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A realidade abstrata de Mondrian no universo da arte Neoconcreta.

Autor: Leidiane Carvalho

Resumo: Este artigo pretende buscar pontos de contato entre o pensamento


artístico de Mondrian e o neoconcretismo, autodenominado movimento de arte
brasileira, que o cita em diversos momentos como uma das principais fontes de
inspiração. Os pontos de divergência, naturalmente, terminarão por surgir, e
servirão para mostrar o que de inovador os neoconcretos trazem consigo,
sendo considerados por historiadores e críticos como o gerador do pensamento
plástico crítico e historiográfico “autêntico” do país.

Palavras-chave: Neoconcretismo, Concretismo, Mondrian.


Setembro/ 2009.
A realidade abstrata de Mondrian no universo da arte Neoconcreta.

“A hostilidade entre as duas principais tendências da arte, a figurativa e


a não-figurativa (objetiva e subjetiva), é ilógica. Como a arte é essencialmente
universal, sua expressão não pode basear-se numa visão subjetiva. Nossas
capacidades não permitem uma visão perfeitamente objetiva, mas isso não
significa que a expressão plástica da arte seja baseada numa concepção
subjetiva. Nossa subjetividade realiza a obra, mas não a cria.”
Piet Mondrian

“Esta é a verdade neoconcreta: a de ter sido o vértice da consciência


construtiva brasileira, produtor de formulações talvez mais sofisticadas nesse
sentido e, simultaneamente, o agente de sua crise, abrindo caminho para a sua
superação no processo de arte local.”
Ronaldo Brito

Introdução:

Uma nova economia do sujeito. Esta é a proposta do neoconcretismo.


Não sua negação, mas uma nova maneira de lidar com ele, para além das
ideologias, trazendo o real para a obra de arte. O “artista-herói” do
expressionismo abstrato – fonte inesgotável de força e inspiração, que vai de
encontro ao seu mundo, revoltoso e “desencaixado” – não tem mais lugar nesta
nova economia. Nela, o subjetivo está sob rédeas curtas. A arte está numa
esfera de concretude que não dá lugar para utopias e narcisismos. Há uma
noção de que a obra atua de forma construtiva, a expressão de uma
objetividade, por mais contraditório que isto possa parecer, faz do movimento
neoconcreto um marco para o pensamento artístico no Brasil.
Por este ângulo, a arte e o pensamento de Mondrian – que, em seus
textos, fala de uma depuração da arte na direção ao abstracionismo, de uma

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evolução artística que levaria a uma arte espiritual, baseada nos princípios da
Teosofia1 (CHIPP, 1996), buscando uma arte universal e suficiente que seria
alcançada com o passar do tempo - poderiam estar totalmente deslocados,
mas neste texto pretendo buscar os pontos de contato entre este artista e o
neoconcretismo, movimento que o cita em diversos momentos como uma das
principais fontes de inspiração. Os pontos de divergência, naturalmente,
terminarão por surgir, e servirão para mostrar o que de inovador o movimento
brasileiro traz consigo, sendo considerado por historiadores e críticos como o
primeiro pensamento plástico efetivamente autêntico no país.

Positividade e negatividade neoconcreta.

O movimento neoconcreto surge como uma “dissidência” do movimento


Concreto, surgido no Brasil na década de 50. A dissidência se organiza por
considerarem o Concretismo excessivamente dogmatizado, encontrarem nele
muitos imperativos matemáticos, um sistema formal, mecânico e cientificista,
retrato de um desejo de superar o subdesenvolvimento do país pela afirmação
de modelos de sociedades desenvolvidas, tornando-se o que Carlos Zilio
chamará de “barroco industrial”, acrescentando ao modelo artístico europeu um
“invólucro para exportação” (ZILIO, 1982:23). O Concretismo é influenciado
pela exposição de Max Bill em 1950 e por sua premiação na Bienal de 1951.
Este, por sua vez, é influenciado pelo conceito de arte construtiva de Van
Doesburg, que pretendia consolidar a autonomia dos processos de produção
em arte com relação ao mundo natural, acentuando seu caráter construtivo e
sistemático (BRITO, 1985:34).
Este momento artístico, portanto, de estabelecerá sempre por uma
relação dual entre os dois movimentos, que reúne aproximações e
distanciamentos, tornando possível uma síntese que virá anos depois. Mas até
esta síntese, que virá na “arte ambiental” de Hélio Oiticica, esta movimentação
sempre contraditória é o que será visto no neoconcretismo – a “nota

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“Mondrian parte da suposição da essência de Deus e deduz daí a natureza do Universo.
Como tudo é visto de através de Deus, o mundo natural é essencialmente espiritual. O mal,
que surge do desejo de coisas materiais ou finitas, pode ser superado pela absorção em Deus,
ou no infinito.”

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desafinada” (DUARTE, 1998:25) em resposta à esquizofrenia brasileira da
necessidade de “razão, ordem e progresso” ao mesmo tempo que se precisa
manter traços conservadores que circulavam no âmbito intelectual brasileiro
desde os idos do século XIX.
O desafino se deve ao modo como o neoconcretismo consegue
conjugar sua positividade e sua negatividade, sem precisar manter esta faceta
conservadora. É verdade que a linhas geométricas abstratas ainda estavam
presentes, assim como no concretismo, mas o modo como estas se arranjavam
é que tornava clara a diferença entre os dois movimentos. O positivismo
concretista também aparecia, na medida em que se procurava que a arte
tivesse sua inserção na sociedade (frente ao fim do estatuto natural que a arte
teve outrora, mas que fora perdido, ela precisa afirmar-se e inserir-se no
espaço social por si mesma). Aparecia mais uma vez na crença na
possibilidade de uma “evolução” da arte – o livro que Ferreira Gullar escreve
trafega por uma história da arte teleológica que culmina com o neoconcretismo.
Sua negatividade, porém, se dá pelo fato de que não concebe o mundo ideal
em que os concretistas baseiam seu programa, um mundo que não se
transforma, uma arte acrítica e, porque não, homogênea. Os neoconcretos são

uma produção da crise do projeto construtivo, um pensamento da crise, da


impossibilidade do ambiente cultural brasileiro seguir o sonho construtivo, a
utopia reformista, a ‘estetização’ do meio industrial contemporâneo. O
neoconcretismo estava inicialmente preso a este esquema, fora de dúvida.
Mas, objetivamente, Pôs em ação e manipulou elementos que extravasavam
e denunciavam suas limitações, seu formalismo e seu esteticismo. Mais do
que postulados da estética construtiva, o neoconcretismo rompeu com o
próprio estatuto que esta concepção reservava ao trabalho de arte e à sua
inscrição social. Implicitamente, ao superar os limites do projeto construtivo,
ele permitiu a inserção da arte no campo ideológico, no campo da discussão
da cultura como produção social. (BRITO, 1985:28)

Esta dualidade, então, será o modo como a arte brasileira deste


momento lidará consigo mesma, em sua poética, assim como constituirá a
relação entre um movimento e outro, sendo quase impossível falar de cada um
em separado, se não recorrer à fórmula da oposição.

O neoplasticismo de Mondrian.

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O neoplasticismo, assim como outros movimentos vinculados à
abstração geométrica, inclui-se na busca de uma expressão artística universal
integrada aos novos meios de construção e produção industrial. Sua linguagem
utilizava horizontais, verticais, cores primárias e o equilíbrio dinâmico da
composição, e seu personagem principal foi Piet Mondrian. A revista De Stijl (O
Estilo) é fundada por Mondrian, Van der Leck e Van Doesburg em outubro de
1917, em Leyden, como um órgão responsável pela propagação das idéias
desta nova arte, ambiente em que seria possível, publicamente, discutir e gerar
os novos parâmetros deste estilo universal. O primeiro número da revista
declara suas intenções:
Este periódico tem por objetivo contribuir para o desenvolvimento
do novo sentido estético. Quer abrir ao homem moderno tudo que é novo nas
Artes Plásticas. À confusão arcaica – o barroco moderno – pretende opor os
princípios lógicos de um estilo que amadurece, fundado na observação das
proporções claras entre as tendências atuais e os meios de expressão. Quer
reunir as idéias atuais concernentes à plástica nova que, muito embora sejam,
na realidade, semelhantes, desenvolveram-se independentemente umas
das outras. (Gullar, 1998:150)

Havia uma relação espiritual no ideal estético do movimento, com forte


influência da teosofia. Defendiam a limpeza espacial, reduzindo a pintura a
elementos “puros” para atingir a “expressão universal”, fruto da “intuição pura”.
Paralela à busca da “essência” no pensamento de Platão, em que a arte era
“cópia da cópia”, ou seja, em que a arte era cópia do mundo físico, o qual
também era cópia do “mundo das idéias” – o simulacro. Seguiram a partir desta
filosofia na busca desse princípio universal, chamado “essencial harmônico”
como necessário para uma evolução artística, superior e prioritária.
A grande missão do artista moderno, dentro deste programa, era buscar
a obra de arte puramente plástica e, além disto, abrir estas idéias ao grande
público. Havia o ideal de que esta nova arte estivesse ao alcance de todos, que
tivesse a participação deste público nas discussões e decisões acerca do novo
programa. Esta, assim, seria livre dos caprichos individualistas, do subjetivismo
dos expressionistas, num caminho que pretendia alcançar uma expressão
construída e conscientemente representativa de um mundo, mas um mundo
não-figurativo, abstrato. Previam um fim da arte, mas não de forma negativa:
este seria o momento do equilíbrio entre extremos, quando a arte terminaria

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por se fundir à vida, da qual se via afastada, o que, a estes idealizadores, lhes
parecia absurdo. Assim, esta arte deixaria de ser uma particularidade destinada
a poucos, um “dom” individual e romântico. Teriam fim as dicotomias exterior x
interior, objetivo x subjetivo, individual x universal, quando a arte sairia de sua
moldura e se fundiria na arquitetura, no espaço do mundo, enfim, passando a
fazer parte dele e não ser mais apenas sua representação.
Mondrian, tendo se destacado na atuação junto à De Stijl, teve suas
particularidades dentro deste programa. Por isto, em 1925 teria rompido com o
grupo por discordar do caminho a que se dirigia Van Doesburg, ao qual
denominava “arte concreta”, que incluía agora, além de outros princípios que
eram alvo da discordância de Mondrian, a permissão para a existência de
linhas diagonais nas obras do movimento. Plasticamente, a pintura de
Mondrian utilizava apenas linhas horizontais e verticais, cores
primárias e o equilíbrio assimétrico da composição. Esta seria a
pintura “pura” para o artista. “Pureza” era um atributo concedido apenas à
obra não-figurativa. A abstração era condição primordial para que se
alcançasse a arte universal. Assim ele declara:
A arte (...) expressar-se-á como produto de uma outra dualidade do
homem: como produto de uma externalidade cultivada e de uma interioridade
aprofundada e mais consciente – como representação pura do espírito
humano, a arte expressar-se-á numa forma esteticamente purificada, vale
dizer, abstrata. (CHIPP, 1996:325)

Sobre esta opção de Mondrian, junto com a de idealizar uma arte universal,
compreendida por todos e - porque não? – imutável, dirá Ronaldo Brito:
O fato de só conseguir formular suas teorias de produção em bases
metafísicas, no interior do circuito mágico da arte e fora da História, obriga a
uma leitura que detecte suas ambigüidades no registro correto. A meu ver,
precisamente, no seu recalque do político e na sua dependência do plano
tradicional da estética – a arte não era pensada como prática de conhecimento
inserida num quadro político e ideológico, mas como busca, como aventura
espiritual, no máximo como formulação de imanências universais. (BRITO,
1985:20).

Ronaldo Brito não deixa de reconhecer o valor do trabalho de Mondrian como


uma tentativa de rompimento “com os esquemas formais dominantes” e com o
“estatuto vigente da arte na sociedade”, mas não se priva de criticá-lo por conta
de sua proposta ter se baseado na visão alienada de um mundo que não se
transforma, que não influencia a produção da arte e, acima de tudo, onde a arte

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perde seu caráter específico, transformando-a em mais um produto,
semelhante a qualquer outro objeto do mundo moderno. Para Brito, o problema
desta visão neoplástica é o de acreditar que, retirando as relações específicas
que a arte mantém com a sociedade onde está inserida e com a qual dialoga,
estaria resolvido o “problema” de aceitação do não-figurativo. Porém, completa
o autor, o problema da arte naquele momento não era apenas questionar a
linguagem da arte ou sua função no mundo, mas justamente seu estatuto, as
relações entre o trabalho de arte e a vida moderna.

O neoplasticismo como pressuposto para a arte construtiva brasileira.

Mondrian enxerga o ângulo reto como o extremo, a manifestação de


interior e exterior – a forma mais equilibrada possível. Sendo assim, no “novo
plasticismo” de que fala o artista, o vínculo entre espírito e vida não está
rompido – interior e exterior permanecem conectados. Por este motivo, talvez,
Ferreira Gullar afirme a presença do humano no abstrato de Mondrian, a
possibilidade do espiritual que ultrapasse a necessidade da representação do
natural, a “busca de uma expressão transcendente em que todos os elementos
materiais – os meios – se dissolveriam num ritmo livre, na pulsação da
vitalidade pura” (GULLAR, 1998:186). O sensorial se faz presente pela
“reconciliação do dualismo matéria-espírito” (MONDRIAN, 1996:326). Meyer
Schapiro também enxerga esta dimensão humana na abstração de Mondrian:
As linhas geométricas aparecem então como partes de um
objeto virtual mais amplo e mais profundo. Nessa arte, que parece a
princípio tão completa em si mesma e que rejeita em teoria qualquer
referência a um mundo exterior à pintura, tendemos a completar as formas
aparentes como se elas continuassem em um campo próximo oculto,
constituindo segmentos de uma grade solta. É difícil se esquivar da
sugestão de que elas se estendam ao espaço virtual fora da tela.
(SCHAPIRO, 2001:38)

Esta continuidade das linhas mondrianescas sugerida pelas bordas


sangradas do quadro, este dinamismo e ritmo de cor e formas, tornam-se
interessantes precedentes para o movimento Neoconcreto, contra a posição
mecanicista de Van Doesburg, com quem Mondrian havia rompido por ter
incluído a possibilidade de existência de linhas diagonais em seus trabalhos, o

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que não estava dentro do pensamento inicial do De Stijl. Mas isto é simplificar o
problema e rebaixá-lo ao nível da anedota. Van Doesburg era um artista que
experimentava linguagens, que expunha as idéias do neoplasticismo, e talvez
este não tivesse obtido tão grande alcance se não fosse por sua atitude
“expansivo” nesta propagação. Porém, a cisão ocorre quando, em certo
momento, o artista publica um artigo-manifesto lançando o elementarismo, que
vai de encontro às idéias dogmáticas e homogêneas do neoplasticismo, e que,
entre outras propostas, pretendia aumentar a dinâmica da obra e, por
conseqüência, o efeito de surpresa do espectador com uma arte mais
heterogênea e variada.
Estes efeitos servirão fortemente como pressuposto para os concretistas
brasileiros que buscavam um meio de legitimar sua proposta artística, sendo
responsáveis por uma ampla pesquisa plástica, nunca antes empreendida na
arte brasileira, que primava pela arte abstrata, fugindo do figurativismo. E esta
pesquisa não se limitava ao campo da pintura e da escultura, mas atingia
também à poesia, à prosa e à musica. E suas pretensões eram bem amplas,
como nos mostra Paulo Sérgio Duarte:
Seus postulados procuravam, através da eliminação de qualquer
elemento subjetivo, uma universalidade que pressupunha um mundo sem
fronteiras culturais, uma arte que pudesse circular por São Paulo, Tóquio,
Chicago ou Paris e alcançasse o mesmo estatuto do teorema de Pitágoras,
da lei angular de Tales ou da mecânica newtoniana. (DUARTE, 1998:24)
Aqueles que se afastarão do concretismo, inaugurando o movimento
neoconcreto, o farão por acreditarem que este acaba por se dogmatizar,
contrário ao dinamismo que propunha Van Doesburg, além de terminarem por
deixar de se chamarem artistas para se autodenominarem “produtores
especializados da forma”, criando algo tão racional, objetivo e sistemático que
poderia ser reproduzido de modo serial, um produto que se propunha universal
e que não considerava a natureza daqueles a que se destinava – o público.

Relações Mondrian – Neoconcretismo.

Ferreira Gullar é, por excelência, o teórico do neoconcretismo. É ele


quem escreve o Manifesto Neoconcreto, assim como constrói uma “História da
Arte” evolucionista, que culmina com o movimento do qual faz parte e, nesta

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História, Mondrian não poderia estar ausente, já que é constantemente citado
como uma forte influência. Acima de tudo, admira o artista por ter-se mantido
fiel a alguns de seus princípios fundamentais até o fim.
O autor, em seu livro “Etapas da Arte Contemporânea: do Cubismo à
Arte Neoconcreta” (GULLAR, 1998:184-187), refuta a idéia de que haja
pragmatismo, utilidade e função em Mondrian, repetindo suas palavras: o
“puramente utilitário e racional” deve ser superado pelo sentido construtivo
“puro e concreto de sua beleza”, além de exaltar o papel da intuição com o
propósito de exprimir uma “vitalidade pura”, dissolvendo-se as formas num
“ritmo livre”. E para alcançar este ritmo livre, o artista esclarece que não basta
que se suprimam as figuras para que se tenha uma expressão não-figurativa. É
preciso também destruir o plano e a linha, afastando-se de uma arte decorativa
ou meramente geométrica, assim, alcançar-se-á o momento em que “tudo” está
expresso pela cor e pela linha, quando há equilíbrio na composição,
dissolvendo-se os planos e trazendo à tona somente o ritmo. Sobre a questão
arte figurativa x arte não-figurativa dirá Mondrian:
(...) vemos em toda obra de arte figurativa o desejo de representar
objetivamente a beleza apenas por meio da forma e da cor, em relações de
mútuo equilíbrio, e, ao mesmo tempo, uma tentativa de expressar aquilo que
essas formas, cores e relações provocam em nós. Essa última tentativa deve
resultar necessariamente numa expressão individual que disfarça a
representação pura da beleza. Não obstante, esses dois elementos opostos
(universal-individual) são indispensáveis para que a obra desperte emoção. A
arte precisava encontrar a solução adequada. Apesar da natureza dupla das
inclinações criativas, a arte figurativa produziu uma harmonia por meio de uma
certa coordenação entre expressão objetiva e expressão subjetiva.
(MONDRIAN, 1996:326).

A questão objetivo-subjetivo será imprescindível para os neoconcretos,


assim como o problema da expressão. Em contraponto à subjetividade, que é
individual, que corresponde aos sentimentos, faculdades mentais e sensações,
existe uma objetividade externa ao individuo, que é a objetividade positivista, a
mesma que dá origem à ciência, à matemática. O neoconcretismo refuta esta
objetividade cientificista, e se debruça sobre um conceito de objetividade de
uma outra esfera, mais profunda,
resultante da íntima integração das faculdades mentais e sensoriais do
homem. Apenas rejeitam o primado da razão sobre a sensibilidade, para
colocar a percepção estética (percepção da forma) como uma faculdade capaz

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de apreender e formular, sinteticamente, as complexas experiências humanas.
(GULLAR, 1998:246)
Este nível de objetividade consegue conviver com a subjetividade, sem
entregar-se a ela caoticamente. Não se trata aqui de explorar “sentimentos” ou
“significados”, mas de uma expressão que “toma um caráter extremamente
individualista e, ao mesmo tempo, vai até a pura exaltação sensorial, sem
alcançar, no entanto o sólio propriamente psíquico, onde se dá a passagem à
imagem, ao signo, à emoção, à consciência” (PEDROSA, 1986:10). A arte
neoconcreta, então, move o indivíduo sensorialmente, é uma arte tátil, física,
que se expande para o ambiente, que foge à moldura e se deixa entrever fora
dela, como uma continuidade elíptica. Estes são os principais pontos de
aproximação com a obra de Mondrian – ele é o artista que amplia o espaço da
sua obra, “um espaço de absoluta transcendência, dimensão infinita”
(OITICICA, 1986:31), um espaço que objetiva confundir-se ao espaço
mundano, tornando-se parte dele, enfim.
Quanto à expressividade, não se fala aqui da expressão individual,
subjetiva e auto-referente dos expressionistas abstratos, que trabalhavam na
mesma época do surgimento do movimento brasileiro. Isto seria quase uma
abominação, porém os neoconcretos defrontam-se com a expressividade de
outro modo. Esta é dada pela cor, pelo ritmo. A obra tem em si uma concretude
que interfere no estado das coisas, que ultrapassa o individualismo possível.
Ela fala a um e a todos. É uma arte orgânica, e não mecânica, que lida com a
vontade, em contraponto à racionalidade, preservando-se abstrata e
geométrica, conforme Argan, uma representação intelectual e visual da
realidade (ARGAN, 1995:113).
Neste ponto, entretanto, encontramos afastamentos entre Mondrian e os
neoconcretos: o primeiro se estabelece num espaço ficcional, de um mundo
ideal, sem particularidades, enquanto os segundos expandem-se para o
espaço real, para o embate com o mundo, onde a obra se faz obra. O primeiro
está comprometido com uma temporalidade concreta, espiritual, já que idealiza
um caminho a ser trilhado pela arte, o qual teria um fim, enquanto os segundos
geram uma arte que se restringe ao seu tempo, colocam isto em crise, assim
como o fazem com as utopias e os idealismos aos quais o primeiro se detém.
O conceito mondrianesco de “pureza” já não se aplica ao neoconcretismo,

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porque este não acredita numa arte que se faz afastada da sociedade, acredita
no dinamismo do mundo como fator inerente à arte, na influência latente do
embate da arte com a cultura e a sociedade. Por isso podem dar-se o direito de
realmente abolir as molduras e os pedestais e trazer o objeto para o contato
sensorial mesmo, primeiro com estruturas que já não se podem chamar
quadros ou esculturas, posteriormente, com experimentos e pesquisas
sensoriais a partir de “objetos relacionais”, os quais pressupõem a necessidade
de um sujeito para esta relação se dê, dentro de um tempo específico, aberto
para os imprevistos e para uma duração limitada. Esta poética já se envolve
totalmente no conceito de “arte ambiental” (OITICICA, 1986:78) de Hélio
Oiticica, que “propõe uma manifestação total, íntegra, do artista na suas
criações, que poderiam ser proposições para a participação do espectador”,
rompendo o dualismo concretos x neoconcretos e se abrindo para uma arte
que, finalmente, se funde ao mundo, como desejava Mondrian. “A arte
neoconcreta funda um novo espaço expressivo” (DUARTE, 1998:26).

Bibliografia

ARGAN, Giulio Carlo. Arte e Crítica de Arte. Lisboa: Estampa, 1995.

BRITO, Ronaldo. Neoconcretismo: Vértice e ruptura do projeto construtivo


brasileiro. Rio de Janeiro, Funarte, 1985.

CHIPP, H.B. Teorias da Arte Moderna. São Paulo, Martins Fontes, 1996

DUARTE, Paulo Sérgio. Anos 60 - Transformações da Arte no Brasil. Rio de


Janeiro, Campos Gerais, 1998.

GULLAR, Ferreira. Etapas da Arte Contemporânea. Rio de Janeiro, Revan,


1998.

OITICICA, Hélio. Aspiro ao grande labirinto. Rio de Janeiro, Rocco, 1986.

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SCHAPIRO, Meyer. Mondrian: A dimensão humana da pintura abstrata. São
Paulo, Cosac & Naify Edições, 2001

ZILIO, Carlos. Da Antropofagia à Tropicália. In: O nacional e o popular na


cultura brasileira. São Paulo, Brasiliense, 1982.

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