GERALDO PRADO
Dioco MALAN
Coordenadores
PROCESSO PENAL E DEMOCRACIA:
Estudos em Homenagem aos 20 Anos da
Constituicaéo da Republica de 1988
EpITORA LUMEN JORIS
Rio de Janeiro
2009A Garantia da Motivacdo das Decisées Judiciais
na Constituicao de 1988
Antonio Magalhaes Gomes Filho*
1, O sentido politico da exigéncia de motivacao
A Constituigao brasileira de 1988, na secdo que trata das disposicdes gerais
relativas ao Poder Judiciario, consagrou expressamente a obrigatoriedade de motiva-
cdo das decisGes judiciais, prescrevendo que “todos os julgamentos dos érgios do
Poder Judicidrio sero publicos, e fundamentadas todas as decisdes, sob pena de nuli-
dade...” (art. 93, IX).
‘Ao lado disso, o texto constitucional acrescentou previsio especial para o pro-
cesso penal, com a exigéncia contida em seu art. 5°, LXI: ninguém seré preso sendo
em flagrante delito ou por ordem escrita “e fandamentada” de autoridade judiciéria
competente.
A repeticao nao é ociosa, nem parece ter sido casual, evidenciando, ao contr-
rio, uma reforgada exigéncia de controle em relagdo aos provimentos relacionados
ao direito punitivo, em virtude da natureza fortemente vinculada que deve caracte-
rizar a atuacdo judicial quando se trata de restringir um direito constitucionalmen-
te tutelado, como é 0 de liberdade.!
O sentido dessas disposigdes, inovadoras na nossa tradi¢o constitucional ~ mas
que seguem uma tendéncia cada vez mais consistente de incluir as garantias proces-
suais nos textos fundamentais contemporineos -, liga-se especialmente & transfor-
magio na concep¢ao do papel do juiz. nas tltimas décadas.
De fato, em lugar da imagem iluminista de um burocrata incumbido de ser a
“boca da lei” — simples aplicador de regras estabelecidas pelo legislativo -, 0 juiz pas-
sou a exercer funcées de importante ator politico, na medida em que a solugo judi-
cial das controvérsias supde inevitavelmente um trabalho de verdadeira criagao do
+ Professor Titular de Processo Penal da Faculdade de Direito da USP.
1 Mario Chiavario, Liberta IT) liberta personale ~ dir. proc. pen., in Enciclopedia giuridica, Roma, Treccani,
1990, p. 9; Antonietta Confalonieri, Riflessioni sulla motivazione de libertate, in Alfredo Gaito (org,), Studi
sul procesto penale in ricordo di Assunta Mazzarra, Padova, Cedam, 1996, p. 52; no mesmo sentido, Nicolas
Gonzalez-Cuellar Serrano, Proporcionalidad y derechos fundamentales en el proceso penal, Madrid, Colex,
1990, p. 144‘Antonio Magalhiies Gomes Filho
direito, com o suprimento das omissdes legislativas, a superacao de antinomias e a
integracao do contetido do texto legislativo pelo seu aplicador.
Nessa dtica, como uma espécie de prestacao de contas desse modo de atuar, a
motivagio das decisées judiciais adquire uma conotagio que transcende o ambito
préprio do processo para situar-se no plano mais elevado da politica, caracterizan-
do-se como o instrumento mais adequado ao controle sobre a forma pela qual se
exerce a fungio judiciéria.
Como bem sintetizou Briiggemann, o Estado de direito é 0 Estado que se justi-
fica.2 Ao contrario do poder autoritario, que se exerce de forma absoluta e também
oculta, o desempenho do poder democratico reclama publicidade e transparéncia, 0
que supde a permanente explicitagao das razdes da atua
Isso vale, sem diivida e especialmente, para a atuacao judicial.
E que a legitimagao democratica dos membros do Judiciario ~ que nao resulta
da investidura no cargo por eleicao -, deriva do modo pelo qual é exercida a sua fun-
cao. Em outros termos, para ser legitima a atividade judiciaria deve ser exercida com
respeito as garantias da justica natural: o juiz. nao age de oficio, nem em causa pré-
pria, e a sua decisio é um ato que nasce do didlogo entre as partes e com as partes,
que sio destinatirias da decisio.4
Nesse plano politico, em primeiro lugar, a exigéncia de motivacdo concorre
para propiciar a efetividade de um ideal basilar do sistema democritico: o de parti-
cipagao popular nos assuntos de governo.
Como ressalta Taruffo, a motivacdo representa uma forma especial de partici-
pagio do povo na administragao da justiga, que se realiza pelo controle democritico
a posteriori sobre os fundamentos do ato do juiz; embora se trate, como mostra 0
mesmo autor, de um controle exercido em poucos casos, o que importa nao é exata~
mente a sua efetividade, mas antes a sua possibilidade5
Nao se resume nisso, contudo, a participagao civica que é propiciada pela exi-
géncia de motivacdo: a possibilidade de tal controle serve — ainda que indiretamen-
te e de forma difusa -, para condicionar o préprio contetido da decisio, na medida
em que a necessidade de apresentar & opiniao publica um discurso racional e coeren-
te impde determinado tipo de comportamento mental ao juiz no momento mesmo
em que realiza as opdes decisérias.§
estatal.3
2 Gitado por Nicold Trocker, Processo civile e costituzione: problemi di dititto Tedesco e italiano, Milano,
Giuffre, 1974, p. 461.
3 Michele Taruffo, 11 significato costituzionale dell’obbligo di motivazione, in Participagio ¢ processo,
Grinover, Dinamarco e Watanabe (org.), Sio Paulo, Revista dos Tribunais, 1988, p. 4.
4 Nicolo Trocker, La responsabilith del giudice, Rivista Trimestrale di Diritto e Procedura Civile, 36(4):1300-
1, 1982,
5 Michele Taruffo, La motivazione della sentenza civile, Padova, Cedam, 1975, p. 409,
6 Antonio Magalhdes Gomes Filho, A morivacio das decisdes penais, Sio Paulo, RT, 2001, p. 83.