeiros, distribuiu-lhes Recuperando esse discurso do falecido político que se faz valer
títulos de magníficos. da historiografia para ilustrar seu discurso, lembramos da
Com o tempo começou a decretar leis inusitadas: todos os seus interessante obra “A teia do fato”, de Carlos Vesentini. Nela, o
súditos deveriam ser calvos, todos os sapatos do pé esquerdo autor discute sob o ponto de vista teórico-metodológico a
deveriam ter um calo, todos deveriam usar óculos, etc. memória histórica enquanto campo de luta entre vários agentes
Um dia, apaixonou-se por Estrelada, mas ela gostava de um sociais.
poeta. Decretou que o homem que fizesse a melhor poesia se Ele explica, em seu livro, que idéias como “Calabar, o traidor”
casaria com Estrelada. Apareceram cerca de 20 concorrentes, e vão se construindo a partir das lutas de representações durante
o homem por quem Estrelada era apaixonada ganhou o as disputas de poder. Afirma, ainda, que “Como vencedor, a
concurso. Bernardino mandou cancelar. Fez-se outro concurso, apropriação da idéia garante-lhe legitimidade para dirigir a obra,
mas agora só com palavras velhas, com mais de 300 anos. O a ser, como ainda faculta-lhe cindir o tempo, instaurando um
poeta amado por Esmeralda ganhou novamente. passado capaz de caracterizar um vencido, abrir um futuro, e
Bernardino, agora chamado de Bernadão, solicitou outro localizar uma realização”.
concurso, agora com palavras modernas. O poeta ganhou mais Assim, quando refletimos sobre a formação da memória
uma vez. Bernadão mandou dois de seus ministros histórica, nos perguntamos: quem merecerá ser lembrado pela
confeccionarem um novo dicionário, decorou as palavras e História? Afinal, quais os critérios para classificar um traidor? E
solicitou um novo concurso. O poeta, apesar dos poucos dias quem são, de fato, os heróis e os vilões?
que teve para estudar o novo idioma, ganhou o concurso. Revisando a historiografia brasileira, Chico Buarque e Ruy
Bernadão mandou cortar a mão dos dois ministros. Guerra, apropriam-se do processo histórico brasileiro, seguindo
o rastro artístico de espetáculos como Arena conta Zumbi e
Arena conta Tiradentes, inspiradas nas obras do dramaturgo
4) CALABAR, O ELOGIO DA TRAIÇÃO - 1973 alemão Bertolt Brecht, para expor alegoricamente as mazelas
CHICO BUARQUE E RUY GUERRA políticas e sociais de uma época.
Recordando a assertiva de Carlos Queiroz Teles que afirmava
Local: Arraial de Bom Jesus - Pernambuco que “se for fazer peça histórica, precisa admitir rigor histórico”,
Tempo: 1630 – 1654 percebemos que Ruy Guerra percebeu esta ligação quando
Contexto histórico: Confronto entre portugueses e holandeses afirmou, na época: “Foi preciso frearmos um pouco nossa
pela posse do açúcar em Pernambuco. sapiência, para que a peça não acabasse uma aula e a gente
Estrutura: Dois atos não ficasse ostentando erudição. Mas o que lemos dava para
Os personagens realmente existiram, com exceção de Ana de até para fazer conferências sobre a fascinante e incrível época
Amsterdã. de Calabar”.
Personagens: Este depoimento certamente é um forte indício de que os dois
CALABAR: Apoiava os portugueses, mas preferiu lutar pelos teatrólogos sabiam da importância do rigor histórico na
holandeses. Foi considerado traidor e assassinado pelos confecção da peça, daí a exaustiva pesquisa sobre o assunto.
portugueses. Afinal, como seria possível a dramaturgia resgatar processos
FREI – Durante guerra, às vezes se posiciona a favor dos históricos que não estivessem coadunados com o patrimônio
portugueses, às vezes se posiciona a favor dos holandeses. histórico de seu público? Como escrever sobre a vida e morte
MATHIAS DE ALBUQUERQUE: Colonizador português. de Tiradentes sem falar do enforcamento?
MAURÍCIO DE NASSAU: Colonizador holandês Roger Chartier, importante historiador francês, sobre este
BÁRBARA: Amante de Calabar assunto afirma que “a ficção do teatro não visa a reproduzir uma
ANA DE AMSTERDÃ: Prostituta situação do ‘real’, mas pretende extrair, através da ilusão que
SEBASTIÃO DO SOUTO: Ex-amigo de Calabar, preferiu apoiar ela postula e desmente ao mesmo tempo, os próprios
os portugueses. procedimentos pelos quais, contraditoriamente, o social é
HENRIQUE DIAS: Trabalhava como capitão do mato, caçava os construído”.
pretos fugitivos. A sátira musical Calabar – o elogio da traição, recupera a saga
FELIPE CAMÃO: Índio que apoiou os portugueses. histórica das Invasões Holandesas do século XVII e seus
Personagens secundários: Oficial holandês, escrivão e agente personagens, (momento importante, sobretudo para a
da Companhia das ïndias Ocidentais. historiografia militar) para retratar sentimentos unificadores,
como a lealdade e a traição, que resumiriam o espírito do Brasil
Foi na atmosfera histórica do regime militar que emerge a de 1973, ano em que a peça foi escrita.
fascinante história do homem que abandonou os portugueses O impressionante emprego da alegoria histórica no texto
para auxiliar os holandeses a conquistar parte do Nordeste dramático, neste caso, constrói um campo representativo que
Brasileiro do século XVII, recebendo a alcunha de “traidor” e merece ser analisado. Afinal, a linguagem figurada, durante os
executado em Porto Calvo aos 35 anos, através da peça teatral Anos de Chumbo no Brasil, representou importante estratégia
de 1973, escrita pelas mãos de Chico Buarque e Ruy Guerra de luta política contra a Censura Federal. Pressionados pela
intitulada Calabar – O elogio da traição. ameaça da mordaça na produção cultural brasileira, os artistas
Domingues Fernandes Calabar, este “nome maldito” por onde converteram essa repressão em estímulo criativo.
se gravitam toda a trama da peça, faz parte da chamada história A repressão possui relação direta com a explosão criativa no
oficial (quem nunca ouviu falar, no ensino fundamental, sobre os meio artístico, neste período, bastando para isto ver a enorme
heróis e vilões da Invasão Holandesa no século XVII?), e que, produtividade teatral no chamado “Teatro de Resistência”. A
portanto, como outros “traidores” transitam pela memória peça “Calabar” escrita sob olhos cerrados do AI-5 e a Censura,
coletiva. provoca nos dramaturgos, o emprego de linguagens metafóricas
No caso de Calabar, sua suposta traição é rememorada, em seus textos. Muitos, na forma integral, foram proibidos ou
sobretudo, em assuntos que implicam a relação entre a nação e mutilados, conhecendo a experiência do palco somente muitos
o capital estrangeiro. Para corroborar isto, basta lembrarmos do anos depois.
episódio em que o político Leonel Brizola, em um discurso no Para justificar a hipótese da explosão criativa, ocorrida sob a
diretório do PDT em 2002, denominou o então Presidente da coerção de ditaduras, busquemos a abalizada opinião do
República Fernando Henrique Cardoso de Calabar: “Agora, filósofo do Existencialismo, Jean Paul Sartre que discute essa
vocês sabem, nós temos um Calabar nos tempos modernos. temática relativa à Resistência Francesa, durante a II Guerra

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Mundial, afirmando que: documento histórico, quando podemos identificar no texto


A própria crueldade do inimigo levava-nos até aos extremos de dramático, marcas, códigos, enfim questões de âmbito geral de
nossa condição, obrigando-nos a fazer a nós próprios perguntas um processo histórico, como o patriotismo, formando um certo
que são iludidas em tempo de paz: aqueles de nós – e que paralelismo com a realidade histórica dos dramaturgos, e com
francês não esteve uma vez ou outra neste caso? – que nosso próprio tempo.
conheciam alguns pormenores relativos à Resistência O uso do processo histórico como estratagema artístico para
interrogavam-se angustiosamente: ‘Se me torturarem, conduzir a mensagem da peça, justifica a importância do
agüentarei?’. Assim se punha o próprio problema da liberdade e emprego do passado nos embates políticos e sociais de seu
estávamos à beira do conhecimento mais profundo que o tempo. Le Goff desenvolve a questão do envolvimento do
homem pode ter de si próprio. Porque o segredo dum homem passado na disputa de poderes escrevendo que relativamente
não é o seu complexo de Édipo ou de inferioridade, é o próprio ao pretérito: “Não podemos rejeitá-lo, temos é de o pôr ao
limite da liberdade, é o poder da resistência aos suplícios e à serviço das lutas sociais e nacionais”.
morte. A partir desta relação passado/presente poderemos levantar
Além da questão alegórica que nos surpreende em Calabar, algumas hipóteses que indicariam a rica historicidade que
outro aspecto que nos suscita importantes reflexões, está ligado “Calabar – o elogio da traição” carrega.
à relação passado/presente entre o Nordeste do século XVII e o A luta armada liderada por Calabar durante as Invasões
Brasil de 1973. Holandesas possui relação com a guerrilha durante a Ditadura
Nesse sentido, uma atenção especial se faz necessário na trilha Militar? A revisão de sua história, evidenciada pela questão da
sonora da peça que parece estar perfeitamente associada ao traição, não seria alusiva a Carlos Lamarca, capitão do exército
texto dramático. que desertou no final na década de 1960 para colaborar com a
Há intertextualidade presente nas composições de Chico luta armada contra os próprios militares? Em um depoimento a
Buarque, sua marca registrada, ao lermos que “...a mais breve Regina Zappa, Chico comenta que:
sutileza intertextual, consegue censurar e reverter a postura A idéia da peça era discutir a traição, mas a traição com uma
ideológica e cultural encontradas no texto-fonte”. Sem tirar os finalidade louvável. Era como discutir se o Lamarca, um militar
créditos de Ruy Guerra, Chico, este artesão da palavra, soube que passou para o lado da guerrilha, era ou não um traidor.
transformar em poesia o protesto, ou o protesto em poesia, Havia um paralelo evidente. O interesse era esse na época.
como podemos verificar na música Vence na Vida Quem Diz Mais tarde, a peça foi encenada, mas não tinha mais graça.
Sim em que, se discutem temas candentes daquele período Realmente são fortes os indícios que estabelecem uma relação
como liberdade, tortura e traição: entre Domingos Fernandes Calabar condenado e enforcado em
1635 por traição à coroa portuguesa, com Carlos Lamarca, líder
“Vence na vida quem diz sim. / Vence na vida da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), morto por agentes
quem diz sim. / Se te dói o corpo, / Diz que sim. da repressão militar em setembro de 1971, pouco tempo antes
/ Torcem mais um pouco, / Diz que sim. / Se te da criação da peça, após ser caçado no sertão da Bahia.
dão um soco, / Diz que sim. / Se te deixam Outra hipótese: Chico Buarque e Ruy Guerra não teriam
louco, / Diz que sim. / Se te babam no cangote, intenções desveladas durante a confecção da obra, ao
/ Mordem o decote, / Se te alisam com o refletirem sobre a Ditadura Portuguesa, interrompida poucos
chicote, / Olha bem para mim. / Vence na vida meses depois da publicação da peça? O moçambicano Ruy
quem diz sim, / Vence na vida quem diz sim. / Guerra não teria motivos especiais para discutir a questão
Se te jogam lama, / Diz que sim. / Pra que tanto colonial, haja vista que sua terra natal obteve sua
drama, / Diz que sim. / Te deitam na cama, / independência apenas em abril de 1974, pondo fim no regime
Diz que sim. / Se te criam fama, / Diz que sim. / salazarista em Portugal?
Se te chamam vagabunda, / Montam na Quando a peça foi escrita, do outro lado do Oceano Atlântico,
cacunda, / Se te largam moribunda, / Olha bem Portugal estava na eminência de um movimento militar que
para mim. / Vence na vida quem diz sim, / tinha como objetivo a derrubada do regime do ditador Marcelo
Vence na vida quem diz sim. / Se te cobrem de Caetano e a redemocratização do país, que mais tarde ficou
ouro, / Diz que sim. / Se te mandam embora, / conhecido como Revolução dos Cravos.
Diz que sim. / Se te puxam o saco, / Diz que A partir da frase, mencionada no texto teatral, “o que é bom
sim. / Se te xingam a raça, / Diz que sim. / Se para Portugal, é bom para o Brasil” seria possível buscar na
te incham a barriga / De feto e lombriga, / Nem relação colônia/metrópole equivalência com a relação
por isso compra a briga, / Olha bem pra mim. / Brasil/Estados Unidos na década de 1970? Não seria uma
Vence na vida quem diz sim, / Vence na vida crítica ao chamado “Milagre Brasileiro”, a fantástica aceleração
quem diz sim.” da economia e os altos investimentos em obras públicas, que
nos custaram um vultuoso endividamento externo?
Ou então a emblemática Fado Tropical, com seus arranjos O simbolismo dos “macaquinhos de marfim” célebre imagem
melancólicos e melodia lusitana, que fala sobre patriotismo, representada por três chipanzés, o primeiro com as mãos na
autoritarismo e ingratidão: boca, o segundo com as mãos nos olhos e o terceiro com as
mãos nas orelhas, não denotariam a omissão de algumas
“Oh, minha mãe gentil. / Te deixo, consternado, lideranças nacionais frente à Ditadura?
/ No primeiro abril. / Mas não sê tão ingrata, / Os três primatas não seriam a representação da presença das
Não esquece quem te amou. / E em tua densa três raças brasileiras: Branco (Sebastião Souto), Negro
mata / Se perdeu e se encontrou / Ai, esta terra (Henrique Dias) e Índio (Filipe Camarão), e seus conflitos
ainda vai cumprir seu ideal, / Ainda vai tornar- relativos à identidade nacional que persistem desde o Brasil
se um imenso Portugal.” colonial?
Não estariam criticando a acomodação e o medo da população
Desta forma, fica claro, a partir de um exame lúcido da peça, em relação ao governo autoritário e repressor do presidente
que “Calabar” não pode ser considerado uma obra inocente, e Emílio Garrastazu Médici (1905-1985)? A busca pela identidade
muito menos concluir que o texto está envelhecido. É bom representada por Calabar e Mathias de Albuquerque possui
lembrarmos que o livro está na vigésima quarta edição, relação com os impasses da esquerda e do papel dos
achando-se esgotado nas principais livrarias do país. Isto intelectuais e artistas pós-64?
mostra a contemporaneidade da peça, apesar dos 30 que se A fala de Sebastião Souto, um dos personagens da peça, ilustra
passaram. muito bem esta suposição:
Nesse sentido, fica claro o valor da obra artística como Já estou arrependido do que vou fazer, sem saber porque faço

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e porque me arrependo a cada instante. Queria que as coisas anos de luta entre o teatro e a censura”.
fossem mais imediatas. Queria saber do certo e do errado. Recordemos que a montagem original da peça fora proibida
Queria não ter dúvidas. definitivamente em 1974, depois de meses da chamada
Além do mais, em 1970 o que significava ser herói ou traidor? A “censura econômica”. A produção da primeira encenação de
frase: “Vence na vida quem diz sim” questiona a submissão “Calabar” fora muito trabalhosa, pois o espetáculo contava com
(pretensão da ditadura) e a conivência que se opõe à rebeldia um grande elenco, além da técnica, figurinos e cenários. A
da esquerda a ser combatida? As relações de força e a morosidade da Censura Federal, durante as intermináveis
valorização da obediência, mascarada pelas palavras de ordem exames da peça, provocaram complicações na manutenção
durante a Ditadura, fica evidente na música Você Vai me Seguir: financeira do espetáculo, sufocando a produção da peça.
Por parte dos consumidores da obra, os chamados leitores
“Você vai me seguir / Aonde quer sociais, é possível notar outras interpretações durante a
que eu vá. / Você vai me servir, / recepção a partir do movimento de circulação da peça, nesse
Você vai se agachar, / Você vai caso de “Calabar”. O receptor social produz resignificações a
resistir, partir de sua própria realidade, provocando “reapropriação,
Você vai se acostumar. / Você vai desvio, desconfiança ou resistência”.
me agredir, / Você vai me adorar, / Para nós, refletir sobre a importância da análise da recepção,
Você vem me pedir, / Você vai se fica ainda mais claro quando lembrarmos que após ser liberada,
gastar. / E vem me seduzir, / Me a remontagem da peça “Calabar – o elogio da traição” é
possuir, me infernizar. / Você vai realizada em 1980, mas sem provocar entusiasmo ao público,
me trair, / Você vem me beijar / pois, fica evidente que os receptores sociais já eram outros, o
Você vai me cegar, / E eu vou momento político havia mudado e a normalidade democrática
consentir. / Você vai conseguir / não motivava mais o público.
Enfim me apunhalar. / Você vai me Já para os profissionais do teatro, por exemplo, a não-
velar, / Chorar, vai me cobrir, / Vem encenação da peça “Calabar” em 1973, devido à avaliação da
me ninar, me nina, nina, menina” peça pelos censores, provocou uma repercussão negativa na
classe teatral, e que, supostamente, tiveram que repensar seus
Que tipo de traição estaria sendo elogiada no presente? Afinal, projetos a partir de então.
quem eram os traidores da pátria? Os exilados ou os omissos Pensando, teoricamente, após a censura de Calabar, já em
que permaneceram no Brasil durante o truculento Regime 1974, o acontecimento teria sido apropriado pelos diretores
Militar? Então pensamos no recente 25 anos da promulgação da teatrais, que após serem resignificados, foram transformados
Lei de Anistia, pelo então presidente João Baptista Figueiredo, e em práticas sociais, como a reelaboração de seus planos
percebemos que continua sendo uma lei inacabada. estéticos a partir de então.
É bom não nos esquecermos de que a impunidade, talvez a Nem por isso a resistência democrática foi invalidada na peça,
maior ferida provocada pela repressão militar durante o Regime, pois apesar da censura da encenação, e até mesmo da
ainda continuam expostas. Tanto a punição dos torturadores e proibição da imprensa notificar o nome da peça, a alegoria e a
esclarecimento do paradeiro daqueles considerados poesia do texto ficaram marcados para a posteridade como
“desaparecidos” pelos órgãos oficiais ainda continuam sem armas artísticas de denúncia, como podemos verificar no trecho
desfecho. em que fica claro a reflexão sobre temas como nacionalismo e
imperialismo:
Calabar é morto “para que não diga as coisas que não devem Um dia este país há de ser independente. Dos holandeses, dos
ser ditas” e “...os grandes culpados não estão na arraia-miúda” espanhóis, portugueses...Um dia todos os países poderão ser
seria um indicativo de que os verdadeiros traidores não estariam independentes, seja lá do que for. Mas isso requer muito traidor.
entre a população brasileira e sim representado pelos próprios Muito Calabar. E não basta enforcar, retalhar, picar... Calabar
militares? não morre. Calabar é cobra de vidro. E o povo jura que o cobra
No trecho “eu quase me surpreendo a contestar as ordens que de vidro é uma espécie de lagarto que quando se corta em dois,
me chegam não sei de onde ou em nome de quem” não teria três, mil pedaços, facilmente se refaz.
relação com a insegurança de alguns agentes do governo que, Fica evidente a importância desta peça teatral para a
segundo os autores, ao contrário de Calabar, não seguiam suas compreensão do passado. Calabar – o elogio da traição é um
convicções? exemplo marcante de como a obra artística pode contribuir na
A música “Caminhando (Pra não dizer que não falei das flores)” pesquisa histórica, por proporcionar aquilo que são os
de Geraldo Vandré possui uma estrofe que parece coadunar fundamentos da História Cultural, ou seja, analisar os propósitos
perfeitamente com nossas suposições através da arte – aqui, no caso, o texto teatral - e sua relação
com a realidade em que foi produzido.
“Há soldados armados, amados Todo o esforço na busca pela historicidade da peça Calabar – o
ou não / Quase todos perdidos elogio da traição significa compreender a partir das
de armas na mão / Nos quartéis representações nela contidas, as práticas sociais dela surgidas.
lhes ensinam uma antiga lição / É materializar a importância do estudo da História para
De morrer pela pátria e viver sem compreender o mundo em que vivemos, para que os
razão.” historiadores não sejam meros colecionadores de histórias.
No caso da arte teatral, parafraseamos Carlos Queiroz Teles,
Por fim, o desprezo da interpretação, sob a ótica dos lembrando que história é história, ficção é ficção. Mas
colonizadores, por Calabar não teria relações com os valores recordemos que sendo o texto dramático fomentador de
nacionais pregados pelos militares como lealdade e disciplina? resignificações, como por exemplo, novas práticas sociais, a
O tema é recorrente se observarmos boa parte de alguns peça teatral incorpora em sua materialidade, lutas simbólicas,
manuais de História. Neles, não há reflexão e a história oficial ou seja, a consagração da imagem como instrumento de força
dificilmente é questionada. na sociedade. Esta idéia amplia a área de observação do
Fica evidente como o texto dramático demonstra um excelente historiador, na medida em que ele poderá transitar pelos mais
material de pesquisa, a partir do ponto de vista da estratégia diferentes campos de linguagem.
alegórica, a partir da apropriação do passado, para discutir uma Assim o historiador ao embrenhar-se por estes outros campos
época, através da relação passado/presente. Ainda assim de linguagens poderá ampliar o lugar social da História. Sem
“Calabar”, proporciona outras reflexões, uma vez que a peça essa relação, a produção de conhecimento não teria fins, e,
representou “um dos marcos mais rumorosos de todos esses conseqüentemente, como já afirmamos, desconstruíria sua

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identidade. Biologia do século XIX (darwinismo, lamarquismo) e o


Aproveitando o ano do sexagésimo aniversário de Chico Determinismo (raça, meio, momento).
Buarque, fazemos um convite para a leitura atenta de “Calabar, O sexo é, em O Cortiço, força mais degradante que a ambição e
o elogio da traição”, observando sua historicidade e refletindo a cobiça. A supervalorização do sexo, típica de determinismo
sobre sua contemporaneidade. Seguramente, será uma bela biológico e do naturalismo, conduz Aluísio a focalizar diversas
forma de homenagear este artista que, inegavelmente, procurou formas de "patologia" sexual: "acanalhamento" das relações
através de sua obra “suscitar a renovação” da sociedade em matrimoniais, adultério, prostituição, lesbianismo etc.
que viveu. Na elaboração de O Cortiço, Aluísio Azevedo seguiu, como em
Casa de Pensão (que é bastante inferior), a técnica naturalista
de Zola. Visitou inúmeras habitações coletivas do Rio;
5) O CORTIÇO - 1890 interrogou lavadeiras, sapoeiras, vendedores, cavouqueiros;
ALUÍSIO DE AZEVEDO observou-lhes a linguagem; escutou atento os ruídos coletivos
dos cortiços; sentiu-lhes o cheiro (como na obra de Zola, as
Análise da obra imagens olfativas têm importância na fixação do ambiente,
segundo um processo criado pelos naturalistas); viu-lhes a
O Cortiço foi publicado em 1890, em meio à atividade febril de promiscuidade e notou que as coletividades, apesar de
produção literária a que Aluísio Azevedo se viu obrigado, em divergirem, são ligadas por um estranho sentimento de classe
seu projeto de profissionalizar-se como escritor. Teve de que as une, nos momentos mais críticos, quando são
escrever muitos romances e contos para atender a pedidos de esquecidos os ódios e as divergências. Com toda essa
editores, que procuravam corresponder ao gosto do público “documentação”, criou o enredo em tomo de um problema social
leitor, um gosto marcado pelo pior tipo de romantismo. Por isso, que se tomava mais e mais grave, com a formação de mandes
produziu muita literatura inferior, baixamente romântica, massas urbanas proletárias, constituídas em boa parte pelos
estilisticamente descuidada. Mas O Cortiço tem situação operários dos primórdios da industrialização do país.
inteiramente à parte nessa produção numerosa e quase toda Duas grandes qualidades devem ser observadas no estilo de O
sem importância, pois neste livro Aluísio pôs em prática os Cortiço: uma é a grande capacidade de representação visual do
princípios naturalistas, em que acreditava, e toda a sua autor, certamente relacionada com sua habilidade para o
capacidade artística. desenho (Aluísio exerceu, em certa época, a atividade de
Narrado em 3ª pessoa, a obra tem um narrador onisciente que caricaturista) e que faz que tenhamos freqüentemente, ao ler o
se situa fora do mundo narrado e/ou descrito. Há um total romance, a impressão de estarmos assistindo a um filme; a
distanciamento entre o narrador e o mundo ficcional. Há o outra é a sua formidável habilidade para dar vida à multidão, ao
predomínio na narrativa do discurso indireto livre, o que permite grande grupo humano dos moradores do cortiço. De fato,
ao autor revelar o pensamento das personagens. A visão do vemos, no romance, essa coletividade pulsar, reagir, legando-
narrador é fatalista pois as camadas populares são vistas como se, deprimindo-se ou irando-se — e ocupando o lugar de
animais condenados ao meio social que habitam, homens personagem central da obra. Desse grupo variado e animado
fadados a viverem como animais selvagens. destacamse alguns tipos, a que o romancista soube atribuir urna
O cenário é descrito com ambiente e os caracteres em toda a individualidade marcante. Entre estes últimos, é inesquecível a
sua sujeira, podridão e promiscuidade, com uma intenção crítica figura de Rita Baiana, a bela, sensual, generosa e graciosa
- mostrar a miséria do proletariado urbano - sem esconder a mulata, que se tornou uma das personagens mais notáveis da
náusea que o narrador sente diante da realidade que revela, literatura brasileira. Deve se notar que no romance, as mulheres
mas posicionando-se de maneira solidária junto ao povo do são reduzidas a três condições: de objeto, usadas e aviltadas
cortiço: "Sentia-se naquela fermentação sangüínea, naquela pelo homem: Bertoleza e Piedade; de objeto e sujeito,
gula viçosa de plantas rasteiras ...o prazer animal de existir,... E simultaneamente: Rita Baiana; e de sujeito, são as que se
naquela terra, ...naquela umidade quente e lodosa, começou a independem do homem, prostituindo-se: Leonie e Pombinha.
minhoca a esfervilhar, a crescer,... uma coisa viva, uma geração
que parecia espontânea,... multiplicar-se como larvas no Veja exemplos de descrição realista e objetiva dos tipo
esterco." humanos na obra:
Romance de cunho social, O Cortiço, de Aluísio Azevedo, é o
marco da literatura realista-naturalista brasileira. Uma história João Romão: E seu tipo baixote, socado, de cabelos à
envolvente e sombria de uma habitação coletiva no Rio de escovinha, a barba sempre por fazer, ia e vinha da pedreira
Janeiro do Segundo Império que tem como tema a ambição e a para a venda, da venda hortas e ao capinzal, sempre em
exploração do homem pelo próprio homem. De um lado, João mangas de camisa, tamancos, sem meias, olhando para todos
Romão, que aspira à riqueza, e Miranda, já rico, que aspira à os lados, com o seu eterno ar de cobiça apoderando-se, com os
nobreza. Do outro lado, a "gentalha", caracterizada como um olhos, de tudo aquilo de que ele não pode apoderar-se logo com
conjunto de animais, movidos pelo instinto e pela fome. Todas as unhas.
as existências se entrelaçam e repercutem umas nas outras. O ...possuindo-se de tal delírio de enriquecer, que afrontava
cortiço é o núcleo gerador de tudo e foi feito à imagem de seu resignado as mais duras privações. Dormia sobre o balcão da
proprietário, cresce, se desenvolve e se transforma com João própria venda, em cima de uma esteira, fazendo travesseiro de
Romão. um saco estopa cheio de palha.
No século XIX, os cortiços eram galpões de madeira habitados Albino: Fechava a fila das primeiras lavadeiras, o Albino, um
por trabalhadores não-qualificados. Esses galpões eram sujeito afeminado, fraco, cor de aspargo cozido e com um
subdivididos internamente. O proprietário era geralmente cabelinho castanho, deslavado e pobre, que lhe caia, numa só
português, dono de armazém próximo. Mas havia outros linha, até o pescocinho mole e fino.
interessados: o Conde D'Eu, marido da princesa Isabel, foi dono Botelho: Era um pobre-diabo caminhando para os setenta anos,
de um imenso cortiço, o "Cabeça-de-porco", onde viviam mais antipático, cabelo branco, curto e duro como escova, barba e
de 4 mil pessoas. bigode do mesmos teor; muito macilento, com uns óculos
O romance é de nítido recorte sociológico, representando as redondos que lhe aumentavam o tamanho da pupila e davam-
relações entre o elemento português, que explora o Brasil em lhe à cara uma expressão de abutre, perfeitamente de acordo
sua ânsia de enriquecimento, e o elemento brasileiro, com o seu nariz adunco e com a sua boca sem lábios: viam-lhe
apresentado como inferior e vilmente explorado pelo português. ainda todos os dentes mas, tão gastos, que pareciam 1imados
A obra revela a aceitação de idéias filosóficas e científicas do até ao meio. (...) Atirou-se muito às especulações; durante a
tempo: a redução das criaturas ao nível animal (zoomorfismo) é guerra do Paraguai ainda ganhara forte, chegando a ser bem
característica do Naturalismo e revela a influência das teorias da

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rico; mas a roda desandou e, de malogro em malogro, foi-lhe 6) MADAME POMMERY - 1920
escapando tudo por entre as suas garras de ave de rapina. HILÁRIO TÁCITO

Enredo Madame Pommery é o único romance de Hilário Tácito,


pseudônimo do engenheiro José Maria de Toledo Malta,
O Cortiço conta principalmente duas histórias: a de João Romão nascido em 1885 e falecido em 1951. Homem culto, porém
e Miranda, dois comerciantes, o primeiro, o avarento dono do retraído, pouco produziu no campo da Literatura.
cortiço, que vive com uma escrava a qual ele mente liberdade. Conforme declara expressamente seu narrador, é apenas uma
Com o tempo sua inveja de Miranda, menos rico mas mais fino, crônica, não um romance - truque quase que convencional para
com um casamento de fachada, leva-o a querer se casar com que se atinja a veracidade e se "convença" o leitor.
sua filha (e tornar-se Barão no futuro, tal qual Miranda se torna A obra é a crônica de uma prostituta bem sucedida que "faz a
no meio da história). Isto faz com que ele se refine e mais tarde América", mas que na realidade serve apenas de pretexto para
tente devolver Bertoleza, a escrava, a seu antigo dono (ela se que o narrador trace, de forma bastante irônica e humorística,
mata antes de perder a liberdade). A outra história é a de as características de uma cidade (São Paulo) no momento em
Jerônimo e Rita Baiana, o primeiro, um trabalhador português que se moderniza, em que ingressa em um mundo mais
que é seduzido pela Baiana e vai se abrasileirando. Acaba por civilizado, talvez cosmopolita. É a crítica bem-humorada de
abandonar a mulher, pára de pagar a escola da filha e matar o falsas moralidades, conservadorismos hipócritas e dos
ex-amante de Rita Baiana. No pano de fundo existem várias desregramentos de uma sociedade rica porém provinciana.
histórias secundárias, notavelmente as de Pombinha, Leocádia O romance procura narrar as aventuras da célebre cafetina Ida
e Machona, assim como a do próprio cortiço, que parece Pomerikowski (cognominada Madame Pommery) em São Paulo,
adquirir vida própria como personagem. Vejamos. revelando todo um processo de assimilação civilizatória que
A área suburbana do Rio de Janeiro do século XIX é o cenário tinha como referência a cidade de Paris, na virada do século.
da história de um esperto e pão-duro comerciante português Além disso, a obra possui uma peculiaridade nada desprezível:
chamado João Romão. Comprando um pequeno enquadra-se numa tendência particular da expressão literária do
estabelecimento comercial, este consegue se aliar a uma negra começo do século, justamente aquela que revelava
escrava fugida de nome Bertoleza, proprietária de uma pequena preocupação com a problematização da realidade nacional,
quitanda. Para agradá-la, falsifica uma carta de alforria que colocando-o ao lado dos mais eminentes representantes do que
asseguraria à negra a tão desejada liberdade. O pequeno já se chamou um vez de “Brasil Real”.
estabelecimento, mantido pela esperteza de João Romão e o Mas o fato mais saliente do livro fica por contada dívida que ele
trabalho árduo de Bertoleza, começa a crescer. Aos poucos o possui para com a prosa singularde Machado de Assis. Com
português começa a construir e alugar pequenas casas, o que efeito, são inúmeros os indícios que revelam em HilárioTácito
leva a edificação de um grande cortiço: a "Estalagem São um caudatário de Machado de Assis, sobretudo no que diz
Romão." Logo se ergueriam novas pendências, como a pedreira respeito ao estilo literário. Exemplo claro dessa relação pode ser
(que servia emprego aos moradores) e o armazém (onde os entrevista na utilização de um recurso, pelo autor paulista, muito
mesmos compravam seus artigos de necessidade). O caro a Machado, a saber, aquela espécie tão singular de se
crescimento só não agrada ao Senhor Miranda, dono de um referir ao leitor no decorrer da narração, cooptando-o e
sobrado vizinho. colocando-o como participante ativo do enredo ficcional. Não
Nas casas do cortiço, figuras das mais variadas caracterizações poucas vezes, Hilário Tácito emprega recurso semelhante,
podem ser vistas e apreciadas: entre eles o negro Alexandre, a dando inclusive às passagens desse tipo o desprendimento e
lavadeira Machona, a moça Pombinha, Jerônimo e Piedade ironia semelhantes àqueles empregados pelo romancista
(casal de portugueses), e a sensual Rita Baiana, que desfilava celebrado.
toda a sua sensualidade dançando nas festas. Num desses Madame Pommery, ao lado de suas qualidades literárias, o tom
encontros feitos de música e gritos, Jerônimo se encanta com a parodístico, a linguagem falsamente elevada, "literária", como
dança de Rita Baiana, o que provoca ciúmes em Firmo, amante convém à paródia deste tipo, tem, ainda, um lado documental,
da moça. Há uma violenta briga, e Firmo fere o jovem português como relato da vida noturna de SP/início do século, é a crônica
com uma navalha, fugindo logo depois. Jerônimo vai parar num da vida airada da cidade, com a crítica de valores e costumes
hospital. da época.
Forma-se um novo cortiço perto dali, recebendo o apelido de Madame Pommery destaca-se no universo dos romances que,
"Cabeça-de-gato" pelos moradores do cortiço de João Romão. isolados, desempenharam papel de relevo nas primeiras
Estes, por sua vez, os apelidam de "Carapicus", o que já indica décadas do século, como Mocidade Morta, de Gonzaga Duque,
a competição e a rincha entre eles. Enquanto isso, Jerônimo ou Exaltação, de Albertina Bertha. Além disso, é relevante o
volta do hospital e, numa emboscada, mata Firmo, agora caráter documental que, vez por outra, o romance parece
morador do cortiço rival. Enquanto o jovem português larga a assumir quase que deliberadamente, dando-nos um painel entre
mulher para viver com Rita Baiana, o pessoal do "Cabeça-de- malicioso e humorístico dos anos eufóricos que começavam a
gato" entra em guerra com os moradores do cortiço de João despontar no horizonte. Afirma-se, portanto, como uma obra de
Romão para vingar a morte de Firmo. Um incêndio misterioso auxílio no trabalho de reconstituição da nossa Belle Époque; e,
acaba com o conflito e destrói grande parte do cortiço do velho também, como um esboço singular do mundanismo que, desde
comerciante português. o começo do século, tomava conta da sociedade urbana de São
João Romão reconstrói sua estalagem, que fica ainda mais Paulo e do Rio de Janeiro.
próspera, e se alia a Miranda, com a intenção de freqüentar Os recursos técnicos, como acontece com a tradição deste tipo
rodas mais finas e elegantes e se casar com um moça de boa de romance, são bastante variados, como em um exercício de
educação. O verdadeiro intento do esperto comerciante é a mão técnica literária. Destes, podem-se destacar o tipo de narrador
de Zulmira, filha do novo amigo. Concretizando seu sonho, só escolhido (primeira pessoa-testemunha), os relatos narrativos,
resta agora se livrar do incômodo de sua companheira panorâmicos, rápidos, sem se deter no detalhe psicológico, sem
Bertoleza. Isso se dá através de uma carta enviada aos maior esforço para pôr de pé suas personagens (na realidade,
proprietários da negra fugida, revelando seu esconderijo. Estes pretextos). Uma cena em estilo dramático (formada apenas por
não demoram a aparecer no cortiço com o intuito de levá-la de diálogos).
volta. Bertoleza, percebendo a traição, suicida-se com a mesma Além dos recursos acima, devem ser destacados aqueles em
faca de limpar peixes que usou a vida inteira para preparar as que se torna mais evidente sua filiação literária. Estão neste
refeições de João Romão e os clientes do seu armazém caso: interlocução, metalinguagem, ironia, alusões (literárias),
citações em itálico, linhas pontilhadas, digressões reflexivas e
estilo dramático.

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A paródia, entre outras formas, aparece em frases latinas de ultrapassados como a cerveja, para uma sociedade “civilizada”
aparência solene, para descrever o ambiente sórdido de um em que o champanhe era consumido corriqueiramente,
lupanar. entrando na vida cotidiana daqueles que queriam ser
reconhecidos como parte da modernidade. Duas passagens do
ASPECTOS IMPORTANTES texto ilustram o argumento:
Como toda obra pré-modernista que se preze, a análise dos Vendia-se cerveja, arvorada em bebida de gente fina, a dois mil-
tipos sociais urbanos, a crítica ágil da hipócrita sociedade réis a garrafa. E achavam caro! O champanha, considerado um
burguesa, numa denúncia da existência de dois Brasis, luxo de nababos, venerava-se nos armários com cerimoniosa
múltiplos em suas riquezas e composições é sempre o cerne de devoção; e apenas descia deles em datas inesquecíveis, com
toda a narrativa. estrondos escandalosos, cujos ecos, dilatados pela fantasia dos
O discurso ágil e os galicismos são típicos ao traçar a sobreviventes, se repetiam por largo tempo nas imaginações e
coloquialidade da fala na escrita. nas conversas (Tácito 1998:21).
O uso do champanha a trinta mil-réis a garrafa devia tornar-se
ESPAÇO / TEMPO compulsório. E a assistência profissional a ninguém seria
Início do século XX. Inicia-se, apenas como relato narrativo, na prestada a menos de cem mil-réis. Os coronéis, em breves
Europa. Desenvolve-se, entretanto como principal espaço da prazos, estariam ensinados e convictos que pagar mais barato é
narrativa, a cidade de São Paulo. Fechado: as principais cenas ignóbil, e não beber champanha uma torpeza. Então beberiam
narrativas dão-se no recinto de Au Paradis Retrouvé. champanhadas e pagariam satisfeitos; pois esta casta de tipos
O tempo é acelerado até o momento em que a Madame se não cede por nenhum preço a reputação de finos e dadivosos
instala em São Paulo. Daí em diante o ritmo torna-se mais lento, perante o mulherio (Tácito 1998:56).
com cenas mais compactas.
RESUMO
FOCO NARRATIVO O primeiro capítulo, assim com as muitas interferências do
Narrador-testemunha. Narrado em primeira pessoa sem sua narrador, explica os motivos que o levaram a escrever a história
participação na história. de Madame Pommery. Afirma o narrador que se trata de uma
história verdadeira e narrá-la significa uma tarefa nacionalista, já
PERSONAGENS que muitos não se importam em contar as "altas e maravilhosas
Madame Pommery - ou Ida Pommerikowsky, protagonista, cuja aventuras de Madame Pommery", quem, segundo o narrador,
vida é posta em crônica. Artista de circo, prostituta, cafetina de tem prestado serviços inestimáveis à "desbotucudização" da
luxo, mulher da alta sociedade paulistana. nossa sociedade.
Zoraida - preceptora-cigana, com quem Ida aprende os Depois de afirmar que Madame Pommery existe
segredos da vida que finalmente levaria. verdadeiramente, apresenta-se o passado da protagonista. Ida
Pinto Gouveia - capitalista paulistano, amante temporário de Pommerikowsky, filha de um judeu domador de feras de um
Madame Pommery, quem lhe financia os projetos. circo e de uma noviça de um convento espanhol, vem para o
Muitas prostitutas (nacionais e estrangeiras), freqüentadores Brasil no início do século. Mas, ainda na Europa, sua vida
diversos do Au Paradis Retrouvé (Ao Paraíso Reencontrado), sofreu grandes abalos.
lupanar de Madame Pommery. Consuelo Sánchez, mãe de Ida, abandona o pai e a filha - que
tinha então três anos -, fugindo com um toureador. A menina é
EFABULAÇÃO criada com a ajuda de Zoraida, uma preceptora cigana, e
Filha de um domador de feras, um judeu polonês, e de uma aprende as artes do circo com o pai Ivã Pommerikowsky, de
noviça espanhola, Ida Pomerikowsky, a futura Madame quem herda o gosto pelas finanças. Aos quinze anos, já
Pommery, nasceu em Córdoba ou Cracóvia. Pequena ainda, bastante interessada nas coisas do sexo, Zoraida a inicia nas
sua mãe (judia) a abandona para fugir com um toureiro artes do amor, a pedido do próprio pai.
espanhol. Aos quinze anos já dançava ao pandeiro e lidava com Os planos do pai parecem que se realizariam quando, estando
as feras de um circo. Educada no ambiente circense, não foi em Praga, um ricaço se enamorou de Ida. Mas a menina,
difícil para um velhote ricaço de Praga estuprá-la. O pai de Ida percebendo a intenção do pai em ficar com o dinheiro pago pela
exige do estuprador nove mil coroas, que afinal de contas vão sua virgindade, foge com o cheque de 9000 coroas enquanto o
parar, por mil tramóias, nas mãos da própria Ida. Ela foge e vai ricaço roncava no leito. Zoraida a acompanha. A partir daí, Ida
correr o mundo, como prostituta. inaugura sua vida de prostituição, percorrendo toda a Europa. O
Depois de suas experiências por vários países, quase que por seu "nome de guerra", Madame Pommery provavelmente vem
acaso (contratou uma viagem com um capitão de navio) chega da champanha Pommery, de que tanto gostava.
ao Brasil. Aos trinta e quatro anos, em Marselha, já decaída, mas ainda
Instalada em São Paulo, não se conforma com o atraso da vida desejável, torna-se artista de cabaré. Conhece então o marujo
noturna da cidade e depois de algum tempo monta um Mr. Defer, a quem seduz e com quem viaja para a América do
prostíbulo de luxo, que passa a ser a referência de boêmios e Sul, fascinada com as possibilidades de rápida fortuna
homens da moda. O dinheiro que ganha com tal atividade anunciadas por Defer. Chegou ao Brasil, no cargueiro "Bonne
(cafetinagem) é suficiente para pagar o empréstimo inicial (aliás, chance" e desembarcou em Santos. No hotel em que foi jantar
pagamento em forma de superfaturamento do consumo de com Defer, Madame Pommery encontra Zoraida, com ar de
quem tomara o empréstimo) e ainda lhe resta uma fortuna senhora respeitável, repleta de jóias, acompanhada do marido.
apreciável. Zoraida finge não reconhecer Pommery que, inconformada,
De posse do dinheiro, Madame Pommery, obrigada por razões pede ao garçon explicações sobre o casal da outra mesa. Fica
jurídico-sociais a abandonar a profissão, resolve casar-se e sabendo que se trata de gente importante - Coronel Pacheco
escolhe, para isso, pessoa da mais alta sociedade de São Isidro e Dona Zoraida -, donos de muitas fazendas e influentes
Paulo, situação a que, por sua fortuna, também ascendera. na política. Madame Pommery fica extasiada; percebe as
Nota: Nos anos 1920 houve um progressivo refinamento dos possibilidades da terra em que havia chegado e decide que o
cafés-concerto, transformados em cabarés, onde se dançava Coronel seria seu homem. Despede-se de Defer e ruma para
com as cocottes, jogava-se pôquer e se consumiam drogas da São Paulo, no encalço de Zoraida e Pacheco Isidro. Pretendia
moda. O chope gelado era trocado pelo champanhe francês. Na chantagiar o casal, em troca do silêncio sobre o passado de
obra Madame Pommery esta nova realidade ganha forma na Zoraida.
figura da prostituta que dá nome à obra e que administra um Na metrópole paulistana, Madame Pommery volta ao trabalho:
dos cabarés da cidade de São Paulo. O autor descreve a no Hotel dos Estrangeiros, uma vez mais é uma prostituta e
passagem de uma sociedade “arcaica”, que consumia produtos artista de cabaré. Encanta a todos, não tanto pela sua beleza

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física, já quase desaparecida, mas pela simpatia e comicidade. freqüentar o Bar do Municipal, para manter-se em contato com a
Foi alargando o círculo das amizades, dos admiradores e aristocracia.
percebeu que todos conheciam o casal Zoraida e Pacheco Filipe Mangancha fica irado quando sabe da traição de
Isidro e também o passado de prostituta da colega de outros Pommery mas, como um cirurgião tinha de manter a boa
tempos. Portanto, o plano de Madame Pommery de chantagiar reputação, nada fez a não ser pagar as contas atrasadas.
estava anulado. Restava-lhe arrumar um sócio e fundar uma Começava a fase mais estável e brilhante de Madame
bordel, para ganhar tanto dinheiro que suplantasse a Pommery, ao lado de seu Romeu das Camarinhas.
superioridade de Zoraida. O Paradis Retrouvé tornou-se o ponto de encontro da elite
São Paulo àquela época, Madame Pommery logo percebe, é financeira. Lá se fechavam os negócios que moviam São Paulo.
ainda provinciana, a despeito das modernizações por que Passar pelo bordel de Madame Pommery era sinônimo de
passava. Especialmente a moral, os "bons costumes", o prestígio e de elegância. Em contrapartida, as meninas de
comportamento mantinham-se ainda tradicionais, Pommery e a própria cafetina passaram a freqüentar as
conservadores e hipócritas. Coronel Pinto Gouveia, um dos sessões do cinematógrafo, novidade da fidalguia local. A
enamorados de Madame Pommery, queixava-se da cortesãs, antes confinadas, agora podiam participar da
precariedade e insipidez da vida noturna da cidade, a sociedade, mostrar suas caras ao público em geral, compartilhar
repugnância do meretrício local. Pommery não desperdiçou a de momentos com esposas e filhos daqueles homens que eram
oportunidade e pediu um empréstimo ao Coronel, com o intuito clientes do Paradis Retrouvé. O mundo respeitável das
de fundar uma casa em que bebida cara, o luxo e as tentações senhoras e senhoritas de família se punha em contato com o
da carne levariam os freqüentadores a gastar o que tinham e o mundo da prostituição, que, desde a chegada de Madame
que não tinham. O Coronel, depois de uma noite de amor e Pommery já não era mais vergonhoso. As moças que iriam se
embriaguez que o deixaram descadeirado, concede o dinheiro casar passaram até a receber cursos no Paradis Retrouvé!
pedido: não os dez contos, mas apenas seis. Apesar de se Um único acontecimento desestabiliza a tranqüilidade de
sentir traída, era o início da glória de Madame Pommery, que Madame Pommery. Trata-se da visita de Justiniano
ensinaria São Paulo a valorizar os prazeres da noite. Sacramento, funcionário público que pretende cobrar enormes
Com o empréstimo, Madame Pommery instalou no largo do somas de impostos do Paradis Retrouvé. Mas a sorte estava do
Paissandu, próximo à rua São João o seu Paradis Retrouvé, lado da proprietária. O Coronel Fidêncio Pacheco Isidro, isso
prostíbulo que ficaria logo famoso. Madame Pommery acolhia mesmo, o marido de Zoraida, tinha se tornado um freqüentador
Coronel Pinto Gouveia, mas incomodava-se com o fato de ter do prostíbulo e, por coincidência, era justamente naquela época
com ele uma dívida e queria, logo que fosse possível, safar-se o Ministro dos Impostos. Coronel Pacheco Isidro coloca-se a
do amante e sócio. Os gastos exagerados de Pinto Gouveia, favor de Madame Pommery e, para que Justiniano não criasse
manejados habilmente por Pommery, logo ultrapassaram a mais caso, Chico Lambico, o redator do "Jornal de São Paulo",
soma dos seis contos que o velho homem havia emprestado. onde Justiniano também trabalhava, conta ao corretíssimo
Pinto Gouveia, para piorar a situação, descobre que Pommery funcionário público que o próprio Ministro freqüentava o Paradis
tinha novo amante, Filipe Mangancha. Contrariado, vai-se Retrouvé. Atônito, mas interessado, Justiniano empolga-se por
embora do Paradis Retrouvé e manda pagar o que deve. conhecer o lugar. Maravilhou-se com a sociedade que lá
Madame Pommery havia encerrado seus negócios com o encontrou, ainda que tenha ficado um pouco decepcionado com
Coronel e, agora dona exclusiva do bordel, tinha caminho livre a falta de religiosidade que pôde observar nas meninas. O
pela frente. resultado foi melhor do que se esperava: Justiniano abaixa as
Filipe Mangancha, o novo amante, mantinha no Teatro Cassino taxas do Paradis Retrouvé, conforme pedido de Pacheco Isidro.
um espetáculo de variedades. O teatro era um lugar ideal para Mais ainda: começa a sentir uma vontade irresistível de voltar
Madame Pommery e suas meninas exibirem-se em público. ao bordel, onde gastou todas as suas economias. Madame
Madame Pommery articulava todos os passos que dava. Como Pommery fica comovida com a desgraça financeira de
lembra o narrador, herdara da mãe a disciplina do convento, de Justiniano e pede a Pacheco Isidro que aumente o salário do
modo que estipulou no Paradis Retrouvé normas de convívio funcionário.
que não admitia ver quebradas. Seu objetivo era atingir o lucro - Só faltava uma coisa para coroar a existência de Madame
e isso herdara do pai judeu - e garantir nobreza à profissão de Pommery. Não nos esqueçamos que tudo que fez, toda a
cafetina. Elegância na vida devassa, coisa que aqueles fortuna que acumulou foi para se vingar do desprezo de Zoraida
paulistanos simplórios apesar de ricos não conheciam antes da no encontro que tiveram no restaurante, quando Pommery
chegada de Pommery à cidade. Agora, no Paradis Retrouvé chegara ao Brasil. Faltava uma única coisa: casar-se . Com
tinham a chance de conhecer o melhor estilo de prostituição, isso, entraria de vez por todas no círculo aristocrático
mas deviam também pagar por isso: nada de preços baratinhos, paulistano. Analisou vários possíveis candidatos e
nada de cerveja: champanhe da boa e taxas que pagassem a estrategicamente vendeu o Paradis Retrouvé, para retirar-se à
qualidade dos serviços lá prestados. Se bem que o serviço não vida privada. Era o primeiro passo para a regeneração. Casou-
era lá tão especial assim: suas meninas "vindas da Europa" se? Não se sabe. Mas o narrador - e nós mesmos - ficamos
eram, na verdade, bem brasileiras e de origem bem ordinária; a morrendo de vontade de conhecer como acabou a vida de
champanhe servida não era das melhores e o ambiente não era Madame Pommery.
decorado no luxo que o nome poderia fazer supor. É a simpatia
e o zelo de Madame Pommery e a alegria de alguns 7) MELHORES POEMAS - 1985
freqüentadores, entre eles Filipe Mangancha, que garantem a MÁRIO FAUSTINO
atmosfera exuberante do local.
Um dia Mangancha conversa com um colega, Narciso, em que 1. PREFÁCIO
o primeiro defendia e o segundo atacava a ingestão de bebidas
alcoólicas. Interrompendo a conversa, Madame Pommery Quem fez esta manhã, quem penetrou
chega, dizendo estar passando mal. Levada para o quarto, na à noite os labirintos do tesouro,
verdade foi encontrar-se com seu novo pretendente: Romeu das quem fez esta manhã predestinou
Camarinhas, moço romântico e galante. Madame Pommery já seus temas a paráfrases do touro,
estava cansada de Filipe Mangancha e, além de tudo, a a traduções do cisne: fê-la para
Companhia Paulista de Teatro e Passatempo já tinha decaído e abandonar-se a mitos essenciais,
não mais interessava para Pommery levar suas meninas para desflorada por ímpetos de rara
se exibirem no espetáculo de Mangancha. Tinha chegado, metamorfose alada, onde jamais
portanto, a hora de desfazer-se dele. Ela queria agora se exaure o deus que muda, que transvive.
quem fez esta manhã fê-la por ser

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um raio a fecundá-la, não por lívida Quem não quer ver aqui a serpente que fui?
ausência sem pecado e fê-la ter Não se envolva em sudários a nudez deste crime
em si princípio e fim: ter entre aurora nem pálpebras se baixem sobre o olhar suicida.
e meio-dia um homem e sua hora. Gladiatório, marítimo: na dureza do espaço
final força é pisar com violência.
2. SONETO ANTIGO A cal sobre o sepulcro de meu nome
Esse estoque de amor que acumulei rouba-me a lenda
Ninguém veio comprar a preço justo. um furacão nas ilhas de meu sangue
Preparei meu castelo para um rei destrói-me o dia
Que mal me olhou, passando, e a quanto custo. trombas no mar de lava de meu cérebro
Meu tesouro amoroso há muito as traças partem-me a gorja
Comeram, secundadas por ladrões. cortam-me o grito
A luz abandonou as ondas lassas torcem-me o gesto
De refletir um sol que só se põe a vanguarda do não avança e vence
Sozinho. Agora vou por meus infernos os mercenários físicos debandam –
Sem fantasma buscar entre fantasmas. Fonte de fogo
E marcho contra o vento, sobre eternos dá-me essa Glória
Desertos sem retorno, onde olharás Sarça de fogo
Mas sem o ver, estrela cega, o rastro dá-me o Poder
Que até aqui deixei, seguindo um astro. Cinza de fogo
dá-me esse Reino –
3. BRASÃO Carneiro de mortos que ostentas o abismo e ocultas a Vida
Nasce do solo sono uma armadilha oh a promessa!
das feras do irreal para as do ser Carneiro de corpos que exaltas os ossos e oprimes a Carne
– Unicórnios investem contra o Rei. oh a miragem!
Nasce do solo sono um facho fulvo Carneiro das almas que instalas a treva e expulsas o Espírito
transfigurando a rosa e as armas lúcidas oh armadilha!
do campo de harmonia que plantei. Eu vi um bezerro dourado morrer de abandono.
Nasce do solo sono um sobressalto.
Nasce o guerreiro. A torre. Os amarelos 5. VIDA TODA LINGUAGEM
corcéis da fuga de ouro que implorei. Vida toda linguagem,
E nasce nu do sono um desafio. frase perfeita sempre, talvez verso,
Nasce um verso rampante, um brado, um solo geralmente sem qualquer adjetivo,
de lira santa e brava – minha lei coluna sem ornamento, geralmente partida.
até que nasça a luz e tombe o sonho, Vida toda linguagem,
o monstro de aventura que eu amei. há entretanto um verbo, um verbo sempre, e um nome
aqui, ali, assegurando a perfeição
4. HACELDAMA eterna do período, talvez verso,
Meu desespero é fonte onde as lágrimas boiam talvez interjetivo, verso, verso.
sem achar uma esponja, um cálice que as una; Vida toda linguagem,
meu canto, esta alimária sob o verbo do tempo, feto sugando em língua compassiva
sobre a língua da morte, entre os lábios do inferno, o sangue que criança espalhará – oh metáfora ativa!
Quem não viu essas sombras cavalgando meu fado, leite jorrado em fonte adolescente,
carregando em triunfo as palavras que ergui? sêmen de homens maduros, verbo, verbo.
Porque só por um beijo em seu rosto sem mancha Vida toda linguagem,
fiz de um saco de prata o meu campo de sangue. bem o conhecem velhos que repetem,
Meu desespero é brejo onde os restos borbulham contra negras janelas, cintilantes imagens
do prodígio que fui de penumbra e silêncio. que lhes estrelam turvas trajetórias
E ninguém fere a lira e as palavras que acordo Vida toda linguagem –
marcham turvas, sem som, rumo à cova do olvido. como todos sabemos
É morto, em tumba nova, o meu sonho de vida. conjugar esses verbos, nomear
É morto – mais que morto – exilado, sepulto, esses nomes:
feriram-no em seu lado e na linfa que escorre amar, fazer, destruir,
não há gota de sangue ou promessa de volta. homem, mulher e besta, diabo e anjo
E eu de amor também morro e maculo meu fim e deus talvez, e nada.
de mandrágora eleita raiz dessas cruzes Vida toda linguagem,
Onde os ramos do espinho e dos figos se anulam. vida sempre perfeita,
Que nada chore ou cante aqui, ou que perdoe imperfeitos somente os vocábulos mortos
a memória do dia, o remorso da aurora: com que um homem jovem, nos terraços do inverno,
quando cada sentido negou-se a desistir / contra a chuva,
de marcar o compasso da parábola; tenta fazê-la eterna – como se lhe faltasse
quando esta boca ao verbo contrafeita outra, imortal sintaxe
sonhou guardar o estigma de teu ósculo; à vida que é perfeita
quando este olhar sem lume se fechou língua
à trajetória crua de teus raios; eterna.
quando este ouvido abriu-se derradeiro
à nua cessação de teus apelos; O Poeta Mário Faustino
quando estas mãos sem mácula encontraram A rigor, Mário Faustino dispensa apresentação, mas nunca é
o rastro de teus dedos pelos túneis – demais insistir na sua permanente atualidade e no seu alto nível
oh chama de açafrão, fumo de incenso, de realização literária. Jornalista, poeta, tradutor, crítico literário
jamais fareis tremer estas narinas! e advogado provisionado, foi um dos fundadores da Associação
– Houve turbas e turbas e mais turbas em fuga. Brasileira de Escritores do Pará,pertenceu ao Conselho

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Nacional de Economistas, ocupou o cargo de chefia na Memórias Inventadas: a infância é o primeiro livro em prosa de
superintendência do Plano de Valorização Econômica da Manoel de Barros, composto de pequenos textos poéticos. A
amazonas. Mário Faustino dos Santos e Silva, nasceu em escolha da prosa poética confirma a inclinação de Barros para a
Teresina-Piauí, a 22 de outubro de 1930. poesia, como se, através da obliqüidade desta, fosse possível
Em 1956, passa a morar no Rio de Janeiro, sobrevivendo como alargar as possibilidades do que é narrado, em detrimento da
professor de várias matérias na Escola de Administração mera linearidade da prosa. Assim, da união das duas formas
Pública da fundação Getúlio Vargas. Concomitantemente, surge a expressividade máxima: a união do lírico com o
passou a assinar a página Poesia-Experiência do suplemento narrativo, abrindo uma via mais larga para a expressividade se
Dominical do Jornal do Brasil, mantida de 23 de setembro de desenvolver.
1956 até 1º de novembro de 1958. Somente em 1977 parte Ao valer-se da prosa poética, Barros realiza uma dupla quebra
destes artigos foram compilados pelo crítico Benedito Nunes e de paradigmas: a primeira, quanto ao próprio autor, que foge a
publicados em livro, prefaciado por esse mesmo crítico, pela seu estilo costumeiro, que tradicionalmente elege a poesia
Editora Perspectiva. como forma expressiva; e outra, que toca a fuga do modelo
Em 1959, Mário Faustino foi incorporado ao quadro de clássico de linguagem autobiográfica – a prosa. Dessa forma, a
redatores do Jornal do Brasil. Em dezembro do mesmo ano, prosa poética surge como um elemento por si só difenciador
segue para os Estados Unidos para trabalhar na ONU, onde dentro da obra, já indiciando o caráter inovador e
permanece até 1962. Tendo estagiado em vários jornais da experimentalista do autor.
América do Norte, Faustino falava fluentemente o inglês, Barros centra sua escrita na reconstituição de um percurso
francês, alemão, italiano e espanhol. Realizou importantes existencial centrado na sua relação de descobrimento e de
trabalhos de interpretação para o Museu de Arte Moderna e trabalho com a linguagem, sendo ambos fios condutores para o
continuava ligado a ONU como diretor-adjunto do Centro de desenvolvimento de um dos seus mais recorrentes temas: a
informações, em Nova Iorque. metaliteratura. Desse modo, regressando ao passado na busca
Ainda em 1962, foi editor-geral da Tribuna de Imprensa por por elementos identitários, a literatura e o fazer literário são
curto período. Sua vida, bruscamente interrompida a 27 de constantes que ocupam boa parte da sua narrativa,
novembro daquele mesmo ano, quando o avião em que viajava evidenciando que essa identidade tem como esteio sua relação
com destino ao México, em missão jornalística, chocou-se com com a palavra, ou seja, ele privilegia seu percurso poético em
uma montanha em Las Palmas, subúrbio de Lima-Peru, depois detrimento do pessoal.
de uma escala. Pode-se esperar que, no decorrer da narrativa de Memórias,
seja possível detectar alguma reminiscência que aponte para a
Poesia – Poeta circular, que se reescreve retomando os Cuiabá que viu nascer Manoel de Barros, como ela lhe pareceu
mesmos temas fundamentais, e que também reescreve a na infância e como ficou guardada na memória. Contudo, há um
poesia, Mário Faustino tem uma obra pontilhada de referências. silêncio que relega o espaço à condição de coadjuvante,
Não é só um dos maiores poetas contemporâneos brasileiros, quando não um simples vazio que se enche pela presença do
mas também um poeta por excelência, modelar, por ser o poeta poeta, da palavra ou das coisas desimportantes. A experiência
da experiência do poético, da essência da poesia como pessoal é a principal realidade, ponto central da narrativa. Por
participação e amplicidade, como um complexo emaranhado de meio dela os lugares vão se configurando, a hierarquia espacial
textos e biografias. é alcançada a partir da inserção do menino no meio
Considerado um poeta de síntese e de confluência de circundante; nada é preestabelecido por circunstância outra
linguagem, cultor de versos inventivos, é detentor de um estilo senão seu apego e admiração.
pessoal e inconfundível, que confere unidade e esta variedade Como o critério de intimidade sobrepõe qualquer outro, o quintal
de tratamentos formais,fazendo com que cada poema sempre torna-se maior que o mundo que o circunda, pois é nele que o
remeta ao conjunto, à totalidade de sua obra. Ou seja, como narrador calca sua vivência, sua experiência. Aquilo que vem
seu vasto campo de referências ampliando o próprio espaço da primeiro tem primazia sobre aquilo que o segue; então, se o
linguagem, Mário Faustino, nos remete a um tema que continua quintal vem a ser primeiramente conhecido, isso o faz maior e
atual e presente. mais importante que outros espaços sociais. Desse modo,
Não há dúvida que o concretismo provocou uma quase radical rompe-se com a obviedade das relações que estabelecem
transformação na maneira como Mário Faustino abordava o prioridades e importâncias, instalando-se uma ordem diversa,
poema. E é fácil verificar tal transformação ao se confrontar os baseada na intimidade e na antiguidade e sua permanência.
trabalhos do seu primeiro livro publicado em 1955, O Homem e Ao intitulá-lo "Memórias Inventadas", Barros aponta para uma
sua Hora. Com suas últimas produções, reunindo toda a reflexibilidade entre as três instâncias, uma vez que o
experiência de um poeta que se sobressai por sua cultura desvelamento das memórias, como sendo “a faculdade de reter
extraordinária e um alto sentido de pesquisa da linguagem, as idéias, impressões e conhecimentos adquiridos
elevando o verso àquela tensão decorrente de um conceito de anteriormente”, ou mesmo a invenção delas, via de regra, é
que a poesia é concentração, é alta voltagem. feito, ou por quem viveu os fatos narrados.
Sobre essa influência, Mário Faustino esclarece: “ Não, não sou A memória é faculdade individual que, na sua essência, não
concretista. Minha formação é muito parecida com a dos poetas pode ser compartilhada com mais ninguém. Assim, as memórias
Décio Pignatari, Augusto e Haroldo de Campos e José Lino são contadas sob o único foco possível: o daquele que lembra,
Grünewald, mas certos aspectos e maneira dessa mesma de forma que, ao se saber de algo que não prefigura na
formação, bem como, e sobretudo, certas condições pessoais, memória, tal imagem só se torna viva através de própria
nos colocaram e nos colocam em posição bem distintas, por faculdade memorial de quem ouve; a subjetividade intervém
mais que pareçam aproximadas aos menos informados. Os remodelando o relato, configurando uma outra memória criada a
poetas acima são nitidamente inventores, no sentido poundiano, partir da narração, sendo similar à narrada, as não idêntica. Isso
por mais que este ou aquele venha a ser também um leva Ecléa Bosi a afirmar, ao analisar a memória coletiva e a
mestre”.[1] Portanto, a poesia de Mário Faustino é leitura individual, que por muito que se deva à memória coletiva é o
obrigatória a todo jovem que se disponha a exercer uma indivíduo que recorda.
vocação para a qual não basta o talento, a inteligência, a Tal idéia é reforçada pela escolha do narrador de Memórias:
experiência. prioritariamente autodigético, o que, apesar de não se configurar
como requisito fundamental para o estabelecimento do pacto, é
8) MEMÓRIAS INVENTADAS: A INFÂNCIA - 2003 um índice que aponta para sua firmação, pois, ao dizer eu, o
MANOEL DE BARROS narrador afiança o narrado, por tratar de questão da qual tem
total conhecimento: suas memórias, acentuando a relação de
identidade entre o sujeito da enunciação e do enunciado. Há um

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momento em que a conexão entre o personagem e o autor Quando a Vó me recebeu nas férias, ela me apresentou aos
figura-se numa autoreferência textual explícita, como se pode amigos: Este é meu neto. Ele foi estudar no Rio e voltou de
observar no texto abaixo: ateu. Ela disse que eu voltei de ateu. Aquela preposição
Hoje eu completei oitenta e cinco anos. O poeta nasceu de deslocada me fantasiava de ateu.(2003)
treze. Naquela ocasião escrevi uma carta aos meus pais, que Ao longo das calçadas algumas famílias
moravam na fazenda, contando que eu já decidira o que queria Ainda conversam
ser no meu futuro. Que eu não queria ser doutor. Nem doutor de Velhas passam fumo nos dentes mexericando...
curar nem doutor de fazer casa nem doutor de medir terras. Que Nhanhá está aborrecida com o neto que foi estudar no Rio e
eu queria era ser fraseador. Meu pai ficou meio vago depois de voltou de ateu
ler a carta. Minha mãe inclinou a cabeça. Eu queria ser - Se é pra disaprender não precisa mais estudar. (1937)
fraseador e não doutor. Então, o meu irmão mais velho Há um reaproveitamento de imagens e uma reativação da
perguntou: Mas esse tal fraseador bota mantimento em casa? memória, que sofrerá os acréscimos necessários ao novo texto.
Eu não queria ser doutor, eu só queria ser fraseador. Meu irmão Neste, a expressão “de ateu”, com o sentido de “fazendo-se
insistiu: Mas se fraseador não bota mantimento em casa, nós passar por”, é que será valorizada: Minha avó entendia de
temos que botar uma enxada na mão desse menino pra ele regências verbais. Ela falava de sério.
deixar de variar. A mãe baixou a cabeça um pouco mais. O pai
continuou meio vago. Mas não botou enxada. POEMAS
Ao partir do presente para falar de como deu a notícia da sua
escolha profissional aos pais e da reação que eles tiveram, Obrar
Barros revela detalhes com a intimidade de quem os vivenciou, Naquele outono, de tarde, ao pé da roseira de minha
tecendo uma rede de relações que o liga ao poeta que nasceu avó, eu obrei.
aos treze, fundindo-os na mesma pessoa que, hoje, tem oitenta Minha avó não ralhou nem.
e cinco anos e escreve sua trajetória pessoal. Obrar não era construir casa ou fazer obra de arte.
Esse "eu" que narra reenvia ao nome do autor escrito no Esse verbo tinha um dom diferente.
frontispício do livro, pela ratificação de dados conhecidos de sua Obrar seria o mesmo que cacarar.
vida, como a idade e sua origem camponesa. Isso reforça o Sei que o verbo cacarar se aplica mais a passarinhos
ciclo comutativo, no qual se fundem as figuras do autor, Os passarinhos cacaram nas folhas nos postes nas pedras do
representado pelo nome da capa, do narrador, dito com a voz rio
do autor dentro do texto, e do protagonista, que, por retomar ao nas casas.
narrador, recupera imediatamente o autor. Eú só obrei no pé da roseira da minha avó.
O constante refúgio da memória nos tempos da infância é Mas ela não ralhou nem.
relevante porque, considerando a distância temporal entre o Ela disse que as roseiras estavam carecendo de esterco
tempo da narrativa e o tempo da narração, a infância encontra- orgânico.
se numa dimensão temporal tão distante, que aumenta a E que as obras trazem força e beleza às flores.
possibilidade de reinvenção desse período pelo narrador. Essa Por isso, para ajudar, andei a fazer obra nos canteiros da horta.
perspectiva de redimensionamento, vai se conformando de Eu só queria dar força às beterrabas e aos tomates.
acordo com o desejo do autobiógrafo, enfatizando-se assim os A vó então quis aproveitar o feito para ensinar que o cago não é
traços que ele deseja perpetuar. Tal desejo perpetuativo conduz uma
Manoel de Barros a apresentar ao leitor uma autobiografia que coisa desprezível.
prioriza o seu percurso poético, quase que uma autobiografia Eu tinha vontade de rir porque a vó contrariava os
intelectual. ensinos do pai.
Não que ele liste seus feitos literários, mas na sua escrita é Minha avó, ela era transgressora.
priorizado muito mais o sujeito poético e suas descobertas das No propósito ela me disse que até as mariposas gostavam
possibilidades no uso da palavra, que o sujeito histórico que de roçar nas obras verdes.
circula socialmente pelo mundo. Entendi que obras verdes seriam aquelas feitas no dia.
O uso da memória como fonte para o desenvolvimento da Daí que também a vó me ensinou a não desprezar as coisas
narrativa e a incapacidade desta de dar conta do que realmente desprezíveis
se deu, sendo necessário que se ativem mecanismos a ela E nem os seres desprezados.
complementares para o preenchimento das lacunas deixadas,
engloba em si uma outra questão que perpassa todo o discurso Desobjeto
atinente à escrita autobiográfica até o momento, mas que ainda O menino que era esquerdo viu no meio do quintal um pente. O
não foi devidamente esclarecido: como se apresenta o fictício pente estava próximo de não ser mais um pente. Estaria mais
no texto literário e como ele se relaciona com a realidade perto de ser uma folha dentada. Dentada um tanto que já se
extratextual. havia incluído no chão que nem uma pedra, um caramujo, um
Muito já se falou sobre a prática metalingüística utilizada por sapo. Era alguma coisa nova o pente. O chão teria comido logo
Manoel de Barros o que permite ao leitor acompanhar alguns um pouco de seus dentes. Camadas de areia e formigas roeram
procedimentos poéticos que, freqüentemente, resvalam o humor seu organismo. Se é que um pente tem organismo. O fato é que
e a ironia. O livro-caixa se abre com a afirmação: Tudo o que o pente estava sem costela (...) Perdera sua personalidade.
não invento é falso, o que nos leva à conclusão imediata de que Estava encostado às raízes de uma árvore e não servia mais
essas memórias são, então, verdadeiras. E será Manoel por nem pra pentear macaco. O menino que era esquerdo e tinha
Manoel quem dará as explicações: Eu tenho um ermo enorme cacoete pra poeta, justamente ele enxergara o pente naquele
dentro do olho. Por motivo do estado terminal. E o menino deu pra imaginar que o pente,
ermo não fui um menino peralta. Agora tenho saudade do que naquele estado, já estaria incorporado à natureza como um rio,
não fui. Acho que o que eu faço agora é o que não pude fazer um osso, um lagarto. Eu acho que as árvores colaboravam na
na infância. solidão daquele pente.
A busca de uma memória poética na infância recria um percurso
de invenção próprio da poesia. Como exemplo podemos tomar O poema de Manoel de Barros nos remete ao tempo da
o poema VIII – Cabeludinho. Para situá-lo no jogo intratextual dissolução do objeto e dos múltiplos destinos de um desobjeto.
voltamos ao primeiro livro do poeta, Poemas concebidos sem Um pente, agora convertido em matéria da solidão das árvores,
pecado. Em "Memórias inventadas", Cabeludinho será a em novos devires de rio, osso e lagarto. O artefato se translada
reescritura de partes do poema Cabeludinho, publicado em à natureza e torna-se objeto-ponte, ícone da passagem entre
1937. Comparemos: mundos. E, então, advém uma nova epifania. A coisa

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desobjetificada é içada pelo olhar do poeta na tessitura da trama A liberdade e a puta são as coisas mais cosmopolitas debaixo
narrativa, como causa da instauração de novos sentidos. Assim, do sol.
as palavras, em sua função narrativa, fundam mundos para ***
viver. Mundos verdadeiros, porque inventados. Com a reflexão Mas, afinal, o que é a liberdade? Eu lhes garanto que a
hermenêutica algo semelhante se passa. Os conceitos com os liberdade existe. Não só existe, como é feita de concreto e
quais pensamos o real também criam mundos. E, aqui, cobre e tem cem metros de altura. A liberdade foi doada aos
igualmente poderíamos dizer, mundos verdadeiros porque americanos pelos franceses em 1866. Recebendo a liberdade
inventados. dos franceses, os americanos a colocaram na ilha de Bedloe, na
entrada do porto de Nova Iorque. Esta é a verdade indiscutível.
Até a agora a liberdade não “penetrou” no território americano.
9) LIBERDADE, LIBERDADE - 1965 Quando Bernard Shaw esteve nos EUA foi convidado a visitar a
MILLÔR FERNANDES E FLÁVIO RANGEL liberdade, mas recusou-se afirmando que seu gosto pela ironia
não ia tão longe. Aquelas coisas pontudas colocadas na cabeça
A realidade instalada no Brasil a partir do golpe de 1964 deu um da liberdade ninguém sabe o que sejam. Coroa de louros
novo rumo ao teatro de Millôr Fernandes: defensor do livre certamente não é. Antigamente era costume coroar-se heróis e
arbítrio, ele se torna, desde o início, um ferino questionador do deuses com coroas de louros. Mas quando a liberdade foi
esquema repressor que dominava o país. O primeiro fruto desta doada aos EUA, nós, os brasileiros, já tínhamos desmoralizado
atitude foi Liberdade, Liberdade, peça escrita com Flávio o louro, usando-o para dar gosto no feijão. A confecção da
Rangel. monumental efígie custou à França trezentos mil dólares.
A obra tentou traduzir o inconformismo da nação perante o Quando a liberdade chegou aos EUA, foi-lhe feito um pedestal
arbítrio e a repressão do regime, inaugurando um estilo de que, sendo americano, custou muito mais do que o principal:
espetáculo que viria a ser chamado “teatro de resistência". quatrocentos e cinqüenta mil dólares. Assim, o preço da
Liberdade, Liberdade recorre a 56 personagens para rever e liberdade é de setecentos e cinqüenta mil dólares.
reavaliar este tema, aplicando-o à realidade atual. Em cena, os ***
atores se revezam na interpretação de textos clássicos de Discurso de Hernán Cortez (colonizador espanhol na América):
autores como Sócrates, Marco Antonio, Platão, Abraham “Soldados de Espanha! Antes de tudo há que lutar! As
Lincoln, Martin Luther King, Castro Alves, Anne Frank, Danton, caravelas, mandei-as afundar, para não terdes vós outros
Winston Churchill, Vinícius de Moraes, Geraldo Vandré, Jesus qualquer veleidade de voltar. Há que lutar com as armas que
Cristo, William Shakespeare, Moreira da Silva e Carlos tendes à mão. E se vo-las romperem em violento combate,
Drummond de Andrade, entre outros. então há que brigar a socos e pontapés. E se vos quebrarem os
O resgate dos períodos históricos passa também por 30 braços e as pernas, não olvideis os dentes. E se havendo feito
canções ligadas ao assunto, interpretadas ao vivo por uma isso, a morte chegar, mesmo assim ainda não tereis dado a
banda musical. Nas palavras de Cecília Meirelles, também parte última medida de vossa devoção, não! é preciso que o mau
do texto, o espetáculo trata da “liberdade, essa palavra que o cheiro de vossos cadáveres empeste o ar e torne impossível a
sonho humano alimenta, que não há ninguém que explique e respiração dos inimigos de Espanha!”
ninguém que não entenda”. - Acho que vou me mudar para os EUA.
A colagem de textos de vários autores numa peça de - EUA? por quê?
dramaturgia já era adotada no teatro moderno, mas, à época no - Vou viver na matriz.
Brasil, se constituía numa novidade. ***
Embora bastante questionado na época, por ser mais um show - Eu não sei por que vocês reclamam tanto. Eu acho que o país
do que propriamente uma peça de teatro, Liberdade, Liberdade está muito melhor.
revelou-se uma iniciativa seminal, que influenciou fortemente a - Melhor como?!
dramaturgia da década. - Muito melhor do que no ano que vem!
***
Resumo Sentença condenatória de Tiradentes:
“Que seja conduzido pelas ruas públicas ao lugar da forca e ali
“Liberdade, essa palavra morra morte natural para sempre e que depois de morto lhe seja
que o sonho humano alimenta, cortada a cabeça e pregada em poste alto até que o tempo a
que não há ninguém que explique consuma: e o seu corpo será dividido em quatro quartos e
e ninguém que não entenda.” (Cecília Meirelles) pregado em postes pelo caminho de Minas, onde o réu teve
*** suas infames práticas. Declaram o réu infame, e seus filhos e
“Não concordo com uma só palavra do que dizeis, mas netos, sendo seus bens confiscados. A casa em que vivia será
defenderei até a morte vosso direito de dizê-las”. (Voltaire, arrasada e salgada, para que nunca mais no chão se edifique.”
filósofo francês) ***
*** Winston Churchill, em discurso ao povo inglês durante a
“Pode-se enganar algumas pessoas todo o tempo; pode-se Segunda Guerra Mundial: “Só posso oferecer-vos sangue,
enganar todas as pessoas algum tempo; mas não se pode trabalho, suor e lágrimas.”
enganar todas as pessoas todo o tempo.” (Abraão Lincoln, ***
presidente norte-americano) Declaração Universal dos Direitos do Homem:
*** “Todos os seres humanos nascem iguais e livres em dignidade
“Se Hitler invadisse o inferno, eu apoiaria o demônio.” (Winston e direitos, sem distinção de raça, sexo, cor, idioma, religião,
Churchill, primeiro-ministro inglês) opinião política.
*** Todo indivíduo tem direito à vida, à liberdade e à segurança de
Conquista do ser humano – o direito ao lazer: sua pessoa.
Hora de comer – comer! Ninguém será submetido a torturas e a tratos cruéis.
Hora de dormir – dormir! Ninguém poderá ser arbitrariamente preso, detido ou
Hora de vadiar – vadiar! desterrado.
Hora de trabalhar? – Pernas pro ar, que ninguém é de ferro! A vontade do povo é a base da autoridade do poder público.
*** Todos são iguais perante a lei.”
“O mal que os homens fazem vive depois deles. O bem é quase ***
sempre enterrado com seus ossos.” (Shakespeare)
***

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Às vezes, no fim de uma batalha, nem se sabe quem venceu; mesmo chamada de romance, As duas órfãs, foi publicada em
ou o vencedor parece derrotado. Galileu Galilei cedeu diante da 1841 (8.º, 35 págs.), dois anos portanto antes do Filho do
Inquisição, mas a Terra continuou girando ao redor do Sol. pescador, de Teixeira e Sousa, que é de fato pelo
*** desenvolvimento e volume o primeiro romance brasileiro. Em
A última palavra em vida de algumas celebridades: 1852 reuniu Norberto essa e mais três novelas sob o título,
impróprio quanto ao primeiro termo, de Romances e novelas,
“O resto é silêncio.” (Hamlet) num volume em oitavo de 224 páginas. São todas de assunto e
“Meu pai, por que me abandonaste?” (Cristo) inspiração nacional. A intuição que Norberto tinha do romance
“Mais luz.” (Goethe) acha-se expressa na sua notícia sobre Teixeira e Sousa:
“Resisto!” (Prometeu) "expandir-se pelas minuciosidades das descrições dos quadros
da natureza, perder-se em reflexões filosóficas e demorar-se
10) ROMANCES E NOVELAS nas trivialidades de um enredo cheio de incidentes para retardar
JOAQUIM NORBERTO DE SOUZA o desenlace da ação principal".
Certamente Teixeira e Sousa nos seus longos romances
Nome completo: Joaquim Norberto de Souza Silva cumpriu mais à risca este programa, aliás da sua índole e gosto;
Nascimento: 06/061820, Rio de Janeiro, RJ Norberto, porém, ainda nas suas novelas o seguiu.
Falecimento: 14/05/1891, Niterói, RJ Norberto publicou várias coleções de poesias, quatro ou cinco
Forma autorizada: Silva, Joaquim Norberto de Souza e pelo menos, além de numerosos poemas que em tempos
diversos saíram em períodicos e não foram jamais reunidos.
Biografia Embora muito apreciados no seu tempo, nenhum só desses
poemas viveu na nossa memória ou sobreviveu ao poeta. A
As bibliografias de Norberto enumeram-lhe cerca de 80 obras história literária é uma impertinente e implacável
diversas, grandes e pequenas, desde 1841 publicadas em desconsoladora da vaidade literária, patenteando a do próprio
volume ou em jornais e revistas, afora prefácios, introduções trabalho das letras e o efêmero e precário da glória
crítico-literárias a obras que editou e outras. No acervo literário contemporânea. Mas no seu tempo, ao menos, não foi de todo
encontra-se-lhe de tudo, poesia de vários gêneros, teatro, vão esse ímprobo labor dos Norbertos, dos Teixeiras e Sousas
romance, biografia, ensaios e estudos literários, administração e de outros companheiros seus na criação da nossa literatura.
pública, história política e literária e crítica. Como Norberto não Eles trouxeram a pedra que por oculta e desconhecida nem por
tinha nem o talento, nem a cultura, pois era um fraco autodidata, isso deixa de ter servido para levantar o edifício.
que presume tamanha e tão variada produção, é ela na máxima Não obstante haver compilado um volume de estudos alheios
parte medíocre ou insignificante. Deste enorme lavor apenas se da língua portuguesa, o que faria supor-lhe particular estudo
salvam, para bem da sua reputação, os seus vários trabalhos dela, Norberto não escreveu bem. Como os escritores seus
sobre as nossas origens literárias, os seus excelentes estudos confrades de escola e companheiros de geração, não teve
sobre os poetas mineiros, a sua grande e boa monografia da mesmo a nossa preocupação de bem escrever, com acerto e
Conjuração Mineira e algumas memórias históricas publicadas elegância. É geralmente natural desataviado, mas não raro
na Revista do Instituto. Por aqueles trabalhos é Norberto, depois também incorreto. Quando se quer elevar a um estilo mais
de Varnhagen, o mais prestimoso e capaz dos indagadores da castigado, guinda-se e cai no empolado e no difuso. Perpetra
história da nossa literatura, um dos instituidores desta. Como menos galicismos do que hoje e do que o vulgo dos escritores
crítico, porém, sacrifica demais ao preconceito nacionalista de portugueses seus contemporâneos. Aliás, os da sua geração
achar bom quanto era nosso, de encarecer o mérito de poetas e incorriam menos nesse defeito que os posteriores.
escritores somenos, no ingênuo pressuposto de servir à causa A sua obra capital em prosa é a História da Conjuração Mineira,
das nossas letras. Ele as serviu otimamente, aliás, menos pelo nada obstante a opinião que dela possa fazer o nosso
que de original produziu, que é tudo secundário, ou por esse sentimentalismo político, uma das boas monografias da nossa
zelo indiscreto delas que fê-las suas conscienciosas literatura histórica. E mais bem ordenada e composta do que é
investigações de alguns tipos e momentos da nossa história comum em livros tais aqui escritos. Além disso, o que também
literária, e publicações escorreitas de algumas obras que não é aqui vulgar, uma obra original, feita principalmente com
andavam inéditas ou dispersas e desencontradiças dos nossos pesquisas próprias e de estudo pessoal.
melhores poetas coloniais.
Concorreu mais para avultar grandemente a produção literária
do seu tempo e geração. Na esteira de Magalhães fez também
poesia americana, cantou os índios, pôs em verso cenas e
episódios da nossa história ou das nossas tradições, e, até, com
pouco engenho e nenhum sucesso, tentou a naturalização da
balada, forma poética por sua singeleza absolutamente
antipática à gente, como a portuguesa e a nossa, de alma
pouco ingênua e que de raiz ama a eloqüência da poesia. Em
Norberto se exagera o espiritualismo sentimental de Magalhães,
e o seu maneirismo poético. Além dos portugueses e brasileiros
lê o pseudo-Ossian, Lamartine, George Sand (ainda então
M.me Du Devant, como a cita), A. de Vigny, Delavingne e
Chateaubriand, Lope de Rueda, Victor Hugo, Parny, Ducis,
Shakespeare. O alimento romântico não lhe tira toda a
substância clássica, e, cedendo-lhe, escreve também uma
tragédia em verso, em cinco atos, respeitando deliberadamente
as regras aristotélicas: Clitemnestra. Das peças que escreveu
Norberto, parece que a única representada, em 1846, e por
João Caetano, foi Amador Bueno ou a fidelidade paulistana, em
5 atos. Também se representaram traduções suas do Tartufo,
de Molière, e do Carlos VII, de Dumas pai, segundo a
informação pouco segura de Sacramento Blake.
Noberto foi mais o criador, se não do romance brasileiro da
ficção novelística em prosa aqui. A sua novela, aliás por ele

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