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GERALDO PRADO Dioco MALAN Coordenadores PROCESSO PENAL E DEMOCRACIA: Estudos em Homenagem aos 20 Anos da Constituicaéo da Republica de 1988 EprTora LUMEN JURIS. Rio de Janeiro 2009 O Direito 4 Defesa e a Paridade de Armas Maria Lucia Karam* 1. A expansio do poder punitivo e a necessidade de reafirmagao do direito a defesa As notaveis mudangas registradas no mundo a partir das tiltimas décadas do século XX se fazem acémpanhar de uma inédita expansio global do poder punitivo, estimulada e alimentada por difusos clamores por seguranca e generalizadas op¢des repressivas. ‘As tendéncias punitivas contemporaneas nao se limitam aquelas mais tradicio- nais e mais claramente repressivas, que adquirem acentuado vigor e se servem dos mais variados pretextos ~ de um propagandeado aumento incontrolavel da crimina- lidade convencional, de uma suposta criminalidade transnacional, da sempre inde- finida e indefinivel “criminalidade organizada”, até a ameaca do “terrorismo” depois dos atentados do 11 de setembro ~ para propor e impor medidas excepcionais, sob 0 falso argumento de uma alegada impossibilidade de controlar esses ditos novos fené- menos com o uso de meios regulares. A expanso do poder punitivo e as medidas excepcionais so, hoje, sustentadas por quase todos os politicos dos mais diversos matizes. A ampla aceitagio do discurso repressivo se facilita pelas conquistas da era digi- tal. As novas possibilidades técnicas da comunicacdo rompem com as delimitacées espaciais e temporais, 0 que acaba por facilitar uma percepcao negativa dos riscos. Embora riscos tenham sempre acompanhado as atividades humanas, apenas se diversificando conforme estas se diversificam, nessa era digital, nessas ditas “socie~ dades do risco”,! hd uma mudanca em sua dimensio, que passa a ser globalizada, vizinha, assustadora. O risco nao tem sido percebido apenas como um resultado posstvel da aco, que pode ter conseqiiéncias positivas ou negativas. O risco tem sido percebido sempre sob forma negativa, como uma ameaga ~ e uma ameaca muito préxima. Essa percep- 0 coloca a busca de um ideal de seguranga no centro das preocupagées. Mas, o fim do século XX e 0 inicio desse novo século assistem também & forma- so de uma outra tendéncia punitiva, baseada em um discurso talvez ainda mais enganoso do que os reforcados discursos tradicionais do género Jaw and order. + Excjuiza de Direito no Estado do Rio de Janeiro; Ex-juiza Auditora Milita. 1 Referéncia na discussio do risco na atualidade é, certamente, a obra de Niklas Luhmann e Raffaele De Giorgi. Consulte-se, por exemplo, Teoria della Societa 395 Maria Lucia Karam, Essa outra tendéncia, que igualmente legitima nao s6 o sistema penal em si mas também sua expansio, esconde seus desejos punitivos sob o manto de uma suposta- mente nova leitura da Constituicio e uma suposta necessidade de substituir as idéias liberais e individualistas sobre os direitos fundamentais com concepcdes que fagam atuar os direitos sociais, extraindo de seu reconhecimento anunciados deveres cri- minalizadores e até mesmo acenando com a enganosa e invidvel pretensio de fazer do sistema penal um instrumento de transformagao social. Essa nova forma de legitimacio do sistema penal e de sua expansio, que se poderia dizer de “esquerda”? qual uma contra-face da fé repressiva tradicional (s6 aparentemente a ela contraposta), contribui de maneira decisiva para 0 enfraqueci- mento dos direitos fundamentais e, conseqtientemente, para o enfraquecimento do modelo do Estado de direito democritico, tanto quanto os discursos que sustentam de forma mais explicita o aprofundamento do rigor penal, valendo ressaltar que tais discursos nao vém somente da “direita”. O mais nitido sintoma do enfraquecimento dos direitos fundamentais se reve- la em propostas de troca da liberdade por seguranga, que ganham cada vez mais espaco mesmo em Estados democraticos. Chega-se a propor a substituigao dos clas- sicos valores de “liberdade, igualdade, fraternidade” por supostamente novos valores de “seguranca, diversidade, solidariedade” $ Esquece-se que a diversidade e a solidariedade sio conseqiiéncias naturais da igualdade ¢ da fraternidade. Mas, esquece-se muito mais. Esquece-se que trocar a liberdade por seguranca, na realidade, significa trocar a democracia pelo totalitarismo. Quando se admite trocar a liberdade por seguranca, além de trocar a democra- cia pelo totalitarismo, perde-se a liberdade e nao se obtém seguranca, Quando uma sociedade troca a liberdade por seguranca, est negando vigéncia aos direitos funda- mentais ¢ rejeitando os fundamentos da democracia. Em um Estado democritico, a liberdade é um valor insubstituivel. O reco- nhecimento da liberdade do individuo como um valor fundamental ¢ inseparével do reconhecimento de sua dignidade. A liberdade, que implica a autodetermina- cao e a capacidade de escolha, é inerente a dignidade. A prépria existéncia do Estado de direito democritico depende da liberdade individual. A propria idéia de democracia depende da possibilidade assegurada a cada individuo de escolher e, portanto, de ser livre. 2 Sobre uma concepgio “esquerdista” do sistema penal, reporto-me a meu enssio “A Esquerda Punitiva’, publicado em Discursos Sediciosos ~ Crime, Direito e Sociedade, n. 1, pp. 79-92, que foi motivado pelas pri ‘meiras manifestagées de adeséo da “esquerda” brasileira ao sistema penal, no inicio dos anos 90 do século passado, Mais recentemente, retomei 0 tema em outro texto, de novembro de 2006, “Expansio do poder punitivo e direitos fundamentais’ 3 Veja-se o conhecido texto de Erhard Denninger, "Security, Diversity, Solidarity’ instead of ‘Freedom, Equality, Fraternity”, tido como a origem daquele suposto “novo ideal constitucional” 396 4

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