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TRADUTOR, TRAIDOR (OU TRAÍDO)?

O caro leitor já leu a Bíblia? Se a resposta é sim, com certeza, tratava-se de uma tradução, a
não ser que domine o grego ou o aramaico. Esse texto sagrado dos cristãos já foi vertido
para quase todas as línguas conhecidas – e algumas praticamente desconhecidas, o
colecionador e amigo Cid Teixeira que o diga. Somente na língua inglesa, os fiéis e
estudiosos podem escolher de uma gama de versões, que vai da poética tradução
encomendada pelo Rei James, a várias outras ditas atuais e até políticamente corretas.

De outro lado, qualquer brasileiro que pretende estender seus conhecimentos e cultura para
além da rica literatura de sua própria língua tem duas alternativas – tornar-se poliglota ou
entregar-se às mãos de um tradutor para ler o repertório obrigatório de obras clássicas da
literatura universal, como Shakespeare (inglês antigo), Tolstoi (russo), Victor Hugo
(francês) e Garcia Marques (castelhano).

Mas não são apenas aqueles que se dedicam às palavras divinas ou à cultura que dependem
dessa mal-compreendida classe, a dos tradutores. Quase tudo que se passa no telão e até na
telinha precisa de legendação ou dublagem. Além de romances, gibis, notícias do mundo
publicadas nos jornais, colhidas de agências internacionais como a AP ou a Reuters. Enfim,
uma grande parte do dia a dia de todas as classes sociais e todos os níveis intelectuais
depende da arte e do ofício da tradução.

Então, como é que, ao menos no Brasil, essa tremenda responsabilidade é entregue a uma
classe pouco valorizada? (O tradutor é considerado um reles “técnico”; não chega a ser
visto como um profissional de nível superior.) São artistas e artesãos que, mesmo quando
devidamente qualificados – a estas qualificações chegaremos em breve – geralmente
carecem das mínimas condições necessárias para realizarem um bom trabalho. Em outras
palavras, precisam de tempo suficiente para pesquisa e remuneração compatível com as
exigências do dia de hoje, porque o tradutor bem equipado, no mínimo, precisa de um
micro-computador tipo Pentium, várias modalidades de software permanentemente
atualizadas, telefax, telefone – no mínimo duas linhas, uma para voz e outra para Internet e
telefax – e acesso à Internet, já que o correio eletrônico vem superando os meios
tradicionais de recebimento e entrega de trabalhos.

Quanto às pressões de tempo, nenhum exemplo é melhor do que o tão criticado tradutor de
filmes. Convenhamos, por exemplo, que na legendagem e na dublagem frequente- e
famigeradamente erram, traduzindo o “sim” como “não” e até “perna” como “velório”!
Mas nem por isso posso criticar a estes colegas (sim, eu também pertenço a esta tão
desprezada classe), porque sei que o trabalho deles (ou delas) geralmente é realizado no
tempo necessário para passar o filme!

Frequentemente, e esta situação não se limita ao Brasil, a pessoa física ou jurídica que
precisa de uma tradução acredita nos seguintes mitos:

1. o primo de Fulano pode fazer o trabalho muito bem, porque cursou dois anos de “High
School” nos Estados Unidos na década de 80, ou passou três anos na Inglaterra quando
criança e “fala quase sem sotaque.”
2. um trabalho realizado em três meses a oito mãos por uma equipe multidisciplinar pode
ser traduzido por uma pessoa em três dias (ainda mais se for pelo primo de Fulano!).
3. um bom tradutor pode realizar seu trabalho na hora, até por telefone, sem dicionários ou
outras fontes de referência.
4. um tradutor competente se encontra em qualquer lugar (apesar de definirmos como capaz
o tradutor que possui um conhecimento profundo das duas línguas, tem nível superior, pelo
menos na língua alvo; tem excelente capacidade de interpretação de textos, trabalha
rápidamente e com precisão, dispõe de equipamentos de ponta e sempre cumpre os prazos
nem sempre negociados).
5. quem sabe traduzir de uma língua para outra (digamos, do português para o inglês) pode
trilhar o caminho inverso (do inglês para o português) com a mesma facilidade.
6. os tradutores em breve serão substituidos pela informática.

Somente quando esses mitos forem erradicados e os profissionais que se dedicam à


tradução como arte e ofício devidamente respeitados, poderemos dizer que o tradutor, antes
traído pelo preconceito e a falta de informação, passará a ser um verdadeiro aliado da
comunicação, do bom entendimento e da cultura universal.

H. Sabrina Gledhill é inglesa, radicada na Bahia desde 1986. Além de tradutora (com
muito orgulho) e brasilianista, com Mestrado na área de Estudos Latino-Americanos da
Universidade de Califórnia em Los Angeles – UCLA, também é Bacharel em Letras
Inglesas e Bacharel Internacional da ONU. Ao longo de sua carreira, traduziu para o
inglês mais de 20 livros, editadas no Brasil e no exterior. Antes de fixar-se no Brasil,
trabalhou como jornalista e editora nos Estados Unidos.

Artigo publicado no jornal A Tarde em 24 de julho de 1998

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