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Capitulo Décimo Primeiro

HIPÓTESES

Thomas foi o primeiro a avançar. A princípio diria que


tinha uns dezassete anos.
Usava uma tshirt preta e cinzenta às riscas, demasiado
curta, mas que lhe assentava perfeitamente no corpo
esguio que apresentava. O seu cabelo, meio avermelhado,
condizia com os olhos escuros e que cintilavam um quase
castanho-avermelhado.
- Não tenhas medo, nós tratamos de ti – Disse
pousando delicadamente a sua mão na minha. - Pareces
precisar de comer. Iremos preparar-te algo para te
alimentares.
Não parecia assim tão mau. Sendo Thomas uma
pessoa simpática e Miriam tão bela – Tinha uns olhos com
contornos negros, onde um cinzento cintilante lhe brilhava
na íris, e o cabelo, um pouco extravagante, pois era todo
liso atrás e em crista na parte frontal.
Eu não podia estar melhor. Iria habituar-me e
obedecer-lhes, na sua companhia, apesar de talvez
também ver que algo me incomodava: serem iguais a Sally.
Mas agora a questão era outra; quem eram eles? Irmãos,
primos?
- Posso fazer uma pergunta? - Questionei encostando-
me à porta da entrada, grande e forte.
- O que quiseres – Respondeu Miriam ao puxar-me
para o sofá onde me sentou e me deu duas almofadas, uma
para pôr atrás da cabeça e outra para segurar o braço,
anteriormente ferido.
Se fossem gargulas, nada de mais haveria em ser
amigo de umas quantas. Sem problema!
- Estavas a pensar perguntar... – Insistiu Thomas com
um prato de massa e carne picada posto à minha frente,
numa mesa minúscula e entrada que ali havia. O vidro
central, dava visão para uma madeira envernizada e
bastante clara.
Comecei a comer de forma desastrosa, pois estava
esfomeado, ao que eles quase fizeram o seu "Ah", de
admiração, e estavam boquiabertos.
Quando dei de conta, parei abruptamente e recompus-
me.
- Ah, pois... – Reflecti por momentos se iria ou não
perguntar. Qual seria a sua expressão se lhes perguntasse
que eram uns seres que só existiam na imaginação do povo
da idade média?
- Estás cansado não estás? - Voltou Miriam a falar-me.
- Gostaria mesmo de descansar um pouco – Menti. Não
queria nem um pouco fechar os olhos, antes porém de estar
com Sally. Não tinha a certeza de ser seguro render-me ao
cansaço.
Poderia acontecer-me algo na presença deles, o que
não me agradava de pôr essa mesma ideia no cérebro que
se esforçava para trabalhar com clareza.
- Posso? - Pedi olhando Miriam, que me olhava
também, com curiosidade nos olhos claros e amigáveis que
me apontava.
- Estás à vontade. Mas antes de dormires gostávamos
de te dizer que, a Sally não demorará mesmo nada. Quando
acordares já cá estará.
- Obrigado – E depois deitei-me e fechei os olhos,
começando a sentir um ligeiro calor, reconfortante, em todo
o corpo.
- Quem é ela? A Sally passou-se? E se ela descobrir? -
Murmurava Thomas para Miriam que apenas soltava um
"Hum" de longe a longe. Depois começaram a falar mas
não percebi nada, pois falavam muito rápido. Passados uns
momentos, ouvi algo bater duramente num bocado de
madeira que logo estalou.
- Calma, assim ainda partes a mesa - Gritou quase a
sussurrar.
- Ela parece uma boa aliada para nós. E se nós...
Tremi. Ele continuou com outra forma de falar, mais
suave e aparentemente mais satisfeito.
- Talvez a Sally o tenha trazido para aqui, por nós. Vai
prendê-lo e a seguir fazemo-lo um de nós, forte e perfeito.
Parece ter grandes capacidades e, como é novo, todos irão
venerá-lo.
Não lhe poderão tocar e saberão que fomos nós a
transformá-lo. Seremos fortes e todo-poderosos.
Era surreal estar ali. Abri os olhos e mantive-me quieto
e calado, mas sabia que não me iriam ver, pois estavam
atrás, junto a uma porta, a tal por onde tinha saído.
"Transformar" em quê? O que seriam eles capazes de
verdadeiramente me fazer para serem tão poderosos? "O
mais novo"?
- Sem a reunião com Sally e sem a sua permissão nada
faremos. Não te esqueças da nossa condição: somos
invisíveis no meio das pessoas porque somos idênticos a
elas. Se o transformássemos seríamos iguais aos outros.
Como achas que te controlarias? Ainda és muito novo e o
meu dever é ajudar-te. Se lhe quiseres fazer isso, primeiro
matas-me!
Thomas rugiu baixinho e suavemente, e depois
pareceu-me ter saído, pois tudo ficou em silêncio...
Adormeci.

Tinha martelos na cabeça quando me levantei


repentinamente. Má ideia de certeza. Apesar de zonzo,
sabia perfeitamente que me encontrava em casa de Sally.
Aparentemente, não estava lá ninguém, e após um
longo momento de concentração, lembrei-me.
O sol estava ainda no céu, mas já bastante baixo, o
que adivinhava a proximidade da penumbra que me
assustava. Fui vagueando e procurei a porta de saída, mas
não a encontrei. Não estava na sala onde tinha adormecido.
As paredes eram agora vazias, mas amareladas, e o
chão, coberto com alcatifas cheias de cores e padrões. O
padrão central era de um cão com três cabeças, que me
lembrou Cerebro, o famoso cão que guardava as portas do
inferno.
Aquilo não me dava uma boa sensação no estômago.
Havia apenas armários pequenos ao fundo, e o quarto não
tinha janelas, que dava uma noção de prisão permanecer
ali. Havia ainda uma cama pequena e baixa ao meu lado,
que estava sem cobertores, e apenas o colchão, já velho e
gasto se via.
De certeza que não ia ali há muito tempo, e a zona
onde me encontrava era desconhecidamente estranha.
- O meu quarto... – Aclarou as minhas ideias, Sally, ao
aparecer atrás de mim, que me fez saltar de susto.
- Importas-te de ser normal? Assustas-me sempre.
Riu-se pondo-me a mão. Depois beijou-me com
intensidade e empurrou-me para o chão.
- Normal não dá para ser, mas posso tentar.
- O que estás a fazer? - Perguntei amedrontado.
- Dar-te as boas vindas.
- Mas aqui... Não é boa ideia – Atrapalhei-me.
- Menino maroto - Respondeu a brincar com o que lhe
dissera - Não é nada disso que te vou fazer. Como achas
estar aí em baixo?
- É um pouco... Almofadado, acho eu.
Ela deitou-se ao meu lado e ficou a olhar o tecto vazio
e puro.
- Demorei muito?
- Mais do que devias. O que fizeste?
Sally olhou-me com um ar de quem não quer contar
alguma coisa.
- Fui até perto de GreenTree... Mas correu tudo bem.
Fiquei apreensivo quanto aquilo.
- O que lhe disses-te?
- Nada.
- Como nada? Se foste lá, tens de ter feito alguma
coisa ao estar com ela.
Ela riu-se e tapou a boca.
- Pois, lá está, não estive com ela. - Explicou por fim
com rigidez.
- Não entendo – Deixou-me a pensar.
A conversa parecia um pouco despropositada depois
de uma ausência que me tinha custado tanto.
Seria suposto estarmos a falar de outra coisa, mas
também sabia que a visita que ele tinha feito, ou deveria
ter feito, iria revelar algo que eu pudesse desconhecer.
- O Thomas e a Miriam trataram-te bem?
- Bastante - Reflecti durante algum tempo a conversa
que tinha ouvido - Ele deram-me de comer e a seguir
adormeci.
- Parecias mesmo cansada. Mas agora sabes que tens
de ir para casa.
Olhei-a de relance e ela nada fez.
Nada disse.
Percebi mal aquela frase tão certa, como se ela não
me quisesse ali.
- O que estás a tramar? Não posso ficar aqui porquê?
Ela ficou a pensar. Pensei que estivesse a ganhar
tempo para me dar uma resposta segura, uma boa mentira.
Porém, comigo isso não iria acontecer.
- Responde – Gritei.
Continuou calada. As sobrancelhas juntaram-se em
sinal de que não gostara do tom de voz que lhe sugerira.

- Não. Não quero que vás, mas à conta de uma noite


em que chegaste tarde, ficas-te com a consciência pesada
e não dormiste. Queres vir para as aulas a cair de sono?
- Pensando assim, até parece que tens razão, mas
gostava mesmo de ficar. Quase não tive tempo nenhum
contigo – Amuei tentando que ela percebesse a minha
situação
- Pode ser?
- Desde que não te cause problemas de mais...
- Adoro-te - Disse com um à vontade supremo, que
parecia encher o quarto de alegria e intimidade.
- Já somos dois. Desde o primeiro momento, acredita.
- Não tenho dúvidas. Queres ir sair? - Perguntou
esticando-me a mão para que eu a agarra-se, prontos a sair
dali para um lugar divino e onde pudéssemos estar
sozinhos.
- O que é uma gargula? O que é que vocês são?
Ambos paramos.
Ela baixou a mão e sentou-se no colchão, onde ficou
demasiado rígida a olhar-me com ar incrédulo.
- Porque perguntas isso agora? É assim tão
importante?
- Gostava Apenas de saber com o que lido. Afinal eu
namoro com uma gargula... – Revirei os olhos e sorri.
- Queres que comece por onde?
- Pelo início. Mas passa a parte histórica, quero dizer,
se tiveres a tua própria história conta-me.
- Isto vai demorar. Vais chegar tarde. Fica para
amanhã.
Não queria mesmo que ela deixasse aquilo a meio.
Então, pousei o meu queixo na sua cabeça e abracei-a de
modo protector, tentando assemelhar a minha força à dela.
- Se insistir ficas zangada? Gostava mesmo que
contasses.
Afastou-me e fitou-me como se eu fosse uma boneca
de porcelana. Reflecti durante segundos o gesto e percebi
que iria dizer-me algo. Teria de revelar.
- Não, mas não irei dizer nada. Amanhã chegas à
escola e dormes nas aulas. Já sei como é... Eu sei o que
acontece sempre que isso acontece, e não é por
experiência própria – Disse com gentileza. Depois tornou-se
mais dura e agressiva. - Não posso mesmo contar hoje.
MIRIAM!
A figura mágica da minha nova "amiga" apareceu no
corredor à entrada do quarto, mesmo ao lado das escadas
que estavam mesmo por trás de nós.
- Podes levá-lo – Disse quase de imediato quando
chegou à nossa beira.
- Obrigado. Virei cedo para irmos.
Miriam olhou-a e ela sorrindo-lhe, saiu de casa, ficando
à minha espera na porta.
Quando sai, um Ford Mustang prateado, tipo jipe,
estava parado dentro de uma pequena brecha entre aquela
casa e outra, a cair de podre, com trepadeiras e bocados de
cimento a degradarem-se em tons de verde musgo.
- UAU! É...Teu? - Perguntei, com grande surpresa e
satisfação.
- É da Miriam. Posso levá-lo durante horas que ela não
se importa, desde que, claro, lhe encha o depósito.
- Que bestial! É de quantos lugares? É enorme...Para aí
uns nove?
- Sete – Corrigiu - E dá para pôr atrelados. Dá muito
jeito para grandes viagens – Explicou. Fiquei surpreso e
curioso com a história do atrelado. - Vais para muito longe
em viagens? - Já fui a quase todos os sítios... Brasil,
Venezuela, Austrália, Antártida. Andei pelos Pirinéus,
Himalaias, Hawaí, entre outros... muitos outros.
- Quanto tempo demoras até lá? - Queria que me
revelasse algo sobre ser gargula.
Poderia ir a vários lugares sem se cansar muito,
achava eu.
- Considera a hipótese de eu te começar a dizer algo
do que faço... Qual achas que seria a tua reacção?
Demorei a pensar. Talvez até mais do que deveria,
pois a pergunta era fácil e directa, e pedia a mesma
fórmula simples de resposta, mas eu tinha bloqueado. Não
tinha culpa.
Com certeza saberia a resposta mal ela desvia-se os
olhos. Aquilo mexia com o meu sistema nervoso.
- Se essa hipótese, como dizes, fosse possível,
quereria ir contigo mas próximas viagens - Confirmei com
tristeza.
Ela olhou-me seriamente e levantou-me a cabeça para
me fitar mais cuidadosamente. As suas mãos pareciam
seda.
- Porque ficas-te assim? - Só poderei saber isso
amanhã não é? - Provoquei com esperança que dissesse um
«Não» bem redondo.
Iria ela conseguir cair na minha ratoeira?
- Quem te disse que não te contava isto hoje? -
Brincou com os meus pêlos dos braços, puxando-os
suavemente com intenção de não magoar.
- Contas?
- Se te portares bem levanto um pouco o véu da
questão. Ora... O que achas que uma gargula é?
Tive um esfriamento só de pensar numa pessoa que
me tinha olhado com tanta intensidade e força, que me
congelava até o medo.
- Os vampiros têm algo a ver com a tua história?
- Em parte…Posso dizer que sim. Se não soubesses
quem sou agora, talvez a nossa proximidade pudesse ser
muito mais perigosa. Ainda pode vir a ser, consoante a
nossa relação e as pessoas que nos rodeiam.
- Quais pessoas? Haverá alguém que...
- Para já ainda não, mas irei ter de estar sempre junto
a ti. A minha presença nesta cidade poderá influenciar a
decisão de outros.
- Estás em perigo? - Não me agradava que aquela
situação fosse possível. Teria feito com que Sally, a
rapariga que mais amava, pudesse estar a correr um perigo
demasiado grande por minha causa.
Seria talvez melhor deixar de falar com ela e poder
entreter-me com outros amigos como... Anna. De facto
poderia dizer que não estava a ser justo com uma pessoa
que apenas queria ser feliz e ter alguém com quem falar.
- Temos alguém que pode vir para cá e termos de
fazer de tudo para que isso não suceda. O Thomas e a
Miriam poderão ajudar e o Kelvin, mas em relação à minha
mãe, poderá não ter tanta sorte, apesar de com outro,
poder ter poder suficiente para se proteger.
- De quem falas?
- Ainda é cedo para que... Te possa contar. Prometo
que se tiver oportunidade seguramente te direi. Agora, está
mesmo na hora de ires…

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