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EE nn ani satan cm Paulo Lébo = DIREITO CiviIL CONTRATOS 1 edicdo. 2011 28 tiragem 2012 Editora Saraiva CB Sersiva Feige Sm 7, ami Cr — SPs — SP ceosaisto FADE (7) 36133000 SAB t0 55 7688 Doo ds BOs 1950 smn ese woes ie Tete State Ee Soe 39012 —tone asa ofp 28a ee 13364565 fxs Sne Fe) S91 scan S/S 2S ieee foe seams fect ee ovum bg, Senge foc dn aman jan Foc ae ‘ano cnrosaco es ate scone ec Sf BROT Coptade uses Pe 49 —gte Fee 90 3098810 alah eel 16a pe Fee 1 a aa Fes 01" -13ee Pans cen FG 0 de Fat ata cH & nc UCIS Fata atin Steen ove STF 9081 aie rw ion) ‘ea Fe 0s ‘oauenasirasim9 noe 119M fee 290 TR 785 —tde ‘mocumeoosi fet Lae foe Fafoc 6 a0F4 eo / S80 Peli sions ‘af, toe Fon BE S~ Sne 158 s7BS02 106826 Ded sco de Cee mo Pure (C2) (Gnu ase tne, SE sl) ae le pn age sien ‘Cais cl sD el HAMEINORLA) Dil el fide es Fit itr de prdi et Li Bb Cais ere rd ei! 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O contrato na crise do Estado social : : 2'5. 0 princfpio da livreiniciativae a liberdade contratual 2.6. Colisdo entre autonomia privada negocial e direltos fundamen- tais. 2.7. Diretizes fandamentais dos contatos na Consttuiglo de 1988 Capitulo 111 PRINCIPIOS DO CONTRATO 3.1. Principios juridicos e sua classificagdo nos contratos 3.2. Autonomia privada negocial 3.3. Princfpio da forca obrigatoria . 3.4. Principio da relatividade dos efeitos do contrato . 3.5. Princfpios sociais dos contratos ........++ 3.6. Principio da funcao social 3.7. Principio da equivaléncia material . 3.8. Principio da boa-fé objetiva . 1B 15 19 19 21 26 28 30 33 39 41 43 46 48 51 53 56 57 62 64 66 67 70 2 Capitulo IV FORMACAO DOS CONTRATOS 4.1. Momentos da formagao do contrato 8 4.2. Manifestagdo de vontade no contrato . 81 43. Ofena . 82, 44. Oferta ao pablico 83, 45. Aceitagao . a 4.6. Negociacées preliminares e seus efeitos 85 4.7. Conduta negocial tipica .. 87 4.8. Formagao do contrato de consumo . 90 4.9. Formagao do contrato eletrénico .. 4 Capitulo V CLASSES E GRUPOS DE CONTRATOS 5.1. Contratos atfpicos 98 5.2, Contratos tipicos . 99 5.3, Contratos bilaterais 101 5.4. Contratos aleat6rios 102 5.5. Contrato preliminar . 104 5.6. Contratos mistos 108 5.7. Contratos coligados . 109 5.8. Contratos relacionais . 113 5.9. Contratos existenciais e comunitarios 1s 5.10. Compromisso: arbitragem . 16 Capitulo VI ‘MASSIFICACAO E VULNERABILIDADE CONTRATUAL.CONDICOES GERAIS DOS CONTRATOS: 6.1. Massificagao contratual . - 120 6.2. Condigdes gerais dos contratos . we 122 6.3. _ As condigdes gerais dos contratos na lepilacao brasileira 125 6A. Contrato de adesio........ : 128 65. Formacio e eficcia das condigées gevais dos contratos 131 6.6. _Integraco das codices gerais nos contratos de adesao 133 6.7. Cldusulas abusivas . 135 6.8. Vulnerabilidade contratual . 138 6.9. Poder negocial e proteco do contratante vulnerével - 139 Capitulo Vit EFEITOS DE CONTRATOS EM RELACAO A TERCEIROS 7.1. Estipulagao em favor de terceiro .. 143 6 7.2. Contratos com eficdcia protetiva para terceltos ¢ a teoria do con- tato social ......++ 145 7.3. Promessa de fato de terceiro -147 7.4. Contrato com pessoa a declarar . . - 148 Capitulo VIII GARANTIAS LEGAIS AOS CONTRATANTES 8.1, Garantia contra a evicgao - 151 8.2. Gatantia contra os vicos redbit6rlos 156 8.3. Responsabilidade por vicio nas relagdes de consumo 163 8.4. Excecio de contrato nao cumprido = 169 8.5. Excecdo de reforgo de garantia ...... - 170 Capitulo TX _ INTERPRETACAO E INTEGRACAO DOS CONTRATOS 9.1. Interpretagao do contrato patitario ...... . 172 9.2. Critétios legais da interpretacao contratual 176 178 180 9.3. Pressupostos da interpretacdo contratual . 9.4. Interpretagao integrativa e integracio. ... 955. _Integracdo dos deveres geais de conduta negocal¢ sua interpre- tagB0 eee. ee eee ++ 182 9.6. Interpretagao das condigées gerals do contrato de adesio .... 184 9.7. Interpretacao do contrato de adesao, regulado pelo Cito Civil 188 : 190 9 Interpretacio dos contratos de consumo «... Capitulo X REVISAO E EXTINCAO DO CONTRATO 10.1. Revisao legal e judicial dos contratos 10.2. Modos de extin¢o dos contratos 10.3. Resiligo unilateral e distrato . 197 10.4. Resolugéo do contrato .. 199 10.5. Revisdo ou resoluco por onerosidade excessiva superveniente 201 10.6. Cléusula rebus sic stantibus, teoria da imprevisao ¢ teoria da ba- se do negécio .. ++ 204 10.7. Caso exemplar de mudanga de circunstancias: a mudanga do cambio em 1999, no Brasil . 10.8. 0 uso da equidade para obstar a resolugdo do contrato excessiva- mente onerado . 10.9. Vantagem superveniente pela mudanga de circunstanclas 192 195 208 209 210 7 Capitulo XI COMPRA E VENDA AL. 11.2. Conceito ¢ elementos do contrato de compra e venda ........ 212 Unificacdo da compra venda civil e mercantile favorecimen- to docomprador ........ -. 214 11.3. Origem e evolusio da compra e venda . - 215 11.4. Bfeitos do contrato de compra e venda e transmissao da pro- priedade ...., +. 216 11.5, Coisa atual e futura - = 218 11.6. Venda mediante amosttas, prot6tipos ou modelos = 221 11.7. Prego . = 223 11.8. Deveres do vendedor e do comprador . 27 11,9. Repartic&o dos riscos . posooon £7) 11.10. Vendas proibidas em razio de determinadas pessoas - = 233 11.11. Venda de imével por medida ou como unidade + 236 11.12. Venda de parte ideal em condominio 241 Capitulo XI COMPRA E VENDA: CLAUSULAS ESPECIAIS. 124. 12.2. 12.3. 12.4. 12.5. Retrovenda : Venda a contento ou sujeta a prova Preferéncia .. Venda com reserva de dominio. Venda sobre documentos . Capitulo XI PERMUTA 13.1. 13.2. 13.3. 134, 13.5. 13.6. 271 - 273 274 275 278 278 Requisitos e caracterfsticas do contrato de permuta Regras comuns dos contratos aplicaveis a permuta Coisas que podem ser permutadas . Regras da compra e venda aplicdvels & permuta Rateio das despesas do contrato . . Proibicao de permuta com descendentes .. Capitulo XIV DOACAO 14.1. 142. 143. 144, 145. Conceituacdo, natureza e caracteristicas .... Objeto da doagio e liberalidades Oferta de doacao e quem pode acelté-la . Promessa de doacdo . _ DoagSes mertérias, remuneratérias ou com encargo 8 14.6. Formalidade da doasdo ...--.. 294 147, Doagao como adiantamento de legitima de heranga futura .... 296 14.8. Doagées especiais: subvengdes periédicas, casamento futuro, prole eventual . + 298 149. Clausula de reversio da doacio . » 301 14.10. Doagées proibidas + 303, 14.11. Revogacao da doacao = 306 Capitulo XV CONTRATO ESTIMATORIO 15.1. Nogdes e caracteristicas 314 152. Natureza do contrato estimaterio - 317 15.3, Objeto: coisas méveis consignadas . 319 15.4. Determinacao do prego ou valor . = 320 15.5. Deveres das partes ....-.- = 321 15.6. Prazo para o exerccio do poder de aisposia - 322 15.7. Restituigao da coisa consignada . . 323 15.8 Impossibilidade da restituigdo da coisa a obrigacio alternativa 324 15.9. Impenhorabilidade da coisa por dividas do consignatétio ..... 327 15.10, Indisponibilidade da coisa .......++2+0++ 329 Capitulo XVI TOCACAO DE COISAS 16.1. Caracteristicas da locacao de coisas 331 16.2. Colsas € 0s tipos de locagao « 334 16.3. Posse e uso pelo locatario 336 16.4. Aluguel .. : 337 165. Ditetos ¢ deveres do locador 339 16.6. Diteitos e deveres do locatério . 340 16.7. Allenacao da coisa locada - 342 16.8. Sublocacao e cessto 343 16.9. Extingdo da locagéo 344 16.10. Locacao de iméveis urbanos . 348 Capitulo XVIT PRESTACAO DE SERVICOS 17.1. Conceito e abrangéncia .... 353 172. DistingBes com os contratos de trabalho e de empreitada 356 17.3. Profissional liberal: prestador de servicos por exceléncia ..... 358 17.4. Obriagtes de melo obrigagbes de resultado na pretaco de servigos «.-. +++ 360 17.5. Remuneracao .. 17.6. Prazo do contrato 362 364 17.7. Extingdo « sees 365 Capitulo XVII EMPREITADA 18.1. Conceito e abrangéncia . - 368 Espécies de empreitada ..... __ Tempo e execucio do contrato Prego da obra : Recebimento da obra .- 370 372, 373 375 . Subempreitada . ++ 376 Direitos e deveres do empreiteiro as7y . Garantia de seguranca e solidez da obra . 378 Deveres do dono da obra .. 5 = 380 ). Extingio do contrato . . 381 Capitulo XIX EMPRESTIMO 19.1. Conceito e caracteristicas do comodato .. 384 19.2. Deveres do comodante .. 19.3. Direltos e deveres do comodatario . 19.4. Extingaio do comodato 19.5. Matuo . 19.6. Métuo em dinheiro 19.7. Direitos e deveres das partes no métuo 19.8. Extingdo . ae Capitulo XX DEPOSITO 20.1. Conceito, natureza e abrangéncia 20.2. Espécies de depésito .. 20.3. Depésito de bagagens em hotéis ¢ si 20.4. Diteitos e deveres do depositante ..... 20.5. Diteltos e deveres do depositirio. 387 87) 389 390 392, 303 304 396 399 401 - 403 20.6. Vicissitudes e fim da prisdio do depositério infiel 406 20.7. Extingao ceeees 407 Capitulo XXI ‘MANDATO 21.1. Conceito, natureza e abrangéncia 21.2. Procuragdo: instrumento do mandato 409 - 4 10 ro inhale nection 21.3. Poderes de representacao: outorga e exercicio . 413 21.4. Excesso e abuso dos poderes 5 - 415 21'S. Pluralidade de mandantes ou de mandatérios . 416 21.6. Mandatério: capacidade, direitos e deveres . 417 21.7. Mandante: direitos e deveres . . 419 21.8. Mandato em causa propria 420 21.9. Mandato judicial .... 422 425 426 21.10. Substabelecimento 21.11. Extinggo . Capitulo XI FIANGA 22.1. Conceito, pressupostos, abrangéncia « 22.2. Bfeltos da fianca . 22.3. Beneficios de ordem e de divisao 430 433 435 22.4. Responsabildade do fladore hipéteses de exoneracéo 437 22.5, Extinggo ..e.00eeeeee a 439 Capftulo XXII ‘TRANSACAO 442 444 446 447 = 450 - 453 23.1, Conceito, natureza e abrangéncia 23.2. Espécies de transacao . 23.3. Efeltos da transacZo 23.4. Invalidades e exclusbes 23.5. Extinggo BIBLIOGRAFIA a Esta obra congrega a teoria geral dos contratos (direito comum dos contratos) ¢ os principais contratos civis, na perspectiva do direito interno brasileiro. As transformagies das relacdes econémicas e socials e a manifestacéo plural das atividades negociais, na experiéncia brasileira, repercutitam no sentido € alcance do contrato. Nao hé mais uma (inica modalidade de con- trato, gizada na oferta e na aceitacdo voluntarias, nem sua fonte normativa radica apenas no Cédigo Civil. Daf a necessidade da interlocugao constan- te do direito civil dos contratos com o direito contratual constitucional, com 0 direito contratual do consumidor, com o direito das condigdes gerais dos contratos, com a massificacdo contratual, com o direito dos contratos ele- trOnicos. AA diretriz doutrinaria essencial desta obra assenta nos conceltos ¢ ca- tegorias fundamentais de Pontes de Miranda, na intima conexao do contra- to com a justica social, que nossa Constituicao determina, e na contribuigao de autores nacionais e estrangeiros com a evolucao do direito contratual. A jurisprudéncia dos tribunais superiores brasileiros estard constantemente referida e comentada, notadamente as decisdes mais proximas dessas trans- formacies. Os dez primeiros capitulos da obra sao destinados a teoria geral dos contratos, nao ficando adstritos as matérias tradicionais referidas no Cédigo Civil. Assim, foram incluidos temas sobre a sistematizacéo dos contratos contemporaneos, a constitucionalizacao do direlto contratual, 08 principios individuais e sociais dos contratos, o poder negocial dominante e a vulnera- bilidade contratual, as condigdes gerais dos contratos, a massificacao social, com énfase na conduta negocial tipica, a revisdo judicial, a interpretacdo ea Integragdo dos contratos. Fizemos opsio metodol6gica de tratarmos nesta obra apenas os princi- pais contratos civis. Sa0 os contratos comuns do cotidiano das pessoas, mas, ‘com excecao da doacao, também esto presentes na atividade econdmica das empresas e nas relagdes de consumo, como a compra e venda, a permu- ta, o contrato estimatorio, a locagao de coisas, a prestacao de servigos, 0 empréstimo, o dep6sito, a empreitada, o mandato, a fianca, a transagao. Nao 4 siasaatsuetcotsemc 13 Inclufmos os contratos em espécie que, na attalidade, apenas podem ser ‘concebidos como atos de atividade econdmica —nos quais um dos figurantes € necessariamente a empresa -, clasificados como contratos mercantis ou ‘empresariais, objeto do direito empresarial Paulo Labo 14 i toni CONCEPCAO, AMBITO E EVOLUCAO DO CONTRATO ‘Sumério: 1.1. ConcepsBes ¢ dimensdes do contrato. 1.2. Modelo romano do contrato, 1.3. Teoria modema ou tradicional do contrato. 1.4. Transfor- mages ou teorla contemporanea do contrato. 1.5. Responsabilidade contatual e responsabilidade extracontratual. 1.6. Modelos plurais dos contratos na contemporaneidade. 1.7. Contratos de consumo. 1.8. Con- tratos eletrOnicos. 41.1. CONCEPGOES E DIMENSOES DO CONTRATO contrato € o instrumento por exceléncia da autocomposicao dos in- teresses e da realizaco pacifica das transagdes ou do trifico juridico, no cotidiano de cada pessoa. Esta sempre foi sua destinacao, em todos os po- ‘vos, a partir de quando abriram mao da forca bruta para obtengao e circula- ao dos bens da vida, em prol do reconhecimento de obrigacdes nascidas do consenso das préprias partes. O contrato gera nas partes a conviccao da certeza e da seguranga de que as obrigacdes assumidas serio cumpridas e, se ndo o forem, de que poderdo requerer judicialmente a execucao forcada e a reparaco pelas perdas e danos. Com efetto, 0 contrato jurisdiciza o fenémeno mais frequente do coti- diano das pessoas, em todas as épocas. Na sociedade atual, a cada passo, 0 cidadao ingressa em relagSes negociais, consciente ou inconscientemente, para satisfacdo de suas necessidades e desejos e para adquirir e utilizar os bens da vida e os servigos. Até mesmo quando dormimos poderemos estar assumindo obrigag6es contratuais, como se da com o fornecimento de luz ou de agua. No plano da teoria do direito, o contrato destaca-se como a mais impor- tante espécie dos fatos jurfdicos voluntarios, o que ustifica sua relevancia no ambito do direito civil. Na classificacao dos fatos Juridicos, € neg6clo ju- ridico bilateral. Sao necessérios os dois lados, ainda que um deles nao assu- ma dever de prestaco, como ocorre com os contratos unilaterais (ex.: a do- aco), bastando a concordancia. Ao lado da familia e da propriedade, ‘congrega os trés institutos juscivilisticos essenciais que mereceram inserg0 destacada na Constituicao de 1988. 15 Na concepeao considerada cléssica ou tradicional, 0 contrato resulta da entrada no mundo juridico da vontade acorde dos figurantes ou contra- tantes, com a irradiagao dos efeitos préprios. Essencial é que cada um dos figurantes conhega a manifestacao de vontade que 0 outro fez. Nao basta que as duas manifestacdes de vontade coincidam. E preciso que estejam de acordo (Pontes de Miranda, 1972, v. 38: 7). O esquema clissico é, pois, oda oferta e da aceitacao, que se fundem no consenso ou concordadncia, conside- radas as manifestacdes de vontade livres e conscientes de pessoas capazes civilmente. direito contratual como conhecemos atualmente comegou a tomar corpo somente no século XVIII e recebeu desenvolvimento e sistematizacéo somente no século XIX. No ambiente europeu, sustenta-se que o princpio do consensualismo, tal como exprime a maxima solus consensus obligat, te- ra aparecido no século XIII e comecou a se difundir no século XV (Carbon- niet, 2000: 184). O contrato mudou muito, desde quando foi concebido como expresso da autonomia da vontade individual, méxime com a teorizacéo doutrinaria que desaguou na abstraciio do negécio jurfdico, do qual passou a ser classi- ficado como espécie. Ao contrério da experiéncia dos antigos romanos e do direito medieval, que emprestaram mais essencialidade a forma, 20 tipo e ao. reconhecimento juridico oficial, a concepcao de contrato, no perfodo do libe- ralismo individualista, revolucionou no sentido de atribuir a vontade a qua- lidade de ndcleo central, em tomo do qual gravitam os princfpios, regras ¢ ccategorias prescritivas e descritivas. Esse modelo de contrato, que brota de vontades livres ¢ conscientes, na oferta e na aceitacao, entrou em profunda crise, com o advento do Estado social ao longo do século XX, orlentado para a justiga social ¢ a protegdo dos Juridicamente vulnerévels, exigentes de in- tervengao oficial na atividade econdmica. Os interesses exclusivamente individuais passaram a compartihar a tutela juridica com os interesses sociais e piiblicos, compondo o niicleo com- plexo ¢ ambivalente da contemporanea concepcao do contrato. As premis- sas do individualismo, com sua aversdo ao social, demonstraram inadequa- so para o enfrentamento da profunda transformacao que se operou no contrato, em decorréncia da intensa modificacao social e econémica de nos- sa sociedade. O contrato teve de sair do isolamento a que foi destinado pelo liberalismo individualista, como instrumento de autocomposicao de interes- ses privados formalmente iguais, para abranger outras relacoes juridicas contratuais que se desenvolveram & margem desse modelo voluntarista e marcadas pela necessidade de regulacdo social ou piiblica, pela relevancia da conduta negocial tipica, pela abstracdo da vontade e pela consideracio do poder negocial. Nessas relacSes, hoje prevalecentes, nao mais importa 0 16 individuo agindo isoladamente em face do outro. Como diz, Michele Grazia- dei (1991: 528), € uma tarefa va a de procurar resolver os problemas emer- gentes do contrato, simplesmente invocando a vontade ou as expectativas dos contratantes. ‘No ambiente do sistema anglo-americano, a doutrina tem destacado a alteracao fundamental do direito contratual, na superacao do voluntarismo pela razoabilidade de carater objetivo, como parametro mais seguro para as legitimas expectativas das partes: “se o direito classico estava associado com 05 valores da liberdade de contratar, 0 direito modemo passou a ser sindni- mo de razoabilidade no contrato” (Brownsword, 2000: 79). As regras do direito contratual dao forma a distribuicdo de riquezas ¢ poderes nas sociedades contemporaneas. A medida que um pais reduz 0 uso de mecanismos governamentals de redistribuicao de renda, os efeitos de dis. tribuigdo do mercado se transformam na forga determinante que governa as chances na vida de cada pessoa (Collins, 2007:171), impondo-se sua regu- lacdo eficiente. As regras do mercado ndo s4o neutras ~ elas claramente be- neficiam algumas pessoas mais que outras (Atiyah, 2000: 288). Neste senti- do, o direito contratual € parte da regulacdo do mercado orientado para a justiga social, como determina o art. 170 da Constituicao brasileira. Para 0 conhecimento e aplicagao do contrato contempordneo é neces- a) compreensdo da insubstituivel submissao do contrato aos valores sociais e diretrizes constitucionalmente estabelecidos, que decorre do papel de centralidade do direito privado, no que diz respeito a seus fundamentos, que a Constituicao assumiu a partir do Estado social, principalmente com a regulacdo estrutural da ordem econdmnica; b) a relevancia que os principios juridicos passaram a ter nas relacdes contratuais, pois aqueles informam e conformam estas em sua concluséo, execucdo e extinco, implicando o redimensionamento da fun¢ao do Juiz na aplicagao do dit ©) a protegdo juridica conferida ao contratante, que a lei presume vul- neravel; 4) a primazia da conduta negocial tipica sobre a vontade manifestada ou nao, nas ofertas ao piiblico de produtos e servigos; €) a atribuicao de efeitos contratuais & automacao e aos atos promana- os de sistemas informatizados, sem imediata atuacéo humana no momento da celebragao do contrato; ) a crescente importancia da autonomia privada coletiva, na qual as pessoas sao substituidas por entidades ou grupos representativos de interes- 8e5; 7 8) a substituicao do modelo antagonista dos interesses dos contratan- tes pelo da cooperacao na obtencao do fim comum, principalmente nos con- tratos duradouros que podem acompanhar a vida do contratante, como os de planos de satide ou de previdéncia privada, de natureza existenctal; h) a harmonizacao dos direitos nacionals e a protecao do contratante, em virtude da aquisicAo ou utilizacao de produtos ou servicos mediante con- tratos eletrénicos ofertados em sitios eletrOnicos oriundos de outros pafses, ou de origem desconhecida; i) a compreenso que a massificagao contratual € incompativel com o consentimento fundado em vontades individuais. O'contrato nao morreu, ao contrério do que predisse Grant Gilmore (4995: passim); © que morreu ou feneceu foi a concepeao individualista do contrato (teoria tradicional), historicamente situada na experiéncia do Esta- do liberal, principalmente durante 0 século XIX e inicio do século XX, do direito contratual de fabricantes e vendedores, cuja preferéncia esta no cere da ideologia do neoliberalismo, na qual a justica social e outras realidades distintas das vontades individuals no tém lugar. O direlto contratual con- tempordneo contempla os contratantes que detém e os que nao detém poder econdmico, além da fungao social que todo contrato deve cumprir. O sentido e 0 alcance do contrato refletem sempre e necessariamente as relagdes econdmicas e sociais praticadas em cada momento hist6rico. O modelo liberal e individualista, inclusive sob a forma e estrutura do negécio juridico, é inadequado & maioria dos atos negociais existentes na atualidade, porque so distintos os fundamentos. O contetido conceptual e material ea fungao do contrato mudaram, inclusive para adequé-lo as exigéncias de re- alizacao da justica social, que nao é s6 dele, mas sim de todo 0 direito. Sob outro Angulo, embora no seja objeto desta obra, constata-se a existéncia de um direito dos contratos intemnacionals, produzido pelas gran- des empresas internacionais e por conveng6es internacionais dominadas [por esses interesses, que buscam substituir os direitos nacionais pela lex ‘mercatoria, que se caracteriza pelos fracos mecanismos de controle dos abu- 05 e pela supremacia da légica do mercado. Esse cendrio complexo indica nao um, mas varios modelos essenciais, a contra¢o contemporanea, dificilmente redutivels a uma teoria is € certo que o contrato nao é um instituto tinico, porém um feixe de institutos juridicos, assim como a propriedade, também, é um feixe de propriedades” (Grau, 2001: 74). Ainda, contudo, que se admita que nao haja uma “esséncia contratu- al", por ser uma construgao intelectual necessariamente imperfeita, devido a 18, scion sua diversidade e sua incoeréncia (Ghestin, 2002: 186), 0 contrato é uma categoria juridica que pode ser identificada nao apenas pelos profissionais do direito, mas também pelas pessoas que o utilizam, distinta de outras ca- tegorias juridicas. 4.2. MODELO ROMANO DO CONTRATO direito romano nao conheceu 0 contrato como categoria geral, até porque inexistia 0 direito subjetivo como os modemos desenvolveram. A ti- picidade romana das actiones nao comportava uma figura genérica a que se conduzissem, por subsuncao, as espécies contratuals. Se o magistrado nao admitia a actio para determinadas convengies, elas simplesmente nao exis- tiam como contratos; eram pactos nus (pacta nuda). O consentimento, que é 0 elemento nuclear do contrato moderno, ape- nas foi admitido ulteriormente, pelo jus gentium, em certos tipos de contratos celebrados com estrangeiros, mediante aco concedida pelo pretor peregri- no. Os contratos formals (reais, verbais e literais) desconsideravam o con- sentimento e obrigavam, apesar ou contra ele. E mesmo os contratos inomi- nados, que depois passaram a ser admitidos, dependiam da concessao da actio praescriptis verbis Nao ancora, portanto, a teoria modema ou liberal do contrato, na auto- ridade do direito romano, o que bem demonstra que € fruto do devir hist6rico. Essa € a compreensio clara que se deve ter do contrato, como de resto de qualquer categoria ou Instituto Juridico, sob pena de instituir como cién- cia 0 que ndo passa de conservantismo ideolégico de um determinado mo- delo que prevaleceu enquanto existiu historicamente 0 Estado liberal e @ vvisdio de mundo a partir dos interesses individuais. 4.3. TEORIA MODERNA OU TRADICIONAL DO CONTRATO ‘A nogao de contrato, como expresso da liberdade contratual ou da ‘autonomia privada, foi desenvolvida no contexto histérico preciso do Estado moderno, mais precisamente na fase do Estado liberal. Seu pice coincidira com o predomfnio do capitalismo industrial da segunda metade do século XIX e da primeira metade do século XX, quando se elaborou a teoria do ‘negocio jurfdico e se consagrou a Ideia de autonomia privada como principio fundamental do direito privado. contrato foi estruturado segundo o esquema bifronte da oferta e da aceitagao, do consentimento livre e da igualdade formal das partes. O contrato 19 assim gerado passou a ser lei entre as partes, na conhecida diceo dos Cédigos Civis francés e italiano, sintetizado na formula pacta sunt servanda. O contrato encobriu-se de inviolabilidade, inclusive em face do Estado ou da coletivida- de. Vinculou-se o contratante ética ejuridicamente; vinculo que tanto era mais legitimo quanto fruto de sua liberdade e autonomia. Essa exaltacao do contra- to como modelo individualista por exceléncia da sociedade chega ao climax no final do século XIX, com o filésofo Foulllé, que exerceu forte influéncia no espirito dos juristas. Ele defendia a concepsao de serem contrato justiga ter- ‘mos equivalentes: “quem diz. contratual diz justo” e “toda justiga deve ser contratual”. Mais precisamente, 0 ideal de justica social ndo deveria ser distr butivo, mas comutativo; nao deveria ser assegurado pelo Estado, mas garan do pelos particulares (Ranouil, 1980: 90). Asublimacao do contrato € fruto do Iluminismo e da formacao ideol6gica desenvolvida na modemidade liberal. No Estado liberal moderno desponta 0 que os historiadores denominam de transito do status ao contrato, ou seja, das posigBes juridico-sociais fixas e imutveis, segundo o nascimento, a origem ou a insergdo em um grupo ou estamento social, tipicos da Antiguidade e da Ida- de Média, para a liberdade de escolha ou a autonomia das pessoas, Rousseau (€, antes dele, Locke) fez derivat do contrato até mesmo a organizacao da so- ciedade, mediante acordo de cidadaos soberanos. Os juristas, especialmente os pandectistas alemdes do século XIX, cons- truiram um sistema integrado do negécio juridico — do qual o contrato é espé- ie ~, em cujo centro colocaram a vontade como elemento nuclear, suficiente para receber a incidéncia da norma Juridica. Reflexo do espirito da época, de tera liberdade contratual formal como um bem em si mesmo, o neg6cio juridi- co 6a teoria cientifica da forma e da estrutura, aplicada aos atos negocials, sem qualquer preocupaciio com 0 contetido material ou com os figurantes. E bem verdade que a doutrina mais sofisticada que os sucedeu ~ como a de Pontes de Miranda, no Brasil ~ atribuiu a eficacia juridica nao & vontade, mas a0 neg6cio juridico que dela se originou. Esse deslocamento da fonte de eficé- cia, da vontade ao negécio juridico (que a contém), representa importante avango do pensamento juridico. Franz Wieacker (1980: 504) demonstra a tendéncia conservadora dos juristas que desenvolveram a teoria tradicional do contrato. Criaram um di- reito privado abstrato e a nogio de autonomia privada, favorecedores da expansio da Revolucao Industrial, da racionalizacao da economia e, conse- ‘quentemente, do individualismo juridico, favordveis aos grupos econdmicos, ‘em expansao, das finangas, do comércio e da indGstria, em desfavor das profissées e classes sem capital, convertendo-se em instrumento de uma sociedade injusta. 20 A teoria tradicional do contrato esté estreitamente vinculada & concep- do de propriedade privada individual, também difundida nesse ambiente hhist6rico. O contrato fol estruturado a partir da projecdo dos modos de ad- quire, principalmente, de transferir a propriedade. Assim € que a liberdade de propriedade individual manifestou-se sob a forma de liberdade contratu- al, ambas destituidas de fungio social. Os autores tm demonstrado que, progressivamente, houve um distanciamento do contrato da érbita da pro- priedade, como modo de aquisicao € disposicao de direitos reais, e uma progressiva atracdo para a érbita da empresa, como ato de troca voltado a0 lucro do empreendedor (Galgano, 1979: 66), que passou a ostentar valor econdmico em si. Quando os pressupostos formadores da teoria classica do contrato foram desafiados pelo Estado social, amplamente disseminado no século XX, 0 modelo do contrato, como instrumento de reallzacdo de fun- ges meramente individuais, entrou em crise. A teoria tradicional do contrato estava assentada na livre e consciente manifestagao de vontade dos figurantes, de modo mais amplo posstvel, com interferéncia minima do legislador ou do juiz, Sua funcao era meramente individual, ou seja, de regulacao auténoma de interesses privados, conside- rados formalmente iguais. O individuo contratando com outro individuo. Os Ginicos limites que admitiam a intervencao judicial eram os bons costumes € a ordem ptiblica. A opsao preferencial do ordenamento era pelas normas juridicas dispo- sitivas ou supletivas, isto é, as que apenas se incorporam ao contrato se os contratantes nao as tiverem afastado, ou pelas normas facultativas. Sua identificagao, comum nos preceitos do Cédigo Civil, relativos a cada contra- to em espécie, € captada em enunciados segundo os exemplos: a) facultati- va: “€ licito as partes fixar 0 prego” (art. 487); b) dispositivas: “salvo clausu- la em contrario” (art. 490). ordenamento jurfdico reconhecia as relagdes oriundas da exclusiva iniciativa dos particulares, que regulamentavam mutuamente seus interes- ses, delimitando-se os espacos: de um lado, competia aos particulares deter- minar suas relagdes reciprocas, os objetivos ¢ as vias que melhor regulassem seus interesses; de outro lado, competia ao ordenamento juridico prover as regras gerais e 0s requisitos de existéncia, validade ¢ eficacia para seu reco- nhecimento, sem interferir no contetido das relagGes privadas. 4.4. TRANSFORMAGOES OU TEORIA CONTEMPORANEA DO CONTRATO § quase um lugarcomum a afirmagio de que 0 contrato ou o direito contratual fol a parte do direito menos afetada pela mudanca social. Atribui- 21 -se ao direito das obrigacdes (especialmente o contratual) certa estabilidade milenar, porque, mais que os outros ramos juscivilisticos, perpetuaria os principios que nos legaram os romanos, que asseguraram a ralz comum do grande sistema juridico romano-germanico. Como ficou demonstrado, © mo- delo liberal individualista do contrato (teoria tradicional) pouco tinha de ‘comum com 0 modelo romano; ¢ 0 advento da sociedade de massas ¢ do Estado social desmentiu essa aparéncia de estabilidade. Os paradigmas ara 0 contrato contemporaneo nao so mais nem o pater familias romano nem o individuo proprietario da burguesia liberal. Enquanto a sociedade se limitou a uma complexidade reduzida, a con- cepco de autonomia da vontade pOde ser uma explicacdo convincente. A revolusao industrial e a revolucio da informatica, o desenvolvimento tecno- logico, a explosao demografica, a urbanizacao dominante, forjando uma so- ciedade de massas, na qual a cidade € apenas um espaco territorial, levaram © contrato a um estado de crise. Mas essa crise nao é do contrato, ¢ sim de um modelo de contrato, que nao mais corresponde as necessidades da s0- lade contemporanea. A socledade de massas multiplicou a imputagio de efeitos negociais a um sem-néimero de condutas, independentemente da manifestacdo de vonta- de dos obrigados. Por seu tuo, a globalizacdio econdmica utiliza o contrato como instrumento de exercicio de dominagio dos mercados e de desafio aos direitos nacionais, especialmente mediante condicbes gerais predispostas. AS empresas transnacionais utilizam os mesmos instrumentos contratuais, emanadas de suas sedes, em todos os paises onde fornecem produtos e ser- vigos. De modo geral, tangenciam ou desconsideram os sistemas de garan- tias dos direitos locais, ou pressionam fortemente para mudé-los. “Cada vez mais, e a cada dia que passa, as empresas ditam normas que sao frequente- mente mais rigidas que as do poder patlico e as quals 0 cidadao ndo pode resistir, sob pena de se ver paralisado ou tolhido em seu cotidiano” (Santos, 2007: 89). A Administraco Pablica tem abdicado dos classicos instrumentos de soberania e imperium, para desenvolver politicas piblicas contratualizadas, ccujo fenémeno foi tido como “fuga para o direito privado” (Estominho, 1996: passim). 0 Estado social, desde seus primérdios, afetou exatamente os pressu- ppostos sociais e econdmicos que fundamentaram a teoria classica do contra- to. A intervencao piiblica nas relagdes econdmicas privadas, que era excep- cional, converteu-se em regra, alcangando seu climax na atribuicéo de fungdo social ao contrato, cuja liberdade apenas pode ser exercida “em ra- 20 € nos limites” daquela, como enuncia o art. 421 do Cédigo Civil brastlet- 22 ro. A tradicional fungao individual do contrato permanece, mas é conforma- da a fungdo social. Estado liberal assegurou os direitos do homem de primeira geracao, especialmente a liberdade, a vida e a propriedade individuais. O Estado so- cial fot impulsionado pelos movimentos populares que postulam muito mais que a liberdade e a igualdade formais, pasando a assegurar os direitos do homem de segunda geraco, ou seja, os direitos sociais. O contrato de traba- Iho passou a ser protegido, afastando-se da ilusdo da liberdade formal dos contratantes. Liberdade tlus6ria, sim, fazendo irespondivel a afirmagao atri- bufda a Lacordaire, de que entre o forte e 0 fraco é a liberdade que escraviza ea lei que liberta. A liberdade contratual transformou-se nas maos dos po- derosos em instrumento iniquo de exploracio do contratante vulneravel. Antes mesmo do Estado social, 0s legisladores eram pressionados para miti- {gar as iniquidades provocadas pela exploragao da liberdade contratual des- medida. Por exemplo, a Truck Act inglesa de 1831 foi aprovada para proteger os empregados da pratica de serem pagos em produtos em vez de em dinhei- 10 (Atiyah, 2000: 12). O maior golpe ao modelo classico foi desferido quando entraram em cena os direitos de terceira geraco, de natureza transindividuais, protegen- do-se interesses que ultrapassam os dos figurantes concretos da relacao ne- gocial, ditos difusos, coletivos ou Individuals homogeneos. A experiencia que mais avanca nesta Area é a dos direitos do consumidor. A relaso contra- tual de consumo, transcendendo os interesses dos figurantes, esta provocando uma das mais profundas transformagoes do direito contratual, principalmente a pattir da tiltima década do século XX, no estalo da interdisciplinariedade. esses casos, a teoria classica do contrato foi superada, no por modismo, ‘mas porque seus pressupostos sao distintos e inadequados. desequilibrio contratual inerente as principais atividades econémi- cas da atualidade é potencializado quando se aplica o esquema tradicional da oferta e da aceitacdo, que pressupde a existéncia de manifestacdes de vontade livres. Exemplifique-se com 0 uso disseminado de condicdes gerais dos contratos, predispostas unilateralmente pelo contratante utilizador, principalmente empresas e fornecedores de produtos e servicos. A teoria tra- dicional do contrato, consequentemente, é inadequada a tais situagdes. Se as novas figuras contratuais, hoje prevalecentes, prescindem ou ig- noram o poder de escolha; se nao ha, em muitas situacSes, autodetermina- io livre dos seus proprios interesses; se os direitos, pretensbes, deveres e obrigacdes so fortemente limitados ou até mesmo prefixados pela lei ou pelo contratante com poder negocial dominante; se o contrato pode ser cele- 23 brado sem a identificago ou a manifestacdo de qualquer espécie do outro contratante, em virtude da automacao ou da informatizacdo, a teoria do contrato teve de se transformar, em igual medida. No modemo trafico de massa, os bens e servicos sao oferecidos a to- dos, sob condigSes fixas, podendo ser utilizados por qualquer pessoa. Exem- plo muito comum sao as prestagdes de transporte, consignadas em tarifas autorizadas e fiscalizadas pelo Poder PGblico, sem que para elas se exija declaragio ou mariifestagio de vontade do usuario, dirigida a concluir 0 conirato. A utilizacdo efetiva da prestacdo realiza a relacdo contratual. Karl Larenz (1978: 734) denomina essas situacSes de conduta socialmente tipica, como-aceitacdo, que substituiria a vontade declarada ou manifestada de aceltar. Larenz, apesar de aproximar-se da realidade negocial massificada, que dispensa o consentimento, tenta enquadrar esse fendmeno no esquema contratual tradicional, pois converte a conduta ou o comportamento, clara- mente no volitivos, em modos de aceitacdo. Preferimos denominar tais fe- némenos de conduta negocial tipica, para a qual a aceitacdo € irrelevante ou desconsiderada. A desconsideracao da manifestacdo da vontade nos contratos de massa implica a producao de efeitos contratuais independentemente dela, pois 0 dever de remunerar é consequéncia da conduta do usuario € nao da sua vontade. Assim, 0 usuario de um transporte piblico nao pode negar-se a pagar o preco da passagem, alegando que se enganata ou que 0 contrato € Invalido, por ser pessoa civilmente incapaz. O usuério de um estacionamen- to, tendo deixado seu carro estacionado, nao podera negar-se a pagar as ta- xas correspondentes, alegando que nao sabla que era um estacionamento Pago. Quem se comporta assim, de forma negocialmente tipica, tem sua con- duta recepcionada pelo direito como suficiente a gerar efeitos contratuais, notadamente os deveres juridicos correspondentes, sem se considerar se de- les tomou conhecimento ou se os quis. Nessas hipéteses ndo ha consenti- mento, nem o consentimento deve ser suposto. Outro problema que se coloca € 0 da aplicagao ou ndo das normas de capacidade civil, nesses casos. A utilizagéo de uma prestagao oferecida a todos inclui os incapazes civilmente. O direito tutela igualmente os negécios em piiblico realizados pelos absolutamente incapazes que se utilizam dos contratos de massa, que fazem compras em supermercados ¢ usam os meios de transporte, o que leva a inaplicabilidade da regra geral de validade do neg6cio juridico (CC, art. 104) que requer “agente capaz”. O direito passou a atribuir importancia a conduta humana, nessas situagdes existenciais, de modo diferenciado, tornando-a insuscetivel de deficiéncia (nulidade ou anu- labilidade), 24 siete cnoaeasstsitretanasccita set ‘| Estado social fez nitida opcdo pelas normas jurfdicas cogentes (impe- rativas ou proibitivas), reduzindo 0 espaco das normas dispositivas ou facul- tativas. Pontes de Miranda classifica as normas juridicas cogentes em: a) preexcludentes, que negam a existéncia do fato juridico contratual; b) nul cantes, que dao ensejo nulidade do contrato ou de parte dele; c) anulati- vas; d) nao invalidantes, mas cuja violaco acarreta outra consequéncia, como a reparacio do dano, caducidade, rescindibilidade. Além desses m dos de intervencio legislativa cogente, que podem ser considerados classi cos, 0 Estado social também se utiliza de mecanismos de intervencao na atividade econémica, quando interesses socials se impOem, estabelecendo vedacdes, restricdes, correcdes e, sobretudo, deveres legais para que ela pos- sa ser desenvolvida, mediante os contratos decorrentes. Como exemplo des- sa intervencdo, a Lei n. 9.294, de 1996, alterada pela Lei n. 10.702, de 2003, estabelece restricGes ao uso e A propaganda de cigarros e outros produtos furigenos, bebidas alcoblicas, medicamentos e defensivos agricolas, impon- do dever de informagiio negativa nos produtos e na publicidade e de veicu- lacdo gratuita sobre os maleficios do fumo pelas emissoras de televisao, quando as imagens forem geradas no estrangeito ¢ relacionadas a eventos desportivos e culturais. (© C6digo Civil brasileiro, de 2002, apesar de ter utilizado o texto basico do Cédigo individualista de 1916, 0 que em grande medida condicionou suas diretrizes, corresponde & mudanca de paradigmas da contemporanei- dade, nos artigos introdut6rlos ao Livro destinado aos contratos, especial- mente os arts. 421 a 424. Os trés principios sociais do contrato estao con- templados, sendo explicitos os da boa-fé e da funcao social e implicito o da equivaléncia material nas disposicGes relativas a revisao judicial dos contra- tose no tratamento atribuido ao contrato de adeso, nomeadamente quanto a interpretacdo favordvel ao aderente ¢ & nulidade de cléusulas abusivas, para além da igualdade formal das partes contratantes. A polissemla do contrato vai refletir no seu conteddo, que pode ser composto de: cléusulas negociadas (como expresso real da autonomia pri- vada negocial), cléusulas ndo negociadas (como nos contratos de adesao), cléusulas implicitas (mediante interpretacao integrativa do que deveria con- ter o contrato, para alcancar suas finalidades), cléusulas integrativas (em razo, principalmente, de normas legals supletivas, dispositivas ou interpre- tativas € dos deveres gerais de conduta), clausulas obrigatérias (normas le- gals impositivas), cldusulas invalidas (nulas, como as cldusulas abusivas, ou anulaveis) © contrato é, pois, fenémeno cada vez mais onipresente na vida de cada um. No entanto, ndo é e nem pode ser categoria abstrata e universali- 25 zante, de caracteristicas inalteradas em face das vicissitudes hist6ricas. Seu significado e seu contetido conceptual modificaram-se profundamente, sem- pre acompanhando as mudancas de valores da humanidade, notadamente da sociedade brasileira. 4.5, RESPONSABILIDADE CONTRATUAL E _RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL ‘A distingao entre responsabilidade contratual e responsabilidade extra- contratual decorre das duas grandes classes da obrigacao modema, ou seja, © comtrato e a responsabilidade civil em sentido estrito. A responsabilidade contratual, como espécie do género responsabilidade negocial (pois ha res- ponsabilidades decorrentes de outros negécios jurfdicos nao contratuais), constitui uma sangao, entre outras, para o inadimplemento da obrigacéo pelo devedor. A responsabilidade contratual trata da violacao de uma obri- gacdo preexistente, entendida em seu sentido técnico; enquanto que em ma- téria extracontratual, cuida-se da violacao de um dever juridico geral de nao causar dano a ninguém, 0 que leva, por seu turno, a distin¢ao conceitual centre inadimplemento ¢ fato ilicito. No direito privado, a distineo configurou quase um dogma, isto é, uma aparente verdade aceita como tal, sem grandes discussdes. Porém, as trans- formacSes ocorridas em ambas tornaram imprecisa a linha divis6ria, tendo alguns autores cogitado de sua superacdo, em prol da unificacao dos siste- ‘mas de responsabilidade civil, em virtude do reconhecimento de fungdes comuns e de nova concepeao de responsabilidade, como nocao complemen- tar de uma nogo maior, denominada obrigacdo, entendida esta como estru- tura complexa, caracterizada pela existéncia de deveres gerais, coligados 20 dever central, em “um nexo funcional unitério” (Femandez Cruz, 2004: 291). 0 Cédigo Civil de Québec, de 1991, definiu como um de seus objetivos essenciais a unificacdo dos dois ramos de responsabilidade, notadamente no art. 99. No processo unificador do direito das obrigacdes, que ora ocorre, pre- valece a transubjetivacao da causa da responsabilidade, pouco importando se é contratual ou extracontratual. Exemplifiquemos com a vedacao ao enti- quecimento sem causa, que assume uma dimensto objetiva e superadora dos limites contratuais, a ampliagao do conceito de dano, a universalizacao do ressarcimento, a protecdo das expectativas normais de quem adquire ou utiliza bens e servigos e, acima de tudo, a equivaléncia objetiva das presta- Ses, trabalhando-se com tipos subjetivos abstratos, como o contratante consumidor. 26 i 7 4 A doutrina francesa até hoje controverte acerca da pertinéncia dessa istinedo. Uma corrente sustenta que a responsabilidade € exclusivamente extracontratual, ainda que o evento causador da obrigacdo de reparar tenha origem primaria no contrato, porque os danos constituem um cumprimento da obrigagao, por equivaléncia. Outra defende a singularidade da responsa- bilidade contratual, ainda que concorde que muitas situacdes contempora- reas teniham levado o legislador e os tribunais & unificacdo de ambas, o que no afastaria a distincao, notadamente quando o inadimplemento contratt- al € a fonte de danos sofridos tanto pelos credores em virtude do contrato como 0s terceiros, quando tém um vinculo com o contrato, porque ambos estdo expostos aos mesmos riscos (Larroumet, 2001: 162). Para Genevieve Viney (2001: 946), 6 pouco realista a proposta de desaparicao da responsa- bilidade contratual, em favor de um conceito de “execugao por equivalén- cia’, dadas as caracteristicas dos danos resultantes da inexecucdo, além de reduzir a protegao das vitimas. Sob a ética do contratante devedor, radica na equivaléncia um dos si- nals destacados pela doutrina da unificacdo, pols é idéntica na responsabi- lidade extracontratual e na contratual. Nesta, o interesse do credor, prejudl cado pelo inadimplemento, vé-se somente satisfeito mediante a reparacdo ‘ou 0 pagamento de uma indenizacio compensatéria, o que produz uma transformagao da relaao obrigacional, pois o devedor deve realizar uma conduta distinta da inicialmente devida, que afeta seu patrimonio em um valor equivalente ao valor estimado do dano sofrido pelo credor. Por seu turno, na responsabilidade extracontratual a origindria conduta devida, con- sistente na obrigacdo de nao fazer (nao lesar 0 outro), de cunho nao patri- monial, transforma-se em outra obrigagao, a de reparar, com seu patrimonio, ‘0 dano softido pela vitima. Em ambas ha, com efeito, converséo das condu- tas devidas. Pode haver imputacao de responsabilidade a terceiro estranho ao con- trato, em determinadas situagbes. E 0 que se da, por exemplo, na relacao contratual de consumo, que legitima a imputacdo de responsabilidade pelo fato do produto ao fabricante, que nao é figurante do contrato. Sao hip6teses de danos estranhos a relacdo contratual em si, mas que nela tém sua origem. ‘Também pode haver responsabilidades pré-contratuais e p6s-contratu- ais. Nesses casos, discute-se se a responsabilidade € contratual ou extracon- tratual, ou se promana de ambas, indistintamente. No Brasil, foi longa a controvérsia acerca da responsabilidade contra- tual ou extracontratual da empresa, em virtude de furtos havidos no estacio- namento, que poe a disposicao de sua clientela. Para alguns, seria apenas 27 cortesia, o que levaria a tresponsabilidade pelo que ocorresse com os auto- miévels de seus clientes; para outros, a responsabilidade apenas existiria se houvesse guarda efetiva e comprovante de pagamento de prego cobrado pelo estacionamento; para outros, enfim, entre 0s quais nos incluimos, a responsabilidade da empresa independe de qualquer pagamento ou controle de entrada e saida dos veiculos, pois o estacionamento integra o Ambito da atividade econémica da empresa, como meio idoneo de atracao da clientela, independentemente de ter havido aquisicao ou ndo de produtos ou servicos ofettados. Este tiltimo entendimento, apés flutuacdes nas decisées, foi con- sagrado no Superior Tribunal de Justica, mediante a Simula 130, com este enunciado: A empresa responde, perante o cliente, pela reparagao de dano € furto de vetculo ocorridos em seu estacionamento. Para o enunciado basta @ responsabilidade, sem declinar sua natureza. Nao é exclusivamente respon- sabilidade contratual, porque independe de declaracdo de vontade nesse sentido, Nao é responsabilidade pré-contratual, porque nao depende do in- teresse pela celebracao posterior de qualquer contrato, que pudesse vinculé- -la. Nao ¢ responsabilidade extracontratual por atividade, porque o estacio- namento a disposico de seus clientes nao se inclui “na atividade nommalmente desenvolvida pelo autor do dano” (art. 927, pardgrafo tinico, do CC), sendo dela acidental ou secundéria. £, certamente, responsabilida- de pela inducdo a celebracao de contrato, em razdo dos meios de atracao de clientela, do mesmo modo como se dé com a publicidade, o que a inclui no ambito da oferta ao piiblico. Para cada situacao de vantagem, maior a Tes- ponsabilidade, sem sindicacdo de culpa ou de nexo de causalidade. 4.6. MODELOS PLURAIS DOS CONTRATOS NA CONTEMPORANEIDADE Os contratos paritérios compdem 0 modelo classico, que pressupoe a equivaléncia dos poderes negociais ¢ a existéncia efetiva de negociacdes preliminares, dispensando a intervengo legislativa e judicial, em sua essén- cia. Sao, principalmente, os contratos celebrados entre pessoas fisicas, fora da atividade econdmica, e os contratos entre empresas, fora da relacdo de consumo, nos ambitos intemo ¢ internacional. Neles, predomina a tutela dos interesses individuals ¢ dos direitos subjetivos das partes. Os contratos nao paritérios tém formacao distinta € se caracterizam pela nao presungao da equivaléncia dos poderes negociais e pela protecao juridica que desfrutam determinadas partes ¢ interesses transindividuais, ‘mediante intervencao legislativa e judicial e imposicao do dever de protecao desses interesses. Entre os interesses transindividuais est4 a protecao a0 28 meio ambiente e a0 patriménio hist6rico, cultural e turistico, que possam ser afetados pela relacéo contratual. Esses contratos ostentam uma base forte- ‘mente objetiva, em virtude da limitagdo substancial ou irrelevancia da von- tade individual, revelando a impessoalidade da relacdo contratual, ou a vul- nerabilidade dos contratantes, ou o poder negocial dominante, ou a conduta negocial tipica. Neles, predomina a tutela dos interesses sociais € a imposi- Gao de deveres e responsabilidades, estranhos aos direitos e deveres de pres- taco autonomamente contraidos. Podem ser assim classificados: 1) contratos com protegdo de contratantes vulneraveis espectficos (trabalhador, inquilino, autor, mutuario, promitente comprador, contratan- te agrario, segurado, cliente bancério etc.), notadamente quando os con- tratos tm por fim relagdes que envolvem a vida digna e a existéncia dessas pessoas; 2) contratos massificados; 3) contratos de adesdo a condicdes gerais; 4) contratos de consumo; 5) contratos eletrantcos. Nos contratos nao paritarios esto inclufdos todos os que Antonio Jun- queira de Azevedo (2005: 253) preferiu denominar “contratos existenciais” (os de consumo, os de trabalho, os de locacdo residencial, de compra e ven- da da casa propria e, de uma maneira geral, os que dizem respeito a subsis- téncia da pessoa humana). Os contratos que resultam do exercicio de atividade econémica, em conformidade com os arts. 170 e seguintes da Constituicao, podem ser pari- tarlos ou ndo paritérios, de interesses protegidos ou nao protegidos. Sdo paritarios os contratos negociados entre empresas, que nao envolvam rela- Gao de consumo; so nao paritérios os contratos de consumo celebrados entre empresa ou fornecedor de produtos ¢ servigos ¢ seus consumidores (pessoas fisicas ou outras empresas) e 0s contratos de adesao celebrados entre empresas, quando uma utiliza condigdes gerais ¢ a outra adere (por exemplo, franqueadora e suas franqueadas). Ags trés primeiros modelos de contratos de direito privado nao parité- ros (contratos com protecao de contratantes vulneravels, contratos massifi- cados e contratos de adesao a condicdes gerais predispostas) foi destinado 0 Capitulo III desta obra. Os dois tiltimos modelos merecem destaque, a se- guir, pelo forte impacto que causaram na teoria do contrato, que se revelou inadequada tanto em relacdo ao contetido (contratos de consumo) quanto & forma (contratos elettOnicos). 29 4.7. CONTRATOS DE CONSUMO {As filtimas décadas do século XX protagonizaram as demandas socials por protecées legals eficazes aos contratantes consumidores, ante o fendme- no avassalador da concentracao de capitals, estimulado pela urbanizacao e pela massificagao social. Tornou-se cada vez mais clara a assimetria de po- deres negociais entre os fornecedores de produtos e servicos no mercado de consump, alguns em escala planetaria, e os adquirentes ou usuarios desses bens e servicos, principalmente as pessoas fisicas. Mais do que nunca, reve- lou-se inadequada a teoria classica do contrato para o enfrentamento desse fendmeno. Surgiram, entdo, as legislacdes de proteco do consumidor, como a brasileira de 1990 — que viu nascer o primeiro Cédigo de Defesa do Consu- midor do mundo ~, com grande semelhanga de solugdes e com a caracteris- tica comum de predominio do interesse difuso ou coletivo sobre o interesse individual. Novas categorias foram construfdas, redundando na moderniza- «Ao notavel da teoria do contrato. 0 direito do consumidor provocou mudancas substanciais no direito contratual, pois nao trata de situagbes especials e epis6dicas, mas da maior parte das relacdes negociais entretecidas no mundo atual pelas pessoas fisi- cas, que necessitam dos produtos e servicos langados no mercado de consu- ‘mo, para sua existéncia ou para seu lazer. A interlocugdo entre o direi contratual comum, destinado aos presumidamente iguais ou paritdrios, ¢ 0 direito contratual do consumidor, destinado aos presumidamente desiguais, haverla de ser intensificada, como ocorreu com 0 Cédigo Civil alemao, que passou a tratar de ambos, ap6s as profundas reformas do direlto das obriga- ‘gBes ocorridas nos anos de 2001 € 2002. No Brasil, a harmonizacao entre essas dimensdes do direito contratual tem sido proficua na doutrina ¢ na jurisprudéncia dos tibunais. Na Argentina, Jorge Mosset Ituraspe (2005: 165) manifesta-se partidario da incorporacao ao cédigo de direito privado das solucées mais importantes do direito do consumidor: 0 relativo a infor maco, & publicidade que integra o contrato, as garantias, as clausulas abu- sivas, a responsabilidade solidairia e objetiva dos fornecedores. 0 consumidor nao é mais (talvez nunca tenha sido) 0 tipo idealizado no Estado liberal do sujeito determinante do ciclo econ6mico e do que tinha de ser produzido e consumido para atender a suas necessidades, por ele mesmo definidas, em um mercado concorrencial e competitivo. Na classica economia de mercado, de onde deriva a teoria tradicional do contrato, distinguiam-se varios niveis e objetivos de concorréncia: de uma parte, a criacdo de estrutu- ras 6timas (exclusao dos monopilios e, em parte, dos oligop6lios); de outra, a 30 a melhor satisfac das necessidades dos particulares mediante as ofertas con- correntes, excluindo qualquer posigiio de supremacia sobre o consumidot. ‘Atualmente, 0 produto e o servico nao sao postos em citculagao apenas para responder a necessidades sentidas de consumo, mas para provocar a necessi- dade de consumo, mediante os engenhosos mecanismos de publicidade, ¢ na ‘qual o consumidor nao desempenha qualquer papel ativo. 0 ponto de partida é a existéncia ou nao de uma relagao Juridica qua- Iificada: a relagdo de consumo. Esta constitul o divisor de aguas entre o di reito contratual comum eo direito contratual do consumidor. Presente a re- lado de consumo, o direito e a legislacdio contratuals comuns passam a ter funcao supletiva. Nao hé, a rigor, contratos diferenciados no Cédigo de Defesa do Con- sumidor. Os contratos so os mesmos do direito comum. A nota distintiva € a funcio que assumem de suporte das relacées de consumo, cobrando regi- ‘me juridico proprio. So, pois, contratos funcionalmente diferenciados, sem ‘embargo da identidade de sua natureza formal. A relagio contratual de consumo dé-se entre quem exerce atividade profissional organizada, denominado fornecedor, e 0 eventual adquirente ou usuario dos bens ou servigos que forneca ao paiblico, denominado consumi- dor. £ uma relagio que o direito presume desigual e merecedora de tutela, porque faz emergir o efetivo poder negocial das partes. Assim, sao partes juridicamente desiguais. A relagao contratual de consumo caracteriza-se pela ostensiva e neces- séria tutela do consumidor, qualificado como juridicamente vulneravel, para delimitacao e contengao do poder negocial dominante do fornecedor. Essa tutela é indisponivel e se dé apesar da inércia ou manifestagio de vontade em contrério do préprio consumidor, porque ela decorre de uma presungao legal absoluta de vulnerabilidade, por forca do que dispdem o att. 170, V, da Constituigao e o art. 42, I, do CDC. Também é absoluta a presungao legal do poder negocial dominante do fornecedor, ainda quando se depare com con- sumidor economicamente mais forte. Nao se protege ou se tutela o consumi- dor determinado, mas sim 0 conjunto dos consumidores (tipo médio) que sejam destinatérios de determinados produtos ou servicos langados no mer- cado de consumo. ‘Como chama atenco Cléudia Lima Marques (2001: 273), 0 sistema juridico brasileiro ndo tutela o consumo, em si, como o fez 0 Cédigo de Con- sumo da Franca, mas apenas um sujeito de direito diferente e vulnerdvel da sociedade de consumo: 0 consumidor, até porque o principio da justiga so- 31 cial no protege os qualificados como iguais. Com razao, pois a protecdo a0 consumidor foi erigida em direito fundamental (att. 52, XXXII, da Constitui- Ao), da pessoa humana consumidora, cada vez mais fragilizada ante os poderes privados dominantes impessoalizados das atividades econdmicas. ‘A configuragao das partes da relacdo contratual de consumo € ampla, como se depreende dos atts. 22 e 32 do CDC. Quanto ao fornecedor, nenhu- ma atividade econdmica se exclu de seu significado. Em relagao ao const- midor,‘no entanto, a tutela legal nao abrange o consumidor intermedidiio (0 que adquire ou utiliza bens e servicos destinados ao desenvolvimento final de sua pr6pria atividade), mas apenas o consumidor final, assim pessoa fisi- ca oft juridica. A opcao clara pelo consumidor final explicita no Supremo ‘Tribunal Federal, notadamente no julgamento da Sentenca Estrangeira Con- testada n. 5.847-1, em 1999, considerado leading case nessa matéria, no qual se decidiu que 0s produtos usados na producao de outros produtos (tratava-se da importacao de algodo manufaturado para fabricacdo de toa- Thas) ndo se inserem na relacao de consumo. ‘Tem havido certo elastério do conceito no Superior Tribunal de Justiga, no sentido de distinguir entre os produtos e servigos que se destinam a inte gyar a atividade final da empresa, como seu elemento ou insumo, ¢ os que se destinam meramente as suas atividades intermediarias, cuja orientacdo nos parece adequada, porque nao contradiz a definicao de destinatario final. Assim, no REsp 488.274, o Superior Tribunal de Justica considerou que uma ‘empresa de alimentos era destinatéria final dos servigos prestados por em- presa de informatica, porque os servicos prestados tinham por objeto a fis- calizagao da atividade interna da empresa, sem nenhum intuito de transfor. maco ou apropriaco para sua finalidade (producdo de alimentos), merecendo tutela como consumidora. Também entendeu 0 Superior Tribu- nal de Justiga ser consumidora final a empresa prestadora de servicos, ad- quirente de produtos e servicos utilizados, direta ou indiretamente, na ativi- dade econdmica que exerce (REsp 102.547-2); 0 caso era de empresa prestadora de servicos médico-hospitalares, que utiliza a Agua para a manu- tengo predial e 0 desenvolvimento de suas atividades, ou seja, consumo em beneficio proprio. Algumas situagSes sao legalmente equiparadas ao consumidor final, para fins de id€ntica protecdo: a) a coletividade de pessoas, ainda que inde- terminadas; b) o terceiro que seja vitima do produto ou servico, oriundos de relacdo de consumo; ¢) todas as pessoas determinaveis ou ndo expostas as praticas comerciais referidas no Cédigo de Defesa do Consumidor (oferta a0 Piblico, publicidade, praticas abusivas, modos indevidos de cobranca de 32 divida, danos em decorréncia de bancos de dados e cadastros de consumi- dores). A equiparagao nao iguala esses sujeitos aos consumidores finais; apenas estende a protecao destes aqueles. (0s contratos celebrados entre fornecedor e consumidor intermediario (entidade empresarial) gozam de protecao distinta do direito do consumidor, quando estilo sujeitos a condicdes gerais dos contratos, emergindo a figura do aderente, como denominado em nosso direito (CC, arts. 423 e 424). O regime das condigdes gerais dos contratos, em sentido estrito, é aplicavel a cessas hipéteses, nao abrangidas pelo direito do consumidor. Equivale ao contrato de consumo qualquer manifestagao negocial do fomnecedor, dirigida aos consumidotes em potencial, pouco importando 0 suporte material que utilize: médulos, formulérios, prospectos, antincios, documentos de publicidade, recibos, pré-contratos. Os contratos negociados, nas relagdes de consumo, tendem a perder importancia ¢ a reduzida utilidade, porque as relagdes de consumo se do ordinariamente de maneira impessoal, na sociedade de massas e de econo- mia oligopolizada. O espaco de negociacdo nesses contratos é estreito, dian- te da desigualdade evidente de poderes negociais entre fornecedor e consu- midor, principalmente porque este nao detém o domfnio das informagdes especializadas daquele. De qualquer sorte, a razao da lei é da uniformizacao do regime Juridico de protecao a qualquer contrato de consumo, seja nego- ciado ou de adesao a condigdes gerais. 4.8. CONTRATOS ELETRONICOS A revolucdo da informatica propiciou o surgimento de transagdes, em néimero crescente, de contratos eletr6nicos, assim chamados os que utilizam a rede mundial de computadores, para aquisicao ou utilizacdo de produtos ou servigos, ofertados no meio virtual. meio eletrOnico dos negécios jurfdicos implica manifestagBes ou de- claragies de vontade, ¢ até mesmo condutas negociais, inteiramente distin- tas das tradicionais declaragSes ou condutas hauridas entre pessoas presen- tes, ou entre pessoas distantes, ou da forma escrita. A cultura da escrita em suporte material, especialmente o papel, desenvolvida pela humanidade em milénios, adotada para a comprovagao por exceléncia do contrato, vé-se substituida por atos, dados e informagSes que ndo se materializam em su- portes tangiveis. Para conclusao dos contratos nao ha necessidade de que sejam transcritos em papel ou qualquer outro modo documental, que ape- 33 nas declaram sua existéncia, mas nao a integram ou constituem. Do mesmo modo, ndo se cogita de manifestaco tacita ou silente, segundo os modelos conhecidos. Ha repercussées dos contratos eletrGnicos em aspectos da personalida- de, que nao podem ser negligenciados. Stefano Rodota (2002: 253) chama a tengo para o fato de que se a pessoa entra em uma loja fisica, sua imagem desaparece quando ela sai. Mas se faz isso na rede de computadores, deixa uma fnarca, um pedaco dela, isto €, suas informacdes, que a outra pessoa poderd utilizar, além da relacao contratual que foi estabelecida. __ 08 contratos eletrGnicos sao concluidos, normalmente, entre uma pes- soa, que se interessa pela aquisicao ou utilizacao do produto ou servico ofertado virtualmente na rede, utilizando o meio eletrSnico de comunicacao, e um sistema informatizado, previamente abastecido de informagées ¢ da- dos, cujos programas o capacitam para concluir ou nao 0 negéclo, segundo a modalidade de pagamento adotada. O interessado envia a mensagem, que é recebida pelo sistema da empresa destinataria, que acusa a recepcd0 € mobiliza os procedimentos para atendimento ¢ envio da encomenda. Se 0 pagamento for mediante cartao de crédito, dé-se, entao, outra relacao virtual entre o sistema da empresa fornecedora do produto ou servico e o sistema da empresa administradora do cartao de crédito, operando ininterruptamen- te. Essa relagao virtual importa efeitos juridicos, a partir de comandos que dispensam qualquer acao humana, no momento em que se do. Assim, t@m- se duas relacées jurfdicas despersonalizadas relativamente ao segundo fi- gurante, no momento da formacao dos contratos: a primeira, entre a pessoa (credora do bem e servigo) ¢ 0 sistema informatizado da empresa ofertante (devedora); a segunda, entre a pessoa (devedora) ¢ o sistema informatizado da empresa administradora do cartdo de crédito (credora do valor disponibi- lizado). E ha, ainda, uma relagdo inteiramente despersonalizada, geradora de efeitos juridicos: entre o sistema da empresa administradora do cartao € o sistema da empresa ofertante, o primeiro creditando e transferindo valor dda aquisicdo ou do uso eo segundo o recebendo, em nome da pessoa adqui- rente ou usuéria. Diante das miltipas dimensdes dos contratos eletrOnicos, a doutrina cogita de classificé-los em trés tipos: contratos interpessoais, contratos inter- sist@micos e contratos interativos (Rossi; Delapleve, 2002: 51). No primeiro tipo as pessoas utilizam 0 meio eletrGnico para veicular oferta e aceltacao, através de mensagens eletrOnicas (principalmente e-mails). No segundo, os contratos sao formados mediante troca de informacSes entre sistemas infor- matizados. No terceiro, ha tipicos contratos de adesdo, tendo uma pessoa 34 wi bss interessada de um lado ¢ sitio virtual do outro, muito utilizados para aquisi- go de bens e servigos oferecidos on-line, ou para reservas de hotéis, via- gens, espetaculos, direito tem desenvolvido solugdes ainda insatisfat6rias para lidar com esse fendmeno. A seguranca jurfdica dos contratos € desafiada pelas incertezas quanto & autenticidade das manifestacdes de vontade, que po- dem ser alteradas, de modo acidental ou proposital, durante sua transmis- sao, que percorre varios pontos de conexao, ou podem ter sua recepcao ne- gada pelos destinatarios, ou até mesmo negada por seus emissores, ou podem ser conhecidas por outras pessoas ndo autorizadas. E, assim, surgem as perplexidades em pontos fundamentais da formagao e execugao do con- trato: Esses atos so juridicamente existentes, validos e eficazes? Como ‘quando as declaracdes de vontade podem ser consideradas juridicamente vinculantes? O contrato se forma entre presentes ou entre ausentes? Qual 0 direito que deve ser aplicado, quando o contrato eletrSnico se der entre par- ceiros de sistemas juridicos distintos? A despersonalizacao, ocorrente no instante em que 0 contrato é cele- bbrado, colide com a concepeao do contrato como relacao juridica eminente- mente intersubjetiva. Se considerarmos que o sistema informatizado, que mite diretamente a aceltacao ou recusa da declaracao de vontade da pes- soa interessada, nao é sujeito de direito, entéio ha de se imputar a responsa- bilidade contratual e a propria manifestacéo de vontade a empresa (pessoa fisica ou juridica) que utiliza o sistema. O programa nao é um ser animado, ‘mas um objeto manipulavel pela empresa, que previamente definiu os crité- Flos para aceitagao ou recusa. Aplica-se aos contratos eletrOnicos o sistema legal de protegao do con- sumidor, notadamente quanto a protego contra praticas abusivas e ao aces- so prévio as condigGes gerais do contrato. A responsabilidade contratual € Inescusével por parte da empresa utente do sistema, pois este integra os meios admissiveis da oferta ao ptiblico. No direito brasileiro, a oferta vincu- Ja desde 0 momento em que é veiculada, maxime nas relacbes contratuais de consumo, permitindo, inclusive, 0 arrependimento do consumidor, pois 0 fomecimento do produto ou servico, pela rede de computadores, ocome “fora do estabelecimerito comercial” (CDC, art. 49). Assim, o receblmento do pagamento, que no mundo virtual é instantaneo, provoca a vinculacao juri- dica por parte da empresa ou fornecedor. Ante o cardter fluido e passagetro do meio eletr6nico, até mesmo da propria aparéncia, que se desmaterializou, Cléudia Lima Marques (2004: 35 49) elege a confianca como elxo central das condutas nesse melo, dela reti- rando responsabilidades especificas. (© ambiente virtual nao considera fronteiras nacionais, o que aguca a necessidade de se saber qual o direito aplicdvel aos contratos eletrénicos internacionais. A legislacao brasileira (CC, art. 435; LIC, art. 92, § 2%) con- sidera que o lugar do contrato € 0 da oferta ou proposta. Essa regra, todavia, contratia o principio constitucional de defesa do consumidor, pois agrava suas condigbes dé acesso a justica; assim, nos contratos de consumo, a regra prevalecente € a de seu melhor beneficio, inclusive para os contratos eletr6- nicos intemacionais, pelo fato de a protecao do consumidor ser dever de todos os Estados membros da ONU, por forca de Resolucao especifica, edi- tada em 9 de abril de 1985. O contrato eletrénico também modifica o conceito de territ6rio ou lugar. © contratante consumidor continua passivo, no se desloca para outro pais ou Estado, “conecta-se localmente e age internacionalmente” (Marques, 2004: 92). © Superior Tribunal de Justica julgou caso de violagao de contra- to celebrado por dancarina brasileira contratada por empresa espanhola, para apresentacdo de espetaculos de dangas no exterior, cuja empresa pos em seu sitio eletrOnico imagens nao autorizadas da artista. O referido THibu- nal decidiu que, em razo de nao haver lel que regulamente a jurisdicao do ciberespaco, considerado territério livre, a cléusula de eleicao de foro exis- tente no referido contrato ndo impede que a acdo seja proposta no Brasil, por ser hip6tese de competéncia concorrente (REsp 116.854-7) Para pOr cobro as dtividas relativas & seguranga juridica no mundo virtual, os pafses tém adotado leis que regulam a certificacdo digital, cteden- ciando entidades ptiblicas e privadas a atuarem como se fossem cart6rios de notas, para fins de reconhecimento ou certificagao das assinaturas eletr6ni- cas, compostas de signos utilizados nesse meio. Fé-lo o Brasil, a partir da Medida Provis6ria n. 2.200-2/2001, instituindo os procedimentos de cettifi- cacdo digital ou assinatura eletrOnica, assegurando a verificagao da origem € da identidade dos arquivos transmitidos on-line e estabelecendo que 03 documentos ptblicos ou privados assim certificados sejam juridicamente vinculantes, para todos os fins legais, em virtude da presungao de autentici- dade das declaragdes de vontade, em relacao aos signatatios. Contudo, a propria norma legal admite que a comprovacao da autoria e integridade dos documentos eletrénicos possa utilizar outros meios, desde que admitidos elas partes como validos ou aceitos pela pessoa a quem for oposto o docu- mento, o que inclul 0 e-mail. 36 ia sie Os costumes, no entanto, insistem em desconhecer a seguranga juridi- ca operada pela certificacao digital, tendo em vista a natureza de anomia, informalidade e liberdade irrestrita que cerca a Internet, desde seu nasce- douro. Os contratos celebrados nesse meio, diariamente e em grande quan- tidade, raramente se utilizam da certificagao digital. A comprovacao do pa- gamento e a confirmagao de seu recebimento, principalmente com uso do cartdo de crédito, ¢ tida como suficiente para demonstrat a celebracao do contrato. Por outro lado, ainda que a mensagem eletrOnica (e-mail) possa ser vulnerdvel a adulteragdes, por invasores malévolos dos enderecos eletroni- cos, 0s riscos so desprezados em favor da mobilidade € da informalidade. Se a troca de correspondéncia eletrGnica, sem cettificacdo digital, nao é su- ficiente, por si s6, para gerar vinculos juridicos negocials, nem por isso deve ser desconsiderada como meio de prova, que leve ao convencimento do juiz da autenticidade das declaracdes de vontade e, consequentementte, da for magao do contrato. De tudo se conclu que 0 contrato eletrénico nao é uma espécie distin- ta dos demais contratos, no que conceme aos seus elementos essenciais. £ distinto quanto a forma e o meio utilizado para declaracao da vontade. Ou seja, qualquer contrato em espécie pode ser utilizado no meio eletrOnico, ou, ainda, como contrato de consumo ou contrato de adesao a condigdes gerais. Do mesmo modo, condutas negociais tipicas também esto presentes no meio virtual, A superagdo das fronteiras ¢ direitos nacionals, tfpica dos contratos ‘eletrOnicos, torna exigente a formulacéo mundial de regras comuns, como recomenda a Uncitral (United Nations Commission on International Trade Law), em sua lei-modelo, aprovada pela Resolucao n. 51/162 da Assembleia Geral da ONU, em 1996, para esses contratos, considerando cinco princt- pios basicos: a) principio da equivaléncia funcional dos atos produzidos por eis eletrdnicos com os atos juridicos tradicionais; b) princfpio da neutra- lidade tecnol6gica das disposigbes reguladoras do comércio eletrOnico; ¢) principio da inalterabilidade do direito existente sobre obrigacdes e contra- tos, com intuito de maior seguranca juridica desses negécios; d) principio da oa-f6; e) principio da autonomia privada ou da liberdade de contratar. Situagdes inusitadas podem ocorrer com o uso de computadores e da rede mundial, para celebrago dos contratos. Pode ocorrer erro na progra- mago, erro de maquina e erro na transmissio, chegando a mensagem de- formada no terminal do interessado. O Cédigo Civil prevé que 0 erro possa anular 0 contrato, por se caracterizar como vicio na declaracao de vontade, em relacao a pessoas ou coisas. Se se considerar que as mensagens e infor 37 mages integram a declaraco de vontade negocial, no meto eletrOnico, até porque atrs das maquinas e dos programas estao pessoas, entao essas situ- ages siio também idéneas para haver a incidéncia da regra que permite a invalidag2o por erro. E se a vontade ¢ irrelevante, bastando a conduta nego- cial tipica, nas transagSes eletronicas, o erro invalidante cumpre sua finali- dade social, do mesmo modo. 38 CONSTITUCIONALIZAGAD DO CONTRATO ‘Sumério: 2.1. O contrato e as constituigGes iberais. 2.2. Contratoe Estado social. 2.3. Contrato como categoria da ordem econ6mica constitucional 24. O contrato na crise do Estado social. 2.5. O principio da livre-inicia~ tiva ea liberdace contratual. 2.6. Coliso entre autonomia privada negocial e diteltos fundamentals, 2.7. Diretrizes fundamentals dos contratos na Constinuigdo de 1988. 24. O CONTRATO E AS CONSTITUIGOES LIBERAIS 0 Estado liberal significou a antitese do Estado absolutista, no qual as relagGes privadas, especialmente as atividades econémicas, dependiam da vontade e concessao do soberano politico. As constituicées liberais, notada- mente a partir das revolucdes americana e francesa, incorporaram 0 idedrio liberal burgués triunfante da plenitude da autodeterminagao individual, o que significou o controle politico do Estado, com sua auséncia de controle da atividade econémica, para se garantir a ilimitada liberdade contratual. A auséncia de previstio constitucional, sobre a liberdade contratual, corres- pondia a concepso que passou a ser dominante de que a “mao invisivel” do ‘mercado daria conta do equilfbrio dos interesses privados, sem necessidade da interferéncia do Estado. Minimizacao do Estado e maximizagao da liber- dade individual e contratual passaram a ser lugares-comuns. Todavia, como a experincia histérica demonstrou, assegurou-se @ Ii- berdade dos que efetivamente exerciam poderes negociais dominantes, sub- metendo na prética os demais contratantes a situacSes injustamente des- vantajosas e abusivas. © poder negocial, como qualquer poder livre de controle social ou paiblico, leva ao abuso. O perfodo hist6rico do predominio do individualismo juridico e da legislagao liberal é marcado pelo abuso ¢ pela exploracao da liberdade contratual, em desfavor dos contratantes mais fracos ou vulnerdveis. As constituigGes liberais, como as brasileiras de 1824 ¢ 1891, nada dis- ciplinavam sobre a ordem econémica e social, porque, segundo a Ideologia individualista do liberalismo dominante, esse eta 0 campo insuscetivel de 39 Iintervencdio estatal, que deveria ser deixado inteiramente entregue aos pode- res privados e & regulacdio espontanea do mercado. Essa experiéncia hist6ri- ca, que atravessou o século XIX ¢ 0 inicio do século XX, com reflexos até a contemporaneidade, tornou mais agudas as desigualdades sociais. Como disse Pontes de Miranda, em seus comentarios a Constituicao de 1934, “0 liberalismo aprioristico levou a resultados deploraveis: 0 Estado-setor, indi- ferente, que dexa cavarse 0 abismo entre explorados ¢ exploradore: (1987:28), e ainda: “porque a chamada liberdade econémica desprotege a0 mesmo tempo em que protege: engendra os cerceadores do comércio livre € do livre acesso as riquezas, pelo truste, pelo cartel e pelos outros meios de atuago espoliadora” (1987: 29). Em famoso discurso proferido em 1819, Benjamin Constant intuiu a distingdo que se tomou célebre entre a liberdade dos antigos ¢ a dos moder- nos, titulo alias como se tornou conhecido seu discurso, no qual o conceito de liberdade é predominantemente econémico, como liberdade de iniclativa, de propriedade e de contrato, como se Ié neste trecho: “Ie droit de ch industtie et de l’exercer; de disposer de sa proprieté, d’en abuser méme”. Em suma, a liberdade dos modernos, que ele valoriza, € entendida como nao impedimento & acdo individual, como desimpedida fruicao dos bens priva- dos, enquanto a dos antigos greco-romanos, que no conheceram a liberda- de na dimensao individual, era o status politico ou aco politica, ou seja, 0 poder de governar e decidir a res publica, ou a vida privada dos cidadaos. Os no livres nao eram cidadaos: eram escravos ow alent juris. Assim, para os antigos, a ideia de autonomia individual, um dos pilares do constitucionalis- mo modemo, era incogitével. Em nossa época, Hannah Arendt (1972: 188- 220) retoma essa interessante tematica, para demonstrar que 0 campo origl- nal da liberdade era o ambito da politica, entre os antigos; livre era o titular da aco politica, entendida como fato da vida cotidiana; era o governante entre governantes, movendo-se entre iguais. A liberdade interior, como livre- -arbittio, surgiu depois com os medievais, preparando o caminho para a lt- berdade dos modemos. A grande antinomia reside no fato de que a liberda- de, enquanto relacionada a politica, ndo € um fenémeno da vontade. Observa Arendt que o liberalismo, ndo obstante o nome, colaborou para a eliminagao da nocdo de liberdade no ambito politico. Apenas com 0 advento do Estado liberal pode cogitar-se do que pas- sou a se denominar autonomia privada, até porque o individuo e sua von- tade livre converteram-se em centro da destinacao do direito, segundo a concepeao negativa de liberdade. No Estado liberal, a autonomia justifica- va-se por si mesma. Dizer que a vontade era autOnoma ou livre era quase um trufsmo, dada a forca da ideologia dominante, que a fundava nas ideias 40 iets sta inatas de liberdades absolutas de propriedade e dos negécios. O livre jogo das forcas de mercado conduzia ao equilfbrio de interesses e dos poderes econdmicos distintos. principio da liberdade, sob a ética exclusivamente individual e do laissez faire econémico, serviu pata justificar as mais degradantes condicoes de trabalho humano. Em 1905 a Suprema Corte norte-americana anulou uma lei estadual que reduzia o horétio de trabalho dos empregados em pa- darias a sessenta horas semanals ea dez horas diérias, argumentando que 0 direito geral de fazer um contrato, mediante o qual se compra e vende o tra- balho, era parte da liberdade dos individuos reconhecida pela Constituicao (Lochner v. New York). Somente em 1937 0 tribunal modificaria seu entendi- mento (West Coast v. Parrish), a0 admitir a constitucionalidade de uma let que estabelecera o salério minimo para as mulheres. 2.2. CONTRATO E ESTADO SOCIAL Por que a teoria classica do contrato entrou em crise? Porque seus pres- supostos e sua ideologia de supremacia da autonomia individual em relacdo a0 Estado so conflitantes com a Constituigo social, amplamente difundida em todos os povos, a partir das primelras décadas do século XX. Ou, confor- me diz Francesco Galgano, “o problema nao reside em construir uma esfera de autonomia, contraposta ao Estado” (apud Lorenzetti: 2008: 233), ou como limite & soberania estatal. © Estado social, inaugurado no Brasil em 1934 e atingindo seu pice na Constituicdo de 1988, caracteriza-se, sob o ponto de vista do direito, além do objetivo declarado de promocao da justica social, pela elevacao ao plano constitucional dos sistemas de controle dos poderes privados, mediante, principalmente, a insergo da ordem econémica e social, inexistente nas constituigdes liberals. O contrato e a propriedade sao, precisamente, 08 ins- titutos juridicos que sao afetados diretamente, com tais controles. Mudam- -se 08 focos: a autonomla individual, ao invés de instrumento de limitacao do poder estatal, 6 substituida pela limitacao estatal dos poderes econdmi- cos privados, em prol do equilfbrio entre interesses individuais e interesses socials e da proteao das partes e de sistemas vulnerdveis (por exemplo, 0 consumidor € 0 meio ambiente). Por outro lado, as garantias e controles constitucionais funcionam como anteparo ou “escudo protetor” da autono- mia contratual real, ante 0 desafio, alimentado pela atual globalizacao eco- nOmica, da alianga planetéiria entre tecnologia e empresa, que procura su- plantar as garantias existentes nos direitos nacionais. Na perspectiva do an direito civil, o Estado social peculiariza-se, portanto, pela intervenc&o pabli- ‘ca, especialmente legislativa, no ambito do contrato ¢ da propriedade, me- diante a constitucionalizacao da ordem econdmica e social, funcionalizada A realizacao da justiga social. ‘A Constituigo deixou de ser apenas a fonte suprema do direito pa co, reguladora da organizacao do Estado e garantidora dos direitos dos cida- dios ~ as liberdades pAblicas oponiveis ao Estado -, para converter-se, tam- bém, em lei fundamental do direito privado, reguladora das diretrizes essencials das relacées entre os privados, com eficdcia imediata e direta. A Constituisdo, além da oposicao ao despotismo politico, tipica do constitu- cionalismo liberal, também se pe em oposicao ao despotism econdmico. (0 Estado nao é mais apenas 0 garantidor da liberdade e da autonomia contratual dos individuos; vai além, intervindo profundamente nas relagdes contratuais, ultrapassando os limites da justiga comutativa para promover nao apenas a justica distributiva, mas também a justica social. Diferente- mente da justica comutativa (dar a cada um 0 que é seu, considerando cada ‘um como igual ~ transportando-se para o contrato o principio da igualdade juridica formal) e da justica distributiva (dar a cada um o que € seu, conside- rando a desigualdade de cada um ~ no plano contratual, atribuindo mais tutela Juridica ao contratante que o direito presume vulneravel, a exemplo do trabalhador, do inquilino, do consumidor, do aderente), a justiga social implica transformacao, promocdo, mudanca, segundo o preciso estalo constitucional: “reduzir as desigualdades sociais” (arts. 32, I, € 170, VII, da Constituicdo brasileira). Com efeito, enquanto as justicas comutativa ¢ dis- tributiva qualificam as coisas como esto, a justica social tem por fito trans- formé-las, de modo a reduzir as desigualdades. ‘A Justiga social esta bem definida em decisto da Corte Suprema de Justica da Nagao, da Argentina, de 1974, como “a justica em sua mais alta expresso; consiste em ordenar a atividade intersubjetiva dos membros da comunidade e os recursos com que esta conta, com vistas a permitir que todos e cada um de seus membros participem dos bens materials e espiritu- ais da civilizacdo; € a justica por meio da qual se consegue ou se tende a alcangar 0 bem-estar, isto 6, as condigdes de vida mediante as quais € possi- vel a pessoa humana desenvolver-se conforme sua dignidade” (Mosset Itur- raspe, 2005: 83). Para Wieacker (1980: 624), a transmutacao do Estado liberal burgués para o Estado social, no ambito do direito privado, notadamente do direlto contratual, indica trés caracterfsticas essenciais: a) a relativizacao dos direi- tos privados pela sua fungo social; b) a vinculagao ético-social desses direi- 108; ¢) 0 recuo do formalismo do sistema de direito privado classico. Na limi- 42, i i taco do contetido dos direitos subjetivos dos individuos manifesta-se 0 niicleo do principio do Estado social: a responsabilizacdo nao apenas da sociedade, mas também do proprio individuo pela existéncia social e pelo ber-estar dos outros. (0 Estado social nao rompeu intelramente com os pressupostos do Es- tado liberal, tendo buscado solucao de compromisso entre os valores indivi dualistas e os valores solidarios. Essa caracteristica é assinalada por Pietro Barcellona (1998: 148), para quem a reformulacao das relagSes entre o indi- viduo e a comunidade, entre comunidade, sociedade e Estado se realiza através da conservacao dos direitos fundamentais individuais, a introducao contextual do vinculo de socialidade e a previstio de intervencdes corretivas pelos poderes piblicos; 0 marco do individualismo ¢ o principio da solida- riedade social so os dois polos em torno dos quais gira essa transformacao. ‘Ao longo do século XX a convivéncia das constituigées socials brasilel- as com o Cédigo Civil liberal de 1916 gerou impasses e contradigdes com as legislages protetoras de variados contratantes vulnerdveis, cujo fosso fol aprofundado com 0 advento do Cédigo de Defesa do Consumidor, em 1990. O excesso de individualismo juridico nao fot inteiramente podado pelo C6- digo Civil de 2002. A dificil aplicacao dos princpios sociais dos contratos deveu-se ao esforco argumentativo de parte da doutrina voltada a constitu- cionalizacao do direito civil, cujo principal postulado reside na eficdcla ime- diata e prevalecente das regras e principios constitucionais sobre o direito infraconstitucional, que melhor reproduzem os valores existentes na socie- dade, no seu momento hist6rico. As vicissitudes por que tem passado 0 contrato ap6s 0 advento do Es- tado social refletiram-se nos limites da autonomia da vontade, tanto negati- ‘vos quanto positivos. A doutrina tradicional ¢ liberal do contrato aludia ape- nas e genericamente aos bons costumes e a ordem piblica. Todavia, o imperativo de justica social, predominante nas chamadas constitulgdes so- ciais, fez com que crescessem técnicas juridicas de limitacao da liberdade de contratar, mediante normas cogentes. Por outro lado, prinefpios sociais do contrato (fungao social, boa-fé objetiva e equivaléncia material) passaram a conformar a autonomia da vontade, a qual chega a ser desconsiderada em situag6es de natural desequilibrio de direitos e obrigagdes, como se dé com 08 contratos de adestio a condigGes gerais. 2.3. CONTRATO COMO CATEGORIA DA ORDEM ECONOMICA CONSTITUCIONAL A atividade econémica, regida pela ordem econémica constitucional, realiza-se mediante contratos. A atividade econdmica € um complexo de 43 tos contratuais direcionados a fins de producao e distribuicao dos bens ¢ servigos, que atendem as necessidades humanas e sociais. Os principios gerais da atividade econdmica, contidos nos arts. 170 ¢ seguintes da Cons! tuigdo brasileira de 1988, revelam que o paradigma de contrato neles conti- dos nao & o mesmo da concepgao liberal, a qual contempla 0 contrato entre individuos auténomos ¢ formalmente iguais, realizando uma funcdo mera- mente individual. _ A Constituicao do Estado social, além das funcdes classicas de organi- zago do Estado, delimitando o poder politico, e de garantia das liberdades individuais, incorporou outra funcio, que a identificara: a de reguladora da ‘ordém econdmica e social. direito civil constitucional salienta a centralidade da pessoa ¢ dos valores a ela imanentes, que a Constituicdo brasileira elevou como funda- mento da organiza¢do social e do Estado Democratico de Direito (art. 1°, IID, ao lado da solidariedade social, o que conduz a uma concepcao do con- trato que nao se exaure na autorregulaco dos interesses privados. A igual- dade meramente formal € substituida pela equivaléncia ou equilibrio mate- rial do contrato, principalmente nos contratos massificados. Todo poder sem controle degenera em abuso, jé advertira Montesquieu. Nao apenas 0s po- deres piiblicos necessitam de controle, mas também os poderes privados, principalmente com a magnitude de megaempresas atuais e com a realidade dos contratantes juridicamente vulnerdvels, assim considerados pelo direito. Uma das maiores caracterfsticas do contrato, na atualidade, € a neces- sidade de equivaléncia material das prestacbes, que perpassa todos os fun- damentos constitucionals a ele aplicéveis. Esse principio preserva a equa- go e 0 justo equilibrio contratual, seja para manter a proporcionalidade Inicial dos direitos e obrigacSes, seja para corrigit os desequilibrios superve- nientes. Com excegao da justica social, a Constituicao brasileira nao se refere explicitamente & fungao social do contrato. Fé-lo em relacao a propriedade, em varias passagens, como no art. 170, quando condicionou o exercicio da atividade econémica a observancia do principio da fun¢ao social da prop dade. A propriedade é o segmento estatico da atividade econémica, enquan- too contrato € seu segmento dinamico. Assim, a fun¢ao social da proprieda- de afeta necessariamente 0 contrato, como instrumento que a faz circular. Em uma economia de mercado, submetida a regulacdes juridicas e so- ciais, como a brasileira, as diretrizes gerais do principio da justica social devem estar estreitamente alinhados aos principios de protecao do meio am- biente, consumidor, do patriménio pablico e do patrim6nio hist6rico e artis- 44 tico nacional, de condigdes de trabalho equanimes e justas, como faz a Constituigao de 1988, além da garantia da livre concorréncia, esta nao s6 no interesse dos agentes econdmicos envolvidos, mas sobretudo no interesse da sociedade destinatéria de suas atividades. De se ressaltar, igualmente, 05 valores, proclamados na Constituicdo, de igualdade, diversidade, inclusao social e acesso aos servicos de interesse econdmico geral. Note-se que 0 mercado, sob o ponto de vista do direito contemporaneo, no € uma entidade natural de liberdade e espontaneidade, como pregavam 08 fisiocratas do século XVII e a ideologia liberal da mo invisivel, mas um “estatuto normativo” (Perlingieri, 2002: 133), ou “uma unidade juridica de relagdes de trocas” (Inti, 1997185), 0 que supe sua regulaczo. Uma das mais importantes realizacdes legislativas dos princfpios cons- titucionais da atividade econOmica € 0 Cédigo de Defesa do Consumidor, que regula a relaco contratual de consumo. Seu ambito de abrangéncia € enorme, pois alcanga todas as relacdes contratuais havidas entre os destina- trios finais dos produtos e servigos langados no mercado de consumo por todos aqueles que a lei considera fornecedores, vale dizer, dos que desenvol- vem atividade organizada e permanente de producao e distribuicao desses bens. A tutela do consumidor alcanca a quase totalidade dos contratos em que se inserem as pessoas, em seu cotidiano de satisfacao de necessidades e desejos econdmicos e vitais. Outro interessante campo de transformacao da funcao dos contratos & 0 das negoclagées ou convengées coletivas, ja amplamente utilizadas no meio trabalhista. A medida que a sociedade civil se organiza, 0 contrato co- letivo se apresenta como um poderoso instrumento de solucao e regulacao normativa dos conflitos transindividuais. 0 Cédigo de Defesa do Consumi- dor, por exemplo, prevé a convencao coletiva para regular os interesses dos consumidores e fornecedores por meio de entidades representativas. Na economia oligopolizada existente em nossas sociedades atuais, 0 contrato, em seu modelo tradicional, converte-se em instrumento de exerci- cio de poder, que rivaliza com o monopilio legislativo do Estado. As condi «Ges gerals dos contratos, verdadeiros cédigos normativos privados, sao uti- lizadas pela empresa em face de todos os adquirentes e utentes de bens € servicos, constituindo em muitos pafses 0 modo quase exclusivo das rela- ‘Ges negociais. A legislacdo contratual cléssica ¢ incapaz, de enfrentar ade- quadamente esses problemas, 0 que tem levado os paises organizados a editar legislacbes rigidas voltadas & protecdo do contratante mais vulneravel. (© principal giro de perspectiva que se observa na compreensao do con- trato, em relago a atividade econOmica, ¢ a consideragao do poder que 45 cada participante exercita sobre 0 outro; do poder contratual dominante que nunca deixou de haver, mas que o direito desconsiderava, porque partia do princfpio da igualdade formal dos contratantes, sem contemplar as suas po- téncias econ6micas; ou do poder dominante de um e a vulnerabilidade juri- dica de outro, que é pressuposta ou presumida pela lei. Parece que a regulagao da atividade econémica, para conter ou contro- lar os abusos dos poderes privados, € uma conquista que as sociedades orga- nizadas nao pretendem abrir mao. Sobretudo quando se assiste ao cresci- mento da concentracao empresarial e de capital e da vulnerabilidade das pessoas que nao detém poder negocial, principalmente ante a wtilizacao mas- siva de contratos de adesao a condigGes gerais unilateralmente predispostas. Por consequéncia, 0 contrato nao pode ser concluido, executado ou Interpretado tendo em conta apenas os interesses individuais dos contratan- tes, mas o interessé social. Afinal, qualquer contrato interfere no ambiente social e no trafico juridico, ainda quando nao seja integrante de atividade ‘econémica. No Cédigo Civil de 2002, a justica social revela-se principalmen- te no avancado enunciado do art. 421 (A liberdade de contratar sera exercida em razdo ¢ nos limites da funcdo social do contrato). © conceito de funcao inseriu-se no direito a partir de estudos de juristas, na virada do século XIX para 0 século XX, que testemunharam o declinio do individualismo ¢ seu caudal de injusticas, agregando a ideia de atividade dirigida a fins de reali- zaco dos interesses socials. 2.4, O CONTRATO NA CRISE DO ESTADO SOCIAL ‘Varios estudiosos tém prenunciado o fim do Estado social, notadamen- te em razo de sua crise, anunciada a partir da década de 80 do século XX, principalmente pelo esgotamento da capacidade de resposta as demandas sociais crescentes. Todavia, em crise encontra-se o modelo de Estado prove- dor, pois as receitas piblicas nao conseguem mais atender ao projeto de solidariedade social ou de democracia social, que o animaram. Crise nlio significa fim, mas pode significar consciéncia dos limites e de como lidar com eles. ‘Sob o ponto de vista do direito, especialmente do direito constitucional, no entanto, nao ha crise do Estado social, pois este se revela pela ordenacao e regulacao da ordem econémica e social ou do poder econdmico e nao ape- nas das liberdades pablicas e dos limites do poder politico. No chamado Estado regulador, que para muitos teria sucedido 0 Estado social, o processo de intervencdo legislativa e controle estatal ¢ social da atividade econdmica, 46 paradoxalmente, cresceu. Os servigos pAblicos, que antes eram prestados diretamente pelo Estado, ao serem transferidos para a iniciativa privada pas- saram a exigir o aumento da regulacao, no interesse social, como ocorreu no Brasil. Os contratos com a massa de contratantes consumidores necessitam de tutela, para evitar 0 abuso do poder econdmico, vergastado pelo art. 173, § 48, da CF. Para alguns, impressionados com o fenémeno crescenite da globaliza- ao econdmica, jé se cogitaria de um Estado p6s-social (Amaud: 1999). Fir- mando posigao na controvérsia, entendemos que nao ha, rigorosamente, Estado p6s-social, ao menos sob o ponto de vista juridico. A crise situa-se na dimenso da ordem social insatisfeita (garantia universal de satide, educa- io, seguranca, previdéncia social, assisténcia aos desamparados, sobretu- do), ou do Estado-providéncia. No que respeita a ordem econdmica, toda- via, a crise € muito mais ideol6gica que real, pots se dirige & redugtio do Estado empreendedor ou empreséiio e das garantias legais dos mais vulne- raveis. Mas, & medida que o Estado substitul seu papel de empreendedor para o de regulador da atividade econdmica, permanece intacta a natureza intervencionista da ordem econémica constitucional, ou a “mao vistvel” do Estado. O Estado regulador fortalece ainda mais 0 processo de intervencao legislativa, administrativa e judicial nas atividades econémicas, méxime das empresas concessionarias de servicos piblicos, que lidam com coletividades de adquirentes ou utentes. © paradoxo pode ser assim esquematizado: a intervengGo juridica cresce na proporeao da reducao da atividade econdmi- ca estatal direta e do consequente aumento dos poderes privados nacionais e transnacionais. ‘Apesar de viver 0 ordenamento juridico brasileiro sob a conformacaio -constitucional do Estado social, a concepsio liberal do contrato ainda € ‘muito enraizada nos habitos e quefazeres dos juristas nacionais, para o que contribuiu a onda aparentemente vencedota da globalizacao econdmica, fundada principalmente no mercado financeiro mundial livre de qualquer regulaco e na corrente ideolégica do neotiberalismo, exigentes do encolhi- mento das garantias legais dos direitos nacionais, méxime no que concene a protec&o dos contratantes vulnerdveis, principalmente do trabalhador as- salariado, do consumidor e do usuario dos servigos ptiblicos privatizados. Esse cenério enganador de ressurgimento das crencas nas virtudes eco- nomicas do sistema de mercado livre levou alguns (Atiyah, 2000: 27) a pro- pugnar pelo retomo dos principios classicos do contrato, com interesse cres- cente (especialmente nos paises anglo-americanos) na telacao entre eles € 0s principios econdmicos (eficiéncia, custo e beneffcio), com alguma reper- cussio no Brasil, abdicando-se dos valores e principios juridicos fundamen- ar tals, A crise financeira mundial do final de 2008 pos em cheque essas con- -viegdes que pareciam ireversiveis, retomando-se a necessidade de regulacao piblica da atividade negocial e, consequentemente, da preservacao dos con- tratantes vulneraveis. 2.5. O.PRINCIPIO DA LIVRE-INICIATIVA E A LIBERDADE CONTRATUAL conceito de livre-iniciativa adotado na Constituigao brasileira, orde- nadora do Estado social, nao se confunde com 0 que foi desenvolvido se- _gundo o ideario individualista de liberdade de acumulacdo, produgao e dis- tribuigao de riquezas, sem intervengdo estatal. A Constituicdo estabelece no att. 18, IV, que so fundamentos do Estado Democratico de Direito “os valo- res sociais do trabalho e da livre-iniciativa”. Os valores sociais sao referidos tanto ao trabalho quanto a livre-i fa. Assim, os fundamentos so 0s valores socials da livre-iniciativa no esta isoladamente. A livre-iniciativa somente recebe a tutela constitucional se for desenvolvida em harmonia ‘com os interesses sociais € no apenas em razdo dos interesses individuais. Ou, como diz Eros Grau, “a livre-iniciativa nao é tomada, enquanto funda- mento da Reptiblica Federativa do Brasil, como expresso individualista, mas sim no quanto expressa de socialmente valioso” (1990: 200). Ora, a conformacao aos valores sociais implica necessariamente limitacdo, orienta- go e controle piblicos € sociais. A natureza intervencionista do Estado social, principalmente pelo de- ver de protesao das pessoas vulneraveis, social ¢ juridicamente, é incompa- tivel com a recepedo plena do principio da liberdade contratual pela Consti- tuicdo. A Constituicdo brasileira refere-se explicitamente aos valores socials, da livre-inictativa, mas ndo a liberdade contratual, porque esta é necessaria- ‘mente limitada e Iimitavel A livre-iniciativa € a liberdade de criar e exercer empreendimentos ou. atividades econdmicas. £, em suma, a liberdade de atividade econdmica. Marca a continuidade hist6rica do principio de liberdade de comércio e de inddistria, introduzido pela revolucao liberal burguesa; surgiu, pela primeira vez, com a lei francesa de 17 de margo de 1792, para liberar a indfistria € 0 comércio dos privilégios concedidos pelo soberano, no antigo regime aristo- critico-feudal. A livre-iniciativa expressou o ideario de um sistema econdmi- co concebido como autossuficiente, separado do sistema politico, regulado livremente pelo mercado, para 0 que 0 laisser-faire era tido como direito na- tural ou inato ao homem. 48 A livre-iniciativa “destina-se ao homem empreendedor, ao empresatio, aquele que vai organizar livremente a sua atividade produtiva e, portanto, definir 0 que, como, quando ¢ onde produzir dentro dos limites legals e nao para aqueles que praticam atos isolados integrantes do dia a dia dos particu- lares” (Albuquerque, 2003: 85). O empreendedor pode nao ser proprietério dos meios de produco: pode utilizar, sob risco proprio, valores patrimoniais dos outros; daf o reconhecimento constitucional, separado, da propriedade eda liberdade de iniciativa econémica privada (Galgano, 1979: 126). Consequentemente, nem todos os atos de autonomia privada ou de li- berdade contratual se enquadram no conceito de livre-iniciativa; os atos re- alizados entre pessoas particulares, inclusive contratos, sem relagdo com atividade econémica, ott 0s atos realizados no ambito do direito de familia ‘ou das sucessées sto de autonomia privada, mas nao de livre-iniciativa. A Constituicdo brasileira faz referéncia a algumas hip6teses de autonomia pr vada negocial, que sao estranhas a livre-iniciativa: a) liberdade de associa- ‘cao (art. 52, XVI); b) liberdade de testar (art. 52, XXX); ¢) liberdade de cons- titulgdo de entidades familiares (art. 226). Ha, pois, atos de autonomia privada dentro e fora da livre-iniciativa. ‘Ainda que a livre-iniciativa tenha previsao legal, seja como principio especifico, seja como pressuposto da atividade econdmica, o mesmo nao ocorre com a liberdade contratual, que ndo tem status constitucional. Nessa linha, decidir 0 Conselho Constitucional francés (Decisdo 94-348 DC) que “nenhuma norma de valor constitucional garante o princfpio da liberdade contratual”; na Deciséo 89-254 DC, o Conselho Constitucional rejeitou a existéncia de um prinefpio fundamental reconhecido pelas leis da Repabli- ca, que profba a retroatividade da lei em matéria contratual, quando houver um interesse geral (Mathieu, 2005: 35). Nos Estados Unidos, a Corte Supre- ‘ma constitucionalizou a autonomia privada durante o predominio do libera- lismo individualista, com o intuito de barrar as leis que intervinham nas re- lagdes privadas de carter econdmico, inclusive em matéria de direito do trabalho, até que em 1934 reformulou totalmente sua orientago para consi- derar constitucional a legislacao intervencionista do New Deal e, conse- quentemente, desconstitucionalizando a liberdade contratual, que passou a ser tida apenas como principio de direito privado, suscetivel de limitacao no interesse geral. Decidiu, ainda, a Corte que nem os direitos de propriedade nem os direitos contratuais so absolutos. Esse tema foi enfrentado pelo Supremo Tribunal Federal, na ADIn 319, na qual a confederacao nacional de instituigdes privadas de ensino arguit a inconstitucionalidade de lei federal, que estabeleceu controles nos valores 49 cobrados por essas InstituigSes aos seus alunos. A decisdo, que rejeitou 0 pedido, teve fundamento no princfpio da justiga social, entendendo que “pode o Estado, por via legislativa, regular a politica de pregos de bens e de servigos", ainda que privados. © voto do relator, Ministro Moreira Alves, ressalta que é fundamento do Estado Democratico de Direito “nao a livre- -Iniciativa da economia liberal cléssica, mas 0s valores sociais da livre-ini- iativa” e que, para se atender aos ditames da justica social, “é mister que se admita.que a intervencZo indireta do Estado na ordem econdmica nao se faga apenas a posteriort, com o estabelecimento de sancSes as transgressoes j@ ocorridas, mas também a priori”, até porque a eficdcia da defesa do con- tratante consumidor ficaria sensivelmente reduzida se fosse apenas a poste- riori, dificultando ou impossibilitando a recomposicao do dano sofrido. Portanto, na Constituicao brasileira, a livre-iniciativa, em sentido estri- to, no constitui principio fundamental da ordem juridica. Principio funda- mental é a conformagao da livre-iniciativa aos valores sociais que deve rea- lizar e nao ela propria, que deve ser concebida como pressuposto da atividade econémica, em virtude da opcZo constitucional pela economia de mercado regulado. Por essa razo, 0 art. 170 ndo se refere a ela expressa- mente como principio nem como diretriz da ordem econdmica. Se fosse prin- cipio fundamental do Estado e da ordem jurfdica, estariam interditados 0 Poder Legislativo e 0 Poder Judiciério (principalmente o STF) de exercerem © controle da atividade econémica, pois qualquer lei editada nessa direcao colidiria com o principio da livre-iniciativa, se assim fosse considerada. A propria natureza do Estado social ~ no ambito do controle dos poderes pri- vados econémicos ~ estaria comprometida. Segundo a Constituicao, a livre- -iniciativa tem por objetivo o progresso social, que ndo se confunde com 0 objetivos privados do empreséiio. Na esteira do entendimento de que ndo hé hierarquia a priori de um prinefpio sobre outro, e, ainda que se considere a livre-iniciativa como prin- cipio constitucional implicito, ele nao prevalece sobre principio constitucio- nal explicito, quando este entrar em conflito, no caso concreto. No RE 161.243, 0 Supremo Tribunal Federal decidiu que 0 principio da igualdade deve prevalecer sobre a livre-iniciativa, em caso de companhia aérea estran- ‘geira, cujo estatuto de pessoal concedia vantagens aos emptegados de sua nacionalidade, nao a estendendo aos empregados brasileitos, ainda que to- dos estivessem trabalhando no Brasil. Versando sobre 0 tema, na perspectiva da Constituicdo portuguesa, ‘Ana Prata (1982: 200-215) afasta a possibilidade de se conceber a tutela constitucional da autonomia privada como uma gatantia direta ou extraida da livre-iniciativa, principalmente em razao da necessidade de intervencao 50 | pblica, para que ela se realize em dois dos seus elementos essenciais: como liberdade da necessidade como liberdade em face dos poderes privados. Ressalta, ainda, seu cardter acess6rio relativamente a propriedade e a inicia~ tiva econdmica privada. Ante tais caracterfsticas, muito préximas da realida- de constitucional brasileira, ndo se pode defender a inconstitucionalidade de qualquer norma que modele a atividade negocial dos sujeitos privados. ‘Aautonomia privada ~ ou a liberdade contratual — nao € principio funda- mental, nem é principio especifico da atividade econdmica. Alguns autores procuram encontrar fundamento constitucional indireto, a partir de outros prineipios, como o da dlignidade da pessoa humana ou o da liberdade em geral (Bilbao Ubillos, 1997: 361). Porém, o silencio constitucional € preciso e elo- quent, na medida em que o Estado social relativizou profundamente a auto- nomia privada negocial, cercando-a de restricSes, limitacdes e conformacées, pelas razées jé apontadas, retirando-Ihe as caracteristicas de principio geral. ‘Alguns julgados, no entanto, inclusive do Supremo Tribunal Federal, t@m emprestado forca constitucional implicita a esse principio, a nosso ver incor- retamente, pois tal status no é compatfvel com uma constituicdo social, como ade 1988. No RE 407.688, a maioria do Supremo decidiu que nao ha imped- mento para a penhora do bem de familia de fiadores nos contratos de locacao, porno Ihe parecer sélida a alegacdo, sustentada pela minoria, de violagao do direlto constitucional 8 moradia (art. 62 da Constituicao) e do principio da dignidade da pessoa humana, que ndo se sujeitam a légica do mercado. Pre- valeceu o principio da autonomia privada do fiador e de que o direito 4 mora- dia ndo é direito subjetivo opontvel diretamente, mas “direito a prestacdes”, dependente de atividade mediadora dos poderes ptiblicos, pouco importando que o fiador e sua familia seja desalojado de sua moradia, para satisfaco do direito do crédito, tendo, ainda, como razao de decidir, evitarse 0 prejuizo que adviria para a oferta de im6veis para locacao. Neste caso, o principio da razo- abilidade, reconhecidamente admitido pela Corte Maior como implicito na Constituigao, no fol mencionado, o que poderia fortalecer a orientacao da minoria, pois, além da fianca, a lei brasileira admite outras garantias do crédi- to do locador, ou seja, o seguro de fianga locatfcia, a cessdo fiduciéria de fun- dos de investimento e a caucdo de bens mévels, de bens iméveis ou de dinhei 10 depositada em caderneta de poupanca vinculada. 2.6. COLISAO ENTRE AUTONOMIA PRIVADA NEGOCIAL E DIREITOS FUNDAMENTAIS Para alguns autores, ante a colisdo de direitos fundamentals ¢ a auto- nomia privada negocial é razoavel o entendimento de que, quanto maior for 51 a desigualdade de poderes entre os envolvidos, mais intensa deve ser a pro- {eco ao direito fundamental em jogo, e menor a tutela da autonomia priva- da; em contrapartida, se ndo houver poder privado dominante, a autonomia privada deve receber protecao mais intensa. Para outros, hé de ser aplicada A autonomia privada e liberdade contratual, quando em conflito com direi- tos fundamentais, no caso concreto, a mesma solucao de ponderacao dos valores, norteada pela busca de equilibrio e concordancia pritica (Sarlet, 2000: 159). Para nés, a autonomia privada negocial nao tem natureza de direito fundamental, posto que nao constitucionalizada, ¢, em nenhuma hipétese, 5 pfincipios constitucionais fundamentais da dignidade da pessoa huma- na e da solidariedade social podem ser sacrificados, porque sao principios que estruturam toda a ordem juridica brasileira. Havendo colisao, € desca- bida a ponderacao de valores, para se concluir pelo favorecimento do prin- cipio da autonomia privada negocial, que tem natureza meramente infra- constitucional. © Supremo Tribunal Federal, no RE 201.819, no caso de exclusdo de s6clo de associagao sem garantia de ampla defesa, decidiu que a autonomia privada “que encontra claras limitagdes de ordem juridica, nao pode ser exercida em detrimento ou com desrespeito aos direitos e garantias de tercei- ros, especialmente aqueles positivados em sede constitucional, pois a auto- nomia da vontade nao confere aos particulares, no domfnio de sua incidén- cia e atuacao, o poder de transgredir ou de ignorar as restrigbes postas € definidas pela prépria Constituicao, cuja eficdcia e forga normativa também se impSem, aos particulares, no émbito das relacGes privadas’ Superior Tribunal de Justica também tem decidido pela prevaléncia de direito fundamental sobre a autonomia privada, principalmente quando esta colide com o principio constitucional da dignidade da pessoa humana. No HC 12.547, aplicando o principio, afastou cléusula contratual que ele- vou a divida da compradora de um automével-téxi em 464%, em menos de vinte € quatro meses, “a exigir que o total da remuneraco da devedora, pelo resto do tempo provavel de vida, seja consumido com o pagamento dos ju- 10s”, assentando-se nos arts. 12, IIL, e 32, I, da Constituicdo (dignidade da pessoa humana e solidariedade social). Assim sendo na ordem jurfdica brasileira, decis6es judiciais orientadas pela l6gica do mercado violam frontalmente os principios constitucionais fundamentais. A Constituicdo subordina tanto a livre-iniciativa quanto a au- tonomia privada negocial ao irrestrito respeito & dignidade das pessoas e & solidariedade social. No Estado social, que € 0 modelo constitucional brasi- 52. Ieiro, a intervengao estatal, nos planos legislativo, judicial e administrativo, nas relagées contratuals, sera sempre necesséria para a realizacdo desses principios. 2,7. DIRETRIZES FUNDAMENTAIS DOS CONTRATOS NA CONSTITUICAO DE 1988 Na Constituicdo de 1988 podem ser sublinhadas as seguintes diretrizes fundamentais, para o dieito contratual brasileiro: ) Valores sociais da livre-iniciativa (art. 18, IV). Como acima destaca- do, a Constituicao nao inclui a livre-iniciativa como principio fundamental da ordem juridica brasileira, ao contrério do que fez expressamente com a dignidade da pessoa humana, com a justica social e com a solidariedade social, que so macroprinefplos a partir dos quais se ajustam os principlos individuais e sociais do contrato ¢ da propria livre-iniciativa. Os valores so- ciais importam conformacao ¢ limitacao negativa e positiva da livre-iniciati- ‘va aos interesses socials, que nao podem ser por ela contraditados. Sujelta- -se, portanto, a livre-iniciativa a intervencao do legislador e do juiz, para cfetiva realizacao e verificacao de seus valores sociais. b) Defesa do consumidor (arts. 5%, XXXII, € 170, V). O contratante con- sumidor é reconhecido pela Constituicao como juridicamente vulneravel, merecedot de protecdo do Estado, principalmente nos afazeres de legislar € de julgar. Essa protecdo se da em face dos fornecedotes de produtos e servi- ‘508, que nao podem pretender tratamento igualitario, porque s4o portadores de poderes negociais dominantes. A protecdo juridica dos consumidores procura compensar-Ihes, com reforco de garantias e instrumentos legais, a desigualdade intrinseca reconhecida na relacdo de consumo. A defesa do consumidor termina por fortalecer a concretizacao da cidadania e da digni- dade das pessoas humanas, uma vez que os contratos de consumo, na so- ciedade atual, sao, em grande medida, necessérios para a propria existéncia das pessoas. O direito do consumidor resulta na mais importante limitaco & autonomia contratual, em seu sentido formal, justamente para assegurar a autonomia real do contratante. ©) Garantia do, ato juridico perfeito (art. 52, XXXVI). A lei nova nao alcanca 0 contrato que terha sido celebrado sob o império da let antiga. Essa garantia & espécie do género direito adquirido e expande o principio da forca obrigat6ria do contrato. O direito brasileiro, todavia, nao conside- ra haver retroatividade para a aplicacao da lel nova, a partir do inicio de sua vigéncia, em relacdo aos efeitos do contrato. A validade do contrato 33 nao é afetada pela lel nova, mas a eficécia dele é dividida entre os efeitos anteriores e 0s efeitos posteriores. Os anteriores, que geraram direitos ain- da nao exercidos quando do advento da lei nova, sdo inatingiveis. Os pos- terlores regem-se pela lei nova, art. 2.035 do CC. 4) Orem econdmica (art. 170). Consagra a ordem econémica brasile\- ra 0 modelo de economia de mercado regulado e funcionalizado para reali- zagao equilibrada das atividades econdmicas e da justica social. Tem por fito estabelecer as diretrzes fundamentals do controle dos poderes privados eco- némicos, cujo principal instrumento para circulacdo das riquezas produzi- das € o contrato. A orem econdmica 6 regida por principios constitucionais que‘estabelecem garantias, como a da propriedade privada e a do favoreci- ‘mento da pequena empresa, e um conjunto de limitagdes, como a defesa do consumidor, a defesa do meio ambiente, a fungdo social da propriedade a livre concorréncia. 6) Liberdade de atividade econémica (art. 170, pardgrafo tinico). Con- quista historica da burguesia liberal, a liberdade de atividade econémica, ou simplesmente liberdade econ6mica, significa organizar, produzir e, princi- palmente, fazer circular produtos e servigos, sem depender de favores do poder politico. Seu instrumento mais dinamico, no plano juridico, é 0 con- frato. A atividade € conjunto de atos juridicos ordenados a um fim, sendo que este pode ser a comercializacdo de produtos variados, como um super- mercado, ota prestagao continua e variada de servigos de satide, como uma clinica médica. Nem todos os contratos derivam de atividade econdmica, ‘muitos se realizando segundo 0 padtdo cléssico de oferta e aceitacao, nota- damente entre pessoas fisicas, como atos juridicos isolados, que esgotam sua finalidade em st mesmos. {) Vedacio do abuso do poder econdmico (art. 173, § 4°). Reconhect- mento explicito de que todo poder privado, sem controle, especialmente o poder negocial, pode redundar em abuso. principio nao se esgota nas hi- poteses referidas nessa norma constitucional (dominacao de mercados, eli rminagao da livre concorréncia, aumento arbitrario dos lucros), voltada mais 2 atividade empresarial, mas também tem reflexos profundos no exercicio dela, que se vale do instrumento contratual. {) Intervengao normativa e regulacdo da atividade econémica (art. 174). Ao Estado legislador, administrador e juiz compete intervir mediante normas jurfdieas e regular a atividade econOmica, inclusive na aplicacao do diretto, de modo a que ela nao contrarie 0s valores e principios constitucio- nis. Essa regra autoriza 0 legislador a editar lels que tegulem determinados contratos, prineipalmente para proteger os figurantes vulneréveis. 54. | | sealant fh) Controle de producao e comercializacdo de substancias perigosas (art. 225, § 12, V). Essa norma assegura o controle da citculagao de técnicas ¢ substancias reconhecidamente perigosas, ou seja, que comportem risco para a vida das pessoas que a adquirirem ou usarem, para a qualidade da vida coletiva e para o meio ambiente. Nao pode a atividade econdmica ser livre nesses casos, sem controle do Poder Piblico, pois os interesses sob risco so superiores. Ndo se trata de vedagao, mas de exercicio controlado. PRINCIPIOS DO CONTRATO .. Sumérlo: 3.1. Principios juridicos e sua classificago nos contratos. 3.2. ‘Autonomia privada negocial. 3.3. Principio da forea obrigat6ria. 3.4. Prin- ciplo da relatividade dos efeitos do contrato. 3.5. Principios sociais dos ‘contatos. 3.6. Principio da funedo social. 3.7. Princfpio da equivaléncia material. 3.8. Princfpio da boa-fé objetiva. 3.1. PRINCIPIOS JURIDICOS E SUA CLASSIFICAGAO NOS CONTRATOS ‘A forca normativa dos principios juridicos, que tém incidéncia propria € direta sem interposicao do legislador ordinario, sejam eles constitucionais. ou nao, legalmente explicitos ou implicitos, constitui uma das mais impor tantes transformages do modo de se conceber e aplicar o direito, nas tilti- mas décadas. A forca normativa do princfpio se expressa de forma peculiar = com superagao do método tradicional de subsungao do fato a norma -, pois seu contetido é propositadamente indeterminado, de modo a realizarse plenamente em cada caso concreto. Assim, ao mesmo tempo em que regula € conforma as condutas do caso concreto, as circunstancias deste delim!- tam-tIhe o alcance. Outro ponto importante da contemporanea concepcao dos principios juridicos é a de sua primazia na hierarquia normativa, inver- tendo-se a destinacdo supletiva a que estavam relegados na Lei de Introdu- ‘$40 a0 Cédigo Civil. A opsao do Cédigo Civil pelos principios ¢ conceitos indeterminados realimentou os argumentos contratios dos tradicionalistas, principalmente quanto ao recelo do chamado “ativismo judicial” dos magistrados. Soma-se a isso a alegacdo, disseminada pelos que advogam a expansdo da globaliza- 40 econémica, do risco da “quebra dos contratos”, e, consequentemente, da seguranca juridica. Esses recelos e riscos sao injustificaveis, pois os jufzes Drasileiros estao lidando razoavelmente com os modelos abertos de interpre- taco, que incluem ndo apenas os principios, mas as clausulas gerais € os conceitos indeterminados. Sao, por outro lado, ponderavel preco a pagar pela constante adaptacao do direito as mudancas sociais, que a ductilidade dos prinefpios permite alcangar com mais eficiéncia, em virtude, exatamen- 56 te, do que é considerado problematico pelos ctiticos, ou seja, a indetermina- do de seus contetidos. Sob outro angulo, o discurso pelo cumprimento it- restrito dos contratos, impedindo a revisio Judicial, mascara interesses hegemOnicos dos poderes econémicos, que utilizam os contratos para exer- cicio do poder negocial dominante. Dividimos os principios contratuais em duas grandes classes, consoli- dadas em dois momentos histdricos, e que convivem sob iniluxos colidentes de tensdo e harmonia em razao de fins distintos, a saber, os princ{pios indi- viduais dos contratos e os principios sociais dos contratos. (s principios individuats sdo os que determinam a fungdo individual do contrato. Tém como paradigma o modelo de contrato que se desenhou durante a hegemonia do Estado liberal, corporificando nas codificacdes a concepco iluminista da autodeterminacao individual. Podem ser assim agrupados: 4) principio da autonomia privada negocial; ) principio da forga obrigatoria; ©) principio da relatividade dos efeitos do contrato. s principios sociais dos contratos que o sistema juridico brasileiro adota, correspondentes ao modelo constitucional de Estado social, so: a) principio da fungao social; b) principio da boa-fé objetiva; ©) principio da equivaléncia material. Nenhum principio contratual é absoluto ou ilimitado. Sempre sofrerd a concorréncia de outros, o que imp3e ao intérprete a tarefa de harmonizacao, notadamente entre os de uma classe e os de outra. 3.2. AUTONOMIA PRIVADA NEGOCIAL A autonomia privada negocial é o poder juridico coniferido pelo dlreito 0s particulares para autorregulamentacdo de seus interesses, nos limites estabelecidos. O instrumento mediante o qual se concretiza ¢ 0 negécio juri- dico, especialmente o contrato. Considerado por muitos civilistas um dos principios fundamentais do direito privado, como diz Karl Larenz, consiste na possibilidade, oferecida assegurada pelo ordenamento juridico, de os particulares regularem seus proprios interesses ou suas relagdes miituas. Ap6s 0 advento da revolugao liberal burguesa, passou a ser a expresso juridica do principio politico da autodeterminacao individual. 87 ‘No Estado liberal, 0 contrato converteu-se em instrumento por excelén- cia da autonomia da vontade, confundida com a propria liberdade, ambas impensaveis sem o direito de propriedade privada. Liberdade de contratar € liberdade de propriedade seriam interdependentes, como irmas siamesas. A Declaracao dos Direitos do Homem e do Cidadao, da Revolucao Francesa, em 1789, proclamou a sacralidade da propriedade privada (Art. 17. Sendo a propriedade um direito sagrado ¢ inviolével ..), ida como exteriorizagao da pessoa humana ou da cidadania. Emancipada da rigidez estamental da Ida- de Média, a propriedade privada dos bens econ6micos ingressou em circu- aco continua, mediante a instrumentalizagao do contrato. Autonomia da vorttade, liberdade individual e propriedade privada transmigraram dos fun- damentos tebricos e ideol6gicos do Estado liberal para os principios de direi- to, com pretensio de universalidade e intemporalidade. Considere-se o mais brilhante dos pensadores da época, Kant, em sua distingdo entre autonomia e heteronomia. A autonomia é o campo da liber- dade, porque os seres humanos podem exercer suas escolhas ¢ estabelecer regras para si mesmos, coletivamente ou interindividualmente. A heterono- mia, por seu turno, € 0 campo da natureza cujas regras 0 homem nao pode modificar e esta sujeito a elas. “A necessidade natural era uma heteronomia das causas eficientes; pois todo 0 efeito era s6 possfvel segundo a lei de que alguma outra coisa determinasse & causalidade a causa eficiente; que outra coisa pode ser, pois, a liberdade da vontade sendo autonomia, isto é, a pro- priedade da vontade de ser lel para si mesma?” (1986: 94). Assim, 0 mundo ético, em que se encartaria o direito, seria o reino da liberdade dos individuos, enquanto tais, porque a eles se dirige o principio cestruturante do imperativo categ6rico kantiano, Na fundamentagao filos6fi- ca kantiana, a autonomia envolve a criacdo e aplicagao de todo o dieito. Posteriormente, os juristas deram feigdo dogmatica estrita ao principio da autonomia, significando o espaco de autodeterminacao dos interesses priva- dos, de onde emerge 0 contrato. ‘A terminologia é controvertida. A expresso mais difundida e antiga € autonomia da vontade, especialmente nos sistemas que sofreram influen do direito frances, que expressa a importancia atribufda a vontade individu- al, na sua dimensio psicolégica. A opcao por autonomia privada, notada- mente nos direitos alemao e italiano (Ferri, 1959: 3), revela a preferéncia pela teoria da declaracao, ou seja, pela vontade que se declarou ou se exte- Horlzou. Substituindo-se autonomia da vontade por autonomia privada negar-se-la a vontade real ou psicolégica a fungao de causa de efeitos juri- dicos, ou de elemento nuclear do suporte fatico suficiente do contrato, que 38 mereceria a incidéncia da norma juridica. Pontes de Miranda condena am- bas as expresses, preferindo autorregramento da vontade, porque autono- mia indica poder de producao de norma que os particulares ndo deteriam, ¢ porque o adjetivo “privada” afastaria o autorregramento da vontade em direito pablico. ‘Apesar do esforgo doutrinério em demonstrar a exceléncia de cada de- nominacao ou de suas finalidades diferenciadas, no vemos razSes consis- tentes para tais distingSes, que so resultantes de momentos hist6ricos ou de opgies doutrinarias e ideol6gicas. Com relacdo as duas denominagdes mais difundidas, a autonomia da vontade exprime 0 predominio do indlivi- dualismo e da soberania da vontade individual, principalmente no século XIX e infcio do século XX (teoria da vontade, ou subjetivista), enquanto a ‘autonomia privada distancia-se da vontade interior e atribut primazia A sua exterlorizacZo e a limitagio posta pelo ordenamento juridico (teoria da de- claracZo, ou objetivista), por exigéncias de justica social. S40 momentos da- tados: 0 ambiente da primelra € o Estado liberal; o da segunda, o Estado social. principio do autorregramento da vontade foi concebido por Pontes de Miranda como alternativa ao prine{pio tradicional da autonomia da von- tade, como o espago que o direito destina as pessoas, dentro de limites pre- fixados, para tomar juridicos atos humanos e, pois, configurar relacdes juri- dicas e obter eficdcia juridica, O autor repele o autorregramento da vontade como espaco criador de normas, mediante os neg6cios Jurfdicos: quem usa da autonomia privada “fala sobre interesses proprios, sem obrigar aos ou- tos, obrigando-se a si mesmo” (1974, v. 3: 54). O fato juridico (do qual 0 rneg6cio juridico € espécie) € o elemento propulsor da eficécia juridica. O poder de escolha, no espaco de autorregramento, resulta em efeitos queridos pelos figurantes do negécio, que sao reconhecidos pelo sistema juridico, quando neg6cio ingressa no mundo do direito. Ha, pois, poder de escolha de efeitos que se juridicizam e ndo poder de criar normas jurfdicas, ainda que individuais. principio da autonomia privada nao € passfvel de justificar-se pela via objetiva e racional do conhecimento cientifico, advertiu Hans Kelsen (1979: 57), em obra especialmente dedicada ao contrato. Quando se pergun- ta se € justo que uma ordem juridica faca uso, em qualquer medida, do principio da autonomia, seria necessario remontar-se até os tiltimos jutzos de valor, para se comprovar finalmente que 0 princfpio politico da autono- mia descansa sobre uma concepgao individualista ou liberal de vida. Para Kelsen, uma teoria do contrato, para ser cientifica, deveria valer também 59 para as obrigagSes convencionais estipuladas fora dessa concepgao, 0 que demonstraria que o principio € politico e no juridico. De acordo com Luigi Ferri (1959: 3), a autonomia privada capta 0 mo- ‘mento juridico da exteriorizacao da vontade, sendo esta, enquanto intencao ‘intima, uma instancia pré-juridica; em outras palavras, nega-se & vontade real ou subjetiva a fungao de causa de efeitos juridicos, defeito que residiria na expresso autonomia da vontade. Miguel Reale (1994: 12) sustenta que 0, poder negocial (terminologia que adota, porque a autonomia em si ndo séria fonte de direito) é fonte propria de direito, ligado ao poder que tem a vontade humana de instaurar vinculos reguladores do pactuado com ou- trem, reconhecidos pelo direito. ‘HA quem distinga o principio da autonomia privada negocial (ou, espe- cificamente, contratual) com o principio da liberdade contratual. Para Pon- tes de Miranda, o principio da liberdade de contratar seria o de as partes poderem livremente assumir deveres e obrigacées oriundos do contrato, en- quanto o principio da autonomia privada seria o de as partes poderem esco- Ther as clausulas contratuais. Mas, no fundo, os dois principios possuem @ mesma razio dogmética e a mesma origem politica. Nesse sentido, Enzo Roppo da tratamento uniforme a esses conceitos, como expressdes do mes- mo fendmeno juridico: “significam a liberdade dos sujeitos de determinar com a sua vontade, eventualmente aliada a vontade de uma contraparte no ‘consenso’ contratual, 0 contetido das obrigacdes que se pretende assumir, das modificacdes que se pretende introduzir no seu patrimOnio” (1988: 128). © Cédigo Civil de 2002 nao se refere explicitamente ao principio, mas pode ser compreendido na expressao liberdade de contratar, utilizada pelo art. 421, cujo fim social € abrangente de todas as conotagdes que Ihe so atribuidas. Tampouco o faz a Constituigao, ndo se podendo confundi-lo com © principio da livre-iniciativa (art. 170), como procuramos demonstrar no Capitulo 1. Portanto, 2 autonomia privada negocial “nao € um dogma, no é um preconceito ou um valor em si” (Perlingieri, 2002: 131), mas um principio conformado pelo ordenamento juridico e segundo seus limites. © conceito juridico de autonomia privada negocial apenas € desenvol- vido quando assume importancia a identificagdo de seus limites, na fase de transic2o do Estado liberal para 0 Estado social. Antes, era um conceito me- de forte apelo ideol6gico. Paradoxalmente, a identificacdo do prin- cipio por seus limites importa sua negacdo, pois deixa de ser explicado pelo poder de autonomia, em prol dos limites desta. Deixa de ser relevante, no plano da exposigo Juridica, o principio em si e assume importancia a deli- mitagao de seu espago. | a partir da limitacao que Ponies de Miranda refere ao “espaco deixa- do as vontades” (1974, v. 3: 54), dentro dos limites prefixados, para tornar Juridicos atos humanos e, pois, configurar relacdes juridicas. A medida que Estado legislador atribut maior dimensao social as relagdes privadas, re- duz-se 0 espago de autonomia, No plano da exposigao juridica, 0 principio apenas ¢ compreensivel como delimitacao do espaco que 0 ordenamento Ihe impde. Quanto mals interesse social, menos autonomia privada. Igualmente, na perspectiva filo- s6fica atual o fundamento moral da autonomia radica em seus limites, pois “a autonomia é, antes, uma conquista precéria de existéncias finitas, que s6 conseguem ‘se fortalecer’ quando conscientes de sua vulnerabilidade fisica e de sua dependencia social” (Habermas, 2004: 48). ‘Aautonomia privada, em relagdo ao contrato, pressupde o exercicio de trés modalidades de liberdades de escolha, interligadas: a) a liberdade de escolher 0 outro contratante; b) a liberdade de escolher o tipo contratual; ¢) a liberdade de determinacao do conteGdo. A plenitude da autonomia priva- da negocial é atingida com os contratos atfpicos, que escapam dos modelos legais e ficam sujeitos aos principios e normas gerais do direito contratual. A limitacao juridica do espaco da autonomia privada, para evitar que seja explorada pelo poder negocial dominante em seu exclusivo interesse, representa um profundo abalo ao préprio princfpio, enquanto deixa de ser explicado pelo poder de autonomia, de acordo com sua fundamentagao politica, para sé-lo por seu contrério (0 limite, a restricao). A medida que crescem 0 controle € a limitagao estatais e sociais, reduz-se 0 espago de autonomia. Sob a btica do individualismo juridico, ou da doutrina classica e volun- tarista do contrato, os limites admissiveis & autonomia privada negocial sao (05 negativos ou externos. Imaginam-se os limites da autonomia privada como formando uma barreira; qualquer coisa de externo ou extrinseco. A regra de ouro pode ser assim enunciada: tudo é permitido nas relagdes de direito privado, até aos limites legais. E 0 oposto das relacées de direito pa- blico, cujo limite € positivo: somente € permitido o que a lei determina. sentido de limitacdo exclusivamente negativa prestava-se ao modelo do individualismo juridico, enquanto prevaleceu. Mas, durante a fase de transito do Estado liberal para o Estado social, difundiram-se progressiva- mente os modelos juridicos de limitacao positiva, alcancando cada um dos planos do mundo do diteito, consistindo ora em sancao de inexisténcia da relaco contratual, ora em sanco de invalidade, ora em sancZo de ineficé- la. O direito pode valer-se da limitacdo mais forte (inexisténcia), ou menos 61 forte (ineficdcia). Na ineficacia, admite que 0 contrato ou parte dele possa existire valer, mas no produzir efeitos, a exemplo do contrato de consumo cujas clausulas nao foram de fato conhecidas previamente pelo contratante consumidor (art. 46 do CDC). As trés modalidades gerais de liberdades contratuais sao liberdades ne- gativas, voltadas a impedir a intervencao do Estado legislador ou julz. 0 Estado social desenvolven técnicas de limitagao positiva que propiciam a regulagdo legal e a revisao judicial dos contratos. Ao invés de negar, legiti- mam a intervenciio. Sao, assim: a) limitag6es da liberdade de conclusao ou de escolha do outro contra- tanté, sobretudo nos setores de fornecimento de servicos pablicos (gua, luz, telefone, transporte etc.), ou monopolizados; b) limitagSes da liberdade de escolha do tipo contratual, quando a lel estabelece os tipos contratuais exclusivos em determinados setores, a exem- plo dos contratos de licenga, concessdo ou cessao no ambito da Lei de Direi- tos Autorais, e dos contratos de parceria e arrendamento no ambito do direi- to agrario; ©) limitagées da liberdade de determinaco do contetido do contrato, parcial ou totalmente, quando a lei define 0 que ele deve conter de forma cogente, como no exemplo do inquilinato, dos contratos imobiliarios, do contrato de turismo, do contrato de seguro e dos planos de satide. A limitagdo apenas negativa € incompativel com os fundamentos do Estado social, expressados no art. 170 da Constituigo em relacao a ativid de econémica, na qual se inscreve 0 contrato como seu Instrumento de ci culagao, notadamente quanto a observancia da justica social, ou da regra paradigmética do art. 421 do CC: a liberdade de contratar sera exercida “em azo” da fungao social. 3.3. PRINCIPIO DA FORGA OBRIGATORIA (© contrato obriga as partes contratantes, como se fosse lei entre elas. Seu nao cumprimento enseja ao prejudicado a execucao forcada pelo Poder Judiciario, quando possfvel, ou o equivalente em perdas € danos. A forca obrigatéria é assegurada pelo Estado, ainda que as cléusulas e condigdes do contrato nao sejam normas juridicas por ele editadas. O princfpio é consec- tario natural da autonomia privada negocial. Sua mais antiga formulacdo foi expressa no art. 1.134 do Cédigo Civil francés de 1804: “As convenes le- galmente formadas tém forca de lei [tiennent lieu de loi] para os que as con- ttairem”. Na contemporaneidade, a doutrina tem encontrado seu fundamen- 62 to, nao mais no reconheclmento estatal da vontade, do querido pelas partes, ‘mas, sim, como propde Femando Noronha (1994:82), na tutela da confian- (ga, necessaria para garantir seguranca ao negocio celebrado, ou, segundo Jacques Ghestin (2002:188), na utilidade social do contrato e na justiga con- tratual, fator de harmonia social, pois 0 titil e o justo seriam as finalidades “objetivas do contrato; a confianga do credot seria um elemento importante da utilidade. Radicam no principio da forca obrigat6ria os dois principais efeitos pre- tendidos pelas partes contratantes: a estabilidade e a previsibilidade. A esta- bilidade é assegurada, na medida em que o que foi pactuado seré cumprido, sem depender do arbitrio de qualquer parte do contrato ou das mudancas externas, inclusive legislativas. A previsibilidade decorre do fato de o contra to projetar-se para o futuro — futuro antecipado -, devendo suas cléusulas € condigées regular as condutas dos contratantes, na presuncao de que per- ‘maneceriam previsiveis. Para alguns, em matéria contratual, basta a segu- ranga juridica, que }4 conteria a previsibilidade e a estabilidade. principio da forga obrigat6ria no apenas se dirige as partes do con- trato, mas pretende ser oponivel ao proprio legislador. Nesse segundo signi- ficado, investe-se de intangibilidade, de modo a que a lei nova, entrada em vigor apés sua celebracao, nao possa alcancar seus elementos de existéncla e seus requisitos de validade, que porventura ela tenha modificado. O con- trato € espécie de negécio juridico, que por sua vez € espécie de ato juridico, © qual se diz perfeito quando foi conclufdo de acordo com as exigéncias da lei antiga, nao podendo a lel nova ser a ele aplicada de modo retroativo. ‘Todavia, em relagao ao plano da eficacia, a lei nova, sem risco de retroativi- dade, alcanca os efeitos do contrato, a partir do inicio da vigencia daquela. Nao aleanca os efeitos J& produzidos, ainda que nao exercidos pelas partes do contrato, antes de sua vigencia, salvo se contrariarem o principio da fun- ‘do social do contrato. Portanto, a intangibilidade compreende integralmen- te os planos da existéncia e da validade e, parcialmente, 0 plano da eficdcia. Essa correta soluco, a nosso ver, foi adotada pelo art. 2.035 do CC, que assim regulou os efeitos de sua entrada em vigor. principio da forca obrigatéria sofreu profunda limitacao com o ad- vento do Estado social, principalmente pela expansao do papel do juiz na revisdo dos contratos, o que, segundo seus criticos, poria em perigo a segu- ranga e a previsibilidade. A revisdo judicial, todavia, é decoréncia do siste- ma juridico atual, que privilegia modelos juridicos abertos, dependentes da mediaco do juiz. A forca obrigatéria dos contratos tem sido mitigada pela crescente utili- zacao, na jurisprudéncia, do principio da razoabilidade. O Cédigo Civil da 63 Holanda, por exemplo, estabelece em seu art. 248 que “uma obrigacdo que existe entre as partes contratantes serd inaplicdvel tanto que, nas circuns- tancias dadas, ela seria inaceitavel do ponto de vista da razoabilidade e da equidade'. Essa diretriz € perfeitamente aplicavel ao direito brasileiro, maxi- me a partir da Constitulcdo de 1988. © Supremo Tribunal Federal tem reco- nhecido a razoabilidade como principio implicito, em conformidade com os valores constitucionais, inclusive para a declaragio de inconstitucionalida- de delleis. Igualmente, € incidente nas relacdes privadas, como expressou 0 Cédigo holandés. 3.4, PRINCIPIO DA RELATIVIDADE DOS EFEITOS DD CONTRATO ‘Também consectario légico da autonomia privada negocial, o principio da relatividade dos efeitos do contrato significa que o contrato apenas obriga vincula suas proprias partes, nao podendo ser oponivel a terceiros. Na organizago classica do direito privado, o principio ancora na concepgao de direitos pessoais, que sao relativos aos figurantes determinados (oponibili- dade as proprias partes), diferentemente dos direitos reals, cujo sujeito pas- sivo é universal e indeterminado (opontbilidade a todos). O principio da relatividade dos efeitos do contrato teve consagracao no art. 1.165 do Cédigo Civil francés de 1804, como expresso do Ideéiio de autodeterminagao individual, dispondo que as convengdes produzem efei- tos apenas entre as partes contratantes, nao podendo alcangar terceitos. Todavia, a jurisprudéncia dos tribunals franceses, especialmente apos deci- so da Corte de Cassacdo em 1864, passou a distinguir entre forca obrigat6- ria, apenas em relagdo as partes contratantes, e oponibilidade, que também se dirige a terceiros. Ainda que estes nao sejam vinculados a relagao contra- tual, devem respeité-la. Em sentido contrario, o mesmo tribunal decidiu que terceiro nao pode prevalecer-se de contrato, como no caso de arquiteto con- denado solidariamente com empreiteiro a indenizar prejutzo decorrente de construgo, que ndo pode reclamar a aplicagao de cléusula de contrato ce- Iebrado entre o empreiteiro ¢ 0 dono da obra. A funcdo social do contrato, explicitada no art. 421 do Cédigo Civil brasileiro, criou profunda contengo ao principio da relatividade dos efeitos do contrato, porque os terceiros integram necessariamente 0 Ambito social do contrato, que no apenas tém o dever de respeité-1o, mas também de nao serem por ele prejudicados. Nesse caso, emergem os deveres de protecao dos terceiros, oponiveis as partes contratantes. Quando o contrato puder produzir impactos em interesses difusos ¢ coletivos, como os do meio am- 64 biente, 08 do patrim@nio histérico e os dos consumidores, entdio terceiros so “todos”, segundo termo significativo utilizado pelo art. 225 da Constitui- cao. Um dos fatores de mitigagao do principio da relatividade dos efeitos do contrato € a doutrina da tutela externa do crédito, que implica sua oponibi- lidade a todos, no sentido de nao se admitir que terceiro impeca ou dificulte o direito do credor, no contrato. Trata-se de dever de abstengo. A violacao desse dever negativo leva a responsabilidade civil extracontratual do tercei- ro, mas em razao de dano a crédito contratual. Nesse sentido, 0 contrato atinge Indiretamente a esfera juridica de terceiro. Exemplo: determinado ar- tista conclulu contrato para divulgacdo publicitaria de produto de certa em- presa, tendo sido seduzido pela empresa concorrente a desligarse do vincu- Jo originario ¢ assumir a publicidade do produto da segunda. O fato do terceiro nao configura inadimplemento contratual, mas este fol provocado por aquele. Assim, 0 inadimplemento contratual pelo devedor e a lestio do direito do credor pelo terceiro sao dimensdes do mesmo fato ilicito. Apenas se 0s terceitos conhecerem de fato 0 contrato € 0 respectivo crédito alheio € que 0 dever geral de abstencao ¢ respeito se concretiza em sua esfera juridica, devendo entdo absterse de qualquer ato interferente, devendo observar esse dever limitativo, como tal dever de sua liberdade de agit (Santos Jr, 2003:485). Mas hd presungio de conhecimento, na hipétese de contratos com pratica social constante e reiterada. Por consequéncia, essa mitigacdo reduz a importancia da dicotomia Adireito real e direito pessoal, no que conceme a seus efeitos. Pietro Perlingie- 14 (1997; 142) tem propugnado pela unificacdo das situacdes reais e de cré- dito agrupadas indistintamente como situagdes juridicas patrimoniais, por- quanto 0 dever de solidariedade, de fundamento constitucional, impoe respeito as situacGes juridicas regularmente estabelecidas, perdendo a dico- tomia sua Justificacao hist6rica. utra limitagao do principio ocorre com a extensao imposta por lei aos efeitos do contrato, para alcancar e proteger terceiro préximo, mediante sub- -Togacdo da posicao de parte contratual. A legislacdo do inquilinato residen- cial protege ndo apenas o inquilino, parte real do contrato, mas os demais membros de sua familia, quando ele morre ou abandona o imével locado. Estabelece a Lei n. 8.245, de 1991, que morrendo o locatério ficardo sub- -rogados nos seus direitos e obrigacdes 0 cOnjuge sobrevivente, ou o compa- mhelro, ou os herdeiros necessérios, ou até mesmo as pessoas que viviam na dependéncia econdmica dele; do mesmo modo (Lei n. 12.112, de 2009), se © locatario se separar do cOnjuge ou companheiro, por separacao de fato, 6s divércio ou dissolugao da unido estavel, a locagdo prosseguiré com seu ex- -cOnjuge ou ex-companheiro. Determina o art. 576 do CC que se a coisa mével ou imével locada for alienada, o adquirente, que é terceiro, tera de respeitar o contrato de locaco se ele contiver cléusula de vigéncia em caso de alienacdo e tiver sido registrado no registro competente (de titulos e docu- ‘mentos ou de iméveis); se nao contiver a cléusula, ainda assim, o adquiren- te softerd efeitos parciais do contrato, pois teré de notificar o locatério e 86 ap6s:noventa dias da notificagao poderé despedi-lo. *- Crescem na jurisprudéncia brasileira as hipéteses de extensao da opo- nibilidade dos efeitos do contrato a terceiros. O Superior Tribunal de Justica, no‘REsp 97.590, em caso de impossibilidade de o segurado indenizar, mas cujo seguro estava quitado, decidiu pela legitimidade da vitima (terceiro) para executar diretamente a seguradora. No REsp 468.067, o Tribunal, como razes de decidir, entendeu que o principio vem sendo relativizado pela dou- trina brasileira, a exemplo da teoria do “terceiro ctimplice” e da eficécia con- tratual em relacdo a terceiros. No ambito dos contratos de consumo, afirma-se que o direito do con- sumidor “destruiu” o principio dos efeitos relativos dos contratos, ao levar a imputago por danos ao fabricante, ao distribuidor, ao atacadista, ao titular da marca, que nao celebram contrato algum com 0 consumidor (Lorenzetti, 2008: 221), como ocorre no Cédigo de Defesa do Consumidor. Nessa linha de superacao do principio, a legislagao brasileira concede agdo nao apenas ao consumidor, mas a terceiros que sejam vitimas de eventos de consumo, {as associagbes de consumidores, a0 Ministério Pablico, as entidades pabli- ‘cas, que nao tém qualquer vinculo com os contratos de consumo. A comple- xidade contratual contemporanea, com o crescimento de condigées gerais dos contratos, de contratos relacionais, de contratos coligados, de massifica- ao contratual, leva a produgdo de “efeitos juridicos existenciais e patrimo- niais, nao s6 entre titulares subjetivos da relacao, como também perante terceiros. Contrato, hoje, é relago complexa solidaria” (Nalin, 2001: 255). 3.5. PRINCIPIOS SOCIAIS DOS CONTRATOS O firme propésito de trazer 0 Cédigo Civil de 2002 ao contexto ¢ a ide- ologia do Estado social fol sempre destacado pelos autores do projeto, no- meadamente por Miguel Reale, quando se refere a diretriz de “socialidade” (1986: 9), que o teria informado. A versio moderna dos princfpios de direito privado dos contratos deve reconhecer seu papel cada vez mais central em cctiarjustica distributiva na sociedade (Collins, 2007: 171). 66 © Cédigo Civil faz mengao expressa a fungao social do contrato (art 421) e, nesse ponto, foi mais incisivo que o Cédigo de Defesa do Consumi- dor. Também ficou consagrada, definitivamente e pela primeira vez na legis- lacio civil brasileira, a boa-fé objetiva, exigivel tanto na conclusao quanto na execucao do contrato (art. 422). No que toca ao principio da equivaléncia material 0 Cédigo o incluiu, de modo indireto, nos dois artigos que discipli nam 0 contrato de adesao (arts. 423 € 424), ao estabelecer a interpretacao mais favordvel ao aderente e ao declarar nula a clausula que implique re- ndncia antecipada do contratante aderente a direito resultante da natureza do negécio, além de diversos dispositivos que fundamentam a reviso judi- cial dos contratos. Os trés princfpios sociais dos contratos so comuns a todos os contra- tos, ainda quando nao se configure o poder negocial dominante. Porém, nas hipéteses em que ha presuncao legal de sua ocorréncia, alguns prinefpios complementares adquirem autonomia e com eles se equiparam. Tal se dé com os princ{pios da vulnerabilidade e da informacao, que, nas relagdes de consumo, se deslocam dos princfpios da equivaléncia material e da boa-fé. No direito do consumidor, o principio da razoabilidade atuaria como condi- 0 € limite dos principios da equivaléncia material e da vulnerabilidade; a defesa do consumidor e a interpretacao favorével vao até os limites da razo- abilidade. Os prinefpios sociais do contrato nao eliminam os principios individu- ais do contrato, a saber, o principio da autonomia privada negocial, 0 princt- pio da forca obrigat6ria (pacta sunt servanda) e o principio da relatividade dos efeitos do contrato; mas limitam e conformam, profundamente, seu al- cance e seu contetido. A compreensao que se tem hoje dos principios sociais do contrato nao € mais de antagonismo radical aos principios individuais, pois estes como aqueles refletiram etapas da evolucao do direito contratual € do préprio Estado moderno. No Estado social os principios individuais so compativeis quando estao limitados e orientados pelos principios soci cuja prevaléncia se d4 quando nao sao harmonizéveis, depois de tentada a interpretacao conforme. 3.6. PRINCIPIO.DA FUNCAQ SOCIAL principio da fungao social determina que os interesses individuais das partes do contrato sejam exercidos em conformidade com os interesses socials, sempre que estes se apresentem. Nao pode haver contlto entre eles, pols os interesses sociais sao prevalecentes. Qualquer contrato repercute no 67 ambiente social, 20 promover peculiar e determinado ordenamento de con- duta e ao ampliar 0 trafico jurfdico. ‘A funcdo exclusivamente individual do contrato ¢ incompatfvel com 0 Estado social, caracterizado, sob o ponto de vista do direito, pela tutela explicita da ordem econémica e social, na Constituicao. O art. 170 da Cons- tituicdo brasileira estabelece que toda a atividade econémica —e 0 contrato € 0 instrument dela ~ est submetida & primazia da justiga social. Nao basta a justica comutativa. Enquanto houver ordem econ6mica e social ha- vera Estado social; enquanto houver Estado social havera func&o social do contrato. ( prinefpio da funcao social, determinado pelo art. 421 do CC, € a mais importante inovacdo do direito contratual brasileiro e, talvez, a de todo 0 Cédigo Civil. Os contratos que nao so protegidos pelo direito do consumi- dor devem ser interpretados no sentido que melhor contemple o interesse social, que inclui a tutela da parte mais vulnerdvel no contrato, ainda que nao configure contrato de adeso. O pri harmoniza-se com a modificagao substancial relativa A re gra basica de interpretagdo dos neg6cios juridicos introduzida pelo art. 112 do Cédigo Civil de 2002, que abandonou a investigaciio da intengdo subjeti- va dos figurantes em favor da declaraco objetiva, socialmente aferivel. principio da fungo social do contrato importa a especializaco, no Ambito das relac6es negocials, do principio constitucional da justica social. O contrato pode ser expresso da liberdade e pode ser também da desigual- dade e da exploracao dos vulneraveis. A justica social ndo se satisfaz sem a consideragio das circunstancias existentes, pois é justica promocional, no sentido de promover as redugGes das desigualdades materiais na sociedade. Toda atividade econdmica grande ou pequena, que se vale dos contratos para a consecucio de suas finalidades, somente pode ser exercida “confor me os ditames da justica social” (art. 170 da Constituigao). Conformidade néo significa apenas limitacao externa, mas orientagao dos contratos a tais fins. Em outras palavras, a atividade econémica é livre, no Brasil, mas deve ser orientada para realizacdo da Justica social. E neste quadro amplo que se insere o principio da fun¢do social dos contratos. ‘Também no direito estrangeiro tem sido realgada a conexao da funcao social do contrato com a justica social. Para Orozco Pardo, tendo em conta 1 Unido Europeia, a fung&o social dos contratos tem por fito “assegurar uma redistribuigo da riqueza € 0 acesso de todos os cidadaos aos bens ¢ servigos de cardter essencial, em condigGes que assegurem o pleno desfrute dos mes- mos" (2006: 178). 68 q sie ‘A func0 social ndo é excludente da funcao individual do contrato. A fungdo social nao exclui, mas conforma a fungao individual. Quando 0 con- trato, especialmente se inserido em atividade econdmica, ou parte dele, nao puder ser interpretado em conformidade com o principio constitucional da justica social e o principio decorrente da fungdo social, deve ser considerado nul. Segundo Gustavo Tepedino (2008b: 398), a funcdo social, em titima andlise, implica imposicao de deveres extracontratuais, socialmente rele- vantes € tutelados constitucionalmente. Nao deve significar, todavia, uma ampliago da proteg4o dos proprios contratantes, “o que amesquinharia a fungo social do contrato, tomando-a servil a interesses individuais e patri- moniais que, posto legftimos, j4 se encontram suficientemente tutelados pelo contrato”. {A fungao social do contrato nao se confunde com a funcao econémica do contrato, nem é plus desta, pois so categorias intelramente distintas. A fungaio econémica do contrato (quando ha, pois ha contrato sem ela, a exemplo dos contratos benéficos, ou para realizacao de fins altrutsticos € nao econdmicos) vincula-se estreitamente aos interesses particulares das partes contratuais, enquanto a funcao social é algo exterior ao contrato que a ele se integra, independentemente da vontade das partes. principio da funcao social do contrato, como os demais principios juridicos, nao é de aplicacao supletiva ou excepcional. Integra o contrato, como dever geral de conduta, independentemente do querer das partes. O contrato, por mais insignificante que seja, ostenta a dupla fungao: individual e social, realizando a primeira a autorregulacao dos interesses individuais e a segunda sua conformacao aos interesses sociais. Para Miguel Reale, 0 con- trato atualmente nasce dessa ambivaléncia, de uma correlagao essencial en- tre 0 valor do individuo ¢ o valor da coletividade. “O contrato é um elo que, de um lado, pie o valor do individuo como aquele que o cria, mas, de outro lado, estabelece a sociedade como o lugar onde o contrato vai ser executado e onde vai receber uma razo de equilfbrio e medida” (1986: 10). © principio da funcao social determina que os interesses individuais das partes do contrato sejam exercidos em conformidade com os interesses socials, sempre que estes se apresentem. Nao pode haver conflito entre eles, pols 0s interesses sociais so prevalecentes. O contrato nao pode ter finali- dade antissocial (por exemplo, contrariar o melo ambiente). Ha quem enxergue na funcdo social o ressurgimento da causa do con- trato, no direito brasileiro, que nao da guarida a negécios abstratos, ou ne- gocios que estejam sujeitos apenas a vontade das partes. Assim, torna-se 69 explicita a exigéncia de que os contratos sejam causais, cumpridores da fun- ‘cdo social. O art. 421 do CC teria exteriorizado o princfpio da causalidade negocial (Moraes, 2005: 119). No Cédigo Civil de 2002 a funcao social surge relacionada a “liberdade de contratar", como seu limite fundamental. Sao dois principios antagonicos que exigem aplicacio harmonica. No Cédigo, a funcao social nao é simples limite externo ou negativo, mas também limite positivo ¢ de determinaczio do contetdo da liberdade de contratar. Esse ¢ 0 sentido que decor dos tetmos “exercida em razo e nos limites da funcao social do contrato” (art. ). “Dai a imediata referéncia, logo ap6s a liberdade de contratar, & funcao sotial do contrato; dai a razo pela qual liberdade e func social se acham entretecidos, gerando uma nova ideia, a de autonomia (privada) solidéria” (Martins-Costa, 2007: 71). 3.7. PRINCIPIO DA EQUIVALENCIA MATERIAL © principio da equivaléncia material busca realizar e preservar o equi- Iibrio real de direitos e deveres no contrato, antes, durante e apés sua execu- 40, para harmonizacao dos interesses. Esse principio preserva a equacao © justo equilibrio contratual, seja para manter a proporcionalidade ini dos direitos e obrigacdes, seja para corrigir 0s desequilibrios supervenientes, pouco importando que as mudancas de circunstancias possam ser previsi- veis. O que interessa nao € mais a exigéncia cega de cumprimento do con- trato, da forma como foi assinado ou celebrado, mas se sua execugio ndo acarreta antagem excessiva para uma das partes e desvantagem excessiva pata outra, aferivel objetivamente, segundo as regras da experiéncia ordind- tia e da razoabilidade. Parafraseando Pietto Barcellona, a equivaléncia ma- terial se apresenta como “o direito desigual da racionalidade material” (1998: 190), que ele refere ao direito substantivo prevalecente no Estado social. ‘No Cédigo Civil o principio teve introdugdo explicita nos contratos de adesdo. Observe-se, todavia, que o contrato de adesio disciplinado pelo Cédigo Civil tutela qualquer aderente, seja consumidor ou nao, pois nao se limita a determinada relagio juridica, como a de consumo. Esse principio abrange o principio da vulnerabilidade jurfdica de uma das partes contratan- tes, que o Cédigo de Defesa do Consumidor destacou. principio da equivaléncia material rompe a barreira de contencdo da igualdade juridica e formal, que caracterizou a concepsao liberal do contra- to. Ao juiz estava vedada a consideracdo da desigualdade real dos poderes contratuais ou o desequilibrio de direitos e deveres, pois 0 contrato fazia lei 70 entre as partes, formalmente iguais, pouco importando 0 abuso ou explora- cdo da mals fraca pela mais forte. 0 principio desenvolve-se em dois aspectos distintos: subjetivo e obje- tivo. O aspecto subjetivo leva em conta a identificacdo do poder contratual dominante das partes e a presungao legal de vulnerabilidade. A let presume juridicamente vulneraveis 0 trabalhador, o inquilino, 0 consumidor, 0 ade- rente de contrato de adesdo, entre outros. Essa presuncao € absoluta, pois nao pode ser afastada pela apreciacao do caso concteto. O aspecto objetivo considera 0 real desequilibrio de direitos e deveres contratuals, que pode estar presente na celebraco do contrato, ou na eventual mudanca do equi- Iibrio em virtude de circunstdncias supervententes que acarretem a onerosi- dade excessiva para uma das partes. ‘A equivaléncia material € objetivamente aferida quando o contrato, seja na sua constituicao, seja na sua execucao, realiza a equivalencia das prestagdes, sem vantagens ou onerosidades excessivas originaras ou super venientes para uma das partes. No direito brasileiro, a norma que melhor a expressa, na ordem positiva, € o inciso V do art. 62 do CDC, que prevé a modificasdo das clausulas contratuats que estabelecam prestagdes despropor- cionats ou sua revisdo em razdo de fatos supervententes que as tornem excesst- vamente onerosas. Também é aferida, sob o critério da tazoabilidade, na jus- ta proporcao entre a finalidade do contrato € os meios que foram nele utilizados para atingi-la (Ravalolomiarana, 2009: 222). Como disse Franz Wieacker, “o positivismo, desprezando a antiga tra- digo ~ que vinha da ética social de Arist6teles, passando pela escolastica, até o jusnaturalismo -, tinha deixado de atribuir qualquer influéncia a equi- valencia material das prestagdes nos contratos bilaterais” (1980: 599). Por essa razo, todos os institutos juridicos que levavam a justica contratual e, consequentemente, & limitagao da liberdade dos poderes negociais foram afastados pela legislacao liberal, a exemplo do Cédigo Civil de 1916. Reto- ‘mou-se o curso da historia, recuperando dando novas feigSes a esses ins- titutos solidérios, como a equivaléncia material, contribuindo para a huma- nizago ou repersonalizacao das relagbes civis e a pacificacdo social. ‘A equivaléncia material enraiza-se nas normas fundamentals da Cons- tituigdo brasileira de 1988, que veiculam os principios da solidariedade (art. 38, 1) e da justica social (art. 170), voltados & promogao da mudanga social € & redugao das desigualdades reals dos figurantes. © Cédigo o inclutu, de modo indireto, em preceitos dispersos, inclusive nos dois importantes artigos que disciplinam o contrato de adesdio (arts. 423 € 424), ao estabelecer a interpretacao mais favordvel ao aderente (interpreta- a tio contra stipulatorem) e ao declarar nula a cléusula que implique rentincia antecipada do contratante aderente a direito resultante da natureza do neg6- cio (cléusula geral aberta, a ser preenchida pela mediacdo concretizadora do aplicador ou intérprete, caso a caso). O contrato de adesio nas relacoes de consumo jé tinha sido regulado no Cédigo de Defesa do Consumidor; a par- tir do Cédigo Civil, 0 contrato de adesdo entre ndo consumidores também passou a ser considerado, no interesse do aderente, que, em qualquer cir- cunstancia, tem-se como juridicamente vulnerével. O Cédigo Civil também plica o principio, implicitamente, em outras matérias, caracterizadamente abertas: a lesdo, o estado de perigo, a correcaio do valor de prestagao despro- porcional, a concessdo de indenizacao complementar quando nao houver cléusula penal, a reduco equitativa da cléusula penal, a revisdo ou resolu- sao por onerosidade excessiva, a reducao da prestacao em contrato de natu- reza individual, A boa aplicagao do principio pressupSe trés requisites. Em primeiro lugar, a existéncia de uma desproporcdo manifesta entre os direitos e deve- res de cada parte. Em segundo lugar, € necessario que haja desigualdade de poderes negociais, ou seja, um poder negocial dominante a contrapartida do poder negocial vulnerdvel, que exclui sua incidéncia nos contratos pari- trios, ja que nestes ha presunco da equivaléncia, Em tercelro lugar, que as situagdes de vulnerabilidade da parte contratante sejam reconhecidas pelo direito. £ importante assinalar que o desequilibrio pode nao ser apenas jurfdi- co, que é 0 campo préprio do principio da equivaléncia material, mas tam- bém econdmico, em sistemas como o brasileiro, que admite a lesdo (CC, art. 157). Nesta, 0 desequilibrio é fundamentalmente econémico, de cuja natu- reza € a vantagem obtida pela exploragio do estado de necessidade ou de Inexperiéncia da outra parte. A falta de equivalencia material conduz a dois tipos de consequéncias: de um lado, a sangao de nulidade da parte ou da totalidade do contrato, por -violagao de norma cogente (0 principio juridico da equivaléncia material); de outro lado, a interpretacao do contrato em conformidade com o principio, quando for possivel a conservacao do contrato ou da parte dele, que sejam fontes do desequilibrio. 3.8. PRINCIPIO DA BOA-FE OBJETIVA A boa-fé objetiva é regra de conduta dos individuos nas relacGes juridi- cas contratuais. Interessam as repercussdes de certos comportamentos na 72. conflanga que as pessoas normalmente neles depositam. Contia-se no signi- ficado comum, usual, objetivo da conduta ou comportamento reconhecivel no mundo social. A boa-fé objetiva importa conduta honesta, leal, correta. E a boa-fé de comportamento. Para Menezes Cordeiro (1997: 1234), a confian- ga exprime a situacdo em que uma pessoa adere, em termos de atividade ou de crenca, a certas representagdes, passadas, presentes ou futuras, que te- nha por efetivas. O principio da confianca explicitaria o reconhecimento dessa situagfo ¢ a sua tutela. jurista e politico romano Cicero jé destacava a boa-fé, com a seguin- te f6rmula que considerava valiosa: “a fim de que de v6s e vossa fé eu nao receba perdas € danos”, a que se acrescentava estoutra: “como se age entre pessoas honestas, e sem nenhuma fraude”, ainda que reconhecesse que a maior questdo era saber o que seja bem agir e ser pessoa honesta. Cabia a0 Juiz determinar precisamente em cada espécie de negécio o que significava essa cléusula. O alicerce da justica, para Cicero, ¢ a boa-fé, ou seja, a since- ridade nas palavras e a lealdade nas convenes (2002: 37 € 133). A boa-fé objetiva, em nosso sistema, tem suas raizes mais remotas na experiéncia da fides, que € “um dos conceitos mais fecundos da experiéncia romana” (Tafa- ro, 2004: 53). Consistia, como disse Cicero, no dever de honestidade, e, também, na confianga de uma parte sobre a retido de conduta da outra. A boa-fé, no direito alemao, € denominada treu und glauben, termos que signi- ficam lealdade e confianca. Aboa-fé objetiva nao é princfpio dedutivo, nao é argumentacao dialéti- ca; é medida e diretiva para pesquisa da norma de decisdo, da regra a aplicar no caso concreto, sem hip6tese normativa pré-constituida (Mengoni, 1987: 10), mas que sera preenchida com a atuago do intérprete-julgador. © Cédigo Civil brasileiro (art. 422) refere-se a ambos os contratantes, ndo podendo o principio ser aplicado apenas ao devedor. Nas relacbes de consumo, todavia, ainda que o inciso III do art. 42 do CDC cuide de aplicé- -loa consumidores e fornecedores, é a estes que ele se impée, principalmen- te em virtude da vulnerabilidade daqueles. Por exemplo, no que conceme a informacao, o principio da boa-fé volta-se em grande medida ao dever de informar do fornecedor. Além dos tipos legais expressos de cléusulas abusivas, 0 Cédigo de Defesa do Consumidor fixou a boa-fé como cléusula geral de abertura, que permite ao aplicador ou intérprete o teste de compatibilidade das clausulas ou condigdes gerais dos contratos de consumo. No inciso IV do art. 51, a boa-fé, contudo, esta associada ou alternada com a equidade (... com a boa- -fé ou a equidade). No que respeita aos principios do contrato, a equidade 73 nao se concebe autonomamente, mas como critério de heterolntegraco tan- to do principio da boa-fé quanto do princfpio da equivalencia material. O juizo de equidade € modelo aberto oferecido ao julgador, porém limitado & decistio do conflito determinado, na busca do equilfbrio dos poderes contra- tuais, com manejo apropriado de critérios objetivos ¢ referenciaveis em abs- trato, que ndo podem ser substituidos por convicgdes pessoais. Por seu turno, 0 art. 422 do CC de 2002 associou ao principio da boa-fé ¢ qiie denominou principio da probidade (... 0s principios da probicade ¢ boa-fé). No direito ptiblico a probidade constitui prinefpio autGnomo da Ad- ministragio Pablica, previsto explicitamente no art. 37 da Constituicao, coino “principio da moralidade” a que se subordinam todos os agentes pi- blicos. No direito contratual privado, todavia, a probidade ¢ qualidade exigi- vel sempre A conduta de boa-fé. Quando muito seria prine{pio complemen- tar da boa-fé objetiva, ao lado dos principios coligados da confianga, da informagio e da lealdade. Pode-se dizer que nao ha boa-fé sem probidade, desde os antigos romanos. ‘A melhor doutrina tem ressaltado que a boa-fé nao apenas é aplicével conduta dos contratantes na execucao de suas obrigacSes, mas também ‘aos comportamentos que devem ser adotados antes da celebraciio (in con- trahendo) ou apés a extingao do contrato (post pactum finitum). Assim, para fins do principio da boa-fé objetiva, sao alcancados os comportamentos do contratante antes, durante e apés 0 contrato. O Cédigo de Defesa do Consu- midor avancou mais decisivamente nessa diregao, ao incluir na oferta toda informacao ou publicidade suficientemente precisa (art. 30), ao impor 0 de- ver ao fornecedor de assegurar ao consumidor cognoscibilidade e compreen- ibilidade prévias do contetdo do contrato (att. 46), ao tomar vinculantes 08 escritos particulares, recibos e pré-contratos (art. 48) e ao exigit a continui- dade da oferta de componentes e pecas de reposicao, apés 0 contrato de aqulsicao do produto (art. 32). (© C6digo Civil nao foi tao claro em relagao aos contratos comuns, mas, ‘quando se refere amplamente A conclusao € a execucao do contrato, admite fa interpretacao em conformidade com o atual estado da doutrina juridica acerca do alcance do principio da boa-fé 20s comportamentos in contrahen- do e post pactum finitum. A referencia A conclusao deve ser entendida como abrangente da celebracdo e dos comportamentos que a antecedem, porque aquela decorre destes. A referéncia & execucdo deve ser também entendida como inclusiva de todos os comportamentos resultantes da natureza do con- trato. Em suma, em se tratando de boa-fé, 0s comportamentos formadores ou resultantes de outros ndo podem ser cindidos. 74 a ; : : si slaiascrspan £ comumente reconhecida a boa-fé objetiva uma triplice funcao, a sa- ber, a de atuar como cénone de interpretacao € integracao do negécio juridi- co, ade fonte de deveres jurfdicos ¢ a de limite ao exercicio de direitos subje- tivos (Martins-Costa, 2004: 92). Para essas miltiplas funcSes, a base conceitual éamesma, No direito alemao, o tribunal superior deu, desde logo, ao art. 242 do CC (principio da boa-fé) uma importancia totalmente nova. Ele encarou-o no j como corretivo e principio interpretative do contetido da relacao obrigacional, mas como fundamento unitério da propria obrigacdo, de modo a que todas as restantes prescrigBes do direito das obrigagdes apare- cem apenas como manifestacdes desse principio. Se esse artigo € apenas uma norma fundamental do direito das obrigagdes, entéo € permitido ao juiz, sem prejuizo da sua vinculacao a lei, modificar ou ab-rogar qualquer norma isolada do direito das obrigacdes (Wieacker, 1980: 608). O Tribunal Constitucional alemao, em sentenca de 19 de outubro de 1993, proclamou que a boa-fé “indica limites imanentes ao poder de conformagao contratual e funda uma autorizacio para o controle judicial do contetido do contrato” (Ribeiro, 2007: 278). Uma das mais importantes aplicagdes do principio da boa-fé objetiva diz respeito ao exercfcio inadmissivel de direito, como a proibicdo de venire contra factum proprium, ou de comportamento contraditorio, também conhe- ldo como teoria dos atos proprios. Significa dizer que a ninguém é dado valerse de determinado comportamento, quando Ihe for conveniente e van- tajoso, ¢ depois voltar-se contra ele quando nao mais Ihe interessar median- te comportamento contrério (L6bo, 2005: 88). Quem deu lugar a uma situa- do enganosa, ainda que sem intengao, nao pode pretender que seu direito prevaleca sobre o de quem confiou na aparéncia originada naquela situa- 0; essa aparéncia deu lugar & crenga da verdade de uma situagao jurfdica determinada (Pulg Brutau, 1951: 102). Em sua verso contemporanea, nao pode ser concebida como principio geral do direito, mas como expresso concretizante do principio da boa-fé objetiva e da tutela da confianca (Schreiber, 2005: 269). Sdo requisitos necessarios para sua aplicacdo: a) a existéncia de uma conduta anterior, relevante € eficaz; b) 0 exercicio de um direito subjetivo pelo mesmo sujeito que cria a situacdo litigiosa, devido & contradigao existente entre ambas as condutas; c) a identidade de sujeitos que se vinculam em ambas as condutas (Borda, 1993: 12); d) a necessidade 0 merecimento de protecdo do atingido com a conduta contraditéria, pois tem de estar de boa-fé, por ter confiado na situacao criada pelo ato anterior (Pinto, 2003: 166). 5 No direito romano jé se encontravam referéncias a esse instituto, como no caso do pai que sempre tratou seu filho como sui juris e depois negou a emancipagao. No direito anglo-americano ha longa tradi¢do do instituto do estoppel, em razao do qual uma parte é impedida, em virtude de seus pro- prlos atos, de exigir um direito em detrimento da outra parte, que confiou em tal conduta e se comportou em conformidade com ela. A jurisprudéncia brasileira tem aplicado o instituto de prolbicao de venire contra factum proprium, conforme o REsp 95.539, no caso de recusa de escritura de compra e venda de imével, alegando a inexisténcia de pro- ‘messa de compra e venda escrita, mas cujo contrato, executado durante dezessete anos, foi fundamento para denunciagao de outra lide; ou o REsp 60.129, no caso de deformidade fisica pelo uso de remédio licenciado pelo Governo Federal, com base em informagées de pesquisas forecidas pela fabricante, que pretendeu exonerar-se da responsabilidade civil atribuin- do-a & Unido; ou o REsp 605.687, no caso de parte que autorizou a junta- da pela parte contrérla, em proceso judicial, de documento contendo o registro de ligagSes telefSnicas da primeira (esta com o intuito de contradi- tara segunda), e que depois ingressou com acao pedindo indenizacdo pela alegada violacio do direito de privacidade; ou o REsp 214.680, no caso de ocuupagao consentida pelos cond6minos do final de corredor de cada andar do edificio, considerada area morta, contra a qual se insurgiu posterior. mente uma cond6mina. utra hipétese de exercicio inadmissivel de direlto, para muitos recon- uzida a protbigdo de venire contra factum proprium, é a supressio, que pres- supe o exercicio surpreendente de uma posigdo juridica cujo abandono 0 titular j4 tornara aparente, permitindo o surgimento de uma posigio digna de tutela em favor de outrem. Reside a supressio, segundo Franz Wieacker (1986: 62), em uma conduta prévia de inatividade, necessariamente associa da a uma determinada durago no tempo, importando trés requisitos, segun- do Diez-Picazo, no preficio da edicao espanhola da obra de Wieacker: a) a comissao no exercfcio do direito; b) 0 decurso de um periodo de tempo longo: 6) a objetiva deslealdade no posterior exercicio. A doutrina, de modo geral, aponta a desnecessidade de verificacao da culpa, bastando a verificagao objetiva desses requisitos. Assim, para Menezes Cordeiro (1997: 811), € su- ficiente a existéncia de ind{cios objetivos de que esse direito nao seria mais, exercido, devendo ser ponderado © comportamento do titular. A supressio restou consagrada explicitamente no art. 330 do CC, que estabelece que o pagamento reiteradamente felto em outro local faz presumir rendncia do credor relativamente ao previsto no contrato. 76 (0 princfpio da boa-fé é considerado como um dos fundamentos da ar- bitragem, na resolug2o dos conilitos contratuals a ela submetidos. Assim determina, por exemplo, 0 art. 42 do Acordo sobre a Arbitragem Comercial Internacional do Mercosul, de 1998, aprovado pelo Decreto Legislativo n. 265, de 2000, e promulgado pelo Decreto n. 4.719, de 2003, com forca de let no Brasil. 17 FORMACAO DOS CONTRATOS ‘Sumério: 4.1. Momentos da formacao do contrato. 4.2. Manifestacdo de . vontade no contrato. 4.3. Oferta. 4.4. Oferta ao pablico. 4.5. Aceitacao. 4.6, NegociagBes preliminares e seus efeltos. 4.7. Conduta negocial tipica. 4.8. Formaco do contrato de consumo. 4.9. Formagao do contrato ele- tndnico. 4.4. MOMENTOS DA FORMACAO DO CONTRATO © contrato se forma quando uma parte (ofertante) faz uma oferta de uma prestaco & outra parte (aceitante) e esta a aceita, fundindo-se as duas manifestacdes de vontade em um acordo, que obriga ambas as partes. Sao, portanto, trés momentos: o da oferta, 0 da aceitacdo € 0 do acordo ou con- senso, considerados essenciais & formacao do contrato. Tendo em vista essa sequéncia de momentos, de atos ¢ comportamentos humanos, Enzo Roppo (1988: 85) qualifica a formagao do contrato como um proceso. Todavia, esse esquema de formacdo contratual, disciplinado nos arts. 427 a 435 do CC, € exclusivo para o contrato consensual paritério, fundado no consenti- mento das duas partes. Nos contratos reais paritérios, no entanto, € insufi- clente, uma vez que exigem a tradigio da coisa para que possam existir, além de oferta, aceitago e consentimento (exemplo do comodato, do depé- sito, do miituo); a tradigio € também elemento essencial da formacao dos contratos reais. Nos chamados contratos plurilaterais (ex.: atos constitutivos de sociedades empresirias ou de condominios em edificios) nao ha oferta € aceltacao, porque os interesses das partes nao sao opostos e os fins so co- muns. Nos contratos formais e solenes, a forma ow a solenidade sao elemen- tos essenciais de validade (CC, art. 166, IV); nulo é o contrato de aquisigo de im6vel, acima de determinado valor, sem forma piblica. ‘A formacao do contrato consubstancia o plano da existéncia desse ne- gOcio juridico e reflete nos planos da validade e da eficdcia. “Ao porem-se ambas as partes, por propria e livre vontade, de acordo sobre determinadas prestagées c obrigagées, resultaré que nenhuma dependerd do arbitrio da utra e ambas estardo em situacao de velar assim por seus proprios interes- ses” (Larenz, 1959, v. 1: 65). 78 A formago € também conhecida como conclusao do contrato, pois conclusao, no direito contratual, nao é término, mas sim inicio da relacao. ‘Assim, quando se diz, “o contrato foi concluido” alude-se ao seu inicio, a sua formacao, a sua celebraco. Para o seu término, deve-se usar extingao, que é genero de varias espécies de encerramento do contrato. O direito brasileiro também utiliza o termo proposta para a oferta. No momento em que ocorre o consenso, esta conclufdo contrato. A forma exigida por lei foi pressuposto que hé de ter sido satisfelto pelas ma- nifestagdes de vontade concordantes. Se nao houve concordancia, houve dissenso; e no se concluiu o contrato (Pontes de Miranda, 1972, v. 38: 55). Essencial € que cada uma das partes conheca a manifestacdo de vontade que a outra fez. Nao basta que as duas manifestacées de vontade coinci- dam. “E preciso que se acordem. £ preciso que se produzam em circunstan- cias tais que entrem no mundo juridico (existam) e tenham validade” (Ma- chado, 2003: 88). A oferta e a aceitagao so duas mantfestagdes de vontade, que podem ser expressas (declaraces) ou técitas (comportamentos concludentes), &s ‘quais 0 direito confere forga de negécios juridicos unilaterais. Enquanto nao se perfaz 0 acordo, tanto a oferta (principalmente esta) quanto a aceitacao, isoladamente, constituem neg6cios juridicos unilaterais, pois o ofertante ¢ 0 aceitante vinculam-se Imediata e diretamente as proprias manifestacdes, as- sumindo as consequéncias juridicas pelo descumprimento de cada uma. Marcos Bemnardes de Mello (2004:180) adverte que a posi¢ao jurfdica da- ‘quele que faz a oferta consiste em estar vinculado ou exposto a vincular-se se houver aceitacao por parte daquele a quem se dirigiu; nao constitui, ain- da, um dever a que corresponda um direito, porque sua manifestacdo unila- teral nao pée por si o destinatério em uma situacao juridica qualquer. O dever do ofertante nascerd se o destinatério aceitar a oferta. Os neg6cios juridicos unilaterais desaparecem quando sao definitiva- mente vertidos no consenso, que dé nascimento ao contrato, como neg6cio juridico bilateral. A importdncia da identificagao da oferta ¢ da aceitacao como negécios juridicos unilaterais auténomos € notével, quando 0 contrato nao se conclu ou se forma de modo instantaneo, seja porque a oferta ndo fol seguida imediatamente da aceitago, seja porque hé oferta ao pablico, que depende de individualizacao em cada contrato, seja porque o aceitante resi- de em outro local ou Ihe foi concedido prazo para decidir, seja porque a aceltagao nao chegou ainda ao conhecimento do ofertante, em razao do meio de sua expedico. Nos contratos instantaneos (“toma la, dé c&”), esses 79 momentos e esses negécios juridicos unilaterais nao sao facilmente percebi- dos, dando-se a impressio de 0 contrato ser concluido sem eles. Para a formagao do contrato, ndo se faz necessério que a oferta de prestacdo seja seguida de aceitacdio com contraprestago. A prestaco ape- nas € exigivel para a oferta, pois ha contratos classificados como unilaterais, que sao destituidos de contraprestacao (por exemplo, a doacao). A prestagao pode consistir em dar coisa certa, dar coisa incerta, fazer algo’ou nao fazer algo. A prestagao de fazer pode estar conjugada com uma prestacio de dar, como ocorre com 0 depésito. O depositirio obriga-se a guardar a coisa, sem poder usé-la (prestacao de fazer); igualmente, obtiga-se a restituir a coisa, quando 0 depositante o exigir (prestacao de dar). As ve- zes, hé prestagao de fazer acessoria de outra prestacao de fazer ou de pres- taco de dar. Utilizando-se 0 mesmo exemplo do depésito, exige 0 art. 629 do CC que o depositario seja também responsavel pela conservacao da coisa depositada, constituindo prestacdo acesséria da prestacio de restituir (dar). A oferta, seguida da aceitacao e do consenso, configura o modelo clis- sico do contrato consensual, fundado em manifestacdes de vontade livres conscientes. Esse modo de formagao subjetiva € inadequado para os contra- tos ndo paritarios, nos quais a oferta & objetiva e a conduta negocial tipica substitui a aceitagao, ainda quando haja vontade contraria de aceitar, ou a manifestacdo de vontade (de ofertar ou aceitar) nao é mais considerada es- sencial. Nos contratos de adesio, quem “adere” ndo manifesta aceltagao as condigdes gerais predispostas, necessariamente, podendo o direito conside- ré-las nulas, ainda que o aderente tenha declarado aceité-las. O vinculo obrigacional nao decorre da manifestacdo de vontade de aceitacZo, mas da validade das condicdes gerais, que tenham sido objetivamente reconhecidas pelo direito (no consideradas abusivas). Nos contratos de massa, de natu- reza existencial, a manifestagao de vontade é desconsiderada, atribuindo-se validade aos contratos em que se inseriram pessoas civilmente incapazes. Nos contratos de consumo, a oferta no deriva apenas de manifestacao de vontade nesse sentido, mas de todos os elementos objetivos de divulgacto ou publicidade dos produtos ou servicos, que sejam publicamente foreci- dos. Nos contratos automatizados e eletrOnicos, a manifestacao de vontade no precisa ser real, bastando sua presuncao. direito brasileiro privilegia o local da oferta ou proposta, out 0 do do- micilio do proponente, como o do lugar da formagao ou do foro do contrato, salvo se as partes estipularem de modo diferente. Essa 6 a regra tanto para 0 direito interno quanto para o direito aplicavel nos contratos intemnacionais (art. 435 do CC e art. 9° da LIC). Contudo, a presuncao do local do contra- 80 to, onde proposto, contraria a legislacao do consumidor € o principio consti- tuctonal de sua protecao, nao podendo ser aplicavel ao contrato de consumo eas demais contratagdes com partes vulnerdvels. Assim, no direito brasileito, o contrato paritério tem-se como concluido ao tempo da aceltagao, convolando esta e a oferta em acordo ou consenso, ras no lugar da oferta, 4.2. MANIFESTACAO DE VONTADE NO CONTRATO Avontade no contrato, tanto para a oferta quanto para a aceitacao, h de ser manifestada, ou exteriorizada, nao podendo reter-se no campo psiqui co do interessado. A concordancia ou consentimento é fato externo A vonta- de interior. A manifestaco pode ser expressa, técita ou, em situacdes espe- ciais e restritas, pela inacdo ou silencio. A manifestacdo expressa veicula-se mediante sinais ou signos inteligiveis, como a escrita, ou pela oralidade. £ técita quando se revela por atos que nao sao acompanhados por signos ou palavras pronunciadas ou escritas. Amanifestacdo de vontade tacita exige interpretacao dos atos ou omis- sbes, segundo as circunstancias, como manifestacdes reals de oferta ou de aceitagdo. O comerciante que entrega o objeto, que nao fot pedido, mas que Ihe parece agradaria o fregués, manifesta, tacitamente, a vontade de ofertar. Se o fregués tem conta na casa, ou goza de crédito, a saida com o objeto € aceitacdio (Pontes de Miranda, 1972, v. 38: 24). Do mesmo modo, se o clien- te tradicional da livraria receber desta os livros langados recentemente e nao 0s devolver. Ninguém, em principto, tem o dever de responder a oferta que receba, ndo podendo ser tido, como aceitacao, seu siléncio. Nem sempre calar 6 consentir. Séo as circunstancias, portanto, que vao definir se tais atos so reais manifestacdes de vontade de ofertar e de aceitar. A manifestacao de vontade, especialmente a de aceitacao, pelo siléncio nao resulta de atos do contratante, mas de sua inacdo. E possivel, quando a le! a admite. No rigor dos termos, nao ha manifestacao ou exteriorizacao da vontade, mas equipa- Taco a esta pela lei. Em principio, o siléncio deve ser entendido como recu- sa da oferta O art. 432 do CC faz depender do costume, entre os contratantes, a Aispensa de aceitagao expressa, considerando esta realizada e concluido contrato, quando nao chegar a tempo a recusa do aceitante. O tempo referi- do depende, também, das circunstancias que envolvem os costumes nego- ciais dos contratantes, a exemplo do fornecimento periédico de produtos. A 81 aceitagao tacita pode ter tido origem em manifestacdes expressas, a exemplo da renovacao de assinatura de revista, quando tiver havide concordancia expressa na assinatura inicial de que as subsequentes serdo renovadas se nao houver manifestaco expressa em contrario do aceitante, no momento oportuno. 4.3, OFERTA Aoferta ¢ a manifestago de vontade que da inicio a formagao do con- trato. £ 0 inicio ou 0 ponto de partida, com a finalidade de provocar no outro fighrante a aceitacdo. A oferta vincula o ofertante, dada sua natureza de neg6clo juridico unilateral. Esse vinculo juridico, derivado da propria mani- festagao ou declaracao de vontade, perdura até que haja aceitacao, recusa de aceitagao ou quando o ofertante, antes da aceitagao, retratar a oferta, pelos mesmos meios utilizados para sua veiculacao. A oferta pode ser a pessoa determinada ou ao piblico. A pessoa determinada pode ser presente ou ausente. Para fins da for. mago do contrato, presente é quem esta diante do ofertante e pode mani- festar sua vontade imediatamente ou dentro do prazo que ambos ajustarem. © contrato considera-se nao conciuido, com a consequente desvinculagao do ofertante, quando a oferta for feita a pessoa presente, sem prazo para resposta, ¢ ela no manifestar imediatamente sua aceitagao. Faltou 0 con- senso ou 0 acordo. O Cédigo Civil equipara pessoa presente, para fins de aceitagao ou recusa, a pessoa que contrata por telefon ou por meio de comu- nnlcagdo semethante (art. 428, 1). Em virtude da intensa revolucao tecnol6gi- ca, meio de comunicacao semelhante nao € apenas 0 que tenha idéntica fungdo do telefone, mas sim qualquer outro que atinja a mesma finalidade de comunicagao simultanea, seja ela verbal, por imagem, ou por escrito. A oferta a pessoa determinada desperta interesse, quando o destinatario €considerado ausente, ou seja, quem nao pode ser imediatamente contatado pelo ofertante. Nao se exige que resida em lugar diferente do ofertante, po- dendo ser na mesma cidade, desde que haja utilizacdo de qualquer meto para ‘comunicé-lo da oferta. As partes residentes em cidades e até paises diversos podem ser considerados presentes, se a oferta for comunicada por meio tele- fonico ou equivalente e o destinatério possa recebé-la imediatamente. Em relagdo & oferta a pessoa ausente, os ordenamentos jurfdicos se deparam com quatro teorlas: da expedicfo da oferta, ou da recepcao da oferta pelo destinatério, ou da informacao (quando efetivamente 0 destina- tario toma conhecimento da oferta), ou da declaracao (quando 0 ofertante 82 declara sua vontade, antes da expedicio). O direito brasileiro optou pelo sistema da expedicAo, a partir da qual se vincula o ofertante, independente- mente de o destinatario ter recebido a oferta, ou de ter sido informado dela. Criticando a teoria da informacao, Pontes de Miranda (1972, v. 38: 58) diz que nao se pode deixar ao arbittio do destinatérto a eficécia da manifestacao de vontade do ofertante. O destinatario tem de estar a par do que Ihe chega; o ofertante tem o dever de tudo fazer para que o destinatério possa conhecer a oferta, que sao situagdes distintas. Para desvincularse, o ofertante ha de encaminhar ao destinatario sua retrataco por meio mais rapido que o primeiro, de modo a que a respectiva comunicacdo chegue antes ou simultaneamente & comunicago da oferta. Se chegar depois desta, a retratacdo nao produzir4 efeitos. ‘A oferta a pessoa ausente também deixa de ser obrigat6ria nas seguin- tes hipoteses: a) quando tiver estipulado prazo para o destinatarlo se mani- festar e este ndo o fizer dentro nele; b) quando a oferta nao fixar prazo para a manifestacio do destinatério, mas houver transcorride prazo razoavel para a resposta, consideradas as circunstancias e a natureza do negécio. Quando a aceitacdo chegar tarde ao conheclmento do ofertante, por circuns- tancias que ele nao deu causa, a oferta ndo permanece, mas é seu dever comunicar tal fato a quem enviou a aceltacdo, sob pena de responder por perdas e danos. Cuida-se de dever de informacao, para evitar que o pretenso aceltante, em virtude da aparéncia de regular recepcao, tenha prejuizo. ‘A morte do ofertante antes da aceitagao nao apaga a vinculagao, pois a aceitactio chega ao herdeiro ou sucessor, se 0 contrario nao resultar dos ter- mos da oferta, ou da natureza do neg6cio, ou das circunstancias do caso (Ce, art. 427. 4.4, OFERTA AO PUBLICO Considera-se oferta ao piblico quando se utiliza qualquer meto de di- vulgacao coletiva e indeterminada, inclusive mediante publicidade. Para 0 Cédigo Civil, quando encerrar os requisitos essenciais ao contrato, “salvo se © contrério resultar das circunstancias ou dos usos”. Para 0 Cédigo de Defe- sa do Consumidor, é toda informacao ou publicidade, suficientemente preci- sa, veiculada por qualquer meio de comunicacao. A oferta ao piiblico é semelhante a oferta a pessoa determinada, quan- to a vinculagao juridica de quem a utiliza. £ dirigida a qualquer do paiblico ou de determinada coletividade, que tem o dieito de aceité-la, formando 0 conttato individual 83 A oferta ao piiblico € dirigida a grupo indeterminado de destinatérios, principalmente nos fomecimentos de produtos e servicos, no mercado de consumo. Para que cesse a vinculacao, mister se faz que o ofertante utilize ‘o mesmo meio de divulgacao, detxando claro o seu propésito, desde que a possibilidade de retratagao tenha sido explicitada na divulgacdo originaria. Na oferta ao paiblico, o contrato considera-se perfelto e acabado quando ha aceitagao por qualquer destinatério. “A oferta ao piblico vincula o ofertante, do mesmo modo que a oferta a determinada pessoa. Mas apresenta singularidades. Por ter como destinaté- rio a coletividade de interessados, ndo se pode exigit do ofertante a satisfa- do de todo 0 piiblico, pois tem como limite o néimero disponfvel de produ- tos ou a capacidade de prestar os servicos ofertados. Para que possa desvincularse da llimitacdo, tera, todavia, que anunciar previamente tais, limites, para que no se converta em publicidade enganosa. Por outto lado, se desejar 0 fornecedor desvincular-se totalmente da oferta ao pGblico, deve- 14 revogt-la pelas mesmas vias utilizadas (publicidade, mala-direta, correio eletrénico etc.). Portanto, a vinculacdo da oferta ao piblico nao € absoluta. ‘As vendas autométicas enquadram-se na oferta ao ptiblico. De maneira geral, as maquinas utilizadas permitem a visualizagao do produto ou servico € do preco respectivo e previamente fixado. O contrato se forma no momen- to em que o interessado insere a moeda, cédula ou ficha no valor correspon- dente, O mesmo ocorre com as ofertas on-line. 4.5. ACEITACAD Aaceitagao é manifestago de vontade, com natureza de negécio jurf- ico unilateral, que completa o consenso para a conclusao do contrato. A aceitacao pode ser expressa, 0 que supde emprego de palavras, gestos ou sinais que a exprimam, ou pelo comportamento concludente, ou pelo silén- cio. Para que o siléncio seja entendido como manifestagao de vontade, é preciso que haja dever de manifestar-se, o que ocorre em situagdes excepcio- nals; na ddivida, o siléncio no pode ser entendido como aceitacéo. Quando houver costume entre as partes, em neg6cios frequentes, a aceitacdo pode ser entendida como manifestada tacitamente, ndo havendo recusa no tempo habitualmente adotado. £ imprescindivel a definico do momento da aceitacao, porque o direl- to brasileiro o tem como 0 da conclusao do contrato. Da mesma forma que a oferta, e vinculada natureza desta, a aceitacao ocorte entre presentes € entre ausentes. Se a oferta fol entre presentes, a aceitacao somente pode ocorrer se imediatamente felta. 84 ‘Quanto as pessoas ausentes, 0 Cédigo Civil adota, para a aceltagao, a teoria da expedicao mitigada. Em principio, estabelece o art. 434, os contra- tos entre ausentes tornam-se perfeitos desde que a aceitacdo & expedida. Se apenas fosse essa a regra, coincidiriam os momentos da aceitacao e do con- ‘senso, com vinculagao a partir da expedicao. Mas 0 Cédigo Civil abre excecdes, admitindo hipéteses de efeitos pos- teriores expedicZo, para fins de ineficdcia da aceitacZo: a) a recep¢ao tar- dia da aceitacdo, pelo ofertante, em virtude de circunstancias imprevistas; b) recebimento da retratacao do ofertante, na mesma data da expedicao da aceitaco; c) quando a aceitacao chegar fora do prazo estipulado pelo ofer- tante, para recebimento. Outra excegio conduz a explicita adogao do sis- tema de recepco, que passa a ser 0 momento da concluso do contrato: quando o ofertante tiver assumido o compromisso de aguardar o recebimen- to da aceitacao, independentemente do tempo entre este e a expedicao. Es- sas varladas excecSes animam parte da doutrina a sustentar o entendimento de que 0 direito brasileiro optou pela teoria de recepcdo, quando as partes forem ausentes, nao s6 para a aceitacfio, como também para a formacao do contrato, ou pela teoria da informacdo, quando o ofertante toma conheci mento efetivamente da aceitacdo, ou por um sistema hibrido de expedicao e informagao, como quer Marcelo Lavenére Machado (2003: 92). A.aceitacao ndo pode ser condicionada ou modificativa da oferta, tanto entre presentes quanto entre ausentes. A oferta s6 admite aceitacdo integral ou sua rejeicdo expressa, tacita ou silente. Se houver aceitacao parcial, ou com modificacdes, ela se converte em oferta, invertendo-se os polos: 0 ofer- tante passa a ser aceitante e 0 aceitante passa a ser ofertante. “Nesse jogo de tenis de ofertas, tem-se de chegar ao ponto final: ou uma delas é aceita, to- talmente, e pois nao hé pensar-se em nova oferta; ou hé a recusa” (Pontes de Miranda, 1972, v. 38:26). Essa situacao é muito comum no cotidiano das pessoas, quando é possivel barganhar precos. Todavia, quando se tratar de relaco de consumo, a inversdo nao é possivel, pois, ante os deveres de pro- tego, o consumidor nunca pode assumir a posicao de ofertante, que é sem- pre do fornecedor de produtos ou servicos. 4.8. NEGOCIAGOES PRELIMINARES E SEUS EFEITOS Quando 0 contrato ndo se forma instantaneamente, costuma ser prece- dido de tratativas ou negociagdes preliminares. A doutrina tradicional nunca atribuiu qualquer consequéncia juridica a esse momento, que se reteria ape- ras no mundo dos fatos. Todavia, desde o final do século XIX, 0 direito evoluiu para atribuir responsabilidade a determinadas condutas (teoria da 385 culpa in contrahendo, atributda a thering), que levassem, injustiffcadamente, A frustragio do contrato e a prejulzos para quem depositou fundada confian- ana conclusao do contrato. Esse “misterioso e paradoxal periodo pré-contratual” (Mazeaud, 2001: 659) passou a receber a crescente atencdo dos juristas, impondo que certa margem de seguranca juridica seja assegurada desde esse periodo. Para que fosse admitida a responsabilidade pelos danos decorrentes dessas condutas, requisitos foram. progressivamente construidos, para delimitar sua abran- géncia, Por outro lado, a discussto sobre se a responsabilidade € contratual, ou extracontratual, ou mista, perdura até hoje. Na relacao contratual co- mum tendeu-se para a responsabilidade extracontratual, segundo as regras gerais da responsabilidade por danos. Na relacao de consumo, inclinou-se a doutrina especializada para a responsabilidade extracontratual de caréter objetivo (no Cédigo de Defesa do Consumidor, responsabilidade pelo fato do produto ou do servico). Ha um espaco de liberdade de desisténcia que deve ser pteservado, por forca da autonomia privada negocial. Integra o risco de qualquer negéci que uma ou ambas as partes possam dele desistit, antes da formacao do contrato. Mas h4 outro espago que € protegido, em razdo de principios fun- damentais de nosso sistema, notadamente os da boa-fé, da aparéncia, da confianca, geradores de deveres gerais de condut para os que ingressam em processo de formacao contratual. Segundo Enzo Roppo (1988: 107), a pro- tecdo juridica € necesséria quando a ruptura das negociacSes ¢ injustificada ¢ arbitréria. Se a conduta de uma das partes infunde na outra a conflanga legitima de que o contrato seré concluido, levando-a a realizar despesas (viagens, hospedagens, aquisicao de materiais, publicidade, contratacao de pessoal), a responsabilidade € de rigor. © art. 422 do CC veio dar alento as correntes que defendem a respon- sabilidade nesses casos, em virtude do principio da boa-fé, senao como res- ponsabilidade contratual em sentido estrito, porque faltaria o inadimple- mento de prestacio, ao menos como responsabilidade em razao do contrato no concluido, ou até mesmo apés a conclusao do contrato. Com efeito, a regra do art. 422 ndo se contém na responsabilidade a partir da formacao do contrato. Quando alude a conclusao do contrato, alcanca seu processo de formagao, inclusive as condutas anteriores. Pontes de Miranda jé advertia que 0 contrato conclui-se “desde o momento em que ha consenso sobre to- dos os pontos que se tiverem por essenciais” (1972, v. 38: 55), que nao sig- nifica necessariamente o da formalizacao do contrato. A boa-fé é dever geral de conduta abrangente das fases prévias, de exe- cugao e posteriores do contrato. A interptetacao do contrato conclufdo nlio 36 | j q 4 se cinge As condutas posteriores & stia formacao, pois o intérprete constan- temente tem de lancar-se ao exame dos fatos anteriores para melhor revela- ao de seus fins e significados. Antes da legislacao do consumidor, a juris- prudéncia J4 atribula maior forca a informacao velculada pela parte intetessada do que ao contrato, como escrito. Por exemplo, nos contratos de seguros, prevalecendo os folhetos de publicidade sobre a apélice que os desmentia (naqueles, dispensa de exames médicos; nesta, exclusao de do- engas preexistentes). 4.7. CONDUTA NEGOCIAL TIPICA Com o crescimento exponencial da urbanizacao, principalmente a par- tir da segunda metade do século XX, cresceram, igualmente, as ofertas de servigos e produtos ao piblico em geral, com abstracio ou reducdo do ato humano como suscetfvel de deficiéncia (nulidade, anulabilidade). Em vez disso, o direito considerou a conduta negocial tipica como juridicamente suficiente, independentemente da manifestacao de vontade de aceitacaio. ‘Autilizaco do transporte nao € aceltacdo. Quem entra no trem, ou no ‘6nibus, ou na barca, fica sujeito a pagar o preco do transporte, sem se poder indagar se essa foi sua vontade, se tem capacidade civil e se houve, ou no, defelto de vontade, ou se conhece ou nao a tarifa. Pontes de Miranda (1972, v. 38: 32), todavia, sustentou que 0 compor tamento humano, ainda que claramente nao volitivo (por exemplo, do defi- ciente mental, ou do menor), seria oferta tacita ou aceltagao tacita, porque quem foi ao trem, ao Gnibus ou a barca negociou, pois se 0 louco ou o menor precisam de transporte, deve-se consideré-los com o consentimento dos pals, tutores ou curadores, ou do Estado. Para ele, a categoria da conduta negocial tipica ou equivalente obrigaria a revisio de quase toda a doutrina juridica, como a das incapacidades e das outras invalidades por defeito de vontade, com risco da bilateralidade do neg6cio juridico. Porém, a revisio ja se operou, impulsionada pela realidade da vida, com a admissdo de outras espécies de contratos, que nao esto mais ancorados no consenso de vonta- de livre. © mundo da vida € mais forte que 0 aparato conceitual dos juristas, desenvolvido em contexto histérico que nao mais existe. Para 0s contratos massificados, ou para 0s contratos de consumo, ou para os contratos de adesdo a condicdes gerais, 0 direito teve de substituir a manifestacio de vontade de aceitar pela conduta das pessoas orientadas & aquisicao ou utilizagao de bens e servicos, que desejam ou necessitam. A conduta é negocial porque tem por finalidade a insergaio em relacao nego- 87 cial, conscientemente ou nao. A conduta € tipica porque o direito capta o comportamento padrao das pessoas, em idénticas circunstancias, endo a da pessoa determinada, que deu causa & conclusao do contrato; nesse sentido, € objetiva. Nessas hip6teses nao é a manifestagao de vontade, mas sim a conduta negocial tipica que faz nascer a relaco contratual. A doutrina alema, que primeiro estudou esse fendmeno, a partir da década de 1930, denominou-o provisoriamente de relacao contratual de fato gud contrato de fato, esta tiltima preferida pelo Tribunal Superior alemao. Posteriormente, Karl Larenz (1978: 734) avancou para nominé-lo conduta social tipica, como espécie de aceitacao. Em comum, a regra geral de que poidem surgir relagdes contratuais ndo s6 a partir de neg6cios juridicos con- tratuais, mas alnda a partir de comportamentos socials, 0 que leva ao dua- lismo da fundamentacdo das relagdes de direito privado: por um lado, um dominio particular de figuras criadas pelas responsabilizacdes assumidas por cada um; por outro, uma deducdo direta de direitos privados a partir de situagdes sociais (Wieacker, 1980: 607-608). Essas soluges doutrinarias e jurisprudenciais foram duramente criticadas pelos que nao admitem exce- Go a essencialidade da manifestacao da vontade, ou que veem riscos a0 principio da autonomia privada; mas tém retomado sua forga argumentat va, ante 0 irrefreavel processo de massificacao social. Com efeito, as condu- tas negociais tipicas independem de manifestacao de vontade real ou tacita ¢, 4 fortiorl, de capacidade negocial das partes. Essa adaptacdo do direito A mudanga social é decorréncia da conformidade a uma sociedade regida pela solidariedade social. As expresses “relacdo contratual de fato” e “contrato de fato” sfo im- precisas e inadequadas, porque nao ha contrato de fato; todo contrato € de direito e é relagao juridica. A auséncia ou desconsideracao da manifestacao de vontade levaram a esse equivoco. Tampouco € adequada a denominacao cunhada por Larenz de conduta social tipica, como aceitacao. Afinal, a ac taco ou o consentimento nao so necessérios para o surgimento do contra- to, nessas hipéteses, nem pode se vislumbrar consentimento técito na con- duta social. No exemplo do transporte piiblico, a pessoa pode ter manifestado sua vontade de ir para o destino a, mas adentrou no veiculo que tem trajeto pré-fixado para o destino b. Sua manifestacao de vontade desconsiderada, porque, para os efeitos do contrato, a conduta das pessoas que adentram no veiculo gera obrigacao contratual de pagar o prego da tari- fa, no podendo o erro invalidar o negocio. Por tais raz6es, preferimos a denominacao conduta negocial tipica, para fazer ressaltar sua natureza juri- ica, como fato juridico e nao apenas como fato social, 38. No tréfico juridico, os civilmente incapazes, especialmente menores, participam intensamente, figurando como vendedores ou compradores, que suscita a questdo da obrigatoriedade desses contratos dada a exigéncia legal de as partes acordarem no objeto e no preco, quando precisam comprar algo. A massificacao social e as desigualdades econémicas contriburam para esse fendmeno, que ndo pode ser ignorado ou tratado segundo a dog- rmatica contratual tradicional. Os dados demogréficos levantados periodica- mente pelo IBGE, inclusive da pesquisa nacional por amostragem de domi- cilios, apresentam elevado néimero de domicilios chefiados por criancas € adolescentes, que se converteram em provedores de seus nticleos familiares, em virtude da pobreza, do desemprego, de doenca ou do desaparecimento de seus pais. Vao as ruas como pequenos negociantes, acordando no objeto eno preco das coisas que vendem ou compram. O att. 166 do CC estabelece peremptoriamente que € nulo 0 negécio juridico quando celebrado por pessoa absolutamente incapaz, em que se en- quadram os menores de 16 anos. Por seu turno, 0 art. 171 considera anulé- vel 0 negécio juridico por incapacidade relativa do agente. Se entendermos que os negécios juridicos, para producao final de seus efeltos, perpassam os planos da existéncia, da validade e da eficdcia, entdo os contratos de com- pra e venda em que figuram incapazes seriam considerados invalidos. Na hip6tese mais grave dos absolutamente incapazes 0 contrato seria fulmina- do com a nulidade. Todavia, os servigos prestados ou as vendas feitas na rua, por menores de 16 anos, reputam-se validos. Considerar essas pessoas meros servidores da posse ou “Instrumentos humanos” das vontades de ou- tras, ou do Estado, importa violacdo do principio constitucional e funda- mental da dignidade da pessoa humana (art. 19, III, da CF), que tutela todo ser humano, independentemente de sua capacidade negocial. Nao se pode atribuir & pessoa a condigdo de instrumento humano, equipardvel méqu- na automética. Entendemos que as vendas feitas diretamente por incapazes, nas rela- $@es sociais massificadas, ndo se submetem ao plano da validade (nulidade ou invalidade), produzindo seus efeitos plenos (plano da eficécia). Do mes- mo modo, o incapaz que adquire produtos, no mercado de consumo, para sua utilizacao pessoal. Nao se pode supor af assentimento dos pais, tutores ou do Estado, que nao teria providenciado para que se desse tutor ou cura- dor aos incapazes, para que os contratos possam valer, a0 contrario do que afirma Pontes de Miranda (1972, v. 39: 67), pois 0 interesse protegido deles, notadamente nas relacdes de consumo, dispensa 0 consenso. Sao excecdes as regras da validade dos negocios juridicos. 89 Outro exemplo de conduta negocial tfpica € o de vendas em maquinas autométicas. O consenso das partes no prego e no objeto, para que o contra- to de compra e venda seja considerado perfeito e obtigatério, encontra par- ticular dificuldade nessas situacdes. A transacao é realizada pelo comprador mediante a insergo de moedas, cédulas ou cartées ¢ identificagao do pro- uto escolhido. O vendedor ndo esti presente, nem qualquer empregado ou preposto. O consentimento ¢ desconsiderado e substituido pelas condutas negociais tipicas do forecedor do produto e do consumidor adquirente, ain- da que absolutamente incapaz. Se, ap6s a introducao da moeda, da cédula ou do cartdo, a méquina nao libera o produto indicado, em virtude de defei- to mecanico, nao se tem rigorosamente inadimplemento do vendedor; com- pra e venda nao houve, mas pagamento indevido. A maquina de venda, posta em lugar atrativo, preenchendo os requisitos de informacao, vincula 0 detentor dela, seja proprietirio, locatério ou franqueado, que assume a posi- cao de fomnecedor em relagdo de consumo, sujelto as normas legais decor- rentes, no s6 quanto a protecéo contratual do consumidor, mas quanto As responsabilidades por fato ou vicio do produto. No direito do consumidor € absolutamente irrelevante a manifestagao real de vontade, bastando 0 fato, para que se atribuam efeitos contratuais. 4.8. FORMAGAO DO CONTRATO DE CONSUMO © Cédigo de Defesa do Consumidor considera oferta toda informagao ou publicidade, suficientemente precisa, veiculada por qualquer forma ou meio de comunicagao com relacdo a produtos oferecidos ou apresentados (art. 30), ainda que o fornecedor ndo queira ou nao tenha pretendido vincu- larse. ‘A informago e a publicidade obrigam 0 fornecedot & conclusaio do contrato, que se dé por realizada quando ha negativa em cumprir 0 que foi informado, com possibilidade de execucao especifica da obrigacao, ainda que 0 contrato ndo se tena formalizado, Assim, a informacao pré-contratu- al dispensa o pr6prio contrato. 0 dever de informar ¢ imputado ao fornecedor, que deve observar os requisitos de adequag4o, suficiéncia e veracidade. Os requisitos devem estar interligados. A auséncia de qualquer deles importa descumprimento do de- ver de informar. A adequacao diz. com os melos de informaciio utilizados e com o res- pectivo contetido. Os meios devem ser compativeis com o produto ou o sex- vvigo determinados e 0 consumidor destinatério tipico. Os signos empregados 90 ees (imagens, palavras, sons) devem ser claros ¢ precisos, estimulantes do co- nhecimento e da compreensao. No caso de produtos, a informacao deve re- ferir A composic2o, aos riscos, & periculosidade. Maior cautela deve haver quando o dever de informar veicula-se por meio da informacao publicitéria, que € de natureza diversa, Tome-se 0 exemplo do medicamento. A informa- do da composicao e dos riscos pode estar neutralizada pela informacao publicitéria contida na embalagem ou na bula impressa interna. Nessa hip6- tese, a informagao nao seré adequada, cabendo ao fornecedor provar 0 con- trio. A suficiéncia relaciona-se com a completude e integralidade da infor- magao. Antes do advento do direito do consumidor era comum a omisso, a precariedade, a lacuna, quase sempre intencionais, relativamente a dados cu referencias nao vantajosas ao produto ou servigo. A ausencia de informa- ao sobre prazo de validade de um produto alimenticio, por exemplo, gera confianga no consumidor de que possa ainda ser consumido, enquanto que a informacao suficiente permite-the escolher aquele que seja de fabricacdio ‘mais recente. Situacao amplamente divulgada pela imprensa mundial fot a das indtistrias de tabaco que sonegaram informacao, de seu dominio, acerca dos danos saiide dos consumidores. Insuficiente é, também, a informagao que reduz, de modo proposital, as consequéncias danosas pelo uso do pro- duto, em virtude do estagio ainda incerto do conhecimento cientifico ou tec- nolégico. A veracidade 6 0 terceiro dos requisitos do dever de informar. Conside- ra-se veraz a informacao correspondente as reais caracteristicas do produto edo servico, além dos dados corretos acerca de composicao, contetido, pre- $0, prazos, garantias ¢ riscos. A publicidade nao verdadelra, ou parcialmen- te verdadeira, € considerada enganosa e 0 direito do consumidor destina especial atenco a suas consequéncias. O art. I2 do Cédigo Brasileiro de Autorregulamentacdo Publicitéria estabelece que todo antincio deve ser “honesto e verdadeiro”. 0 Cédigo de Defesa do Consumidor estabelece algumas regras basicas, que podem ser assim sumariadas: a) compete ao fornecedor o 6nus de infor- mar e garantir a oportunidade do conhecimento prévio; b) 0s contratos de- vem ser redigidos de modo a facilitar a compreensao de seu sentido e alcan- ce; €) as condigSes gerais constantes de informagdo ou publicidade integram ‘ocontrato que vier a ser celebrado, salvo se forem enganosas; d) as informa- ‘Ges devem ser comretas, claras, precisas, ostensivas e em lingua portuguesa; ©) 0s instrumentos contratuais devem ser redigidos em termos claros e com caracteres ostensivos ¢ legivels (cujo tamanho da fonte ndo seré inferior ao o1 corpo doze ~ Lei n. 11.785, de 2008), de modo a facilitar a compreenséo. O descumprimento de qualquer dessas regras leva a sua ineficdcia juridica (existem, valem, mas nao produzem efeitos). A legislacao de proteco do consumidor destina a linguagem emprega- da na informacao especial culdado. Em primeiro lugar, o idioma seré o ver- néculo. Em segundo lugar, os termos empregados haverdio de ser compati- veis com consumidor tipico destinatario. Em terceiro lugar, toda a jnfofmacdo necesséria que envolva riscos ou 6nus que devem ser suporta- dos pelo consumidor seré destacada, de modo a que “saltem aos olhos”. Alguns termos em lingua estrangeira podem ser empregados, sem tisco de infrag2o ao dever de informar, quando jé tenham ingtessado no uso corren- te, desde que o consumidor tipico com eles esteja familiarizado. No campo da informatica, por exemplo, ha universalizacdo de alguns termos em Ingles, cujas tradugBes so pouco expressivas. Quando uma das partes for considerada vulnerdvel, inverte-se o 6nus do dever de informar ou de obter a informagao. A jurisprudéncia dos tribu- nais brasileiros tem consolidado o entendimento de que € 6nus do fornece- dor, nos contratos de consumo, nao s6 prestar as informagies de seu domt- nio especializado, mas assegurarse das informacSes que envolvam 0 contratante consumidor, dada a sua vulnerabilidade. E assim € para que © contratante fornecedor, que nao exigiu a informaco, nao se escuse de cum- prir sua obrigacao, alegando omissao do consumidor, pois tal procedimento configura comportamento contradit6rio. Assim, decidiu o Superior Tribunal de Justiga (AgRg no Agl 311-830) que “a empresa que explora plano de se- guro-satide e recebe contribuigdes de associado sem submeté-lo a exame, lo pode escusarse ao pagamento da sua contraprestacao, alegando omis- so ou mé-f€ nas informagdes do segurad 0 contrato de consumo também se forma mediante conduta negocial tipica de quem se comporta como consumidor de servicos ofertados ao pl- blico, independentemente de ter consciéncia desse fato ou manifestar vonta- de. Assim, hé relago contratual de consumo entre o usuario € a concessio- natia de rodovia, conforme decidiu o Superior Tribunal de Justica (REsp 467.883); a ago foi movida pela proprietaria do veiculo ~ dirigido por sua filha -, que se chocou com a mureta da rodovia e sofreu diversas avarias, a0 tentar desviar-se de animal que havia invadido a pista. © Codigo de Defesa do Consumidor cristalizou, em seu art. 46, um dos pontos mals importantes da evolugao do direito do consumidor, no mundo. Diz que os contratos s6 obrigarao os consumidores se Ihes for dada oportu- nidade de “tomar conhecimento prévio de seu contetido” e de “compreenséo 92 de seu sentido e alcance”. A cognoscibilidade, nao como ato, mas como poténcia, abrange a virtualidade do conhecimento (poder conhecer) € da compreensao (poder compreender). Conhecer e compreender nao se con- fundem com consentir ou aceltar. A cognoscibilidade tem caréter objetivo: reporta-se a conduta abstrata. A situagao concreta do consumidor individual ou sua declaraco expressa de ter conhecido ou compreendido 0 que se obrigou ¢ irrelevante e secundaria. O que importa € ter podido conhecer e ter podido compreender, a saber, se houve efetiva possibilidade e os metos para {al foram postos a sua disposicao pelo fornecedor; nao s6 a ele, mas a qual- quer consumidor destinatério do respectivo produto ou servigo. Assim, ndo integra a formaco do contrato de consumo todo contetido ou informacao que nao tiverem passado por esse crivo de cognoscibilidade. ‘A declarago ao final dos contratos de adesio, firmada pelo consumi- dor de que conhece e compreende todas as cléusulas e condigdes, ndo tem qualquer valor, porque cabe ao fornecedor provar que assegurou os melos para tal, com relacdo a todos os consumidores potenciais. Reforca-se esse raclocinio com a eficdcia erga omnes ow ultra partes da sentenca judicial, quando a impugnacdo ao contrato for objeto de acao civil pablica, ajuizada por qualquer legitimado coletivo (Ministério Pablico, associacao civil, enti- dade ptiblica). Pelo princfpio da responsabilidade solidéria dos fomecedores vincula- dos a oferta do produto, a publicidade veiculada por um obriga os demats. Nesse sentido, decidit 0 Superior Tribunal de Justica (REsp 363.939) que, diante da faléncia da concessionaria de montadora de automévels, a respon sabilidade pela informagao divulgada recai integralmente sobre a montadora. No que concerne aos contratos internacionais de consumo, que tive- ram grande expansdo com o advento da Internet, as legislagdes nacionais sobre conflitos de leis ndo so convergentes, o que deixa largo espaco de inseguranca em relago ao direito aplicavel a formacao desses contratos. No Brasil, prevalece o lugar da oferta, o que ressalta o evidente prejuizo para 0 contratante consumidor, porque nao € ele o ofertante dos produitos e servi- 0s langados no mercado de consumo, notadamente no ambito internacio- nal. A situacdo se agrava, quando se observa que o art. 3% do CDC conside- 1a 0 importador como fornecedor. No ambito dos contratos sem fronteiras, que so os contratos eletrénicos, quando alguém, em seu computador, ad- quire um produto de um fornecedor de outro pafs, termina por confundir nele as figuras de consumidor e de fornecedor. Para resolver esse dilema, a conven¢o europela sobre a lel aplicével as obrigacdes contratuais, Convengao de Roma, de 1980, estabeleceu que, 93

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