Thomas foi o primeiro a avançar. A princípio diria que
tinha uns dezassete anos. Usava uma tshirt preta e cinzenta às riscas, demasiado curta, mas que lhe assentava perfeitamente no corpo esguio que apresentava. O seu cabelo, meio avermelhado, condizia com os olhos escuros e que cintilavam um quase castanho-avermelhado. - Não tenhas medo, nós tratamos de ti – Disse pousando delicadamente a sua mão na minha. - Pareces precisar de comer. Iremos preparar-te algo para te alimentares. Não parecia assim tão mau. Sendo Thomas uma pessoa simpática e Miriam tão bela – Tinha uns olhos com contornos negros, onde um cinzento cintilante lhe brilhava na íris, e o cabelo, um pouco extravagante, pois era todo liso atrás e em crista na parte frontal. Eu não podia estar melhor. Iria habituar-me e obedecer-lhes, na sua companhia, apesar de talvez também ver que algo me incomodava: serem iguais a Sally. Mas agora a questão era outra; quem eram eles? Irmãos, primos? - Posso fazer uma pergunta? - Questionei encostando- me à porta da entrada, grande e forte. - O que quiseres – Respondeu Miriam ao puxar-me para o sofá onde me sentou e me deu duas almofadas, uma para pôr atrás da cabeça e outra para segurar o braço, anteriormente ferido. Se fossem gargulas, nada de mais haveria em ser amigo de umas quantas. Sem problema! - Estavas a pensar perguntar... – Insistiu Thomas com um prato de massa e carne picada posto à minha frente, numa mesa minúscula e entrada que ali havia. O vidro central, dava visão para uma madeira envernizada e bastante clara. Comecei a comer de forma desastrosa, pois estava esfomeado, ao que eles quase fizeram o seu "Ah", de admiração, e estavam boquiabertos. Quando dei de conta, parei abruptamente e recompus- me. - Ah, pois... – Reflecti por momentos se iria ou não perguntar. Qual seria a sua expressão se lhes perguntasse que eram uns seres que só existiam na imaginação do povo da idade média? - Estás cansado não estás? - Voltou Miriam a falar-me. - Gostaria mesmo de descansar um pouco – Menti. Não queria nem um pouco fechar os olhos, antes porém de estar com Sally. Não tinha a certeza de ser seguro render-me ao cansaço. Poderia acontecer-me algo na presença deles, o que não me agradava de pôr essa mesma ideia no cérebro que se esforçava para trabalhar com clareza. - Posso? - Pedi olhando Miriam, que me olhava também, com curiosidade nos olhos claros e amigáveis que me apontava. - Estás à vontade. Mas antes de dormires gostávamos de te dizer que, a Sally não demorará mesmo nada. Quando acordares já cá estará. - Obrigado – E depois deitei-me e fechei os olhos, começando a sentir um ligeiro calor, reconfortante, em todo o corpo. - Quem é ela? A Sally passou-se? E se ela descobrir? - Murmurava Thomas para Miriam que apenas soltava um "Hum" de longe a longe. Depois começaram a falar mas não percebi nada, pois falavam muito rápido. Passados uns momentos, ouvi algo bater duramente num bocado de madeira que logo estalou. - Calma, assim ainda partes a mesa - Gritou quase a sussurrar. - Ela parece uma boa aliada para nós. E se nós... Tremi. Ele continuou com outra forma de falar, mais suave e aparentemente mais satisfeito. - Talvez a Sally o tenha trazido para aqui, por nós. Vai prendê-lo e a seguir fazemo-lo um de nós, forte e perfeito. Parece ter grandes capacidades e, como é novo, todos irão venerá-lo. Não lhe poderão tocar e saberão que fomos nós a transformá-lo. Seremos fortes e todo-poderosos. Era surreal estar ali. Abri os olhos e mantive-me quieto e calado, mas sabia que não me iriam ver, pois estavam atrás, junto a uma porta, a tal por onde tinha saído. "Transformar" em quê? O que seriam eles capazes de verdadeiramente me fazer para serem tão poderosos? "O mais novo"? - Sem a reunião com Sally e sem a sua permissão nada faremos. Não te esqueças da nossa condição: somos invisíveis no meio das pessoas porque somos idênticos a elas. Se o transformássemos seríamos iguais aos outros. Como achas que te controlarias? Ainda és muito novo e o meu dever é ajudar-te. Se lhe quiseres fazer isso, primeiro matas-me! Thomas rugiu baixinho e suavemente, e depois pareceu-me ter saído, pois tudo ficou em silêncio... Adormeci.
Tinha martelos na cabeça quando me levantei
repentinamente. Má ideia de certeza. Apesar de zonzo, sabia perfeitamente que me encontrava em casa de Sally. Aparentemente, não estava lá ninguém, e após um longo momento de concentração, lembrei-me. O sol estava ainda no céu, mas já bastante baixo, o que adivinhava a proximidade da penumbra que me assustava. Fui vagueando e procurei a porta de saída, mas não a encontrei. Não estava na sala onde tinha adormecido. As paredes eram agora vazias, mas amareladas, e o chão, coberto com alcatifas cheias de cores e padrões. O padrão central era de um cão com três cabeças, que me lembrou Cerebro, o famoso cão que guardava as portas do inferno. Aquilo não me dava uma boa sensação no estômago. Havia apenas armários pequenos ao fundo, e o quarto não tinha janelas, que dava uma noção de prisão permanecer ali. Havia ainda uma cama pequena e baixa ao meu lado, que estava sem cobertores, e apenas o colchão, já velho e gasto se via. De certeza que não ia ali há muito tempo, e a zona onde me encontrava era desconhecidamente estranha. - O meu quarto... – Aclarou as minhas ideias, Sally, ao aparecer atrás de mim, que me fez saltar de susto. - Importas-te de ser normal? Assustas-me sempre. Riu-se pondo-me a mão. Depois beijou-me com intensidade e empurrou-me para o chão. - Normal não dá para ser, mas posso tentar. - O que estás a fazer? - Perguntei amedrontado. - Dar-te as boas vindas. - Mas aqui... Não é boa ideia – Atrapalhei-me. - Menino maroto - Respondeu a brincar com o que lhe dissera - Não é nada disso que te vou fazer. Como achas estar aí em baixo? - É um pouco... Almofadado, acho eu. Ela deitou-se ao meu lado e ficou a olhar o tecto vazio e puro. - Demorei muito? - Mais do que devias. O que fizeste? Sally olhou-me com um ar de quem não quer contar alguma coisa. - Fui até perto de GreenTree... Mas correu tudo bem. Fiquei apreensivo quanto aquilo. - O que lhe disses-te? - Nada. - Como nada? Se foste lá, tens de ter feito alguma coisa ao estar com ela. Ela riu-se e tapou a boca. - Pois, lá está, não estive com ela. - Explicou por fim com rigidez. - Não entendo – Deixou-me a pensar. A conversa parecia um pouco despropositada depois de uma ausência que me tinha custado tanto. Seria suposto estarmos a falar de outra coisa, mas também sabia que a visita que ele tinha feito, ou deveria ter feito, iria revelar algo que eu pudesse desconhecer. - O Thomas e a Miriam trataram-te bem? - Bastante - Reflecti durante algum tempo a conversa que tinha ouvido - Ele deram-me de comer e a seguir adormeci. - Parecias mesmo cansada. Mas agora sabes que tens de ir para casa. Olhei-a de relance e ela nada fez. Nada disse. Percebi mal aquela frase tão certa, como se ela não me quisesse ali. - O que estás a tramar? Não posso ficar aqui porquê? Ela ficou a pensar. Pensei que estivesse a ganhar tempo para me dar uma resposta segura, uma boa mentira. Porém, comigo isso não iria acontecer. - Responde – Gritei. Continuou calada. As sobrancelhas juntaram-se em sinal de que não gostara do tom de voz que lhe sugerira.
- Não. Não quero que vás, mas à conta de uma noite
em que chegaste tarde, ficas-te com a consciência pesada e não dormiste. Queres vir para as aulas a cair de sono? - Pensando assim, até parece que tens razão, mas gostava mesmo de ficar. Quase não tive tempo nenhum contigo – Amuei tentando que ela percebesse a minha situação - Pode ser? - Desde que não te cause problemas de mais... - Adoro-te - Disse com um à vontade supremo, que parecia encher o quarto de alegria e intimidade. - Já somos dois. Desde o primeiro momento, acredita. - Não tenho dúvidas. Queres ir sair? - Perguntou esticando-me a mão para que eu a agarra-se, prontos a sair dali para um lugar divino e onde pudéssemos estar sozinhos. - O que é uma gargula? O que é que vocês são? Ambos paramos. Ela baixou a mão e sentou-se no colchão, onde ficou demasiado rígida a olhar-me com ar incrédulo. - Porque perguntas isso agora? É assim tão importante? - Gostava Apenas de saber com o que lido. Afinal eu namoro com uma gargula... – Revirei os olhos e sorri. - Queres que comece por onde? - Pelo início. Mas passa a parte histórica, quero dizer, se tiveres a tua própria história conta-me. - Isto vai demorar. Vais chegar tarde. Fica para amanhã. Não queria mesmo que ela deixasse aquilo a meio. Então, pousei o meu queixo na sua cabeça e abracei-a de modo protector, tentando assemelhar a minha força à dela. - Se insistir ficas zangada? Gostava mesmo que contasses. Afastou-me e fitou-me como se eu fosse uma boneca de porcelana. Reflecti durante segundos o gesto e percebi que iria dizer-me algo. Teria de revelar. - Não, mas não irei dizer nada. Amanhã chegas à escola e dormes nas aulas. Já sei como é... Eu sei o que acontece sempre que isso acontece, e não é por experiência própria – Disse com gentileza. Depois tornou-se mais dura e agressiva. - Não posso mesmo contar hoje. MIRIAM! A figura mágica da minha nova "amiga" apareceu no corredor à entrada do quarto, mesmo ao lado das escadas que estavam mesmo por trás de nós. - Podes levá-lo – Disse quase de imediato quando chegou à nossa beira. - Obrigado. Virei cedo para irmos. Miriam olhou-a e ela sorrindo-lhe, saiu de casa, ficando à minha espera na porta. Quando sai, um Ford Mustang prateado, tipo jipe, estava parado dentro de uma pequena brecha entre aquela casa e outra, a cair de podre, com trepadeiras e bocados de cimento a degradarem-se em tons de verde musgo. - UAU! É...Teu? - Perguntei, com grande surpresa e satisfação. - É da Miriam. Posso levá-lo durante horas que ela não se importa, desde que, claro, lhe encha o depósito. - Que bestial! É de quantos lugares? É enorme...Para aí uns nove? - Sete – Corrigiu - E dá para pôr atrelados. Dá muito jeito para grandes viagens – Explicou. Fiquei surpreso e curioso com a história do atrelado. - Vais para muito longe em viagens? - Já fui a quase todos os sítios... Brasil, Venezuela, Austrália, Antártida. Andei pelos Pirinéus, Himalaias, Hawaí, entre outros... muitos outros. - Quanto tempo demoras até lá? - Queria que me revelasse algo sobre ser gargula. Poderia ir a vários lugares sem se cansar muito, achava eu. - Considera a hipótese de eu te começar a dizer algo do que faço... Qual achas que seria a tua reacção? Demorei a pensar. Talvez até mais do que deveria, pois a pergunta era fácil e directa, e pedia a mesma fórmula simples de resposta, mas eu tinha bloqueado. Não tinha culpa. Com certeza saberia a resposta mal ela desvia-se os olhos. Aquilo mexia com o meu sistema nervoso. - Se essa hipótese, como dizes, fosse possível, quereria ir contigo mas próximas viagens - Confirmei com tristeza. Ela olhou-me seriamente e levantou-me a cabeça para me fitar mais cuidadosamente. As suas mãos pareciam seda. - Porque ficas-te assim? - Só poderei saber isso amanhã não é? - Provoquei com esperança que dissesse um «Não» bem redondo. Iria ela conseguir cair na minha ratoeira? - Quem te disse que não te contava isto hoje? - Brincou com os meus pêlos dos braços, puxando-os suavemente com intenção de não magoar. - Contas? - Se te portares bem levanto um pouco o véu da questão. Ora... O que achas que uma gargula é? Tive um esfriamento só de pensar numa pessoa que me tinha olhado com tanta intensidade e força, que me congelava até o medo. - Os vampiros têm algo a ver com a tua história? - Em parte…Posso dizer que sim. Se não soubesses quem sou agora, talvez a nossa proximidade pudesse ser muito mais perigosa. Ainda pode vir a ser, consoante a nossa relação e as pessoas que nos rodeiam. - Quais pessoas? Haverá alguém que... - Para já ainda não, mas irei ter de estar sempre junto a ti. A minha presença nesta cidade poderá influenciar a decisão de outros. - Estás em perigo? - Não me agradava que aquela situação fosse possível. Teria feito com que Sally, a rapariga que mais amava, pudesse estar a correr um perigo demasiado grande por minha causa. Seria talvez melhor deixar de falar com ela e poder entreter-me com outros amigos como... Anna. De facto poderia dizer que não estava a ser justo com uma pessoa que apenas queria ser feliz e ter alguém com quem falar. - Temos alguém que pode vir para cá e termos de fazer de tudo para que isso não suceda. O Thomas e a Miriam poderão ajudar e o Kelvin, mas em relação à minha mãe, poderá não ter tanta sorte, apesar de com outro, poder ter poder suficiente para se proteger. - De quem falas? - Ainda é cedo para que... Te possa contar. Prometo que se tiver oportunidade seguramente te direi. Agora, está mesmo na hora de ires…