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OS CARACÓIS CRESCENTES

Na sua casa além das portas, o procurador substituto da República,


doutor Giovanni Auer, trabalhava certa noite no requisitório do processo
Oleari, ainda em dúvida se pediria a pena de morte, quando ouviu ruídos na
sala de estar contígua, àquela hora vazia. Ergueu-se da escrivaninha, abriu a
porta de comunicação e acendeu as luzes.
Sobre o tapete central da sala, iluminado em cheio pelo lampadário,
havia três caracóis. E o curioso era que os dois maiorzinhos arrastavam pelas
patas de trás o terceiro, o qual estava de barriga para cima, rastejando de
costas, mas com a cabeça comicamente erguida para olhar em volta. Ao
aparecimento do doutor Auer, os animaizinhos aceleraram o passo, sumindo-
se depressa sob o aparador.
A presença de caracóis na casa não era por si s´ coisa de estranhar.
Habitualmente, apareciam na cave ou no depósito de lenha . ( Certa vez o
doutor Auer atingira com a Flobert um deles, que se estava enfiando na toca,
mas isso não lhe impediu a fuga.) Singular era que tivessem, através de algum
ignoto buraco, chegado até a sala de estar. Singularíssimo que fosse
precisamente três. O jovem magistrado, afastando o aparador, descobriu entre
o pavimento e a parede uma larga fresta: haviam entrado por ali. Para fechá-
la , introduziu, apertando-a bem, uma cunha improvisada com jornais velhos,
de modo a bloquear a passagem. Depois voltou ao trabalho.
Cerca de meia hora passar quando os ruídos se repetiram mais fortes.
Desta vez, antes de irromper na sala, o doutor Auer se muniu de um bastão.
(Pareceu recordar-se de que os caracóis são comestíveis, com um delicado
sabor de zambujeiro; ou estava confundindo-os com porcos-espinhos? )Mas,
assim que entrou no aposento vizinho e acendeu a luz, parou, desconcertado.
De volta sabe-se lá por qual caminho, os três caracóis estavam atravessando o
tapete com a mesma manobra de antes. Comparativamente, porém, aos
anteriores, tinham dimensões enormes, não inferiores às de leitões, com o
acréscimo da cerrada coroa de acúleos.
O completo domínio de si e uma glacial imperturbabilidade diante dos
casos mais estranhos haviam sempre sido a característica precípua do doutor
Giovani Auer. Não pestanejou sequer. Todavia, hesitou em travar batalha,
tanto mais que um dos caracóis ( mas podia-se ainda chamá-los assim?)tinha
suspendido a operação de reboque e voltava o focinho para ele mostrando os
dentes, não se entendia se em ato de ameaça ou com intenção de riso. Também
o segundo se detivera e o fitava. O terceiro, ao contrário, estava sempre de
pança para cima, quase incapaz de mover-se. E havia no ar um penetrante
odor animalesco.
- Psc!Psc! – fez, sibilante, o magistrado, para induzir os caracóis a
fugirem. E ergueu o bastão na mão direita. – Fora , bichinhos nojentos!
Um dos caracóis válidos avançou então um pouco e, erguendo uma pata
em gesto explicativo, disse claramente:
- Paciência, senhor, paciência. Nós levar o filhinho para casa. – E
depois, voltando-se para este, a fim de que não se assustasse: - Você saber: o
senhor ser coxo. Por isso usar bastão.- Falava escandindo as sílabas e pondo
todos os verbos no infinitivo, como os estrangeiros que conhecem pouco a
língua, mas expeditamente , sem incerteza excessiva na escolha dos
vocábulos.
Fiel à sua tradicional impassibilidade, o doutor Auer, num fulminante
processo mental, eliminou do próprio quadro da Natureza a idéia até então tida
por válida dos caracóis habituais, substituindo-a sem dificuldade pela de
caracóis gigantes dotados de fala.
- Fora! Fora! – repetiu, abaixando, porém o bastão. – Já tive o quanto
basta dessas histórias. – E sem intervir assistiu à mudança.
Foi preciso mais de uma hora para cerrar, com pedaços de madeira e
massa de gesso, o vasto furo na parede, até aquela noite desconhecido de
Auer, que se abria sob o piano e pelo qual os três animais tinham sumido.
Passava de uma da madrugada quando ele pôde voltar à escrivaninha. E a casa
recaiu no silêncio.
Passou-se cerca de meia hora. Quando, pela terceira vez e com violência
ainda maior, repetiu-se o barulho na sala de estar, Auer teve dificuldade em
dominar a emoção. Decidido a acabar de vez com o incômodo, tirou de um
armário a espingarda de caça e a carregou com balas. Mantendo-a apontada,
abriu de um golpe a porta da sala.
Espantou-o antes de tudo a luz acesa, pois se lembrava muito bem de
ter girado o interruptor. Mas havia pior. Os três caracóis ainda estavam ali.
Não eram mais, porém, três inócuos animaizinhos . Eram do tamanho de uma
ovelha desta vez, com acúleos compridos como baionetas. Monstros
antediluvianos.
O filho estava largado de barriga para baixo em cima do divã, que não
parecia grande demais para ele; as patas de trás, dependuradas, davam-lhe
aparência de estar sentado. Um dos dois caracóis dormitava sobre o tapete. E o
terceiro, que era lícito pensar fosse a mãe, preparava café num fogareiro a
álcool com um bule napolitano.
Disparar? O magistrado avaliou friamente os possíveis efeitos. O filho
estava sem dúvida semiparalisado. Mas e os outros dois? Para abatê-los seria
preciso mais que a sua espingarda de dois canos. E se se revoltassem?
Os três o fitaram imóveis. E houve um silêncio penoso. Depois a mãe-
caracol disse amavelmente no seu exótico italiano:
- Paciência, senhor. Esta casa não nossa, eu saber. Mas assim nós
divertir nosso filho...Doente nosso filho...Hoje domingo... Nós todos os
domingos vir aqui para visitinha...Aceitar um café simples, senhor?
- Mas eu – balbuciou o doutor Auer, pela primeira vez abalado com os
acontecimentos, preocupado com que a vista da arma pudesse provocar o
ressentimento dos bichos - ... eu estava limpando a espingarda...hoje fui
caçar...
- Pobre menino – continuou a mãe, loquaz, apontando uma pata para o
filho estendido no sofá. – Há sete anos sempre assim...ele aprender andar em
frente nossa toca quando homem dar tiro...Duas pernas não andar mais...Bala
ficar encravada...Dorr, dorr – ( voltou-se para o enfermo) - , mostrar ao senhor
bala...Oh,não ter medo , senhor , não ter medo... Coragem, coragem, apalpar
como grande!
O doutor Auer experimentava um sentimento desconhecido. Como se
estivesse tornando-se uma outra pessoa. Uma ânsia, uma falta de ar, o coração
que batia forte. Por certas lembranças de leitura acreditou compreender do
que se tratava. Chamava-se : terror.
Dócil, aproximou-se do caracol deitado, o qual se virou de lado,
fazendo ranger com os acúleos o tecido do divã; e com uma das patas indicou
o ponto certo. Auer apalpou, enfiando a mão cuidadosamente entre os
espinhos: à altura da coluna vertebral avultava um inchaço, duro e grosso
como uma bola de bilhar.
- Misericórdia – exclamou o magistrado, dando-se conta de que um
comentário se fazia necessário.
De repente o enferno tornou a estirar-se e gemeu com uma curiosa
vozinha:
- Os outros brincar nos campos, os outros andar procurando vermes, os
outros caminhar correr entre as flores, eu aqui parado sobre almofadas... –
Lamentando-se desse modo, começou a soluçar.
- Sempre assim, sempre – disse a mãe compadecida. – que pena o pobre
menino! Contar, Dorr...contar a sua história para o senhor...contar quem
disparar a espingarda...
- Ser um homem – choramingou o caracol -, ser um homem não grande,
não pequeno, homem como ele –e com uma pata apontou o magistrado - , até
cara um pouco parecida...
Finalmente o doutor Auer compreendeu: era o mesmo caracol que um
ano antes ele atingira com a Flobert. O que iria acontecer agora? Pensou em
tentar fugir. Mas não era simples alcançar a porta que dava para a escada.
Seria preciso passar por cima do caracol-pai, o qual o fitava taciturno,
obstruindo-lhe totalmente a passagem.
- Ah, eu não capaz de fazer mal a cobra – explicava entrementes a mãe.
– Mas se um dia eu conhecer esse canalha, se eu encontrar...você, Gog, dizer
bem: se encontrar o homem o que fazer?
Interpelado, o pai finalmente fez ouvir a sua voz rouca, profunda, com
um leve sotaque marquesão:
- Eu lhe meterei os dentes – respondeu com expedida loqüela -, sei bem
onde...e não o largarei assim tão fácil. – Dito isso, retraiu os lábios sobre as
gengivas, não se apercebia se por ameaça ou hilaridade.Ou seria um tique
nervoso?
O magistrado recuou apavorado. Então as bestiagas sabiam que havia
sido ele e tinham vido vingar-se. Ele conhecia até bem demais aquele
ambíguo sistema de interrogatório de ardis, na aparência inocente e distraído.
Quantas vezes não se valera dele nas instruções para apanhar os lobos mais
astutos.
- Chega , mamãe – lamentou-se nesse ponto o filho – , eu cheio esperar!
Pai e mãe se movimentaram juntos. Talvez pretendessem tirar de cima
do sofá o seu filho. Mas o doutor Auer teve a impressão de que investiam
contra ele, extremamente ameaçadores. Perdendo todo o respeito por si
próprio, deixou-se cair imprevistamente de joelhos.
- Piedade, piedade, oh, meus senhores – suplicou com voz chorosa em
abjeta submissão - ...foi um erro, juro-lhes...um lamentável erro...Um
magistrado integérrimo... Como podem pensar?
Os dois monstros, sem reparar nele, tiraram o filho de cima do divã com
delicadeza infinita, e começaram a arrastá-lo para fora feito um carrinho.
Chegando à porta das escadas, o pai abriu uma das folhas com gesto
autoritário e dispôs-se a passar. Também a mãe se aviou, mas ao chegar à
soleira voltou a cabeça fitando o doutor Auer ainda ajoelhado.
- Miserável ! – exclamou. – Vergonha para você e todos os seus. Vocês
dizer: isto bom, isto mau. Mas que saber vocês? Vocês não saber nada.
Vocês dizer: crime fazer isto s é grande castigo; se castigo pequeno, pequena
culpa, se nenhum castigo, nenhuma culpa. Nós pequenos, você disparar. Nós
grandes, você ajoelhar...Vocês falar de consciência. Sua consciência? Bah!
Vocês dizer: consciência, dever, arrependimento, remorso...Por que não dizer
medo, em vez disso? Só medo dentro vocês, sempre medo. Você dizer:
magistrado in...teg...
- Integérrimo – sugeriu automaticamente Auer por hábito profissional.
- Você dizer integérrimo, você decidir da vida e da morte...Você grande
burro! – ( ao dizer isto também ela contraiu o lábio superior, mostrando os
dentes) – se um dia Deus ficar doente ou perder as forças , vocês todos felizes
de praguejar! Isso é o que vocês homens são!
Interrompeu-se para recuperar o fôlego, gritou ainda: “ Verme! “, com
muito amor arrastou o filho para fora, até o patamar, bateu a porta atrás de si.
O magistrado ouviu-os descendo devagar as escadas.

AS MONTANHAS SÃO PROIBIDAS


Dino Buzzati
Cia das Letras
1993

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