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EFICÁCIA E LEGITIMIDADE POLÍTICA DE INSTITUIÇÕES DO “TERCEIRO SETOR”:

uma reflexão sobre Direitos Humanos e Cidadania na modernidade contemporânea


Jeferson Valdir da Silva1
Ricardo Stanziola Vieira2
Rodrigo Reis Pastore3
Ester de Carvalho4

Resumo:
Este artigo investiga como os desafios de concretização dos direitos humanos, no âmbito da sociedade civil
organizada, são analisados pelas teorias sociais, tomando como referência as atuais transformações da
modernidade. Enfoca-se, fundamentalmente, o momento de passagem do plano retórico dos direitos para o plano
concreto da política. Tradicionalmente, no decorrer da modernidade, a atuação da sociedade civil organizada tem
sido focada no sentido de tentar corrigir o desequilíbrio regulatório da sociedade contemporânea, não se
concentrando tanto sobre as origens estruturais ou as causas primeiras deste “desequilíbrio”. Além disso, a
sociedade civil organizada age pautada por acordos semânticos estabelecidos por padrões racionais técnico-
legais, seja para questioná-los, seja para efetivá-los. Em última análise, a ação da sociedade civil, historicamente,
enquadra-se nos moldes racionais, estatais legais. O presente artigo leva em consideração os seguintes fatores: a)
prevalência do modelo capitalista liberal ocidental de organização societária; b) dentro deste modelo, pautado
pela racionalidade estatal-legal, o mercado, inicialmente enquadrado no manto regulatório jurídico, veio
libertando-se de controles estatais. Ocorre, assim, um desequilíbrio com relação ao aspecto sociedade
civil/comunidade, que, por sua vez, são preteridas também pelo agir burocrático estatal; c) como conseqüência
deste cenário, aparentemente auto-destrutivo, sob o ponto de vista humanitário, vem se falando atualmente em
“pós-modernidade”, “pós-estruturalismo”, entre outros termos. Nessa toada, a indagação central do presente
artigo diz respeito às condições da sociedade civil organizada cumprir o papel de defensora contemporânea dos
direitos humanos. Atualmente, em face do refluxo estatal, uma vez ultrapassada a “ameaça” socialista, os
Estados de Direito, nas últimas décadas, têm se posicionado de forma menos ativa em relação aos direitos
humanos, em especial os prestacionais. Setores da sociedade civil então, passam a executar as tradicionais
funções estatais, legitimando, de certo modo, o status quo. A sociedade civil, por sua vez, incorpora também a
metodologia racional legal, burocrática, típica do agir estatal. De certa forma, a sociedade civil, organizada e
formalizada, acaba por aderir ao sistema jurídico formal e perde parte de sua força e liberdade transformadora.
Este talvez seja um dos maiores dilemas das Ongs (Organizações não governamentais) também entendidas como
organizações do Terceiro Setor. Estas entidades muitas vezes, são influenciadas e forjadas por objetivos muito
mais econômicos e “legitimatórios” do que propriamente emancipatórios. Cria-se desta forma um cenário
crítico: No momento em que o Estado não visa politicamente (ou não tem meios para) executar servíços públicos
de cunho pretacionais, e acaba agindo em “parceria” ou “terceirização” com estas organizações, coloca-se em
questão justamente o agir, a essência e as finalidades de tais entidades. Este artigo, termina com algumas
conclusões a respeito deste tema tão caro a tempos de globalizaçao política e econômica.

Palavras Chaves: Direitos Humanos; Cidadania; Organizações não governamentais; Terceiro Setor;
Emancipação social; Modernidade.

1
Mestrando em Direito (linha de Direito Internacional, Meio Ambiente e Atividade Portuária).
2
Prof. Dr. do Curso de Pós Graduação em Ciência Jurídica.
3
Bacharel em Direito pela UNIVALI. é advogado militante nas questões relacionadas ao marco legal do terceiro setor e do Direito
Administrativo.
4
Bacharel em Direito pela Univali em final de 2005. Atua em Organização da Sociedade Civil, na defesa dos direitos de
cidadania.
1. Direitos Humanos e Estado Constitucional de Direito; desafios impostos pela
globalização

A expressão, “Direitos Humanos”, tradicionalmente vem atrelada ao paradigma societal da


modernidade5. De qualquer forma, é nesse modelo de sociedade que o termo “Direitos Humanos” vai
consagrar-se, fundamentado no reconhecimento do conceito de Estado de Direito e de direitos
fundamentais. Estes últimos podem ser entendidos como os mesmos “direitos humanos”, reconhecidos
e positivados por meio das normas de direito estatal. Os direitos fundamentais, então, em seu início,
após as revoluções civil-burguesas, vão apresentar-se sob a forma de direitos fundamentais individuais.
Assim, uma vez consagrado o paradigma liberal-individualista, pode-se perceber, na seqüência,
um fortalecimento do Estado de Direito em sua primeira versão: constitucionalismo liberal acrescido
do incremento do capitalismo liberal. Este último, consagra-se graças ao reconhecimento do direito de
propriedade. Em decorrência do liberalismo econômico e jurídico, das garantias à propriedade e ao
comércio a ele inerente, deu-se a primeira revolução industrial no Séc. XVIII. No decorrer desse
período surgem novas formas de atentados e violações à dignidade humana.
Como se percebe, a compreensão do contexto da modernidade é fundamental para a
problematização de sua crise paradigmática, bem como os dilemas colocados ao seu núcleo jurídico: os
Direitos Humanos. Por modernidade, entende-se aqui, uma nova visão de mundo que emerge fundada
numa racionalização étíco-filosófica e técnico-produtiva, expressando valores, crenças e interesses
próprios das camadas sociais emergentes em luta contra o feudalismo aristocrático fundiário. Fatores
como o renascimento, a reforma, o processo de secularização¸ as transformações econômico-mercantis
e o progresso científico favoreceram o advento de uma cultura liberal individualista que, por sua vez,
permitiu a consagração dos Direitos Humanos. Tudo isso fez do “ser individual”, um “ser-absoluto”.
A ciência moderna retira o sentido do mundo agora transformado em “mecanismo causal”, ou
em “cosmos da causalidade natural”, isto é, em “algo sem mistérios insondáveis, perfeitamente
explicável em cada elo causal mas não no todo, fragmentário, esburacado, ‘quebradiço e esvaziado de
valor’.”6 É certo, no entanto, que tal paradigma vem a apresentar um problema complexo para os

5
A respeito do conceito de Paradigma e de crise paradigmática, ver. KUHN, Thomas. S. A Estrutura das Revoluções Científicas. 8.ed.
São Paulo: Perspectiva, 2003; SANTOS, Boaventura de Sousa. Um discurso sobre as ciências, 9ed. Porto: Afrontamentos, 1987; Para
um novo senso comum: a ciência, o direito e a política na transição paradigmática, V.1, 2ed. São Paulo: Cortez, 2000; e A Crítica da
Razão Indolente: contra o desperdício da experiência. 2.ed. São Paulo: Cortez, 2000. Um breve conceito de “paradigma” científico (no
caso) pode ser oferecido nas palavras de KUHN: “[...] Considero ‘paradigmas’ as realizações científicas universalmente reconhecidas que,
durante algum tempo, fornecem problemas e soluções modelares para uma comunidade de praticantes de uma ciência.” (In. KUHN,
Thomas. S. A Estrutura das Revoluções Científicas, p. 13). - Pode-se, contudo, identificar as origens históricas dos direitos humanos bem
antes do advento da modernidade.
6
PIERUCCI, Antônio Flávio. O Desencantamento do mundo. Todos os passos do conceito em Max Weber. São Paulo: Editora 34, 2003.
p.159.
Direitos Humanos, uma vez que estes têm profunda influência transcendental e religiosa. Neste sentido
vale destacar, também, um trecho de Fábio Comparato:
A idade moderna, que irrompe no campo ético-religioso com a crise da consciência européia do século XVII,
assistiu ao esfacelamento dos fundamentos divinos da ética, na cultura ocidental, de formação judaico-cristã.
É certo que a atual ascensão das tendências fundamentalistas representa uma reação importante contra o
laicismo moral. Mas ao mesmo tempo o grande avanço das comunicações “torna difícil a aceitação de uma
única revelação divina como fundamento absoluto da ética.7

Conclui-se, com base nesse autor, que a modernidade, e principalmente o século XVIII, oferece
o terreno para a validade desses direitos, cujos principais expoentes doutrinais são o jusnaturalismo e o
juspositivismo8, com destaque para o positivismo jurídico que acabou se impondo.
Feitas essas considerações iniciais, passa-se a analisar a modernidade como categoria
propriamente dita. Adota-se aqui, por entender bastante completo e didático, o raciocínio de
Boaventura de Souza Santos9, que descreve a modernidade pontuando, desde logo, segundo ele, a sua
insustentabilidade e a necessidade de mudança paradigmática com vistas a um conhecimento
emancipatório e não mais meramente regulatório, ao qual tem se prestado a racionalidade científico-
tecnológica determinante da modernidade dos dias atuais.
De acordo com esse autor, a modernidade, originalmente, constitui-se com base em dois pilares:
o pilar da regulação, formado por três princípios, o do Estado (Hobbes), o do mercado (Locke) e o da
comunidade (Rousseau); e o pilar da emancipação, formado por três dimensões da racionalização e
secularização da vida coletiva, a racionalidade moral prática do direito moderno, a racionalidade
cognitivo-experimental da ciência e da técnica modernas e a racionalidade estético-expressiva das artes
e da literatura modernas.
Contudo, observa o autor, que desde o início da modernidade o equilíbrio buscado entre
regulação e emancipação não ocorreu, havendo predominância do princípio do mercado, algumas vezes
juntamente com o princípio do Estado.10. Nesta medida, o desequilíbrio entre regulação e emancipação,
e o conseqüente excesso de regulação em que veio a saldar-se, resultou de desequilíbrios, tanto no seio
do pilar da regulação, como no da emancipação. 11
7
COMPARATO, Fábio Konder. Fundamentos dos Direitos Humanos. São Paulo: USP, 1998. p.5.
8
O antinaturalismo ou voluntarismo de Hobbes, Locke e Rousseau, parte principalmente da idéia de que a sociedade política funda-se na
necessidade de proteção do homem contra os riscos de uma vida segundo o ‘estado de natureza’, onde se destaca a ‘insegurança máxima’.
Daí resulta a grande matriz do positivismo jurídico: a explicação formal do direito. Sobre a dualidade Direito natural – Direito positivo.
Neste particular ver. LAFER, Celso. A reconstrução dos direitos humanos. p. 35-46; e BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de
Janeiro: Campus, 1992.
9
SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mão de Alice - O social e o político na pós-modernidade. São Paulo: Cortez, 1996, p.236.
10
Para Boaventura Santos, o projeto sócio-cultural da modernidade constitui-se entre o século XVI e final do século XVIII, sendo que a
partir daí se inicia seu verdadeiro teste, momento em que coincide com a emergência do capitalismo, principalmente a partir da primeira
grande onda de industrialização.
11
Em relação ao pilar da emancipação, observa-se que historicamente, a racionalidade cognitivo-instrumental da ciência e da técnica
desenvolveu-se em detrimento das demais racionalidades e acabou por colonizá-las. Neste sentido, ressalta Santos que “a hipertrofia da
racionalidade cognitivo-instrumental acarretou a própria transformação da ciência moderna através da progressiva hegemonia das
Assim, o Capitalismo originário da modernidade poderia ser dividido em três períodos; desde o
capitalismo liberal, passando pelo capitalismo organizado até o atual estágio de capitalismo
desorganizado. O período do capitalismo desorganizado, atual, representa a consciência de que o
déficit da modernidade é de fato irreparável e maior do que se julgou anteriormente, de modo que, para
Boaventura de Souza Santos, não faz sentido continuar à espera que o projeto da modernidade cumpra-
se no que até agora não se cumpriu.
Os desafios para consolidar e concretizar os ideais dos Direitos Humanos na modernidade são
inúmeros. Alguns até mesmo intrínsecos à própria natureza destes direitos e seu instrumento de
concretização: o Estado de Direito. Neste rumo, tem-se uma espécie de paradoxo dos Direitos
Humanos:
Os direitos humanos encontram-se neste final de século em situação paradoxal: de um lado, proclamam-se em
diversos textos legais um número crescentes de direitos civis, políticos, sociais, econômicos e culturais, que
constituem, na história do Direito, a afirmação mais acabada da crença do homem na sua própria dignidade;
de outro lado, esses mesmos direitos transformam-se em ideais utópicos, na medida em que são
sistematicamente desrespeitados por grupos sociais e governos.12

Os modernos Estados de Direito têm o mérito de consagrar princípios e valores em uma ordem
jurídica válida e vigente. Princípios como a liberdade do indivíduo, a segurança individual e coletiva, a
responsabilidade e responsabilização dos titulares do poder, a igualdade de todos os cidadãos e a
proibição de discriminação de indivíduos e de grupos, são exemplos. Para efetivar esses princípios e
direitos, o Estado de Direito requer um conjunto de instituições, de procedimentos de ação, formas
adequadas de manifestação do poder (que possa ser denominado como democrático), soberania popular
e representação política.
Por outro lado, uma das maiores ameaças à realização do conjunto dos direitos humanos é,
indubitavelmente, a presente lógica de globalização econômica neoliberal, a qual Boaventura de Souza
chama de Capitalismo desorganizado13. Os direitos econômicos, sociais e culturais, são os primeiros a
serem afetados. O culto absoluto ao mercado ignora por princípio, conforme os ensinamentos de seus
principais teóricos, os direitos econômicos e sociais, encarado-os como empecilhos ao bom
funcionamento da economia14.

epistemologias positivistas, uma transformação que, se não foi determinada pela conversão da ciência em força produtiva do capitalismo,
teve com ela fortíssimas afinidades eletivas.” (In. SANTOS, Boaventura de Souza. Pela mão de Alice, p. 78).
12
BARRETO, Vicente. Ética e direitos humanos: aporias preliminares. In. Anais do II Congresso Brasileiro de Direitos Humanos, Rio de
Janeiro: UFRJ, 1998, p.139.
13
SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mão de Alice – O Social e o político na pós-modernidade. Ainda em matéria de globalização,
ver, do mesmo autor, Globalização – Fatalidade ou Utopia? (Porto: Afrontamento, 2001).
14
É o que dizia, por exemplo, desde 1944, Friedrich Hayek em O Caminho da Servidão, e o dizem até hoje seus associados
antikeynesianos na Sociedade do Mont Pélérin do final dos anos 40 (Ver. ANDERSON, Perry. Balanço do Neoliberalismo. In: SADER,
Emir e GENTILI, Pablo (orgs). Pós-neoliberalismo – As Políticas Sociais e o Estado Democrático. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995, p.
9-10).
Apresenta-se aqui um verdadeiro “divisor de águas” e rumos da humanidade. Por um lado à
lógica jurídica moderna, que embora viciada, como visto, por uma ótica liberal individualista (em suas
origens) vem consagrar em importantes documentos o direito à vida e demais direitos
humanos/fundamentais, por outro lado, coloca-se a lógica cega e excludente do neoliberalismo, em
seus moldes mais radicais.

2. O paradoxo da modernidade contemporânea.

Toma-se por hipótese, que o estágio atual da modernidade é marcado por transformações rumo a
um mundo nitidamente globalizado, caracterizado pelo pluralismo moral e por fenômenos recentes no
sentido de uma “crise de governabilidade”, ou uma crise no marco regulatório da modernidade.
Pretende-se, assim, analisar a modernidade de forma contextualizada com a ciência, com o
Direito, e com as implicações do mercado global. Para melhor analisar as transições e transformações
da modernidade, busca-se contextualizá-la com sua possível superação ou conseqüências, as quais,
dependendo da leitura que se faça, tem diversas denominações: “pós-modernidade”15, “modernidade
reflexiva”16, entre outras.
Autores com Boaventura de Sousa Santos17, Zygmunt Bauman18 e José Eduardo Faria19, serão
privilegiados por sua amplitude e clarividência neste tema em específico.
De início, registre-se, de forma simplificada, que a modernidade, desde sua origem tem dois
componentes marcantes: a sua ligação com o mercado (embora o socialismo também seja fruto da
modernidade) e a importância central da ciência, que, no decorrer da modernidade, tornou-se também
(amparada pelo mercado) um paradigma regulatório. Passou então, a ciência, a ocupar também o
espaço do direito positivo estatal. Este, por sua vez, para melhor adaptação, pragmaticamente, adotou
características epistemológicas, isto é, “transformou-se” em ciência, ou melhor dizendo, “tecnificou-
se”. O grande representante desta idéia é Hans Kelsen. Em sua Teoria Pura do Direito, sustenta que o
direito positivo estatal formal diferencia-se de princípios, valores e ideologias. Seria uma tentativa de
impor a lógica dedutiva, científico-positivista, ao mundo da moral e do direito.

15
Termo adotado por Zygmunt Bauman .
16
Termo adotado por Antony Giddens
17
SANTOS, Boaventura de Sousa. A Crítica da Razão Indolente – Para um novo senso comum: a ciência, o direito e a política na
transição paradigmática. São Paulo: Cortez, 2000.
18
Zygmunt Bauman. O mal-estar da Pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998; Modernidade e Ambivalência. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 1999; Globalização – As conseqüências humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999; Comunidade – a busca por segurança
no mundo atual. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.
19
FARIA, José Eduardo. Direito na Economia Globalizada. São Paulo: Malheiros, 2000.
Antes direito ser tratado, especificamente, em sua relação com o mercado e a economia
globalizada, cumpre contextualizar o direito com a tensão entre regulação e emancipação. Procura-se
demonstrar como o modelo jurídico, na medida em que se “tecnifica” e se “formaliza”, no sentido da
positivação estatal, vai perdendo sua dimensão emancipatória.
Como vimos anteriormente, a ciência tornou-se a principal força produtiva da modernidade,
sofrendo um processo de funcionalização, o que lhe retirou, ou diminui-lhe sensivelmente, o potencial
emancipatório. Nesse processo de cientifização, ou tecnificação, como preferem alguns,20 o direito
também se estatizou. “A prevalência política da ordem sobre o caos foi atribuída ao Estado Moderno,
pelo menos transitoriamente, enquanto a ciência e a tecnologia não pudessem assegurá-la por si
mesmas”21, como é o que vem ocorrendo atualmente. Como conseqüência desse processo, o direito
perdeu a tensão entre regulação e emancipação social, um dos fundamentos do paradigma moderno.
Em conformidade, ainda, com o autor português, “essa perda foi tão completa e irreversível que a
recuperação das energias emancipatórias [...] implica uma reavaliação radical do direito moderno,
paralela à reavaliação radical da ciência moderna”.22
É nesse contexto que tem surgido contemporaneamente um novo tipo de autoritarismo: o
autoritarismo tecnocrático, sobretudo em suas vertentes técnico-cientifica e econômica. Em nome da
eficiência e precisão, são preteridos valores inerentes ao regime democrático. Esse parece ser, também,
o entendimento de teóricos como o polonês Zygmunt Bauman23 e o brasileiro José Eduardo Faria.

3. Modernidade e globalização: Novas dimensões de governabilidade

A modernidade encontra-se, atualmente, entremeios a uma dimensão pré-moderna


,caracterizada pelo autoritarismo e pela irracionalidade,24 e uma dimensão pós-moderna, também
irracional, mas de forma mais sofisticada. Pode-se considerar, a partir disto, que há um desafio de
20
A idéia de “cientifização”, conforme apresentada por Boaventura de Sousa Santos talvez fosse melhor expressa pela expressão
“tecnificação”.
21
SANTOS, Boaventura de Sousa. A crítica da razão indolente., p.120. Isto dá margem ao senso comum teórico de que o direito tem
mais a ver com a manutenção da ordem do que com a promoção da justiça.
22
SANTOS, Boaventura de Sousa. A crítica da razão indolente, p.120.
23
Para analisar a modernidade, e sua relação com a “ordem”, a “comunidade” e a “pós-modernidade”, Bauman utiliza-se de idéias e
conceitos interessantes, como “modernidade líquida”, “estranhos” , “ambigüidade”, “incerteza”, entre outros. Para este autor, a
modernidade é caracterizada como um “Estado jardineiro”, que tem por finalidade, combater as “ervas daninhas”, ou seja, os estranhos,
estrangeiros, inimigos. Sobre este autor ver. BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da Pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998;
Modernidade e Ambivalência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999; Globalização – As conseqüências humanas. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1999; Comunidade – a busca por segurança no mundo atual. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.
24
O Brasil, em nossa visão pessoal, ilustra esta confluência de perspectivas. Ainda temos práticas pré modernas como o trabalho infantil,
o trabalho escravo, reminiscências de coronelismo, clientelismo e patrimonialismo. A estas práticas e contextos (não tão freqüentes, é
certo) não se pode chamar de práticas modernas. Por outro lado temos também a “não razão” do sistema financeiro, do mercado
especulativo das bolsas de valores, entre outros. Enfim, o Brasil é um país que “consegue” ser simultaneamente “pré moderno”,
“moderno” e “pós-moderno”.
governabilidade. Como já foi destacado anteriormente, os direitos humanos e a ciência constituem
frutos e racionalidades emancipatórias da modernidade.
O pensador português Boaventura de Sousa Santos, também contribui no sentido de
compreender o significado das categorias ciência e direito no paradigma da modernidade, em crise.
Para esse autor, a modernidade, caracterizada a partir dos pilares principais, da regulação e da
emancipação, teve a sua força regulatória reduzida à medida que as dimensões emancipatórias do pilar
da emancipação convergiram com o desenvolvimento capitalista, a dois grandes instrumentos de
racionalização da vida coletiva; a ciência moderna e o direito estatal moderno. A crise de ambos
coincide, por isso, com a "crise do paradigma dominante, uma crise epistemológica e societal”.25

4. Desafios do agir político público nos dias atuais

Como visto, no decorrer deste artigo, o contexto atual do paradigma societal moderno exige
uma maior reflexão a respeito de conceitos consagrados como os Direitos Humanos; o Estado
Constitucional de Direito, Esfera Pública (que pode ser estatal ou “não-estatal”) e também do que
sejam os “atores sociais” relacionados ao 3o setor.26
Urge portanto um maior debate em torno do conceito de esfera pública e agir social. Diversos
autores tem se manifestado nesta temática. Para os objetivos deste breve trabalho, após situar alguns
autores e posicionamentos, procura-se dar vazão às críticas teóricas formuladas com relação aos riscos
e desafios desta nova postura do Estado de Direito.
É possível observar que as lógicas históricas de racionalidade jurídica discursiva, construídas no
decorrer da modernidade até os dias atuais, encontram-se em face de um desafio paradigmático sem
precedentes. De um lado, com o avanço do capitalismo especulativo global, de outro, o advento de um
novo modelo de Estado de Direito, recheado de direitos e garantias formais, que vem repassando ou
“terceirizando” suas responsabilidades para os nichos de sociedade civil organizada, com destaque para
as ONGs, as quais, não raras vezes, também profundamente intricadas na lógica financista e totalitária
do sistema capitalista global. 27
25
SANTOS, Boaventura de Sousa. Para um novo senso comum: a ciência, o direito e a política na transição paradigmática, V.1, 2ed.
São Paulo: Cortez, 2000. p.42.
26
Para melhor compreender esta temática sugerimos a consulta de: CAVEDON, Fernanda et. alli. Manual das Organizações da
Sociedade Civil: Aspectos para constituição e certificação. Itajaí: NUPEX/CEJURPS/UNIVALI, 2003.
27
Destaque-se também o papel (de “espetacularização da política”) exercido pela mídia neste contexto: “O discurso apelativo do
espetáculo político-moral da mídia não dissolveu, é verdade, o discurso argumentativo dos intelectuais – as reminiscências da esfera
pública burguesa persistem com certeza, nos círculos universitários, academias e revistas especializadas. Entretanto, a esfera pública hojé
é produzida antes por estratégias políticas e persuasivas e de imagens que por estratégias políticas verbais e argumentativas.” (In.
BARINGHORST, S. Das Spetakel als Politkon – Massenmediale Inszenierungen von Protest und Hilfsaktionen [O espetáculo como
politikon – encenações de protesto e atos de solidariedade na mídia], Forschungsjournal NSB, ano 9, n. 1; Apud. COSTA, Sérgio. As
Cores de Ercília. UFMG: Belo Horizonte, 2002, p. 19).
Para melhor realizar esta contextualização do conceito de esfera pública e de “esfera pública
não estatal”, é possível utilizar o entendimento lúcido de Sérgio Costa, ao analisar o posicionamento de
dois autores: Tarso Genro e Evelina Dagnino.
Para Tarso Genro:
As Associações comunitárias, entidades ecológicas e de gênero, redes de solidariedade e assistência social (...)
podem dissolver as fronteiras burocráticas que separam o cidadão comum da estrutura estatal. A isso
chamamos de “esfera pública não-estatal”, uma zona “gris” entre o estado e a sociedade civil tomada no seu
conceito tradicional. Nela o Estado pode perder a sua potestade e a sociedade civil, por concerto e decisão,
publicizar as suas demandas.28

Por outro lado, Evelina Dagnino29 entende a expressão “espaços públicos”, como fóruns de
deliberação política institucionalizados, no âmbito da relação entre estado e sociedade civil. Parece não
haver aqui, diferentemente da concepção de Genro, uma pretensão de reduzir a esfera pública a sua
interface com o Estado.
Esse é o tom da reflexão de Sérgio Costa. Para o autor, a visão de Genro apresenta a “esfera
pública não-estatal” como uma “ante-sala do Estado, o canal através do qual as diferentes associações
levam suas demandas aos órgãos públicos.” E essa perspectiva traria alguns riscos:
O risco percebido aqui é que a “esfera pública não estatal”, ao ser garantida e patrocinada pelo Estado, como
propõe Genro, se transforme de fato em esfera pública paraestatal, em mais uma arena institucional vulnerável
à instrumentalização pelo Estado, pelos partidos e pelos políticos.30

Este é justamente um dos aspectos mais atuais e também polêmicos de muitas das organizações
que compõem o chamado terceiro setor. Para tratar deste tema passamos ao próximo ítem.

5. ONGs e governabilidade global - Os desafios ao 3o setor.

O estudo da governança mundial, por sua vez, representa um mercado valorizado e vantajoso
para os produtores do Direito, da Economia ou de Ciência Política31. Esses estudiosos podem
apresentar instrumentos teóricos e práticos aptos ao desafio da globalização. Podem mobilizar, também,
grandes recursos econômicos, sociais e institucionais. Esse é o contexto em que se inserem as ONGs,
que de certa forma também contribuem para a existência desta aposta política global.
Ocorre que, amparado, na maior parte das vezes, por fundações, grandes capitais e empresas, o
jogo políticos das ONGs também acaba sendo bipolar e elitista. Ao estudar a estrutura das ONGs, pode-
28
GENRO, Tarso. Participação para além do bairro. Proposta, n. 69, 1996, p. 36. (grifo nosso).
29
Cf. DAGNINO, E. (Org.). Sociedade Civil e Espaços Públicos no Brasil. São Paulo: Paz e Terra, 2002.
30
COSTA, Sérgio. As Cores de Ercília. UFMG: Belo Horizonte, 2002, p. 33.
31
Assim, as grandes instituições financeiras internacionais, como o Banco Mundial, consagram de agora em diante várias centenas de
milhões de dólares à promoção do direito e da "boa governança", que vêm completar o diretório das prescrições monetarista. Cf.
DEZALAY, Yves e GARTH, Bryant (org.), Global Prescriptions, The prodution, exportation and importation of a new legal orthodoxy,
University of Michigan Press, Lieu, 2002.
se perceber uma preponderância, por assim dizer, do modelo organizacional norte americano 32,
caracterizadamente elitista e hermético.
Por meio da denúncia das velhas ideologias coloniais em benefício de novos padrões universais
– o desenvolvimento, o mercado, o Estado de Direito –, a potência hegemônica americana deu um
golpe duplo. Desqualificou as redes de influência que asseguravam a perenidade do modelo
neocolonial europeu, reorientando ao mesmo tempo para os seus próprios campi33 os circuitos
internacionais de formação das elites periféricas, gerando, entre outras conseqüências, o
redirecionamento geográfico da fuga dos cérebros para os mercados profissionais mais remuneradores.
Pierre Bourdieu34 recordava: "A referência ao universal é a arma por excelência". Neste sentido
alertam os autores que o imperialismo sabe avançar sob o estandarte dos direitos do homem e da (boa)
governança. Neste contexto tem sido bastante “apropriadas” as “parcerias” de multinacionais com
ONGs, rumo a um a um “capitalismo sustentável” e legitimado.

6. Conclusões Articuladas
1- Ainda que entendidos como berços dos Direitos Humanos, a modernidade e os
Estados de Direito merecem um olhar crítico num sentido mais político e sociológico.
2- Os direitos humanos são o “ramo do direito” que, paradoxalmente, melhor expressam
os aspectos de força e também de fraqueza, da racionalidade jurídica moderna.
3- Dado seu papel na governança global e a quantidade de recursos que mobilizam, as
ONGs também contribuem para a existência desta aposta política global.
4- Amparado, na maior parte das vezes, por fundações, grandes capitais e empresas, o
jogo político das ONGs acaba sendo bipolar e elitista, influenciado pelo modelo
organizacional norte americano, elitista e hermético.
5- Constata-se, historicamente, que o imperialismo sabe avançar sob o estandarte dos
direitos do homem e da retórica de governança. As Ongs são muitas vezes utlizadas

32
A internacionalização das lutas nacionais pelas quais se constrói o embrião de uma sociedade civil mundial contribui, por conseguinte,
para impor como universais estratégias um savoir faire inspirado pela dinâmica da política americana. Neste sentido a vitória de Ronald
Reagan, por exemplo, teve efeitos paradoxais, ao favorecer a universalização dos "direitos do homem".
33
Na sua tese sobre “O mercado internacional da solidariedade”, Benjamin Buclet detalha toda a ambigüidade da "parceria" entre as
grandes ONGs internacionais e as pequenas estruturas que intervêm no âmbito local. A fim de financiar sua ação militante, estas últimas
devem se inscrever numa lógica de projeto, negociado com financiadores de fundos internacionais. A concorrência entre projetos assegura
a influência desses gestores financeiros, tanto sobre a definição "das populações-alvo" como sobre os objetivos e os critérios de
avaliações. Além disso, as prioridades desses gestores são substituídas pelas das grandes ONGs, bem introduzidas na cena internacional –
o que lhes permite preencher, de fato, um papel de holding no que diz respeito às suas redes de pequenas ONGs locais, que não dispõem
dos recursos sociais que permitem acesso direto aos financiamentos internacionais. Esse dispositivo cria um curto-circuito entre os
governos nacionais e os notáveis locais, mas permite à "sociedade civil internacional" assegurar a divulgação dos seus valores e das suas
prioridades, definir quais são as necessidades de desenvolvimento ou as expectativas de democracia. In. DEZALAY, Yves e GARTH,
Bryant. Globalização: A ação conveniente das ONGs.
34
Cf. BOURDIEU. Pierre. Raisons pratiques, Seuil: Paris, 1994, p. 242.
neste intuito de “legitimação” do status quo, muito mais do que formas de
emancipação e transformação societária.

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