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b VG, [ se Adao e Eva tivessem obedecido, e recusado a - 1 “proposta” da serpente? Como seria a nossa vida — no Paraiso? Maravilhosa, como diz a imaginacdo popular? O autor deste livro tem uma resposta bem diferente para esta pergunta. Ei-la: Ao homem, disse Deus: “Vocé jamais terd que trabalhar, Passe seus dias em ocioso contentamento, com o alimento crescendo a sua volta”. A mulher, disse: “Vocé terd filhos sem dor, e eles crescerao sem Ihe causar sofrimentos. Nao precisarao de voce para nada. Os filhos nao choraréo quando seus pais morrerem, e os pais nao chorarao quando seus filhos morrerem”. A ambos, Ele disse: “Para o resto de suas vidas, vocés terao barrigas cheias e sorrisos felizes. Jamais chorardo e jamais riréo. Jamais desejardo algo que nao tiverem e nunca alcangarao o que ‘porventura desejarem”. Eo homem e a mulher envelheceram no Jardim, comendo diariamente os frutos da Arvore da Vida e tendo muitos filhos. E 0 mato cresceu alto em volta da Arvore do Conhecimento do Bem e do Mal, até que ela desapareceu de vista — pois nao havia ninguém para cuidar dela. No Jardim do Eden a vida seria tudo — menos humana! AExodus Editora lanca a seguir um novo livro de Harold Kushner, A Vida (To Lifel), enfocando. de modo claro e conciso 0 que faz do Judaismo | uma bela resposta para a pergunta: AVIDA, 0 QUE E? ‘ -~ y+ Tr rT vwwrwrwrwrwwowwoww~wewuewwuwuy | fo sure mzise ag at]. 2 | sch tai ten | ii | 7888 Livrar HAROLD S. KUSHNER O QUANTO E PRECISO SER BOM? (How good to we have to be?) EXODUS EDITORA RIO DE JANEIRO Copyright © 1996 by Harold S. Kushner Original publicado pela Little, Brown and Co. Copyright © desta edigio para Exodus Editora : Direitos reservados ¢ exclusivos adquiridos para o Brasil E proibida a reprodugio parcial ou total deste livro por qualquer meio ow sistema sem autorizagio expressa, por escrito, da Exodus Editora CIP-DRASIL. LOGAGAO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ. 280 Kushner, Harold S. (© quanto é preciso ser bom? ~ (How good to we have to be?) / Harold S. Kusher; [tradugio de Dirce de Assis Cavalcanti]. - Rio de Janeiro: Exodus, 1997 Tradugio de: How good to we have to be? ISBN 85-85979-10-0 1. Biblia. A. T. Génesis - Critica, interpretacio, etc. 2. Bem e mal. 3. Eden. 4. Autoconfianga ~ Aspectos religiosos. 5. Berfeigao - Aspectos religiosos. 6. Culpa ~ Aspectos religiosos. 7. Perdio ~ Aspectos religio- sos I. Titulo. 97-0266 CDD 222.107 CDU 222.1.07 050397 050397 002694 Direcao: Michael Malogolowkin Traducio: Dirce de Assis Cavalcanti Copidesque e Revisto Técnica: Davi L. Bogomoletz Capa: Marcos Cartum Diagremacio. Maria de Lourdes de Oliveira Claudia R. S. L. de Medeiros Exodus Editora Rua Visconde de Inhaiima, 58/401 p 20091-000 ~ Rio de Janeiro - RJ 1997 mpresso no Brasil Para Carl David Haber com quem a raga humana recomega Capitulo 1 Capitulo 2 Capitulo 3 Capitulo 4 Capitulo 5 Capitulo 6 Capitulo 7 i Capitulo 8 indice Agradecimentos Deus Ama Vocé De Qualquer Maneira O Que Realmente Aconteceu No Jardim do Eden? - Pensei Que Tinha Que Ser Perfeito Pais e Filhos, Maes e Filhos E Preferfvel Ser Feliz A Ter Razao Caim e Abel Havera Bastante Amor Pelo Mundo? A Vida Depois do Eden O Quanto é Preciso Ser Bom? ix we 13 29 57 83 102 122 142 AGRADECIMENTOS Tive sorte ao escrever este livro, da mesma maneira como. tive sorte com meus trés livros anteriores, por ser James H. Silberman o meu editor. Praticamente cada pagina deste livro se beneficiou de sua lucidez. Sou grato 4 minha esposa, Suzette, mais do que estas palavras podem expressar. Foram inestimaveis a sua paciéncia comigo enquanto eu escrevia, € © seu apoio e estimulo enquanto eu pensava sobre o que es- ctever depois. Vérios amigos me ajudaram a pensar ea por no papel o que eu estava tentando dizer, e sou grato a todos. Uma vez mais, Peter L. Ginsberg, meu agente, foi o condutor desta aventura e, uma vez mais, merece meu profundo agra- decimento. Finalmente; devo alertar o leitor para 0 paradoxo.com que este livro se inicia. Este livro, cujo tema é 0 de que nio podemos esperar que as pessoas sejam perfeitas, ¢ dedicado a Carl David Haber. Carl Haber é 0 meu neto de trés anos. Nés achamos que ele é perfeito. Sntroducao HA muito tempo venho pensando nas idéias expressas neste livro. A histéria biblica do Jardim do Eden me preocupou desde crianca. Um Deus que punia as pessoas tao severamente por haverem violado uma regra arbitraria nao era um Deus em quem eu quisesse acreditar, especialmente porque a historia parecia sugerir que Adio e Eva nio tinham conhecimento do que signi- ficavam o bem e o mal antes de quebrar essa regra. A medida que fui crescendo encontrei, muitas vezes, pes- soas fazendo o que elas pensavam que Deus tinha feito na Biblia, rejeitando alguém que cometera um erro, porque esse alguém no era perfeito. Quando eu era rabino de uma con- gregacio, num suburbio de Boston, e membros de minha si- nagoga partilhavam seus problemas comigo, repetidamente ouvia histérias sobre filhos furiosos com seus pais por terem sido maus pais, de pais desapontados com seus filhos por nao serem bem sucedidos, de maridos e mulheres desapontados um com 0 outro, de um irmio que nao convidava outro para © seu casamento por causa de uma briga ocorrida ha muitos anos. O problema era sempre o mesmo: alguém fazia alguma coisa errada eo outro reagia, retirando-lhe o seu amor, algu- masvezes abo indo todo 0 contato com o outro. Eo retaliador er Seen ee a sé sentia justificado-emi agir assim porque, afinal de contas, Deus nio tinha feito a mesma coisa no Jardim do Eden? Fre- Aarold S. Kesner quentemente eu me sentia frustrado pela inabilidade de meu enfoque religioso para sanar essa ruptura. Ha quinze anos, em consequéncia de uma tragédia pessoal, escrevi um livro chamado When Bad Things Happen to Good People ("Quando Coisas Ruins Acontecem a Pessoas Boas"). Sua mensagem era simples, mas radical: quando algo ruim lhe acon- tece, nado é Deus que o esta punindo porque vocé o mereceu. Deus esta do seu lado, nao do lado da enfermidade ou do desas- x Sc ee —_—___————_. Este livro deve ser considerado como uma extensio daque- le. Sua mensagem é igualmente simples e igualmente radical: Deus nao para de nos amar a cada vez que fazemos alguma coisa errada, nem deverfamos nés parar de nos amarmos uns aos ou- tros, por termos sido menos que perfeitos. Se os professores de religiao disserem o contrario, esta sera uma ma forma de reli- gido. Se nossos pais reagirem ao nosso mau comportamento re- tirando de nés o seu amor, essa tera sido uma reacio mA dos que, de resto, podem ter sido bons pais Acho que nosso sentido de auto-estima, nossas relagdes com nossos pais, filhos, companheiros, irmaos e amigos irio melho- rar muito se aprendermos a lic¢io de que um erro nio precisa levar a rejeig’o e a expulsio. E espero que este livro guie vocé para alcangar essa béngao. w Cpt Ue ii; Ma Uses we Qualjuer Weateivd Olho para uma sinagoga cheia, transbordando, todos os lugares tomados, gente em pé no fando.d6 salio. Ea véspera do Yom Kipsir, 0 Dia do Perdio, dia em que os judeus jejuam ¢ oram a Deus para que perdoe seus pecados e os encaminhe, lim- Pos, para comecar o Ano Novo. Homens e mulheres, que nao assistem a outros servicos religiosos durante o ano, compare- cem a este. Pessoas que costumam chegar no meio de nossas longas ceriménias tratam de ser pontuais esta noite. Quando o ultimo dos fiéis se sentou, eu dou um sinal para o chantre e ele comega a entoar o servico: “Com o consentimento das autoridades, no céu ¢ na terra, permitimos aos pecadores que entrem e facam parte da congre- gacao”. Quem sio esses pecadores que as palavras de abertura ad- mitem como benvindos? Cada uma das quase mil pessoas ali presentes acredita que aquelas palavras lhe sao enderecadas. A religido e a consciéncia Ihes transmitiram a mensagem de qu elas nfo tém sido sempre as pessoas que deveriam ser, ¢ elas se Harold S. Kusner vyoltam para a religio em busca de uma mensagem de perdao e de aceitagio. A liturgia falara, repetidamente, sobre as nossas falhas, nos- sa negligéncia para com nossos deveres, nossa dureza de cora- co para com os outros. Mas, se as palavras do Dia do Perdio sao palavras de repreensio e de fracasso, a “miisica” se impregna de uma mensagem muito diferente. As pessoas nio vieram 3 si- nagoga para que lhes digam que fizeram coisas erradas. Sabem disso muito bem. Vieram_para serem_asseguradas de que seus maus feitos nZo_as alijaram do amor de Deus. Nao esperam ser julgadas e condenadas. Esperam ser purificadas, receber a confi- anga, a sensacio de terem sido perdoadas e aceitas, que lhes permitira comegar o Ano Novo sem o fardo das falhas do ulti- mo ano. Hi alguma coisa na alma humana que nos leva a diminuir- nos cada vez que fazemos algo errado. Pode ser o resultado de termos tido pais com uma expectativa exagerada a nosso respei- to, ou de professores que aceitavam tudo o que faztamos direito como uma obrigacéo, e nos caiam em cima por tudo o que fizdssbrads de erral6ite Galvez sev bout paraiits gentienenos assim. Isso pode nos tornar mais sensiveis ao que fazemos de errado, e levar-nos a nos arrepender e a crescer. Mas pode, tam- bém, contribuir para estabelecermos padrées altos demais para wy eee nés € para og outros A religido estabelece altos padrées para nds e nos incita a crescer moralmente nos nossos esforcos para alcangarmos esses padrdes. Avreligiao nos ensina: “Vocé poderia ter feito melhor; vocé pode fazer melhor”. Mas ouga bem essa mensa gem. Essas palavras sio de encorajamento, nao de condena- Xo. Sao um estimulo a nossa capacidade de crescer, nio uma critica 4 nossa tendéncia a cometer erros. Nés interpretamos mal a mensagem da religido se a ouvirmos como uma mensa- 4 O Quanto ¢ Preciso ser Bom? gem critica, assim como interpretamos mal nossos pais ao pensarmos que estavam desapontados conosco, quando o que estavam tentando fazer, ainda que desajeitadamente, ou irrealisticamente, era prevenir que um dia olhassemos para tras e ficassemos decepcionados por ndo termos feito o me- Ihor que podiamos. A religiao condena o erro. Ela nos censu- ra por mentir ou por ferir o préximo. No entanto, a religiao também tenta purificar-nos do auto-desapontamento, com a mensagem libertadora de que Deus nos acha merecedores de Seu amor. A Dra. Rachel Naomi Remen, uma médica da California, descreve como o psicdlogo Carl Rogers abordaria um encontro terapéutico: “Antes de comegar uma sessio, faco sempre uma coisa. Digo-me que sou tudo 0 que posso ser. Nao que sou per- feito. Ser perfeito nao seria “tudo” o que posso ser. Digo-me que sou humano e isso é o bastante. Nao ha nada que este homem diga, ou faga, ou sinta, que eu nao possa dizer, fazer ou sentir eu mes- mo. Sou tudo o que posso ser.” A Dra. Remen acrescenta: “Aquilo foi uma descoberta. Era como se uma velha ferida, um medo de nao ser suficien- temente boa, tivesse cicatrizado. Eu sabia, no meu intimo, que o que ele dissera era absolutamente verdadeiro. Nao sou perfeita, mas sou tudo o que posso ser. Saber disso...permite que a cura acontega.” Nem todo mundo tem essa sabedoria, esse saber ser “bom o bastante”, mesmo nio sendo perfeito, Ha 44 uma multidio de gente que gira pelo m mundo sentindo que ‘no © sufici entemente boa, se semtindlo jo desapontada cons consigo-mesma eacreditando que nio merece ser amada. Ao que parece, fazemos as pessoas se Sentireny inadequadas por atacado, ¢ entio tentamos levanté-las uma a uma, no varejo, mas a cura nunca parece acompanhar a extensio do sofrimento. Harold S. Kasner Tolstoi, na famosa frase de abertura de seu romance Anna Karenina, diz_que “as is familias felizes sto todas paretidas, mas cada familia infeliz @infeliz 4 sua maneira”. Duvido que ele tives- se razao. Minha experiéncia como religioso, e como conse- lheiro, tem-me ensinado que ean parte da carga de infelicidade que as pessoas carregam, muito da culpa, muito da sensagao que elas tém de terem sido enganadas pela vida, surge de uma dentre duas causas, relacionadas entre si: ou, em algum ponto do caminho, alguém - um pai, um professor, um lider religioso - Ihes passou uma mensagem de que nao eram bastante boas e elas acreditaram. Ou entio esperaram e precisaram mais das pessoas ao seu redor - seus pais, filhos, maridos ou mulheres - do que essas pessoas realisticamente podiam dar. E a nogao de que temos que ser perfeitos ede que esperamos que 0s outros 0 sejam, porque precisamos que eles sejam assim, que nos deixa constantemente culpados e perpetuamente desapontados. Fico sempre desconfiado de livros e artigos que nos di- zem “Madea uma $6"coisa em suia Vida e a felicidade sera sua” seja ios habitos alimentares, seja no trabalho, ou na maneira e nos relacionarmos com nossos maridos ou mulheres. A vida é muito complicada para que a mudanga de uma variavel faga tanta diferenga. Mas, quanto mais eu, como religioso, lido com os problemas das pessoas, € quanto mais eu, como mari- do, filho, pai, irmSo e amigo, aprendo a olhar para a minha propria vida honestamente, mais convencido fico de que uma explicagdo para muitos desses sofrimentos poderia estar nes- sa nog4o errénea: temos que ser perfeitos para sermos ama- dos pelas pessoas.e perderemos esse amor se, alguma vez, ficarmos aquém da perfeicio. Ha poucas emogées mais capa- zes de nos déixar mal em relacio ands mesmos do que a con- vicgio de que nfo merecemos ser amados. E poucas coisas 6 O Quanto & Preciso ser Bom? siio mais decisivas para gerar essa conviccio do que a idéia de que toda vez que fazemos algo de errado damos a Deus, ¢ as pessoas mais chegadas a nds, razdes para nao nos amarem. Como alguém que acredita num Deus que ama, purifica e perdoa e, como alguém que defende a religiio como uma cura para as afligdes da alms, fico constrangido pelo uso da religido para induzir culpa, em vez de cura-la, e pelo nimero de pessoas que encontro, de todas as crengas, que me contam que sio constantemente sobrecarregadas de sentimentos de culpa e de inadequacao por “terem cometido 0 engano de le- var a religiio a sério” quando eram criangas. E tio triste en- contrar pessoas que se consideram profundamente religiosas e descobrir que 0 que pensam ser religiao é, de fato, um medo infantil de perder o amor de Deus, se algum dia fizerem algo contra a Sua vontade. Gostaria que este livro fosse um livro libertador, porque acredito que a mensagem essencial da religido é é uma mensa- gem libertadora, no uma mensagem restritiva ou punitiva. Acredito que a mensagem (undamental da teligiio nao é 3 que somos pecadores porque nio somos perfeitos, mas a de que o desafio de ser humano é tio complexo, que Deus nio perde tempo esperando de nds a_perfeicio. A religigo vem ‘para purificar-nos-de-nasso-sentimento. dedesvalia e-para-as- Segurar-nos de que, quando tentamos ser bons tio bons quanto desejavanjos sek, nig. perdemos mor de.Deus. mesmos outra vez, sermos capazes de elevar-nos acima das vozes de reprimendas dos pais, dos professores e de outros fantasmas de nossos anos de crescimento, e sentirmos que somos pessoas dignas de admiracio e de amor. A religiio, se adequadamente compreendida, pode proporcionar-nos esse sen- 7 Seria tio maravilhoso sentirmo-nos bem em relacSo a nds* \ \ \ \ ; » YW; Harold S, Kusner timento. Talvez seja essa a melhor e a mais valiosa das coisas que a religido pede fazer. Dizer que Deus nos perdoa nossos maus atos nio é uma declaragio a respeito de Deus ou de sua generosidade. E uma declaragio sobre nés mesmos, Sentir:se perdoado ¢sentir-se_ livre para pisar.no.futuro.sem estar.contaminado pelos enga- nO§. n08-do_passado, encorajado pela conhecimento de que é pos- Sivel-crescér e mudar, e no é necessario repetir os mesmbs eres Ce ee erros de novo, « Pode odemes ter recebido essa mensagem de perfeico de pais ae ‘Hos amaram genuinamente, que queriam para nds o melhor e que agiram de acordo com essa preocupagao, corrigindo todos OS NOssos erros, Mesmo os triviais, e constantemente nos com- pelindo a agir melhor..Ou podemos té-la obtido de pais emocio- nalmente aturdidos, desapontaddsconsigo mesmos, de mal com o mundo, e incapazes de denidastrarines © amor e€ a aprovacao de que tanto precisavamos. E nds, na nossa inocéncia infantil, pensdvamos que éramos os responsaveis por seus maus humo- res € que nao mereciamos ser amados. No maravilhoso romance de John Steinbeck, East of Eden, h& uma cena em que um filho da ao pai um presente, que esco- Ihera com o maior cuidado e pelo qual se’sacrificara muito. O pai o desdenha. Nés, os leitores, sabemos que o pai faz isso por ser uma pessoa emocionalmente ferida ¢ retrafda, que se ressen- te ao ver as melhores qualidades de seu filho, e nio aceita acredi- tar que ele prdéprio merega um presente especial. Mas o menino, a quem falta a perspectiva do leitor, nio compreende isso. A mensagem que Ihe chega é a de que ele nfo é suficientemente bom, e essa rejeicao vai afetar o resto da sua vida. \Rodemos ter recebido essa mensagem de professores que apreciavam apenas deveres < perleitos e se mostravam impacien- tes quando faziamos qualquer coisa errada, Aprendemos que te- 8 O Quanto ¢ Preciso sex ton riamos que apresentar uma tarefa perfeita se quiséssemos ser elo- giados. Uma vez assisti a uma aula de segundo ano, ministrada por alguém com reputagao de ser uma Reales competente e cri- ativa. Ela passou um exercicio para aprender a soletrar, dividin- do a classe em dois grupos e dando a cada crianca, de cada grupo, uma letra do alfabeto. Ela entéo pronunciava uma palavra, e se nela estivesse inclufda a sua letra, vocé tinha que correr para a frente da sala e se arrumar entre os do seu grupo para formar a palavra. O grupo que primeiro completasse a palavra ganhava pontos e perdia pontos por cada letra que sobrasse ou que fal- tasse. No fim de meia hora, vi muitas criangas afiarem suas habi- lidades para juntar as letras, e muitas outras absorverem a ligio de que eram vagarosas ¢ esttipidas e de que eram responsaveis pelos pontos perdidos pelo seu grupo. Ouvi o desapontamento ea desaprovacao na voz da professora quando algumas criancas erravam repetidamente, e estou certo de que as criangas a quem essa desaprovacio era dirigida os ouviam também. Parti dali me perguntando se, consideradas as vantagens e as desvantagens, seu método era realmente valido. Podemos ter aprendido a ficar com vergonha de nossas im- perfeigdes através de amigos ou de outras criancas que ridicula- rizaram nossos tracos fisicos, nossa lentidao na sala de aula, ou no recreio. Ou, o mais triste de tudo, podemos ter aprendido de nossos lideres religiosos, nas aulas de Histéria Sagrada da Escola Dominical, que Deus nos restringe a padrées estritos de Certo ou de Errado, que Deus conhece todos os segredos, qualquer coisa ma que facamos, até mesmo nossos maus pensamentos mais secretos, e que cada pecado que cometemos nos separa do amor de Deus. Podemos ter aprendido a histéria de Ad30 e Eva no Jardim do Eden, de como eles poderiam ter vivido felizes com Deus no Paraiso, mas cometeram um erro e, por isso, fo- 9 Harold S. Kusner ram punidos para sempre. E aprendemos a licdo de que se come- termos um Unico erro, perderemos 0 Paraiso e seremos punidos severamente. O ponto de partida deste livro é minha afirmagao de que, nus hos ans, jd ects rere el a histéria de Adio e Eva no Jardim do ee como sendo de desobediéncia e de punicao divina, € aprende- fizéssemos algo errado. Neste livro, oferecerei uma interpreta- cio radicalmente diferente dessa historia, que nos permitiré ter uma melhor opiniao de Deus e também de nossos ancestrais humanos. @; portanto, pudermos nos libertar da nogao de que Deus pune as pessoas por uma coisa que fizerem errado, se pudermos encarar Deus como um Deus cujo amor foi suficientemente constante para se sobrepdr ao inevitavel desapontamento, en- tho gostariamos mais de nds mesmos, com todas as coisas boas que dai fluiriam. Estariamos mais habilitados a aceitar as imper- feigées de nossos pais, as suas exigéncias e expectativas irrealisticas, a incapacidade deles de dizerem que nos amam e que se orgulham de nés. Estarfamos habilitados a ver essas coi- sas como falhas deles, nao como criticas a nds, e seriamos capa- zes de amé-los apesar de suas falhas, da mesma maneira como acreditamos que Deus nos ama apesar das nossas. Uma vez que se acabe com a mé interpretacao da historia do Jardim do Eden e com a nogio de que Deus espera de nds a perfeicao, poderiamos parar de esperar a perfeicdo de nossas mulheres, maridos e filhos, e parar de pedir a cles que sejam per- feitos a fim de que essa perfei¢io se reflita em nés. Poderiamos amé-los, com suas falas e seus erros, e convida-los a nos amar da mesma maneira. Mas nfo seremos capazes de fazer isso en- quanto insistirmos na crenga de que um erro é motivo para re- 10 O Quanto é Preciso ser Bom? jeigao, quer seja Deus, ou nds, ou alguém 4 nossa volta, que nos esteja rejeitando. Elaine Pagels escreve, num brilhante estudo sobre a nogio crista do pecado original, Adam, Eve and the Serpent, que “Ha 4 _uma tendéncia humana para agsumir a culpa pessoal pelo sofri- og” HIB Es peseos [reesutarecne se sentem culpadas, mais da.que impotentes, Séa razéo para a desgraga é moral e nio natural," : a= ‘podemes nos persuadir dé que Somos capazes de controléla. Se a culpa é o prego a ser pago pelailusio de controle sobre a natu- Teza, muitas pessoas parecem dispostas a pagé-lo.” Em outras palavras, se pudermos nos convencer de que somos respons4- veis Nc, be otis 0 sleyets, ae imaginamos que SENOS aa deevitar a doenca € a morte mudando ossos désejos e nosso comportamento. A ilusdo de que podemos controlar os acontecimentos - se fizermos tudo direito -, de que podemos fazer com que as pesso- as nos amem - se fizermos as coisas certas -, e de que podemos | | garantir finais felizes fazendo por merecé-los é realmente uma ilus4o, e uma _ilnsio muito destrutiva. N3o importa o quanto amemos W6ssos pais € no importa quanto dinheiro gastemos em cuidados médicos com eles, eles irio envelhecer e morrer, e nos torturaremos desnecessariamente pensando que poderiamos ter evitado isso (especialmente se, 14 no fundo de nds, lembrar- | mos de um dia em que lhes desejamos mal). Nao importa o quanto nos esforcemos para sermos espasos peslitar e pals parficoe, alguns ‘casamentos morrerio de morte natural. a despeito de nossos_maiores esforcos, e alguns filhas nos desapontarid a0 crescer, Bater com a cabeca na parede ¢ repetir as palavras: “Se ao menos eu tivesse agido de outra maneira” serve apenas para piorar a sitwacio. Nao acredito que a histéria de Adao e Eva seja a histéria de duas pessoas que poderiam ter vivido felizes se tivessem feito It Harold S. Keesner tudo corretamente, mas em vez disso foram punidos para sem- pre pelo seu inico erro. Nao acho que signifique uma liggo para nés, se um dia fizermos algo errado, a idéia de que Deus deixar de nos amar e nos punira, Nao tomo a histéria do Jardim do Eden como um relato jornalistico de um acontecimento veridi- co (embora eu saiba que algumas pessoas 0 fazem), que descreve como a raca humana teve o seu inicio com dois adultos de lin- gua hebraica, perfeitamente desenvolvidos, e uma serpente fa- lante. Mas acredito, sim, que a historia do Jardim do Eden nos conta algo profundamente verdadeiro sobre a emergéncia da raga humana, e que nos sentiremos internamente mais confortaveis - como seres humanos imperfeitos - apenas quando tivermos aprendido a compreender do que trata, realmente, essa historia. Se quisermos perceber a plenitude de nossa humanidade, se qui- sermos Ver nossos enganos e mesmo nossas realizagées imper- feitas num contexto mais geral, o melhor que podemos fazer é eas nde comeca a Biblia, com unrhomem, uma mu- er, um Deus € uma regra, num admirdvel mundo novo. 12 Capitule aby O qe Kealmente oben ep re ao A histéria é, ao mesmo tempo, simples e complexa, sim- ples o bastante para ser contada a uma crianca, e suficiente- mente sutil e profunda para ocupar estudiosos durante toda uma vida. E encontrada no capitulo trés do Livro do Génese, na Biblia. Noa-comecgsDais Ctiow-um munds omdénads, ebtavel ae deiplantas, plssetoe@ aminuts Faia eee eco mbacks de Sua criacgio, Deus criou um ser humano 4 Sua imagem e deu-lhe o nome de Ad&o (Adam), porque tinha sido feito de terra (em hebraico, a palavra que designa a terra é adamdh). Colocou-o num jardim chamado Eden e lhe disse para cuidar dele e usufruir de seus frutos. No meio do jardim havia duas arvores especiais, a Arvore da Vida e a Arvore do Conheci- mento do Bem e do Mal. Deus disse a Adao que ele podia comer o fruto de qualquer das plantas do jardim, inclusive os da Arvore da Vida, mas n3o podia comer o fruto da Arvore do Conhecimento do Bem e do Mal, “pois no dia em que o comeres, morreras”. 13 Alarold S. Kesner Vendo que Adio estava sozinho e que nenhum dos ani- mais era whrcompanheiro que servisse para acasalar-se com eli “Deus trou uma das costelas-de Adio (owt cee wae costela; explicarei isso mais tarde) e modelou uma mulher, uma _criatura formada da mesma substincis humana de Adio o que 0 levou a dizer, quando a viu: “Eis que é osso do meu oss0 ‘Carne minha carne”.-A Biblia faz. questao de nos dizer que o tiam vergonha. “~~ Neste ponto, a serpente entra na histéria, descrita como “mais astuta do que todos os outros animais que Deus criou” e, aparentemente, vivendo apenas para provocar problemas. Ela tenta a mulher a comer do fruto proibido, dizendo-lhe que Deus estava com citimes dela e de seu companheiro, e queria guardar para Si todo o conhecimento. Quando a mu- lher se da conta de quanto é tentador 0 fruto proibido, ela o colhee dele come um pedago,e da um pouco parao seu marido, que o come também. Imediatamente, nos diz a Bi- blia, “seus olhos se abriraim e se derarm conta de que estavam nus”. Aj, juntaram algumas folhas de figueira para se cobri- rem, Deus aparece no jardim e o homem e a mulher tentam esconder-se d’Ele, explicando que se escondiam porque esta- vam nus. Deus diz, “Quem disse que vocés estao nus? Vocés comeram o fruto daquela arvore que eu lhes disse para nio comerem?” Adio replica: “Nao foi minha culpa. A mulher que Tu me deste, foi ela que me falou para comer”. A mu- Iher, igualmente, tenta se desculpar: “Nao foi minha culpa, a serpente me disse para comé-lo”. Deus pune a serpente condenando-a a arrastar seu ven- tre e a lamber a poeira do cho para sempre. Ele expulsa o lomem e a mulher do jardim e os condena a uma vida de dor 14 O Quanto é Preciso sor Bom? e de trabalho pesado. Para castigo do homem, “Comeras o pao com 0 suor do teu rosto, até que retornes 4 terra da qual fostes tirado”. Para castigo da mulher, “Farei mais dura a dor do teu parto....teu desejo sera por teu marido, mas ele te go- vernara”. Ad§o e sua companheira deixam a Jardim do Eden e se es- tabelecem fora dele, para o leste. Negado a eles 0 acesso 4 Arvo- re da Vida, tornam-se sexualmente intimos ¢ tém filhos, Caim, Abel, Set e muitos outros filhos ¢ filhas. A essa altura, Adio d4 um nome a sua mulher, Eva, que significa “Fonte da Vida”. oH Bada heel Zo me lembro que idade tinha quando a ouvi pela primeira vez, mas posso lembrar-me de que, ainda muito pequeno, achei Glguns de seus aspectos dificeis de entender ou de saoct pode ter tido uma reacio semelhante quando, em crian¢a, a ouviu pela primeira vez, ou quando leu esse resu- mo que fiz agora. Nio um castigo muito duro para um pequeno morte, expulsio do Paraiso - pela violacio de uma regra? Deus assim veNimente é assim realmente tao severod, ‘or que Deus teria criado uma arvore cujo fruto ado que- ria que_ninguém comesse? Deus estava colocando Adio ¢ Eva numa situac4o que os fizesse desobedecé-l’O, para que pudesse puni-los? A mulher foi, alguma vez, avisada da proibigio, por Deus ou por Ado? Por que a histéria é contada de modo a fazer pare’ cer que tudo foi culpa da mulher? Qual o significado dos primeiros seres humanos nfo terem vergonha de sua nudez antes de comerem o fruto proibido, e de sentirem vergonha imediatamente depois? (AE; talvez.o mais perturbador de tudo, se a Srvore proibida era a Arvore do Conhecimento do Bem e do Mal, is: dizer ¢ sua companheira néo tinham conhecir No ee fo Harold S. Kusner __¢-do mal antes de comer-lhe o fruto? Se for assim, como poderi- am eles saber que era errado desobedecer a Deus? E por que u a gue era erraco C60 form punidos, séiao tinham nocao de bem ¢ de mal antes dé NN Se ee ee ~wmeloy Ok eas filisofos th en oor a esas indagagse< ha milhares de anos. Tém tentado, por exemplo, é uma disting® Te mento intelectual do bem € do mal (saber que certas coisas esto erradas), que Adio e va tinham antes de comer o fruto proibido, e combecimento experimental do bem e do mal (conhecer o sentimento do erro), que Adquiriram, sim, depois de comer 0 fruto probido. De algama maneira, isso soa como 0 tipo de distingao que os \filésofos tanto apreciam, mas nao é disso que trata a historia biblica. \ A época do, Novo Testamento, Sao Paulo aprimorou a idéia e fez dclafpZm dogma teoldgico, que viria a ser conhe- Jdo como o Petado Original. Como descendentes de Adio e Eva, nao sé herdamos sua mortalidade, o fato de que as pes- soas nfo vivem para sempre; herdamos sua propensdo para desobedecer a Deus. Santo Agostinho, um dos primeiros filésofos cristaos, descreve como, quando jovem, ele e alguns amigos roubaram as peras do pomar de um vizinho, nao porque estivessem fa- mintos - acabaram jogando-as fora - mas pela excitacio de fa- zer algo errado, da mesma forma como os jovens de classe média hoje podem ser tentados a roubar nas lojas. Para ele, essa era uma prova da perversidade da vontade humana, da marca de Adio em cada um de nés, do impulso de declarar que as regras se aplicam a voce. (Teriam Adio e Eva sido tentados por aquela Unica fruta, entre todas as frutas do jar- dim, se ela nio tivesse sido proibida? Ou se a serpente nao jhes houvesse dito: “Se a comerdes, sereis como Deus”?) 16 | | i O One éP recite ser Bom? Enguanto a Biblia Hebraica viu 0 pecado como um ato que os seres humanos seriam capazes de expiar através do arre- pendimento, da imudanga de e comportamento ¢ da entrega de sa- prifeios para Os primeiros.cristéos 0 pecado tornou-se uma condicio, nao um ato, uma mancha irreparavel na alma huma- na. Nao somos apenas pessoas que fazem algumas coisas boas Outras mds. Somos pessoas que, como Adao, pecaram e se tor- naram pecadoras, da mesma maneira como um assassino - que ndo tem como se desculpar mostrando todas as pessoas que ele nao matou. Por pecar, como todos os seres humanos descen- dentes de Adio inevitavelmente fazem, nao alcangamos a obedi- éncia perfeita a que Deus nos intima. Na pega magistral de Archibald MacLeish, J.B., sua versio moderna da histéria de J6, o homem bom que sofre, os trés amigos que chegam para “confortar” Jé séo um marxista, um psiquiatra e um religioso. Contestando o grito angustiado de Jé, “O que fiz eu para merecer isso?”, cada um tem sua resposta. O religioso lhe diz: “Seu pecado é simples. Vocé nasceu um homem... Qual a sua culpa? O coragio do homem é mau. | O que vocé fez? A vontade do homem é ma.” ay Jé replica: “O seu consolo é 0 pior de todos, fazendo do Criador do Universo 0 deformador da humanidade”. Em outras palavras, vocé esta me dizendo que Deus Sis discconem eaeoe e agora esta me unindS-por isso. De Deus me fer deleituoso Copenh» 2> dete Creer Se, no entanto, a religiio nos ensinar que Deus ama a alma ferida, a alma castigada, que aprendeu algo sobre sua propria falibilidade e sobre suas proprias limitagées, se_a_religido_nos ensinar que sermos humanos implica num desafio tio complica- do que todos nés erraremos no processo de aprender como fazé- lo bem, entio poderemos encarar_nossos erros nao como emblemas de nossa falta de valor, mas como experiéncias com as quais podemos aprender. Seremos suficientemente corajosos para tentarmos algo novo sem ter medo de errar. Nosso senti- mento de vergonha resultara da nossa humildade, do aprendiza- 33 Harold S. Kusner do sobre nossos limites, e nao do desejo de esconder-nos do exa- me porque o fizemos mal. Os psicdlogos fazem uma segunda distingio entre culpa e vergonha. A culpa, segundo eles, é um julgamento que fazemos de ndés mesmos. FE uma voz dentro de noss: a nos dizendo que fizemos algo errado. A vergonha é um senti 1Lo_pravaca- do pelo fato de sérmos julgados por outra pessoa. E visual, em vez de auditiva, nio é uma voz interior, mas um sentimento de ser exposto, de ser olhado e julgado por alguém cujas opinides levamos a sério. Vergonha é 0 que uma menina sente quando ninguém a tira para dangar, o que um garoto experimenta quan- do € 0 ultimo a ser escolhido para um time esportivo. Culpa é 0 produto de uma consciéncia individual. Um psicopata, uma pes- soa sem consciéncia, fara coisas terriveis e nao se sentird culpa- do. Vergonha é 0 produto de uma comunidade. Se nio ligarmos Para 0 que outras pessoas pensem de nés, nao sentiremos ver- gonha. De uma certa maneira, ha algo de positivo e vital nos senti- mentos de culpa e de vergonha. Sio uma parte essencial do ser humano, e ao mesmo tempo em que sermos humanos é, fre- quentemente, doloroso e problematico, pode ser também imen- samente compensador quando nos algamos 4 altura do desafio. Sermos julgados pode nos colocar numa situagio desconfortavel, mas sermos ignorados, recebermos a mensagem de que ninguém se importa com o que estamos fazendo porque nada que faga- mos € assim tio importante, pode fazer-nos sentir ainda pior. Um colega meu diz: “O propésito da culpa é fazer com que nos sintamos mal pelas raz6es erradas, de modo a que possamos nos sentir bem pelas razées certas”. E 0 psiquiatra Willard Gaylin escreve: “A vergonha e a culpa sio necessarias para o desenvol- vimento de algumas das mais elegantes qualidades do potencial humano... Nio sio emagées imiteis. ela nos assinalam que trans 34 ~ O Ovante é Prats Ser Bom! gredimos cédigos de comportamento que nés, pessoalmente, que- remos alcangar”. Se o Homem é a tinica criatura que enrubesce, entéo alguém incapaz de sentir vergonha (como Adio e Eva an- tes de comer o fruto da Arvore do Conhecimento) nao é com- pletamente humano. Quando exagerados, no entanto, os sentimentos de ver- gonha e de culpa deixam de ser benéficos e se tornam dano- sos. Diz-se que “uma consciéncia sensivel é um dtimo servo, mas um terrivel senhor”. Queremos ser julgados porque ser- msifilgadbsié'cernios levadae'a ceriove nao serine julgados é sermos ignorados. Mas, ao mesmo tempo, temos medo de sé?mosijulgados, e-considerados‘cheios dé falhas, menos:do que perfeitos, porque nossa cabeca traduz “imperfeito” como “inaceitavel, nao merecedor de amor”. Facilmente fazemos a transicao de “Fiz uma coisa errada” para “Sou uma pessoa que sempre faz coisas erradas”, e dai para “Qualquer pessoa que realmente chegue a me conhecer descobrira que nio presto e vai me rejeitar”. Alguns de nés nos tornamos tao Preocupa-y dos em insstir que somos perfeito, :3o insistentes em men-( tir para nos proteger e em achar alguém para culpar, tao determinados em nunca perder uma discussio, que nao nota.’ mos quo antipaticos nos tornamos no processo. Condenamo- nos 4 postura desconfortavel de estar sempre pretendendo ser alguém que na realidade nio somos, alguém sem falhas e perfeito, porque pensamos que temos que fazer isso para ser- mos dignos de amor. Reagimos exageradamente as criticas mais delicadas e inocentes como se fossem ataques ao nosso valor como pessoa. A autora de bestsellers Deborah Tannen recor- da como, durante uma entrevista, o fotdgrafo que devia tirar seu retrato percebeu que nao estava com as lentes apropria- das. Em vez de admitir que as havia esquecido, ele explicou: “As lentes nio vieram conosco”. Pergunto-me o que de tio 35 Hlasold S. Kusnor terrivel ele achou que poderia acontecer se admitisse que ti- nha cometido um engano. Precisamos aprender que dizer “Desculpe, mas fiz tudo er- rado” inspira mais admiragao do que “A culpa nfo é minha; é de outra pessoa”. John F. Kennedy, confiante na sua habilidade para fazer com que as pessoas 0 amassem, foi capaz de assumir a responsabilidade pela fracassada invasdo de Cuba, e a nagio 0 admirou por isso. Richard Nixon, sempre inseguro de sua habi- lidade para inspirar afeicio, apesar de seus muitos sucessos, ten- tou impedir a investigacio de Watergate e acabou deixando a Casa Branca em desgraca. i A questio nao é se cometeremos ou nao um engano, se de vez. em quando alguma coisa importante saira errada e nos senti- remos terrivelmente mal. Claro que isso vai acontecer. Qual- quer um que enfrente seriamente as exigéncias morais de uma vida humana terA sua quota de enganos. A questo é: como va- mos lidar com as nossas imperfeigées, nosso sentimento de inadequagio? Como vocé se redime da culpa? Como vocé se cura da vergonha? Sendo eu um defensor da religidu, essa fonte primaria de alimento espiritual, sinto-me profundamente embaracado pela tendéncia de tantos pregadores religiosos para manipular nossa ulnerabilidade a culpa e 4 vergonha como um meio de contro- lar nosso comportamento. Ensinam-nos que os atos e pensa- mentos sexuais normais durante a adolescéncia (€ mais tarde) sio pecaminosos. Avisam-nos de que as emogées normais, como orgulho ¢ raiva, esto entre os Sete Pecados Capitais. (Um terapeuta amigo meu tinha como cliente uma mulher devota da Igreja Southern Baptist que nao se permitia jamais ficar com rai- va, nio importa o quanto fosse mal tratada, porque acreditava que a raiva era um pecado. O terapeuta levou-aa ler, na Biblia, e transcrever para um papel todas as passagens em que Deus ou 36 O Quanto é Preciso ser bom? Jesus ficam zangados.) Eles caem em cima de nossos sentimen- tos de inadequacio para tomar conta de nossos pais, e de nossa inadequagio enquanto pais em relacao aos nossos filhos, dizen- do coisas como “Por que pode uma tinica mie cuidar de quatro filhos, mas quatro filhos nio podem cuidar de sua mie?”. Frequentemente me surpreendo ouvindo protestantes, ca- tdlicos e judeus competindo sobre a questéo de qual educacio religiosa é a que mais produz culpa. A resposta é a de que ne- nhuma dessas religides faz pessoas normais se sentirem culpa- das, quando ela é corretamente ensinada e adequadamente compreendida, quando suas expectativas em relagdo a nds sio realistas e nos introduzem a um Deus de amor, e qualquer uma delas nos faz sentir culpados quando usa nossas fraquezas hu- manas inevitaveis para manipular nossas emogées e fazer com que nos sintamos sem valor. A religiio devidamente compreen- dida é a cura, e nao a causa, de nossos sentimentos de culpa e de vergonha. A auténtica pergunta religiosa nao é a que pode ter ocorri- do a Adio e Eva: “Por que fizemos aquilo, se Deus nao queria que 0 fizéssemos?” A auténtica pergunta religiosa é: “O que fa- remos com nossos sentimentos de inadequacao quando desa- pontamos a Deus? Onde traremos nossas almas arrebentadas para que sejam remendadas? Como nos armaremos contra 0 te- mivel sentimento de sermos examinados e considerados insufi- cientes?” Sim, a religiZo pode fazer-nos sentir culpa estabelecendo para nés padrées, sustentando ideais pelos quais seremos medi- dos. Mas essa mesma religiio pode, entao, nos acolher com nos- sas imperfeicgdes. Pode consolar-nos com a mensagem de que Deus prefere 0 coracio dilacerado e contrito, que conhece suas falhas, aquele complacente e arrogante que pretende nunca ter errado. Us estudiosos da Biblia escrevem sobre as fungSes com- s 37 Harold S. Kesner plementares do profeta e do sacerdote entre o povo israelita. O profeta deveria apontar as deficiéncias das pessoas e instar para que se arrependessem, alertando-as para o julgamento de Deus, dizendo-lhes em nome de Deus: “Eu te amarei apenas se o mere- ceres, se mudas teu comportamento e conquistas o meu amor”. O sacerdote, contrastantemente, oferecia um amor mais doce, mais cheio de perdao: nao importa 0 que vocé tenha feito, vocé sera sempre aceito aqui. (Recordemos os versos do poeta Robert Frost: “O lar é 0 lugar onde, quando vocé vai 14, deixam vocé entrar.”) O profeta escorragava os pecadores, o sacerdote os aco- Ihia no altar. Precisamos de ambos, como na antiga Israel. Preci- samos da voz do profeta que cobra, para elevar-nos aos altos padrées, de forma a que possamos crescer e ser tudo 0 que so- mos capazes de ser. Precisamos que nos digam que Deus nos ama porque, na verdade, somos pessoas amaveis, porque mere- cemos 0 amor, porque o conquistamos. E necessitamos da voz confortadora do sacerdote para assegurar-nos de que, mesmo quando no o sentimos, merecemos ser amados, Deus nos ama de qualquer maneira, porque Ele é um Deus de amor e de per- dio, que nos conhece bem demais para esperar mais de nés do que somos capazes de ser. HA varios anos fui convidado para falar no Johns Hopkins Medical Center, em Baltimore, Maryland. Pediram-me para me dirigir 4 equipe profissional - médicos, enfermeiras, capelaes, as- sistentes sociais - 4 tarde, e A noite eu faria uma palestra para o publico. Depois da minha conversa da tarde, 0 chefe dos servi- cos de capelania veio até mim e disse, “Rabino Kushner, temos um paciente aqui no hospital que gostaria muito de vé-lo. Soube que vocé estaria aqui, leu todos os seus livros, que fizeram mui- to bem a ele, e queria ter uma oportunidade de conversar com vocé. Deixe-me ser claro. Nao se sinta obrigado, de maneira ne- nhuma. Se preferir nao vé-lo, eu lhe direi que estava cansado e 38 O Quanto é Preciso ser Bom? que tinha um programa muito apertado. E um ministro da igreja episcopal, tem trinta e dois anos e est4 morrendo de AIDS”. Eu the disse que queria vé-lo. O capelio me levou por um corredor € para um quarto, onde vi uma figura palida ¢ emaciada deitada na cama, com varios tubos endovenosos espetados nela. Apre- sentei-me e perguntei-lhe como ia. “Nao estou muito bem”, dis- se-me, “mas vou me acostumando”. Perguntei-lhe: “Vocé nao se preocupa de poder estar morrendo sem Deus? Que a sua doen- ¢a pode ser, de algum modo, uma puni¢io de Deus por algo que vocé fez?” Ele olhou para mim e disse “Nao, é exatamente o contrario. A winica coisa boa que me veio disso tudo é que des- cobri que algo em que eu sempre quis acreditar é realmente ver- dade. Nao importa 0 quanto eu possa ter estragado minha vida, Deus nao me abandonou. Tenho sentido Sua presenca aqui, neste quarto de hospital. Ele pode me amar ainda quando acho dificil eu mesmo me amar”. Fez uma pausa para recobrar as forcas antes de continuar. “Quando eu era jovem, pensava que tinha que ser perfeito para as pessoas me amarem. Meus pais me passaram essa mensagem, ameagando-me de retirar seu amor a cada vez que eu os contrari- ava. Meus professores, na escola, me davam essa mensz 3¢.1. Meus professores da Escola Dominical reforgavam essa hig¥o Nos nao famos para uma daquelas igrejas de fogo-do-inferno-e- enxofre, mas ouvimos muito sobre o quanto estévamos causan- do desgostos a Deus a cada pecado nosso, ¢ acho que isso era igualmente ruim, especialmente dada a lista de coisas que nos diziam serem pecados. “Eu tentei tao desesperadamente ser perfeito, para que os meus pais, os meus professores e Deus me amassem. Provavel- mente entrei para a carreira religiosa, em parte, para que as pes- sOas pensassem que eu era moralmente perfeito e me amassem por isso. Mas cada vez que fazia alguma coisa que en sabia que 39 Harold S. Kusner era errada, ¢ cada vez que eu contava uma mentira para enco- brir-me, eu me odiava por ser tio impostor, ¢ estava certo de que Deus me desprezava tanto quanto eu mesmo. “Deitado aqui, nesta cama de hospital, sabendo que em breve you morrer, tive essa intuigi0: Deus sabe como eu sou € Ele nio me odeia, portanto, eu nao tenho que me odiar. Deus sabe o que fiz e Ele me ama de qualquer maneira. Logo estarei deixan- do o hospital, ndo por estar melhor, mas porque nio ha nada que possam fazer por mim e precisam da cama para alguém a quem ainda podem ajudar. Nao sei se a minha congregacao me aceitar4 de volta, agora que sabem que sou homossexual, que estou com AIDS e estou morrendo. Espero que sim, porque ha um Ultimo sermio que eu gostaria de fazer para eles. Tenho que partilhar com eles a ligio que minha enfermidade me ensinou: vocé nao tem que ser perfeito. Faga apenas o melhor que puder e Deus aceitara como voc’ & Nio espere que os seus filhos sejam perfeitos. Ame-os por suas falhas, por suas tentativas e seus tropegos, da mesma maneira como nosso Pai no Céu nos ama”. No caixa do super-mercado, descubro cinco revistas femi- ninas oferecendo conselhos para dietas nas suas capas. Vejo a mulher esperando na fila, 4 minha frente, contemplando as mes- mas capas das revistas, e me pergunto o que se passara na sua cabega. Estar se sentindo mal porque sua figura nio a qualifica para ser uma modelo? Tera recebido lavagens cerebrais para se sentir inadequada como pessoa, por nao corresponder as expec- tativas da sociedade de como uma mulher atraente deve ser? Ou serA suficientemente sabia para lembrar-se de que a idade e a ge- nética pregam boas pecas em todos nds? Se a mulher 4 minha frente for divorciada, ela devera pensar nfo que o seu casamen- to falhou, mas que ela falhou, por nao ser a parceira sexual per- feita que deveria ter sido, um sentimento reforcado pela tendéncia 40 SO) Oirenbs Gp racisctsen tom, das revistas a sugerir que as mulheres sao responsaveis pela sati- de emocional de um relacionamento. Se as coisas chegarem ao pior, ela podera ser levada a anorexia ou a bulimia, doencas qua- se que exclusivamente femininas, por conta de um sentimento de vergonha, porque seu corpo nao é tao perfeito como os cor- pos das modelos e artistas de cinema, mostrados a ela como se fossem protétipos. Os psicélogos suspeitam que a anorexia - negar-se a comer ao ponto de adoecer e, algumas vezes, morrer - resulta de um sentimento de auto-abominacio, um desgosto com o préprio corpo. As mulheres odeiam os seus corpos, sentem_vergonha “yéncia. Seu aspecto Uefine-quenr sio. Retina cém-mulheres ao —acasé-e perguntelhes como sé senitem a respeito de sua aparén- cia, seu cabelo, suas formas, e eu apostaria que entre noventa e cinco e cem delas expressariam alguma insatisfacio. Tenho co- nhecido mulheres espetacularmente atraentes que ficariam de- primidas se seu peso aumentasse em dois quilos, ou por causa de uma mancha que os cosméticos mal deixam ver. Industrias eeuupletas = todas Cosnacueds, porhantest alimentos come bass’ teor calérico, livros sobre dietas, cirurgia plastica, clinicas para perda de peso - baseiam-se no sentimento de vergonha que as mulheres tém de sua aparéncia, ao ponto de podermos especu- lar que, se todas as mulheres da América acordassem um dia de manhi sentindo-se bem consigo mesmas, a economia americana sofreria um colapso. E no fundo de toda essa vergonha esta a nogio de que, para a ser aceita, parase Suma mulher tem que ser medida por ~—algum padro no realista de perfeigio (quando, enquanto 1856, “atriste verdade €que as mulheres que gostam de si mesmas e se sentem confortaveis como sao revelam-se uma companhia mui- to mais agradavel do que as que esto constantemente se desme- 4 Harold S. Kesner recendo e tentando esconder seus sentimentos de desapontamen- to consigo mesmas). H4 um equivalente masculino da anorexia? O que determi- na um comportamento auto-destrutivo e de auto-abominagao num homem? Se a sociedade ensina as mulheres a se sentirem envergonhadas por serem muito gordas ou sem atrativos, ela ensina os homens a se sentirem envergonhados por nao ganha- rem muito dinheiro. (E agora, que mais mulheres estao entran- do no mundo dos negécios, elas também esto aprendendo a se sentirem desapontadas por nao serem financeiramente bem su- cedidas.) Para cada revista feminina com um artigo sobre perda de peso, ha um livro para como ser um vendedor melhor ou um administrador mais eficiente. E para cada atriz de televisio ou de cinema com cabelos perfeitos e for- mas sem falhas, ha um equivalente masculino com um terno bem cortado e dirigindo um carro carissimo. Uma vez passei alguns dias em Houston, Texas, onde encontrei médicos e exe- cutivos de seguros com rendas anuais de seis algarismos, que se sentiam “classe média baixa” por nav serem miliondrios do pe- tréleo. ‘As mulheres mergulhadas na vergonha passam fome, usam roupas e sapatos sem conforto, se submetem a cirurgias porque foram ensinadas a odiar os seus corpos que nao sio bastante bons. Os homens trabalham ao ponto do colapso, bebem de- mais, ou despejam nos outros - mulheres, homossexuais, judeus, negros, estrangeiros - 0 ddio que sentem de si mesmos porque a sociedade os avaliou pelo seu poder de ganhar dinheiro ¢ os es- tigmatizou como fracassados. Tipicamente, as mulheres voltam sua raiva contra elas mesmas; os homens, ou viram-na contra si mesmos (bebendo em excesso ou através de outros problemas de saiide), ou encontram uma vitima para culpar. Vergonha e culpa os ensinam a se sentirem decepcionados consigo mesmos 42 O Quarts: é WP raciso ser Bom? e os levam a odiar qualquer um que tenha se dado melhor do que eles, e a desprezar quem quer que esteja pior. E ainda nos perguntamos por que as pessoas estao tio sozinhas e agressivas, € por que a sociedade é tio fragmentada. Se a vergonha é uma questao de sentir-nos mal pelo que somos, como podemos curé-la? A chave parece ser: ter alguém em quem vocé confia e que vocé respeita, para lhe passar a men- sagem de que vocé merece ser levado a sério como pessoa. Idealmente, deviamos receber essa maensagem de nossos pais, co- mecando no dia em que nascemos. Algumas criancas que nao recebem esse sentimento de aceitacio e de valor de seus pais, podem ter muita sorte se acharem um professor ou um treina- dor que Ihes dé o que necessitam. Quando se Ié histérias de pes- soas nascidas nas circunstancias de maior privacio (seja financeira ou emocional) que seguem vidas cheias de sucesso, o que todas tém em comum é que, em algum momento do seu caminho, alguém tomou-as pela mio e acreditou nelas. No pequeno e comovente livro Random Acts of Kindness, uma contribuinte anénima conta sua histéria: “Cresci numa fa- milia que se chamaria hoje de “fracassada”. Meus pais estavam materialmente muito bem, mas viviamos dentro de um grande caos e confusao emocionais, num bairro rico da Filadélfia. Como acontece com a maioria das criancas, eu simplesmente aceitei que assim é que era e que os problemas, as torrentes mais inten- sas de raiva e de hostilidade, eram de alguma forma minha culpa. Um dia, quando eu era ainda muito pequena, depois de uma série particularmente dolorosa e confusa de brigas com meus pais, nossa empregada me chamou de lado para conversar comi- go. Disse-me que no se importava se com isso perdesse o em- Prego, mas ela nao podia deixar-se ficar apenas como uma observadora silenciosa. Disse-me que meus pais estavam loucos, que estavam agindo muito mal, ¢ n3o como bons pais que ama- or a Harold S. Kusner yam seus filhos. Disse-me que eu era uma menina boa e doce e que o que ocorria nao era por minha culpa... Foi uma dadiva incrivel. Suas palavras me deram a explicacio de que eu precisa- va, um meio de parar de me culpar por tudo”. Porque a vergo- nha surge da nossa percep¢o do que outras pessoas pensam de nés, essa miensagem de aceitagio ¢ de valorizacio é, frequente- mente, tudo o que necessitamos para dominar esse sentimento. Ha poucos anos, quando estava viajando pelo pais comen- tando o meu livro Who Needs God, dedicando-me a explicar 0 que se ganha por ser religioso, comecei a notar algo muito inte- ressante. Em praticamente todos os estiidios de radio e de televi- sio que visitei, depois de ter falado sobre os beneficios de ser religioso, alguém - um entrevistador, um produtor, um cameraman - me chamava de lado e me contava, particularmen- te, que a experiéncia religiosa mais inspiradora que ele ou ela tinha tido acontecera nao no santudrio da igreja, na manha de domingo, mas no pordo, numa reuniio de Alcodlicos Anéni- mos ou de um outro programa qualquer. Havia algo autentica- mente religioso no que acontecera 1a. Eu lhes perguntava se poderiam identificar exatamente 0 que Thes foi de tanta ajuda, ea palavra que vinha sempre era “aceitagio”. A mensagem que ti- nham ouvido na ceriménia de domingo de manhii era a de que tudo o que faziam de errado os separava de Deus, e apenas a graca de Deus e Sua generosidade poderia tiralos do inferno. A mensagem que recebiam na reuniio da noite das quartas-feiras, no programa de apoio, era “Eu nio estou OK e vocé nfo est4 OK. mas isso esta OK". Nada que fizessem os separava de Deus. Uma mulher me contou que ia a um grupo de apoio para gulosos compulsivos, € confessou que pescava comida do lixo depois que a familia tinha ido para a cama. Em vez de lhe dize- rem: “Isso é doenga; vacé esta com um problema de verdade”, 44 O Quanto é Preciso ser Bom? como suas amigas faziam, os outros membros do grupo respon- deram-lhe “Sim, Jean, nés agiamos assim também e sabemos como é terrivel o que sentimos quando fazemos isso. Vai ser sempre uma luta, mas vocé vai poder aprender a se controlar”. O grupo se ofereceu para compartilhar nao a forca, mas a fraqueza, “a honestidade partilhada da vulnerabilidade mitua abertamente reconhecida”, 0 conhecimento redentor de que outras pessoas - boas, honradas, atraentes - estavam lutando com os mesmos demSnios que vocé, e de que vocé podia fazer pelos outros 0 que nao tinha sido capaz de fazer por vocé mesmo. Como um alcodlatra recuperado colocou: “A terapia ofereceu- me explicagdes; 0 grupo de apoio baseado na religio ofereceu- me perdio”. Ele nao estava usando a palavra “perdio” no seu sentido usual; os outros membros do seu grupo de AA no eram as pessoas que ele tinha ferido com seu vicio de beber compulsi- vamente. O grupo patrocinado pela igreja nao estava oferecen- do perdao pelos seus atos. Estava oferecendo aceitagio, perdao por ser ele uma pessoa cheia de falhas, incompleta e imperfeita. Estava oferecendo o que a sinagoga oferece aos seus figis no Dia do Perdio: reassegura vocé de que, se vocé abandonar suas pre- tensdes e desculpas e se puser diante de Deus nu e vulnerdvel, se voct admitir seus defeitos como 0 primeiro passo na direcio de fazer algo por corrigi-los, Deus no vai rejeité-lo como um espé- cime fracassado. Vocé ainda sera aceitavel 4 Sua vista. O melhor resumo dessa visio religiosa que jamais vi estava em quatro palavras num adesivo de para-choque: God Loves You Anyway (Deus ama vocé de qualquer maneira). Nio ha como enganar a Deus, como Adio e Eva tentaram fazer, culpando os outros, declarando que nao podemos nos conter ou que entra- mos na histéria enganados. Deus nos conhece bem demais para ser iludido, Ele sabe o que estamos a fim de fazer, e Ele nos ama de qualquer maneira. Nio que Deus nio se incomode se agimos 45 Harold S. Kusner direito ou nao. Deus se preocupa profundamente; é o cuidado de Deus que investe nossas escolhas morais de um significado césmico. Mas Deus sabe a diferenca entre 0 ato que é errado ea pessoa - que nio é uma alma perdida por ter agido mal. E mais do que apenas uma questao de “odiar o pecado, mas amar 0 pecador”. Deus condena o pecado, mas ama demais a pessoa que o cometeu para rotula-la como um pecador. Deus pode es- tar desapontado com algumas coisas que fazemos; Ele nunca es- tar4 desapontado com quem nds somos, pessoas faliveis lutando com as implicagées de conhecer o Bem e 0 Mal. Os heréis da Biblia nio sio gente perfeita. Seus grandes atos de {é sobrepujam seus erros, mas todos eles cometem sua quota de erros porque sio seres humanos, nado modelos miticos de perfeigio. Abraio manda sua mulher e seu filho passarem fome no deserto e pée em perigo sua outra mulher, mentindo a seu respeito para salvar-se. Mas Abraio é chamado “o amigo de Deus”. Moisés esta sempre perdendo a calma com as pessoas que, supostamente, esta liderando, mas a Moisés é conferida uma intimidade com Deus que nenhum outro profeta teve. David comete adultério com uma mulher casada e da um jeito de ma- tar-lhe o marido, mas Deus ama David como nao ama nenhuma outra figura biblica. A_pessoa que se declara perfeita, sem falha ou defeito, esta se lo iguala Deus A pe que conhe- ce suas falhas muito bem est4 aberta para o amor de Deus e a presenga de Deus, porque ela reconhece que nao é Deus. Usan- do as palavras dos autores Ernest Kurtz e Katherine Ketcham, “A imperfeigio é a ferida que permite a entrada de Deus”. Tem que ser com um sentimento de alfvio, nao de transi- géncia e relutancia, que chegamos 4 conclusao de que nao so- mos € nunca seremos perfeitos. Nao estamos nos acomodando na mediocridade. Estamos compreendendo nossa humanidade, nos dando conta de que como seres humanos enfrentamos situa- 46 O Quanto é Precisoser tom? g6es tio complexas em que ninguém, possivelmente, esperaria acertar todo o tempo. O psiquiatra David Burns escreve sobre um proeminente advogado que temia perder um caso por medo de que seus colegas ndo mais o respeitassem, se ele fosse menos do que perfeito. Quando finalmente perdeu, acabou descobrin- do, para sua surpresa e alivio, que seus colegas gostavam mais dele agora, quando estava menos perfeito, menos obcecado com perfeic¢do e mais humano. Se estivermos temerosos de cometer um erro porque te- mos que manter a pretensa perfeicio, porque ainda relembramos © gosto amargo do desapontamento paterno, do sarcasmo ou da critica de um professor cada vez que faziamos algo errado, nun- ca seremos bastante corajosos para tentar nada novo ou desafia- dor. Faremos apenas coisas que tenham a garantia de dar certo. Nunca aprenderemos; nunca cresceremos. Se nossos pais nio podem lidar com nossos erros, se eles tém problemas em nos amar apesar de nossas imperfeigdes, pode ser porque necessitem que sejamos perfeitos para entéo recebe- rem 0 reflexo dos nossos créditos. Se os nossos conjuges conti- nuam a martelar os nossos erros, talvez seja porque eles desejam que nos desenvolvamos e nao conhecem um caminho melhor para nos fazer chegar 14. Se nossos amigos nio nos perdoam e nos rejeitam por causa de nossos erros, pode ser porque nosss erros os tocaram num lugar particularmente sensivel e vi) ¢ vel. Mas Deus no precisa que nés estejamos de acordo cuin Suas necessidades, e Suas expectativas em relac3o a nds so mais realisticas do que as das pessoas ao nosso redor. Deus ama a mulher gorda tanto quanto a esbelta, o jovem que tropega tanto quanto 0 atleticamente dotado, o vendedor frustado tanto quan- to o seu rival mais bem sucedido. Na verdade, Deus pode ama- los mais por causa de toda a dor que eles, Seus filhos, tem suportado nas mios de outros filhos Seus, e porque a vergonha, 47 Alarold S. Kesner “a ferida que permite a entrada de Deus”, quebrou a sua arma- dura de pretensio perfeccionista e abriu suas almas 4 Sua pre- senga. Deus nos aceita como somos, € essa aceitacdo é 0 comego do processo de cura da nossa vergonha, porque apenas quando sabemos que somos aceitaveis e dignos de amor seremos capa- zes de mudar as coisas de que nio gostamos em nés mesmos. Como pode a religito nos ajudar a suplantar sentimentos de culpa? Como pode ela silenciar aquela voz dentro da nossa cabeca, algumas vezes a voz de um pai ou de uma mie, a voz de um professor ou de um religioso, que nos diz: “Como vocé péde fazer isso?” Ha coisas das quais deviamos nos sentir culpados, mas os sentimentos de culpa devem ser atribuidos aos atos, ndo ao agen- te. O marido que trai os votos de seu casamento ou esbanja 0 seu salario e deixa sua familia sofrer privacées deveria se sentir culpado. Um amigo, terapeuta ou religioso que aceitem como desculpa que as reclamagées de sua mulher 0 levaram a isso no lhe prestam um favor. Permite-lhe apenas esconder-se de sua im- perfeicio, manter sua postura de que “Eu estou étimo, nao te- niho que naudar, é tudo culpa de outra pessoa”, e assim resistir 3s forgas que poderiam ajuda-lo a mudar e se tornar mais totalmen- te humano. Mas ser4 ele mais passivel de mudanga se o conde- narmos como uma pessoa irresponsavel (em vez de condenar o que ele fez como irresponsavel)? Ou se lhe dissermos, em vez disso, que dentro dele existe o desejo e a capacidade para ser um. marido responsavel e amoroso ¢ de que, com a ajuda de Deus e 0 apoio de seus amigos, seu desejo e capacidade podem materia- lizar-se? Visitei um de meus congregados no hospital. Fumante de trés macos de cigarros por dia durante toda sua vida adulta, esta agora morrendo de cAncer de pulmio. Sente-se culpado por ter arruinado sua satide. Eu o ajudo se disser: “Nao foi sua culpa; 48 O Quanto é Preciso ser fom? aqueles anuncios de cigarros sao tao convincentes que persuadi- riam qualquer um a fumar"? Ou se disser: “Imagino que vocé deve se sentir muito mal com vocé mesmo e como que fez. Mas quero lembrar a vocé de que sua mulher e seus filhos ainda o amam. Nao estéo com raiva de vocé mesmo se, algumas vezes, eles extravazam o quanto sofrem por vocé e o medo que tém do futuro como se fossem raiva. E Deus ainda o ama. Ele ainda nio riscou vocé do mapa. Ele sabe 0 que vocé fez com vocé mesmo, e ainda assim 0 ama. Vim ficar ao lado da sua cama e rezar com vocé, como um sinal e uma concretizacgio do amor de Deus. Assim, se vocé respeita a opiniado de sua familia e a opiniao de Deus, quero que vocé jamais deixe de se amar e de pensar em vocé como uma pessoa boa”. Minhas palavras nao vio curar seu cdncer de pulmo, mas podem curar a culpa ea vergonha que vém crescendo dentro dele malignamente. Reassegurado do amor de Deus, reassegurado de seu valor como ser humano, como marido, pai e amigo, ele pode agora aceitar as minhas pre- ces, pode aceitar as lagrimas de sua mulher e as visitas dos vizi- nhos que se preocupam com ele. Podem nao ajudi-lo a viver mais tempo (embora eu suspeite que a crenca de que vocé mere- ce viver pode ajudar a afastar alguns efeitos da doenga), mas o ajudarSo a viver seus tltimos meses se sentindo amado e queri- do. Ha algumas coisas de que nao nos sentirfamos culpados se fossemos pessoas totalmente racionais. Mas como nao o somos, estamos abertos aos sentimentos de culpa. Se tivermos um sen- tido de responsabilidade superdesenvolvido que nos obriga a fa- zer as coisas certas, se tivermos um sentido exagerado de nosso poder de fazer as coisas sairem direito por fazermos tudo nés mesmos, nos sentiremos culpados por tudo, desde o mau tem- po até o mau comportamento de outras pessoas. O psicélogo Daniel Gottlieb nos recordaria que “nao temos controle sobre a 49 Harold S. Kusner dor alheia. Muito da culpa vem do sentimento de que temos mais influéncia do que realmente temos”. Os pais que tém filhos com um problema genético se culpam, embora seja Obvio que aquilo nao foi algo que eles tivessem escolhido fazer. Perguntam a si mesmos: “Sera que isso aconteceu porque eu bebi durante a gravidez? Porque fiz sexo quando estava gravida? Porque fui promiscua antes do casamento, ou porque me ressenti do que significaria 0 nasci- mento de um filho para o meu trabalho, minhas férias, meu fisico2” Os pais cujos filhos sofrem danos num acidente se repreendem com pensamentos de “Se ao menos eu nio lhe tivesse dado permissio para ir”, como se se esperasse deles que pudessem prever o futuro. HA alguns anos fui chamado para oficiar em dois fune- rais de mulheres idosas de minha congregacao, durante a mes- ma semana de janeiro. Certa tarde, sai para visitar as duas familias e levar-lhe minhas condoléncias. Na primeira casa, 0 filho mais velho da falecida senhora me disse: “Sinto a morte da mamie como se fosse culpa minha. Eu deveria ter insisti- do para que ela fosse para a Flérida, para tird-la deste frio miseravel em que nao se pode sequer andar 1a fora. Se eu ti- vesse feito isso, ela hoje ainda estaria viva”. Tentei consola- lo, e depois segui meu caminho para a segunda casa, onde o filho mais velho me disse: “Sinto-me culpado pela morte de mamie. Se ao menos eu nio tivesse insistido para ela ir para a Flérida. Aquele véo muito longo, a mudanga abrupta de cli- ma, aquilo foi demais para ela”. Se uma histéria acaba mal, nos repreendemos indefini- damente com todos os “o que teria acontecido se”, culpando- nos por nfo termos tomado uma deciséo melhor. A culpa est4 quase sempre presente depois de uma morte (porque ainda estamos vivos € 0 outro nfo esta mais, porque tomamos o 50 O Quarite'¢ Precise iat Boa? que acabou se revelando uma decisio ruim, porque uma par- te de nés podia estar com raiva daquele que morreu e deseja- do sua morte). No entanto, de todas as maneiras em que se pode perder alguém chegado a nés, a culpa é um problema especialmente sério quando a morte morreu por suicidio. O suicidio éum meio extraordinariamente eficaz para fazer os que sobrevivem se sen- tirem culpados. Conhego varios livros bons sobre suicidio; to- dos eles comungam a mesma falha. A primeira metade do livro nos conta que se formos suficientemente habilidosos e sensi- veis, podemos reconhecer sinais de alerta e prevenir um suici- dio. A outra metade segue dizendo que se alguém que amamos se matou, no devemos nos sentir culpados: quando uma pessoa esta determinada a se matar, nao hd nada que se possa fazer para impedir. Com toda a probabilidade, ambos os discursos est’io corre- tos. Uma historia verdadeira: um jovem estava fazendo terapia duas vezes por semana, tratando de uma depressao. Uma sexta- feira de manha, depois da sessio regular, o terapeuta lhe disse: “Eu nao gosto do que estou ouvindo. Estou com medo de deix4- lo sozinho neste fim de semana. Temo que vocé se deixe tentar e acabe fazendo algum mal a si mesmo. Quero que vocé passe o fim de semana com minha mulher e comigo em nossa casa em Cape Cod”. Enquanto se dirigiam para 14, o jovem pediu ao terapeuta para dar uma parada para poder ir ao banheiro. Co- megou a andar na direcio do bosque ao lado da estrada e entio, de repente, virou-se e correu para a pista, a frente de um cami- nhao que vinha a toda velocidade. Morreu instantaneamente. Aqui estava'se préximo de uma situacio ideal tanto quanto qual. quer um poderia esperar: um profissional treinado, que perce- beu indicios sutis e que, saindo de suas atribuigdes, convidou o pacieute deprimido para a sua casa. Mas mesmo isso nio foi su- 1 Harold S. Kesner ficiente para impedir que a pessoa inclinada 4 auto-destruigio se destruisse. Podemos dizer as pessoas que mio devem se sentir culpa- das: fizeram tudo o que puderam. Podemos reiterar que no sio responsiveis pelos sentimentos ¢ agdes de outras pessoas. Mas a culpa é um sentimento irracional. Sentimo-nos culpados pelo sucesso (“Nao merego estar tio bem assim, quando outras pes- soas sio menos afortunadas”) € sentinio-n0s culpados pelo fra- casso (“Vocé pode ser tudo o que quiser ser, sé SE esforgar 0 bastante”). Sentimo-nos culpados por nossas agdes ("Foi tudo culpa minha”), por nossas inagdes (“Talvez, se eu tivesse feito algo mais...”) € mesmo por nossos pensamentos (“Pequei contra o meu casamento notando como é atraente aquela mulher na outra mesa ¢ fantasiando o que aconteceria se ett comecasse UNA conversa com ela”). Vocé nio pode dissuadir alguém desse sen timento de culpa. Eu sei; j4 tentei centenas de vezes. Quanto mais voce lhe diz, “Voce est4 sendo pouco realista, nao ha ne- cessidade de se sentir culpado por isso”, 0 que eles mais ouvem é a mensagem: “Voce nao somente é culpado” como “também esta fora de realidade”. ‘Melhor do que censurar a pesso2 DOF ter emogoes indevidas, devemos dizer-lhe: “Eu sei que vocé se sente terrivelmente mal com o que aconteceu, € eu sinto muito por voc’. Mas vocé é uma pessoa boa e eu gosto de voce”. Se a esséncia da culpa é 0 sentimento de que “Sou uma Pes- soa mA e nao merego ser amada por causa do que fiz”, podemos neutralizar esse sentimento confirmando para a pessoa que de fato nos preocupamos com ela, nfo s6 porque nos somos emo- cionalmente pessoas generosas € atentas, mas porque elas mere- cem genuinamente ser amadas. Muitas vezes tenho achado que grupos e programas de apoio sao fontes maravilhosas para alivi- aro sentimento de culpa de uma pessoa € restaurar sua auto- estima (embora os homens, notoriamente relutantes em admitir 52 O Quarter) raciso san US? que precisam de ajuda, sejam frequentemente duros de persua- dir a juntarem-se a um grupo de apoio; quando minha mulher e eu assistiamos a reunides dos Compassioned Friends (Amigos Compadecidos), depois da morte de nosso filho, havia sempre trés ou quatro mies de luto para cada pai enlutado). Os grupos de apoio conseguem, frequentemente, fazer mais do que faz um terapeuta, porque num grupo de apoio vocé encontra toda essa boa gente, gente facil de gostar, que sofreu a mesma desgraca que vocé, e vocé comega a perceber que “Vocé nio precisa ser uma pessoa ma para que isso aconteca com vocé”. Além disso, num grupo de apoio vocé se alterna, vocé ajuda e vocé é ajuda- do, € no processo aprende a se ver no apenas como uma pes- soa carregada de culpa e de vergonha, mas como uma pessoa cujo conhecimento da culpa e da vergonha a capacita a ajudar outras, porque vocé sabe como elas se sentem e de que preci- sam. E nesse momento, com essa visio, sua sensacio de desam- paro e de falta de valor comega a desaparecer. E lamentavel que tantos de nés tenhamos crescido pensan- do na religiéo como uma voz reprovadora que nos faz sentir culpa. Gostaria que fosse possivel ver a religido como uma fonte de cura e de alivio da culpa, porque tanta culpa é irracional (nao ha razo para nos sentirmos culpados, mas é assim que sentimos nao podemos ser dissuadidos disso) ¢ a religiao opera no nivel no racional. Muitos anos atras, uma senhora idosa de minha congregacio veio me ver. Disse-me: “Rabino, sinto-me terrivel- mente mal. Fiz algo muito mau, na semana passada”. Esperei para ouvir que pecado terrivel podia ter cometido essa mulher. “Fui ao cemitério na tltima quinta-feira, visitar o timulo do meu marido”. “Sim, 0 que aconteceu 142?” “Quinta-feira foi um feriado judaico, e eu sei que nao se pode ir ao cemitério num feriado. Mas eu estava pensando nele 53 Harold S. Kusner e me sentindo muito sd, assim, mesmo sabendo que estava erra- da, fui. E agora me sinto mal pelo que fiz”. Porque eu era um rabino jovem e inexperiente, cometi o erro de tentar tira-la de sua culpa. Disse-lhe que entendia por que ela tinha querido visitar o lugar de descanso de seu marido, que esse era um sentimento religioso valido e que a regra contra visitar o cemitério num feriado nfo era tio importante. Mas quanto mais eu falava, mais desconfortavel ela se sentia. Sentia culpa pelo que tinha feito (possivelmente a visita ao cemitério tinha levantado alguns sentimentos de culpa reprimidos, que nada tinham a ver com a violagao do feriado), e eu n3o a estava aju- dando ao tentar dissuadi-la de sua culpa. De repente tive uma idéia. Sentimentos de culpa irracionais requeriam uma cura irra- cional, néo uma série de argumentos racionais. Disse a ela: “Qual foi a data da ultima quinta-feira?” “Dezessete”. “Dé dezessete délares para uma obra de caridade, em me- méria de seu marido, e isso ira compensar 0 que vocé fez”. A mulher, visivelmente, iluminou-se. “Oh! Rabino, obriga- da. JA me sinto melhor”. Uma das coisas que a religito melhor faz é ensinar-nos a lidar com a culpa normal que se segue a uma morte, e com a culpa que naturalmente deriva de nosso mau comportamento. Se a culpa resulta do que fizemos, a cura é fazer outras coisas, coisas melhores: atos gratuitos de cortesia, caridade, ajuda ao proximo. A nivel racional, fazer caridade nao desfaz a coisa ego“ ista ou irrefletida que fizemos e que induziu ao sentimento de culpa. Mas, num nivel irracional, onde vivem nossas almas, isto nos introduz ao melhor, ao mais nobre do que existe em nés. Os atos “contrabalancam” os atos; a voz do orgulho sadio con- tradiz a voz da censura, da desaprovagao de uma consciéncia culpada. 54 | | | 1 | | i | i | O Quant é /~, reciso ser 15 Lonl Ha alguns anos um importante hospital de Boston enfren- tou um dilema. Um notério dono de corticos queria doar uma significativa soma de dinheiro para dar nome a um edificio em memiéria de seus pais. Algumas pessoas que conheciam sua re- putagao e sabiam de onde o dinhciro tinha vindo, pressionaram o hospital para nao se macular recebendo sua doacio. Outras, preocupadas com as precarias condigées financeiras do hospi- tal, pressionavam-no para aceitar. Devem ter se lembrado do dialogo, na peca Major Barbara, de George Bernard Shaw, em que uma lider do Exército da Salvagio é acusada de querer acei- tar dinheiro do préprio diabo. Ela responde: “Sim, eu o faria, e ficaria feliz por tira-lo das maos dele e trazé-lo para as minhas”.) Eu estava entre aqueles que argumentavam pela aceitagio, me- nos por preocupa¢io com o hospital do que com o doador. Se ele se sentia culpado pela maneira como tinha acumulado sua fortuna, eu achei que pér para fora a sua culpa dando uma im- portante parte dessa fortuna para uma boa causa lhe faria bem. Como vocés devem ter provavelmente notado através dos anos, as religides tradicionais frequentemente pedem-nos para fazer coisas e atuar em rituais que “nao fazem sentido”. Prova- velmente, de vez em quando, perdemos a paciéncia com a reli- gido por fazer essas €xigéncias aparentemente sem sentido. Mas se esses rituais tm durado séculos, suspeito que deve ser por- que eles “funcionam” em algum nivel irracional, ajudando-nos de um modo que nio compreendemos. Quando alguém préxi- mo morre e nos sentimos culpados por ainda estarmos vivos, por nao termos nos esforgado mais para salvar essa pessoa, a religigo nos da os meios de nos colocarmos suficientemente desconfortaveis de modo a nao nos deixar sentir que estamos encarando a morte levianamente. Quando fazemos coisas que gostariamos de nfo ter feito, a religido nos mostra como equili- brar aquele mal com um feito mais admiravel. Como 0 costume 55 Harold S. Kusner judaico da shivéh, de ficar em casa por uma semana depois de winaa ‘morte, cobrir todosios espelhos ¢ sentar num bancoduro e baixo, ¢ ent3o recitar as preces dos enlutados nos servicos reli- giosos durante um ano, ou o sistema das peniténcias da Igreja Catélica, impostas apés a confissao. Na antiga Israel dos tempos biblicos, a religio nio sé defi- nia © que era certo ou errado, o que se esperava das pessoas. Também Ihes dizia o que fazer quando se sentiam sob o peso de um sentimento de estar aquém do que se esperava delas, e de desapontar a Deus. Elas tinham que trazer um sacrificio, uma oferenda para o altar de Deus. Seu propdsito nao era fazer 0 “balango”, com uma boa aco apagar todos os atos maus, ou subornar Deus para passar por cima da sua ofensa. Seu propési- to era familiarizar 0 doador com o lado melhor de sua melhor naturéza, fasilo dizer'a di mesmo: “Gostatia descr perletal nes sei que n3o sou. Algumas vezes sou fraco e sem juizo. Mas ve- jam: algumas vezes também sou forte e generoso e auto-discipli- nado. Nao sou uma pessoa m4. Sou uma pessoa que frequentemente faz coisas mas, mas que, mais frequentemente, faz coisas boas. E se isso for bom o bastante para Deus, deveria ser bom o bastante para mim”. E os sabios nos contam que, em toda Jerusalém, nao havia pessoa mais feliz do que o homem ou a mulher que trouxesse, para o altar de Deus, sua oferenda pelo pecado cometido, e que fosse embora se sentindo perdoado. 56 Capttule Oa Pais e Fibhos, Maes e TFilhas Quando crianga, fui ensinado que no dia do Yom Kipiir tinhamos que pedir perdao pelas coisas erradas que tinhamos feito as outras pessoas, antes de pedir perdao pelas ofensas a Deus, e que Deus sé nos perdoaria quando tivéssemos perdoa- do aqueles que nos feriram e desapontaram. A medida em que fui ficando mais velho, comecei a achar que a primeira metade desse ensinamento ainda é valida, mas a segunda metade deve estar errada. Acho que primeiro temos que ser perdoados, temos que aprender como é 0 sentimento de admitir nossos erros e limita- c6es, e descobrir como é maravihoso nao nos sentirmos rejeita- dos por sermos imperfeitos. Uma vez experimentado isso, podemos oferecer aceitagdo 4s pessoas menos-que-perfeitas em nossas vidas. E se no aceitatmos que pessoas menos-que-perfei- tas entrem em nossas vidas, ficaremos muito solitarios, porque esse ¢ 0 tinico tipo de gente que vamos encontrar. Deus estaria sozinho se Ele pudesse amar apenas pessoas perfeitas, @thrines- mia form: os nds. 44 ‘atthew foi um dos jovens mais promissores a crescer em nossa congrega¢io. Orador de sua turma ao terminar o segundo 57 Harold S. Kusner ciclo, um lider no grupo jovem de nossa sinagoga, continuou numa brilhante carreira académica em Harvard. Veio ver-me cerca de seis semanas antes da formatura para me contar sobre o que tinha acontecido em sua vida. Ele estaria se formando “mag- na cum laude”, sua tese de mestrado tinha sido aceita para publi- cacio por uma revista que quase nunca editava artigos escritos por formandas e, o melhor de tudo, seu professor favorito, seu orientador de tese, Ihe havia oferecido uma bolsa de estudos para trabalhar com ele numa pesquisa inovadora. “Matt”, eu lhe disse, “vocé devia estar to contente quanto um homem que acabou de ganhar na loteria. Por que parece tio perturbado?” “Estou com medo de aceitar a oferta dele. Vocé tem que compreender, o Professor X tem sido como um pai para mim, sdbio, divertido, cuidadoso e sinceramente interessado na mi- nha carreira. Eu tenho essa fantasia de crescer para ser igual a ele, para ser ele quando chegar a sua idade. Tenho medo de que, se eu trabalhar intimamente com ele, nos préximos anos possa vir a desaponta-lo. Ele descobrira que no sou assim tio especial como parece acreditar que sou, ¢ iria me ferir muito deixa-lo assim desiludido. Tenho medo, também, de vir a saber coisas a respeito dele que eu ndo quero saber, e de me desapontar com ele® Balancei a cabega e sorri. “Matt, eu lhe garanto que vocés vao se desapontar um com o outro. Estamos sempre nos desa- pontando com nossos pais e com seus substitutos - professores, religiosos, lideres politicos. Acabam nunca sendo tao perfeitos quanto necessitamos que sejam. E os pais est’o quase sempre desapontados com seus filhos pela mesma razio. Por que vocé nao prepara logo sua cabeca com antecedéncia para o que vai acontecer, em vez de deixar que isso o impega de aceitar a oferta dele?” 58 O Quanto é Preciso sor Bom? Quando somos criangas, queremos muito firmemente agra- dar aos nossos pais. Conquistar sua aprovagao, fazé-los orgu- Ihosos e felizes significa tanto para nds. Como pais, queremos que nossos filhos se realizem, que crescam para serem pessoas de quem possamos nos orgulhar, e que se reflita em nds o brilho de seus sucessos. Além de nos fazerem sentir orgulho deles, que- remos que nos amem e admirem. A relacio entre pais e filhos é to cheia de necessidades e de expectativas, de cada lado, que muito facilmente ela escorrega para as expectativas no- realistas @ os desapontamentos inevitaveis. Nossos pais raramente sao tao shbios e nossos filhos raramente tao bem sucedidos como pensamos que precisavamos que eles fossem. A relagio entre pais e filhos é a mais complicada que uma pessoa jamais tem, mais até do que a de marido e mulher. Quan- do os analistas junguianos lidam com um paciente que tem difi- culdade em externar suas emogées, eles fazem um exercicio no qual o paciente imagina que uma pessoa importante de seu pas- sado est4 sentada numa cadeira A sua frente, e diz a cadeira vazia todas as coisas que nunca foi capaz de dizer a propria pessoa. Os analistas me dizem que nove entre dez pacientes imaginam sen- tados na cadeira o pai ou a mie, em vez do marido ou da mulher, do patrio, do filho, da filha ou de um amigo. Um detalhe interessante da lei judaica estabelece que uma pessoa que sofre a perda de um membro da familia permaneca num estado de luto por trinta dias, no caso de marido ou de mulher, irmio ou irm, filho ou filha. Mas, para o pai ou a mie, deve-se ficar de luto praticamente por um ano, porque quando © pai ou a mie morrem, perde-se nao apenas um, mas varios parentes: 0 pai poderoso e provedor de nossos primeiros anos, a pessoa que tentou nos modelar e controlar enquanto crescia- mos, o companheiro dos nossos anos de adulto e, se o pai viver 0 bastante para que os papéis se invertam, a pessoa idosa, vulne- 59 Harold S. Kusner ravel e dependente. E ai, a tendéncia é de que se tenha mais as- suntos inacabados, mais conflitos nao-resolvidos nessa miultipla relacio com nossos pais, do que em qualquer outra relacio nos- sa. Muitos especialistas suspeitam de que os problemas entre marido e mulher surgem num casamento por conta dos confli- tos mal-resolvidos com os pais de um, ou de ambos. ‘A poca “Oedipus Rex", de Sofocles, 6 considerada a maior das tragédias gregas. “Hamlet”, de Shakespeare, é considerada a maior pega de todos os tempos. “Os Irmaos Karamazov”, de Dostoeivski, é reconhecidamente o melhor romance psicoldgi- co jamais escrito. O fascinante € que todos tratam do mesmo tema, um homem tentando aceitar a morte violenta do pai. A interpretagio feita por Freud do texto de Hamlet é ade que Hamlet nao conseguia vingar a morte do pai porque uma parte dele se identificava intensamente com 0 que 0 tio havia feito, assassinando o pai e casando-se com a mie. As pegas e os romances que abordam esse tema nos provo- cam, porque atingem 0 lado escuro de nossa alma, onde senti- mos raiva de nossos pais e tentamos esconder essa raiva porque tambéin os amamos, precisamos deles e Ihes somos gratos. E os pais também sentem raiva de seus filhos; pensem no vigésimo segundo capitulo do Génese, em que Abralo ouve a voz de Deus ordenando-lhe que Lhe ofereca seu filho, Isaac, em sacrificio. Sera que essa historia tao estranha poderia, de algum modo, re- fletir 0 desejo reprimido de um pai de livrar-se de um filho que o decepcionou? Por que a raiva? Porque precisamos tanto uns dos ou- tros que nos sentimos desapontados quando 0 outro nao pode vir ao encontro de nossas necessidades. Porque as criangas querem que os pais as protejam de todo mal, e os pais nem sempre conseguem protegé-las. O bidgrafo de Sigmund Freud conta a historia de Freud, ainda crianca, andando com seu pai 60 O Quanto é Preciso ser Bom? pelas ruas de Viena, quando um grosseirao antissemita tirou com um tapa o chapéu de pele da cabeca de seu pai e disse: “Judeu tem que andar é pela sarjeta”. Freud nunca se esque- ceu daquele momento em que testemunhou a impoténcia e a humilhago de seu pai. As criancas necessitam de pais que lhes permitam cres- Fee eat ae ale ata oe freee ee planos pessoais, que tentam impor aos filhos. Pode aconte- cer que os pais depositem nos seus filhos a esperanga de uma imortalidade por procuragdo, que alguma coisa deles sobrevi- va ao seu tempo de vida, nfo s6 o DNA bioldgico mas seus nomes, valores e identidades, e os filhos, normalmente, insis- tem em seguir seu prdéprio rumo, seja na escolha de um cén- juge ou de uma carreira, Ou pode ser que os pais desejem que © comportamento dos filhos lhes confira créditos, ¢ véem qual- quer falha dos filhos como um reflexo negativo de si mesmos (vem-me 4 mente a piada de Garrison Keillor sobre sua cida- de natal, onde todos os estudantes est4o acima da média), en- quanto o que os filhos querem e precisam é liberdade para cometerem seus erros e com eles aprenderem. Dar a luz a uma crianga, conceber e nutrir uma vida hu- mana totalmente nova dentro de si ¢, provavelmente, 0 ato mais criativo de uma mulher. (Suspeito, ha muito tempo, de que todo o enorme esforgo que os homens fazem para “ad- quirir um nome”, para colocar esse nome em edificios ou companhias, para escrever livros ou sinfonias, para merecer um paragrafo na enciclopédia sio, na verdade, esforgos para compensar-se por nao serem capazes de dar a luz uma crian- ca.) Quando Eva da 4 luz a primeira crianga a nascer de pais humanos, ela diz: “Adquiri uma pessoa com Deus” (queren- do dizer “com a ajuda de Deus” ou talvez “igual a Deus”). Eva, que se sentiu tentada a ser como Deus, ao adquirir 0 61 Alarold S. Kesner conhecimento do bem e do mal, agora se tornou como Deus ao fazer algo que, anteriormente, sé Deus havia feito: criar um ser humano. Ela lhe da o nome de Caim, que a Biblia rela- ciona ao verbo hebraico canah, “adquirir”, de modo que as pala- vras de Eva podem ser interpretadas como “adquiri uma pessoa, ela me pertence”. Na melhor das hipéteses, as criangas representam um novo comego, uma oportunidade para reiniciar outra vez com o be- neficio da experiéncia das geracSes passadas, mas sem o nus de suas cicatrizes e erros. As vezes, a chegada dos filhos é vista pe- los pais como uma oportunidade de viver outra vez suas vidas na esperanca de que, desta vez, tudo dé certo. Assim, o pai que queria ser um atleta mas jamais o foi empurra o filho para isso e briga com o treinador do time infantil de futebol. A mae que se sentia rejeitada por nunca receber convites para sair quando es- tava no colégio, faz a filha usar maquiagem e suti aos onze anos. Como Eva, reagem a condi¢ao de pais dizendo: “Eu adquiri uma pessoa; sou como Deus, vou torn4-la uma criatura maravilhosa e todos vao me admirar por isso”, esquecendo-se de que mesmo as criaturas formadas por Deus nao se tornaram 0 que Ele espe- rava. E divertido prestar atengio 4 conversa das mies na praci- nha, contando vantagens ao comparar a idade com que seus re- bentos comegaram a fazer coisas notaveis, ou ver um pai na arquibancada, levando mais a sério do que o préprio filho 0 jogo em que este esté tomando parte. E engracado ver tantos carros (inclusive o meu) com adesivos ostentando o nome da universi- dade frequentada por nossos filhos. Mas, a partir de um certo ponto, esse impulso para que seus filhos reflitam seus créditos em vocé, pelo sucesso que possam ter, deixa de ser divertido e pode tornar-se destrutivo. Pode significar forgar as criangas a frequentarem as aulas de musica ou de balé para as quais nao 62 O Quanto é Prociso sor Bom? tém interesse nem talento, e dizer-lhes que se pelo menos se es- forcassem, seriam excelentes, obtendo com isso, possivelmente, o resultado de fazé-las se sentirem fracassadas por nao terem ta- lentos fora do comum. (Apenas muitos anos depois, quando é tarde demais para desfazer todos esses sentimentos de infancia, aprenderio elas que o talento musical ou atlético é herdado de seus pais.) Pode significar forgar a escolha de uma carreira ou a interferéncia num caso.amoroso por razSes que tém mais a ver com as necessidades dos pais do que com as dos filhos. Isso pode criar uma situacio em que varias geragdes vivem vidas substitu- tas, por procuracio, realizando o projeto de vida de outra pes- soa e esperando que alguém apareca para viver 0 seu: “Sacrifiquei meus sonhos para fazer meus pais felizes, e espero que vocé sa- crifique os seus para me fazer feliz. Se vocé fizer isso, sua recom- pensa ser4 o direito de exigir de seus filhos o sacrificio dos sonhos deles para fazerem vocé feliz”. Sera que é assim mesmo que que- remos viver? Esse padrio de expectativa em rela¢io aos filhos, de que eles atestem 0 valor dos pais, pode se rornar altamente destrutivo quando o casal tem um filho deficiente. Se o que se espera com 0 nascimento de uma crianga é que ela cresca como um ser perfei- to ou perto da perfeicio, e que mostre ao mundo a perfei¢ao ou quase perfeigo dos pais, como reagira vocé a uma crianga que, desde o nascimento, tenha severas limitagdes? Criangas assim precisam de muito amor, e reagem lindamente ao amor. Elas podem ser felizes, extrovertidas e afetuosas. Perfeitas é 0 que nio podem ser. Elas podem vir a amar e a ser amadas, mas ja- mais serio oradoras de suas turmas, astros do atletismo ou rai- nhas de beleza. J4 vi muitos pais com raiva de seus filhos por terem nascido deficientes ou intelectualmente limitados, porque com isso impediram seus pais de fazerem deles os depositérios de seus sonhos. ae. AHlarold S. Kusner Confesso que jamais gostei da histéria contada no capitulo 22 do Livro do Génese, e jamais a entendi: £ a histéria de quan- do Deus ordena a ‘Abraio que sacrifique seu filho Isaac, nascido depois de muitos anos de espera e, no ultimo momento, interfe- re e para o sacrificio. Jamais me agradou a maneira como Deus é ali retratado, fazendo uma exigncia tio exagerada, ou como é + retratado Abraao, téo pronto a obedecer. Mas, ha alguns anos, li um artigo de um médico levantando a hipdtese de que Isaac pu- desse ter sido uma crianga retardada. Ele apresenta muitos tra- cos de uma crianca nessas condi¢des. Nasceu de pais idosos. Periodicamente se mete em complicagées por nio compreender as consequéncias de seus atos. E o inico homem, em toda a Biblia, cujos pais se preocupam com o seu casamento, e acaba se casando com uma mulher que tem, como qualidade principal, a bondade. Se essa teoria for correta, escreveu 0 médico, pode ser que essa tenha sido a razao pela qual Abraao pensou ter ou- vido a voz de Deus dizendo-lhe para sacrificar seu filho, assim como muitas sociedades nos tempos antigos faziam com crian- cas imperfeitas. E a intervengio de Deus representaria entio Sua declaracio a Abraao de que mesmo uma crianga assim é feita 4 imagem de Deus, que mesmo uma vida como essa é sagrada, que uma criatura nasce para crescer e ser ela prépria, e nao para preencher os espagos em branco do ego de um pai. James Wilkes escreve sobre a reacdo dos pais ao saberem que seu filho ou filha é homossexual. “Os pais necessitam de ajuda para ver que eles tiveram uma ilusdo idealizada de seu fi- tho, um filho-ilusao feito A sua imagem. Uma vez que compre- endam que tiveram essa ilusio, precisam de ajuda para deixar que essa ilusdo morra. A morte dessa ilusao e 0 aparecimento do amor que tém pelo filho verdadeiro é, claramente, um ato de coragem...O filho verdadeiro viverA apenas quando o filho ilu- sério morrer”. 64 O Quanto é Preciso ser bom? Posso imaginar o quanto é doloroso para os pais aceitarem a idéia de que seu filho ou filha jamais se casarao ou lhes darao netos, porque ele ou ela é homossexual. Os pais podem reagir com sentimentos de raiva ou com sentimentos de culpa (“Onde foi que erramos?”). E em casos mais felizes, podem reagir abdi- cando de seus sonhos idealizados e apoiando seus filhos na luta para serem o que tém que ser, e nao o que os pais precisavam que fossem. H& duas coisas erradas na expectativa de que seus filhos, sobressaindo-se, deem significado a sua vida. A primeira é que essa é uma maneira muito pouco confiavel de obter satisfacao. Ja ouvi treinadores de times de basquete queixarem-se de que suas chances de se manterem no emprego dependem de um ca- louro de dezoito anos marcar os pontos na cobranga de faltas no final de um jogo. Como nao devem se sentir muito mais inse- guros um pai ou uma mie cuja felicidade depende das notas de um filho de dez anos ou da polidez ou rebeldia de uma filha adolescente? No entanto, o verdadeiro problema dessa abordagem é que ela exige mais do que é razoavel esperar de uma crianga peque- na. Dé aos filhos mais poder sobre nés do que o que é saudavel para eles. Crescer e se assumir j4 é um problema suficientemen- te grande para uma crianga; querer que ela venha a emprestar significado a vida dos pais, que, sem isso, nao teria sentido, é terrivelmente injusto. Ja vi exigirem, implicita ou explicitamen- te, que as criangas estabelegam a ordem numa situagio familiar caética criada pelo alcoolismo, ou por enfermidade mental, que assumam a responsabilidade numa familia em que o pai ou a me morreu, que mantenham a paz entre marido e mulher que brigam entre si. Quantos pais perguntam a suas filhas: “Por que vocé nfo casa com um cara rico?” Quantos pais que vivem mal, nas piores zonas das grandes cidades, perguntam a seus filhos: 65 Harold S. Kesnor “Por que vocé nao é um jogador de futebol para ganhar milhées, como li que todos os jogadores ganham, e assim poder comprar uma casa nova para seus pais?” Nao é preciso dizer que essas sao expectativas irrealistas oriundas do desespero, mas muitos jovens impressionaveis, desesperadamente desejosos de agradar aos pais, crescem se sentindo em falta para com eles por nao atingirem esses objetivos. Exigéncias assim inevitavelmente destorcem a crianga, roubando-lhe a sua infancia. Algumas emer- gem fortalecidas pela experiéncia, outras arrebentam. Mas qual- quer que seja o resultado, é demasiado o peso colocado sobre ombros tao jovens e despreparados. A quantidade de mal que um filho pode acarretar aos pais é limitada. Podem envergonhar-nos, mas apenas se tivermos in- vestido nossa reputagio no que eles resultaram como pessoas. Podem desapontar-nos, mas isso provavelmente os fere mais do que a nds. Querem to ansiosamente nos agradar. No entanto, os pais podem fazer mal a seus filhos muito mais seriamente. Nao é apenas com violéncia fisica e emocional que podemos maltrata-los. Também lhes fazemos mal ao espe- rarmos deles coisas pouco realistas. (Um colega meu diz que “fi- car desapontado” é uma forma de maltrato 4 crianga muito caracteristica da classe média.) E também os maltratamos ao nio criarmos um estilo de vida adulto para benefici4-los, um modelo que inclua a disposigao de cometer e de admitir erros e de apren- der com eles, em vez de insistirmos sempre em que nds estamos certos. As criangas precisam admirar seus pais. E uma das coisas que deverjamos ensinar nossos filhos a admirar em nds é nossa disposicao para dizer “Desculpe”, “Estava errado quando fiz isso”, “Eu nio sei”, Lembro-me que nas vezes em que tive que dizer aos meus filhos que estava errado sobre alguma coisa, eu ficava temeroso de que eles perdessem o respeito por mim por causa disso, ¢ ficava surpreso ao perceber que eles me amavam mais 66 O Quanto ¢ Precisoscat loin? ainda por eu ser capaz de faze-lo. Eles precisavam ouvir isso de mim. Precisavam se assegurar mais de minha honestidade que de minha perfeigao. Se tentamos ensinar nossos filhos a ver-nos como perfei- tos, eles ficario terrivelmente desapontados quando nossas im- perfeicdes surgirem, como inevitavelmente acontece. Mas se lhes ensinarmos a nos ver como pessoas que esto tentando crescer, aprendendo com os prdprios erros, ento tornaremos mais facil para eles o caminho do aprendizado com os prdprios erros e fracassos, ligdes que devem ser aprendidas em vez de rétulos de vergonha e de incompeténcia. Durante anos tentel compreender por que o romance Catcher in the Rye (O apanhador no campo de centeio), de J. D. Salinger, se tornou um classico cultuado por tantos jovens. Ele apreende a sensibilidade e 0 idealismo de um jovem, nem sem- pre reconhecidos pelos mais velhos, e denuncia a falsidade do mundo adulto. O heréi do romance, Holden Caulfied, esta cons- tantemente desfazendo das pessoas como “falsas”. Como vocé deve se lembrar de sua prépria adolescéncia, ou da de seus fi- Ihos, enfocar a hipocrisia dos pais e de outras autoridades é uma preocupacio dos adolescentes. Por que a hipocrisia, entre todos os pecados de que a alma humana é vitima? Acho que os jovens reagem a ela tio fortemente por ser ela um problema para eles. Esto preocupados com as inconsisténcias que encontram em si mesmos, um dia valentes, no outro se escondendo, cruéis com um amigo de manhi e bondosos com ele a tarde. Assim como admiram excessivamente o atleta que tem controle sobre seu corpo, enquanto eles estio tém tantos problemas com os pré- prios corpos, admiram a pessoa que “segura as pontas”, que vive consistentemente com os mesmos valores dia sim, ¢ outro tam- bém, (da mesma maneira como dizemos com admiragio de al- guém que mantém uma visio politica consistente, ainda que 67 Harold S. Kusner extrema: “Nao concordo com ele, mas pelo menos sabe-se de que lado ele esta”). Os adolescentes ficam desproporcionalmente perturbados com as inconsisténcias de seus pais porque uma parte deles deseja ardentemente: “Quando eu tiver chegado nes- sa idade, terei resolvido esse problema. Saberei quem sou e de que lado estou”. Mais do que desapontados, eles ficam aterrori- zados quando descobrem, pelo comportamento de seus pais, que isso continua sendo um problema para os adultos. Como devemos responder a acusagio de inconsisténcia por parte de nossos filhos? Podemos responder como Adio, no Jar- dim do Eden, pretendendo a perfeicio, negando nossos erros, procurando alguém mais para jogar a culpa em cima, ou nao reconhecendo em ninguém o direito de nos julgar. Ou sodeiioe deixar cair a folha de figueira da perfeicio e revelar-nos como setes humanos, que fazem o melhor que podem, acertando algu- mas vezes e errando outras, enquanto continuamos a crescer e a lutar. A integridade nao é algo que os adultos tém e a que os adolescentes devem aspirar. A integridade é algo que todos nés, em todas as idades, estamos constantemente lutando para con- seguir. Pode-se dizer das criangas, como se tem dito dos mais idosos, que elas precisam de muito pouco de nés, mas que precisam muito desse pouco. Precisam de permissdo para cometer erros sem serem chamados de “maus” por isso. De- mos-lhes essa permissio quando estavam crescendo fisicamen- te. Quando nossos filhos ainda nao tinham um ano e estavam apenas comegando a andar, tentavam dar um passo ou dois e caiam. Nao os repreendiamos por serem desajeitados. Elogia- vamos seus esforgos por fazer algo novo e os asseguravamos de que, com a pratica, cada vez estariam melhores. Devemos a eles 0 mesmo estimulo e a mesma paciéncia para com seu crescimento moral. 68 O Quanto é Preciso ser Bom? E as criangas precisam saber que sio amadas e que confia- mos nelas, porque algumas vezes elas conhecem tio bem a si proprias e a seus defeitos que nao conseguem estar certas de que sio dignas de amor e de confianga, e porque as vezes nos esque- cemos disso, ou achamos emocionalmente dificil dizer-lhes isso. Conhego um homem, um homem de negécios extrema- mente bem sucedido, que trabalha doze horas por dia, seis dias por semana, para tornar seu negécio ainda mais bem-sucedido. Ele nao precisa disso. Esta financeiramente seguro; sua compa- nhia continuarA tendo sucesso tanto quanto se pode prever no futuro. Poderia bem passar mais tempo no seu iate, raramente usado, na sua casa de campo ou no campo de golfe. Por que continua a trabalhar tanto? Porque seu pai foi um homem de negdcios de sucesso, e 0 meu amigo vive para ouvir um dia seu pai dizer a ele: “Estou orgulhoso de vocé; vocé é tao bom quan- to eu sempre fui”. Meu amigo se acaba para merecer esse elogio, mas nunca o ouvira. Seu pai morreu ha quinze anos. Meu amigo jamais conseguiu se libertar do fato de que, quan- do crianga, nunca teve certeza de quanto o seu pai o amava. Foi ensinado que amor tem que ser conquistado: “Vocé tem que fazer melhor do que isso se quiser que eu fique satisfeito”. O pai do meu amigo era respeitado e temido na comunidade dos negé- cios, e provavelmente usava 0 mesmo método para alcancar melhores resultados de seus empregados, exigindo muito e elo- giando tio raramente, que um cumprimento da parte do “ve- Iho” valia uma medalha de honra. Aparentemente ele era a mesma pessoa em casa. Isso funcionava no escritério. As pesso- as trabalhavam com mais afinco para evitar suas criticas e, talvez até, receber um elogio. E, num certo sentido, “funcionava” em casa também. Seus filhos foram todos levados ao sucesso, nos estudos e nas profissdes. Mas a que prego? Se eu pudesse trazer © pai do meu amigo de dentre os mortos pelo tempo suficiente 69 Harold S. Kusner para lhe fazer duas perguntas, “Se tivesse que escolher, teria vocé preferido ser um homem de negécios bem sucedido ou um pai bem sucedido? Vocé preferiria ter criado seus filhos para faze- rem muito dinheiro ow para serem felizes?” Acho que seus olhos se encheriam de l4grimas e ele me teria dado a resposta antes mesmo de que uma palavra fosse pronunciada. Talvez ele cul- passe seu pai ou as circunstancias de seu crescimento. Talvez ele negasse minha premissa de que nfo se pode ter as duas coisas. (Claro que se pode ter ambas as coisas, se se for esperto 0 bas- tante e sortudo o bastante, mas a sede sem alivio que meu amigo tem pela aprovacio paterna me lembra o quanto isso é dificil.) Tento dizer ao meu amigo que 0 problema era de seu pai e nio dele. Seu pai nunca lhe disse “eu amo vocé”, porque © pai era um homem emocionalmente contido, nao porque o filho nao fosse digno de amor. Faco notar a ele que muitas centenas de pessoas dentro e fora de sua indistria tém elogiado sua acuidade nos negécios, seu saldo bancario, seu valor de merca- do. Sua parede cheia de placas e de prémios atestam o seu suces- 50, ¢ 0 que quer ele ainda provar? Mas nada disso é suficiente para preencher o vazio representado pelas palavras que ele nun- ca ouviu de seu pai. Tenho visto o que acontece quando um homem traz seu filho (e mais recentemente, sua filha) para a empresa que ele cons- truiu durante anos, As vezes para dar ao seu filho ou filha um impulso na estrada do sucesso, as vezes como uma maneira de assegurar-se de que seu nome e a companhia que ele criou vive- rio mesmo depois de sua morte. Quando isso funciona, pode ser maravilhoso. Mas, muito frequentemente, esses arranjos co- mecam com altas esperangas e se deterioram, acabando em fric- ges, e muitas vezes em corag6es partidos. Nao posso contar 0 ntimero de vezes em que fui chamado para aconselhar seja um pai, seja um filho, numa relagio de negécios, algnmas vezes sim- 70 O’ Quants éPrecito sar ben? plesmente porque 0 filho nfo tinha a habilidade que o paitinha, outras vezes porque 0 filho (armado com um Mestrado de Ad- ministracao de Empresas) queria mudar coisas e 0 pai, que enve- Ihecia, insistia em manter-se no poder de decisio. Freud escreveu certa vez: “Todo homem tem citimes do sucesso de outro ho- mem”, enquanto os sabios do Talmud, dezessete séculos antes, colocavam isso assim: “Todo homem tem citimes do sucesso de outro homem, exceto um pai de seu filho, e um professor de seu aluno”. Costumava pensar que o Talmud tinha compreendido melhor do que Freud a alma humana, mas tenho visto tantos ca- sos de pais mais velhos, algumas vezes extremamente bem sucedi- dos, com citime de um filho que, com menos idade, ganha mais dinheiro e obtéma admiragio que um dia lhes foi dirigida, que me pergunto se a visio mais sombria de Freud sobre a natureza hu- mana nao é mais verdadeira. HA uma estranha passagem na Biblia, no capitulo dezenove do primeiro Livro de Reis. O profeta Elias esta desanimado pela tendéncia que os israelitas tém de abandonar a f¢ em Deus ¢ de servir os idolos. Ele passou a vida inteira tentando fazé-los repu- diar a idolatria, mas eles estdo sempre voltando a ela. Deprimi- do, ele corre para o deserto, direto para o Monte Sinai, onde Deus ¢ Israel pela primeira vez entraram num acordo. Atira-se ao cho e diz a Deus que se sente um fracassado, que quer mor- rer, porque “nao sou melhor do que meus pais”. Deus responde com uma voz quieta, suave, dando a Elias coisas especificas para fazer a fim de salvar a situacio. Mas sempre me chocou aquela frase, “nio sou melhor do que meus pais”. Parece que todos nés temos essa necessidade de sermos melhores do que nossos pais. E como se fosse, ao mesmo tempo, uma maneira de suplanta-los e de agrada-los. ‘Fenho uma teoria, de que muitos homens e mulheres que cresceram debaixo de pais fortes e bem sucedidos acabam por 7 Harold S. Kusner wy fazer, profissionalmente, o que seus pais faziam voluntariamen- te, ou como hobby (meu pai foi um homem de negocids de sucesso, ativo na sua sinagoga; eu me tornei rabino), ou fardo, como atividade lateral, o que seu pai fazia para viver (0 filho do professor, que se torna um advogado ou empresario de sucesso, encontra tempo para ensinar num curso na universidade local). uma maneira de seguir os passos do pai sem competir com ele diretamente, sem os perigos de nio ser,ta0 bom quanto ele foi, e sem o risco de suplanti-lo. : Sempre achei que uma das razées para o fato de os filhos de grandes homens crescerem e se tornarém umas nulidades nao é sO porque seus pais os negligenciaram no seu afi de perseguir a grandeza, mas porque os grandes homens nao concedem aos seus filhos espaco para que estes os suplantem. Nos ultimos anos tenho ouvido muitos filhos adultos de homens de negécios bem sucedidos dizerem: “Provavelmente jamais farei tanto dinheiro quanto meu pai. Provavelmente nao conseguirei criar minha fa- milia numa casa como aquela em que eu cresci. Mas terei minha cabega no lugar. Nao serei um escravo dos negécios. Nao trarei trabalho para casa nos fins de semana. Terei uma nogio melhor do que é realmente importante do que a que tinham meus pais “. Esses jovens, incapazes de competir com seus pais em termos de sucesso material, redefiniram o sucesso no tinico modo que lhes permite sentirem-se “melhores do que meus pais”. Se, com enorme esforgo, nos mantivermos numa postura de perfeigao, e se nossos filhos acreditarem em nds e nos admi- rarem (porque eles querem acreditar em nds e nos admirar), da- remos pouco espaco para eles nos suplantarem e pouca esperanca de o fazerem. Mas se lhes deixarmos, em vez disso, uma no¢io de nossa humanidade imperfeita e de um programa que nio foi completado (como o rei David deixou para seu filho, Salomio, aconstru¢io do Templo, realizando assim algo que seu pai, enor- 72 O Quanto Preciso sar Born? memente bem sucedido, nunca péde fazer), ent3o, em vez de cobri-los de sombra e de tolher seu crescimento, deixaremos a eles um espaco para crescerem e desabrocharem. Com algum esforgo e alguma pratica podemos aprender a aceitar os enganos inocentes que nossos pais cometeram. Podemos chegar a vé-los como pessoas limitadas emocional- mente, e igualmente limitadas em suas percepg6es psicoldgi- cas, € podemos compreender por que fizeram as coisas que fizeram. Mas 0 que fazer com pais cujos erros foram menos inocentes e menos perdoaveis? Uma mulher veio a mim depois de um servico de Shabat e me perguntou se podia falar comigo. Disse-me que tinha acabado de saber que seu pai estava morrendo de cancer e nao tinha mais que um més ou dois de vida. Imaginei que ela quisesse me perguntar alguma coisa sobre o funeral e sobre detalhes da shivdb, a semana judaica de ceriménias que se se- gue a uma morte. Eu nfo estava preparado para o que ela realmente precisava me dizer. “Eu odeio meu pai”, ela me contou. “Nao vou ficar tris- te quando ele morrer, e nfo quero fingir que estou. Ele dei- xou a familia quando eu tinha nove anos. Teve um sem numero de mulheres pela vida afora e estava planejando se casar com a Ultima delas. Minha mie teve que trabalhar em dois lugares para poder nos sustentar. Ele nao mostrou o menor interesse na minha formatura no colégio ou na uni- versidade. Quando me casei, recusou-se a pagar qualquer des- pesa do casamento, a menos que eu deixasse que ele me levasse ao altar, e quando eu lhe disse que nao podia concordar com isso, sequer assistiu 4 ceriménia. Isso foi ha mais de dez anos, e desde entZo nunca mais falei com ele. Quinta-feira, sua se- gunda mulher telefonou para me dizer que ele est4 morren- do. Rabino, o senhor pode me dar uma tunica razio pela qual 73 Harold S. Kusnar eu deva chorar um homem desses, por que eu deveria ir ao fune- ral, ou rezar um kadish por ele?” Eu disse a ela: “Antes de mais nada, se vocé for ao funeral e decidir depois que cometeu um erro, que teria sido melhor nao ter comparecido, isso sera apenas um engano e vocé o superara rapidamente. Mas, se vocé nio for e depois sentir que deveria ter ido, temo que va carregar o peso dessa culpa por muito tempo. O mais importante, no entanto, é que vocé podera chorar o pai que nunca teve. Por tudo 0 que vocé me contou, vocé nao pode chorar por seu pai verdadeiro, esse que esta morrendo. Por que nio aproveitar a oportunidade para sentir-se triste pelo pai que deveria ter tido e nao teve? Enquanto ele estava vivo, vocé sentia raiva e posso bem compreender por que. Uma vez morto, per- mita a si mesma sentir-se triste pela pessoa que ele nao conse- guiu ser, pela auséncia de um pai quando vocé estava crescendo, pelo espago vazio no seu casamento e em todas as outras ocasi- des familiares. Quando vocé recitar 0 kadish, nao estara expres- sando tristeza porque ele morreu. Estara expressando a sua tristeza, e fazendo as pazes com ela, por ele nao ter podido ser um pai para vocé mesmo quando estava vivo, e agora que ele se foi, nio ha mais sequer a possibilidade de ele recuperar isso”. Ela assistiu ao funeral e me disse depois que ficou emocio- nalmente confusa durante o servico religioso. Nao sabia ao cer- to o que estava sentindo mas, para sua surpresa, nao sentia mais raiva. Assistiu 4s ceriménias durante um més e meio e depois parou, o que tomei como um sinal saudavel de que ela no esta- va mais cheia de raiva e de ressentimento para com um homem que nio mais vivia e para com uma situaco que nio podia mais ser mudada. Mesmo sob circunstancias menos extremas, o desamparo e a vulnerabilidade de um pai ou mie idosos, doentes ou mori- bundos, for¢a um filho adulto a confrontar sua raiva contra aque- 74 d O Quanto é pas Ser Loui? “Te pai ou mie, raiva que pode ter décadas de existéncia, que pode ser até injusta, talvez, mas que esta ali presente. A vulnerabilidade de um pai.doente, moribundo, suas stiplicas para que fiquemos com ele mais tempo pode levar-nos a relembrar tempos em que ele nao estava quando precisavamos dele, muito ocupado com negocios ou amigos para ir nos ver numa peca do colégio, ou tempos em que ele estava presente mas emocionalmente distan- te. A atriz Lynn Redgrave se lembra de, quando crianga, ter en- contrado o diario de seu pai, té-lo aberto ansiosamente no dia em que ela tinha nascido, e de ter se sentido esmagada ao desco- brir que o diario ndo mencionava o nascimento dela, apenas noticias sobre a peca que ele estava ensaiando e sobre os ataques aéreos alemies sobre Londres. Somente depois de sua morte ela pode se conformar com essa distancia emocional, essa inabilida- de para sentir e expressar o que ela queria e precisava ouvir dele, ea aprender a ver isso como uma falha dele e nao dela. Muitos de nds guardamos na lembranga tempos em que pediamos alguma coisa que nos era negada. Nossos pais podiam até estar certos ao dizer-nos nio, ou talvez. estivessem errados, mas por razOes perfeitamente compreensiveis e honrosas. No entanto, uma cicatriz ficou, causando-nos um sentimento de confusio e ambivaléncia quando nossos pais nos pedem alguma coisa nos seus tempos de necessidade. Vejo isso muito frequentemente, quando um dos pais esta em estado terminal e os médicos pedem a familia permissio para tomar medidas extraordinarias. Na verdade, estao pedindo ao filho para deixar a Mamie ou o Papai morrerem. Como é que uma pessoa adulta toma uma decisio dessas? Como pode ela perceber claramente se a decisdo de nao usar tratamentos extra- ordindrios é motivada por nao querer prolongar o sofrimento do pai, por relutar em gastar dinheiro com isso se nao vai adian- tar mais nada, pelo retorno de um desejo reprimido desde a in- 75 Harold S. Kusner % fancia de vingar-se dos pais e desejar sua morte, ou, simplesthen- te, pelo cansago de ter que, todos os dias, dirigir até o hospital e ter que procurar um lugar para estacionar? Por isso é que reco- mendo que a decisio nao seja deixada para os filhos, mas que os médicos, talvez juntamente com o guia religioso da familia, di- gam-lhes (como os médicos de meu pai disseram a mim e a meu irmio, quando chegou o momento):*“Isso é 0 que recomenda- mos; vocés concordam?” Dessa manera, os filhos nao ficam de fora do processo de tomada de decisio, mas nao sao sobrecarre- gados com o peso e a culpa subsequente de tomar uma decisio tio terrivel. Quando um dos pais morre, mesmo alguém a quem se amou e com quem nos demos bem, nio somente ficamos tris- tes pelo fato de nao té-lo mais conosco nas festas de aniversa- rio e nas formaturas. Também lamentamos o fato de que, se houve palavras que deviam ter sido ditas e nao o foram, agora jamais o sero. Se ansiavamos por uma aprovagao sua e eles nao foram capazes de verbaliza-la, por serem as pessoas que eram, agora jamais ouviremos essas palavras. Se tinhamos em mente desculpar-nos por os havermos ferido nos excessos de nossa adolescéncia e sempre deixavamos para depois, porque isso era dificil de fazer, porque nos diziamos: “Foi ha tanto tempo, para que trazer isso 4 baila de novo agora?”, descobri- mos que jamais teremos essa chance. Por isso é que os terapeutas sempre pedem aos pacientes de luto pelo pai ou pela mie para “escreverem uma carta para 0 morto, dizendo todas as coisas que vocé queria lhe dizer em vida e, depois, escrever uma carta para si mesmo, em nome do pai morto, ou da mie, dizendo todas as coisas que vocé queria que eles tivessem lhe dito quando estavam vivos”. E por isso € que todas as religides nos oferecem elaborados ritos de chorar e sofrer por um pai ou uma mie, como um ato de reconcilia- 16 O Quaaté's Practio tee Bom? ¢40 por todos os inevitaveis desapontamentos de ambos os lados do relacionamento. Varias pessoas me contaram que ouviram o famoso autor John Bradshaw dizer pela televisio que praticamente todas as familias sio familias fracassadas. Bradshaw nao disse exatamente isso. Ele citou outro psicdlogo que dizia que 96% das familias eram fracassadas, e rapidamente acrescentou que esse ntimero nao era para ser tomado literalmente. Era apenas para chamar a atencao. Achei interessante que tanta gente tivesse ouvido o que que- ria ouvir: uma autoridade nacional lhes dizendo que os proble- mas que tinham eram consequéncia da confusio dos pais. As pessoas acolheram esse discurso. Acharam que os aliviava de responsabilidades. Seus problemas eram por culpa de seus pais, nao por sua culpa. De fato, como tentarei mostrar, esse ponto de vista (com o qual eu decididamente no concordo) na verda- de aumenta a carga de responsabilidade. Noventa e seis a cem por cento de todas as familias sio um fracasso apenas se definirmos como mau funcionamento tudo o que seja menos do que perfeito. Se cada pai ou mie que, algum dia, cometeu um engano, for considerado como um fracasso, porque esse engano deixou suas marcas em nés, entdo, sem di- vida nenhuma, todos nds viemos de lares fracassados. Quando se trata de desenhar uma espaconave ou construir uma ponte, uma imperfei¢io pode invalidar todo 0 projeto. Contudo, criar um filho para que seja um ser humano é tio mais complicado do que construir uma nave espacial, que uma tolerAncia zero para 0s erros esta simplesmente fora da realidade. Felizmente, as cri- angas sao bastante resistentes para sobreviverem A maioria de nossos erros, principalmente se esses acontecerem contra um pano de fundo de amor e de apoio, livres das expectativas de perfeicio de nossa parte ou da deles. 77 Harold S. Kusner Nao ha familias perfeitas. Ha familias que funcionam ver- dadeiramente mal, minadas pelo alcoolismo, o incesto e a vio- léncia, mas, felizmente, relativamente poucas so assim. E depois hd o resto de nds, crescidos em casas onde pais bem intenciona- dos e cheios de amor, eles prdprios frutos de pais bem i intencio- nados, mas com defeitos, tentam fazer o melhor para nés e conseguem acertar em algumas coisas e noutras nao. * Aquelas pessoas que interpretaram mal as palavras de Bradshaw estavam me dizendo que tiveram 0 direito de esperar de seus pais a perfeicio, e hoje se atribuiam o direito de se res- sentirem contra seus pais por nao terem eles conseguido acertar em tudo. Estardo essas pessoas preparadas para dizer aos seus filhos: “Vocé tem o direito de esperar que eu seja perfeito, que eu conhega todas as respostas, que eu esteja sempre disponivel e nunca distraido”? E estario elas preparadas para viver cumprin- do os termos desse contrato? Desconfio que essa histéria de pais que funcionam mal serem reponsabilizados pela falhas das pes- soas fica bem diferente quando somos nés os pais e nos damos conta do quanto é dificil esse encargo. (Nao era essa a praga que todas as maes nos rogavam, quando estavam zangadas conosco? “Tomara que um dia vocé tenha um filho igual a vocé.”) The Measure of Our Success, um dos livros mais vendidos de Marian Wright Edelman, tem um capitulo intitulado “A Letter to My Sons”. E dele o notavel paragrafo abaixo: “Peco perdio por todas as vezes em que falei, quando devia ter ouvido; em que me irritei, quando devia ter sido paciente; em que agi, quando devia ter esperado; em que temi, quando devia ter ficado encantada; em que repreendi, quando devia ter enco- rajado; em que critiquei, quando devia ter elogiado; em que disse nao, quando devia ter dito sim e em que disse sim quando devia ter dito nfo. Eu nfo sabia uma porgio de coisas sobre como educar uin filho ou como pedir ajuda. Frequentemente tentei 78 O Quanto ¢ Preciso ser Bom? ~¥ com afinco e quis e exigi demais e, erroneamente, algumas vezes tentei moldar vocés 4 imagem que eu tinha do que eu queria que fossem, em vez de descobrir e nutrir vocés & medida em que vocés brotavam’e cresciam.” Deixem-me dizer-lhes duas coisas sobre esse pardgrafo. Pri- meiro, acredito que 90 por cento dos pais se sentem assim (eao contrario de Bradshaw, minha intencdo é a de que este numero seja tomado literalmente.) Eu penso assim. Aparentemente, po- demos defender-nos ¢ justificar-nos como tendo agido certo, con- siderando a nogio deslocada de que seriamos melhores pais se féssemos vistos como perfeitos. Entretanto, no fundo do nosso corag&o esto enterrados todos os remorsos por todas as coisas que desejarfamos ter feito diferentemente. Cada linha da carta da Sra, Edelman me traz memérias de momentos, na vida de meus filhos, que eu gostaria de ter de volta para fazer tudo de novo, fazer da maneira certa desta vez: dias em que investi demais de mim mesmo no trabalho e cheguei em casa com muito pouco para dar a eles; ocasides em que dei as palavras de meus filhos pouca importancia e lhes respondi superficialmente, quando um pouquinho mais de aten¢io me teria revelado a necessidade, ou © medo, por tras daquela pergunta inocente. Segundo, muito poucos pais so suficientemente corajosos Para retirar a armadura da sabedoria paterna e revelar sua vulnerabilidade, dizendo isso aos seus filhos. Nao sei mesmo se » até Marian Wright Edelman foi corajosa o bastante para dizer isso em voz alta para seus filhos. Ela pode, em vez de falar, té-lo escrito no seu livro (0 que, ocorre-me agora, eu também estou fazendo). I Para mim, a parte mais dificil ao escrever este capitulo foi enfrentar a lembranca de meus préprios pais, ambos falecidos, e Os ressentimentos ocultos que ainda carrego comigo pelos seus erros. Eles eram gente boa, amavel, amorosa, que me deu, de 79 Harold S. Kusner muitas maneiras, exemplos espléndidos, mas nio eram perfei- tos. Cometeram sua quota de erros. Se houvesse como proces- sar alguém por praticas paternas mal conduzidas, desconfio que acharia algum advogado pouco escrupuloso para encontrar evi- déncias e defender 0 meu caso. Meus pais me ensinaram, por meio de preceitos e de exem- plos, a tomar a sério a educagao, a ser honesto e caridoso, a ser religiosamente comprometido, ainda que respeitando as pessoas que tivessem religides diferentes ou no fossem religiosas. Sou- lhes grato por tudo isso. Lembro-me de meu pai mandando di- nheiro para parentes necessitados fora do pais, acolhendo a primeira familia negra no nosso quarteirio, rejeitando indigna- do as sugestées para falsificar seu imposto de renda de um modo que jamais seria detectado, e me agrada encontrar em mim essas mesmas qualidades. Mas, ao mesmo tempo, meu pai tinha ou- tras qualidades menos admiraveis - podia ser impaciente ou con- descendente, podia nos levar a loucura se escondendo por tras de um jornal e se distanciando das outras pessoas numa sala, e jamais aceitando que essas faltas Ihe fossem apontadas - e me incomoda enormemente quando me pego agindo da mesma maneira e me lembrando de ter, quando menino, jurado que “nunca serei assim quando crescer”. Meus pais, como a maioria de seus amigos, eram europeus de nascimento, judeus de classe média, apanhados numa multi- dio que competia benignamente sobre quem fazia mais pontos pavoneando-se das realizagées escolares e profissionais dos fi- Thos. Acho que, quando me forgaram a ir para a escola, tinham em mente (talvez até inconscientemente) a inveja de seus amigos tanto quanto o meu bem estar, de modo que aos dezesseis anos eu entrei para a universidade e, por volta dos vinte, estava num programa intensivo de graduagao. (Meu pai viveu 0 suficiente para me ver atingir uma reputagao a nivel nacional como autor 80 OOer aie st Bont e conferencista e, como nenhum dos filhos de seus amigos che- gou a tanto, suponho que isso queira dizer que ele “venceu”.) Provavelmente eu teria aproveitado melhor se minha educagio tivesse sido mais normal, mas me beneficiei de meus pais de tan- tas outras maneiras, que sei que meus ressentimentos sao desarrazoados. Ainda assim, seja la por que razGes, sinto, tantos anos depois dos fatos, que seus minimos erros me aborrecem muito mais do que me gratificam suas grandes virtudes. Pode ser porque eu os admirasse tanto que os quisesse perfeitos. Tendo sobrevivido aos seus erros, imagino que devia estar contente por nio o terem sido. Quem, realmente, gostaria de ser filho de pais perfeitos? Thomas Moore escreve no seu livro Soul Mates: “Nossa ta- refa, como adultos, pode ser entao a de procurar qualquer coisa que nos faca perdoar nossos pais por suas imperfeigdes. Em al- gumas familias essa imperfei¢ao pode ser leve, em outras, pro- funda, mas seja qual for o caso, temos que lidar com o mal e sofrer em nossas proprias vidas sem o beneficio de um bode expiatorio. Na verdade, nossas vidas seriam muito mais ricas se pudéssemos deixar de lado a desculpa do fracasso paterno... Pen- sar negativamente - e patologicamente - sobre a familia nos dis- tancia de seus membros e nos faz perder a oportunidade de enriquecer-nos com eles”. Eva, que jamais teve mae que pudesse lhe fornecer um mo- delo, tentou “possuir” seus filhos, esperando que eles fossem encarar isso corretamente e encobrir seus enganos. Os resulta- dos foram de cortar 0 coragdo. Um deles foi morto por seu ir- mio, que ent&o se tornou um fugitivo, antes que ela e Adio pudessem comecar tudo de novo com expectativas menores. Num certo sentido, a Biblia é uma crénica sobre boas pessoas sendo maus pais, com Abrahio banindo um de seus filhos e quase assassinando o outro, com Isaac, Rebeca e Jacé todos fa- vorecendo um dos filhos e causando problemas na familia, com 81 Harold S. Kusner os filhos de Jacé sentindo um citime criminoso de seu irmio José. Ainda assim, essas familias “fracassadas” produziram gente que, por causa de todas as suas cicatrizes e traumas, estabeleceu as fundagées da cultura ocidental. Marian Wright Edelman pede a seus filhos que a perdoem. Thomas Moore nos incita a perdoarmos nossos pais. Nao estou certo de que o perdio seja a palavra certa. Talvez, quando j jo- vens, 0 perdao seja a moeda corrente. Ao tempo em que nds mesmos nos tornamos pais, a moeda passa a ser nao o perdao, mas a compreensio e a apreciagio, porque a essa altura estare- mos cometendo os mesmos erros e chegando ao entendimento de quanto foi absurdo esperar a perfeigao de um pai humano. Victoria Farnsworth escreveu: “S6é quando me tornei mie compreendi 0 quanto minha mie se sacrificou por mim. Sé quan- do me tornei mie senti o quanto feri minha mie ao lhe desobe- decer. S6 quando me tornei mie pude saber 0 quanto minha mie se orgulhava de meus sucessos. $6 quando me tornei mae percebi o quanto minha mae me amava”. Quando nos libertarmos do mito de que Deus sé nos ama- rA se formos perfeitos, sé entio deixaremos de sentir necessida- de de sermos pais de filhos perfeitos para podermos ser admirados, ou de sermos filhos de pais perfeitos para sobrevi- vermos € termos sucesso. Nio acho necessario perdoar meus pais pelos erros que cometeram. Nao é pecado ser humano. Eles eram amadores num jogo que exigia muito deles, onde mesmo os profissionais nem sempre conseguem fazer a coisa certa. Mais fortes do que o per- dao sio 0 meu amor e a minha admiraco por eles, por tudo de bom que fizeram, e espero ter-lhes demonstrado esse amor e admiragio do modo como eles desejavam, ao passar muitas des- sas qualidades boas para a minha filha, por quem rezo para que se sinta, ela prépria, inclinada a compreender-me e admirar-me. 82 Cap ‘tubs Ginca C Proferivel Sua Tb a Shep Raziio Num capitulo anterior, quando resumi a histéria biblica da Criagao que levava aquele ato primal de desobediéncia, descrevi Deus modelando uma companheira para Adio retirando-a de uma de suas costelas, e ent4o acrescentei: "(ou talvez nao fosse uma costela)". Chegou o momento de explicar esse comentario entre parénteses. A palavra hebraica usada na narrativa é tséla, que frequentemente quer dizer “costela” e, na ocasiio em que o Cristianismo emergia, tanto os judeus quanto os cristios esta- vam familiarizados com a histéria de Deus fazer Eva a partir de uma costela de Adao. Ainda mais frequentemente, porém, a pa- lavra tséla quer dizer “lado”, como no caso encontrado no Exodus 26:26, e em muitos outros lugares, © que me inclina a concordar com os estudiosos da Biblia que encontraram, no segundo capi- tulo do Génese, o paralelo biblico de um mito de origem grega e hindu, também existente em muitas outras culturas antigas. Se- ria contado assim: Como climax da Criag3o, Deus modelou um ser humano com dois lados, um lado masculino e outro feminino. “Macho e 83 Harold S. Kusner fémea os criou” (Gén.1:27). Como essa criatura andrégina nao podia encontrar parceiro adequado em nenhum dos animais, Deus a fez adormecer e, cirurgicamente, separou um Jado do outro, deixando um ser humano masculino e outro ser humano feminino, que eram entio parceiros adequados um para 0 ou- tro. Por isso, a histéria da criagio de Eva termina com as pala- yras: “Portanto o homem deve abandonar pai e mie e juntar-se A sua mulher, e eles se tornardio uma s6 carne”(Gén. 2:24). Ou seja, quando homem e mulher se juntam, restauram sentido de unidade que tinham no momento de sua criac4o original. (Encontramos a mesma histéria no Symnposinm de Platio, com a diferenca de que, na versio grega, algumas das criaturas originais eram dois machos, explicando por que alguns homens escolhem parceiros masculinos.) As implicagées de tomar-se essa palavra no seu sentido de “lado”, em vez de “costela”, sao numerosas e significativas. Em primeiro lugar, faz de Eva uma parceira completa na Criagao, e nao uma idéia posterior. Mais interessante ainda, da ao casamen- to entre humanos um sentido muito além do que ele possa ter para outras criaturas. E mais do que pér criangas no mundo e perpetuar a espécie. E mais do que um modo de tornar valida nossa habilidade de atrair alguém do sexo oposto (um trago que partilhamos com um grande ntimero de espécies animais, em que os machos competem para conquistar as fémeas mais atrati- vas). Os seres humanos se casam para encontrar a plenitude, para se tornarem completos. A razdo mais profunda para se ca- sar nao é a nossa satisfagdo sexual ou psicoldgica, nem é a opor- tunidade de agradar e de satisfazer outra pessoa. Essa nova leitura da historia da criacio dos primeiros seres humanos nos diria que © propésito do casamento é criar uma nova entidade, um ser linico formado de dois individuos previamente separados, cada um deles suprindo 0 que falta ao outro. Por isso é que o divér- 84 O Quinto cio, mesmo legalmente acessivel e socialmente aceitavel, e mes- mo quando necessario em casos individuais, é sempre uma ex- periéncia tio traumatizante. Representa a separacao cirtirgica de duas almas que tinham sido fundidas. Os piores momentos de meus trinta anos como rabino ocorreram quando me vi envol- vido nas disputas de um casal que um dia se amou e cujo amor acabou. Como me disse uma vez um amigo, “Sé descobri o quan- to eu podia ficar furioso no dia em que me casei”. Amar é um imenso ato de coragem, é tornar-se vulneravel pelo muito amor que se tem a alguém, a tal ponto que esse alguém pode nos ferir da maneira como ninguém mais pode, e com uma clareza que nenhuma outra pessoa jamais tera. Lamento muito pelas pesso- as que falam sem tristeza de um casamento falido: “Desde 0 co- meco-estava tudo errado, eu devia ter-me separado mais cedo”. E como se elas nao chorassem num enterro. Estio reprimindo seus sentimentos de magoa, e terio que se ver com eles em al- gum momento no futuro. Uma tal uniao, quando funciona, nos prové com os mais sublimes sentimentos que muitos de nds seremos capazes de co- nhecer: o de transcender nosso isolamento no mundo e de en- contrar uma nova plenitude, o de ter preenchido os espagos vazios de nossas vidas. Quando ela nao funciona, nos sentimos mais do que desapontados. Nos sentimos traidos. Esperavamos do outro que fizesse tudo certo, que fizesse nossos problemas desaparecerem, € 0 que aconteceu é que ele nos trouxe novos problemas, que pertenciam a ele. Uma das necessidades basicas do ser humano é a de ser ama- do, de ter seus desejos e sentimentos levados a sério, de ser valo- rizado como alguém que tem importancia. As festas de aniversario ajudam a preencher essas necessidades, assim como ver nosso nome ou retrato no jornal. Os bebés precisam do amor de seus pais tanto quanto de alimento e aconchego, e as 85 Preciso ser Bom? Harold S. Kusner consequéncias sao desastrosas se no o recebem. A medida em que suplantamos a dependéncia de nossos pais, comecamos a buscar alguém que va nos querer de um modo unico e intimo. Quando somos jovens, nossa habilidade para estabele- cer relagdes com alguém do sexo oposto é o modo de deter- minar qual o “valor de mercado” de nossa capacidade de atrair. Namorados e namoradas so o expelho em que vemos refleti- da essa capacidade de atrairmos e de sermos amados. Os ho- mens jovens muitas vezes procuram namoradas, e mais tarde esposas, que sejam “troféus”, parceiras escolhidas nao por suas qualidades pessoais, mas por impressionarem os outros pela habilidade desse homem em conquistar uma companhia tao desejavel. As jovens querem ser vistas com o estudante mas- culino mais atraente e, mais tarde, querem se casar com 0 homem que mais provocar a inveja das outras mulheres. As garotas ficam obcecadas com a idéia de ter um namorado, ou manter o namorado, ou perder um namorado para sua me- lhor amiga, e se pergutam, desanimadas, se a vida vale a pena sem um namorado, enquanto os jovens suam de nervoso quan- do se preparam para chamar uma garota para um encontro, temendo o risco de serem rejeitados. E aqueles dentre nés que nao conseguem atrair os parceiros mais desejaveis somos constantemente lembrados, com ou sem sutileza, que por causa de nossas limitagSes temos que partir para a “segunda opcao”. Em maior ou menor extensao, jamais conseguimos suplan- tar completamente essa visio. Uma parte de nés continuara pen- sando que nosso valor como ser humano sera determinado pelo desejo do parceiro que formos capazes de atrair. “Se eu conse- guir que ele/ela me ame, devo ser mesmo maravihoso/a. Se eu tiver que ficar com a garota/o em quem ninguém mais esta inte- ressado, isso também quer dizer algo a meu respeito.” 86 O Quanto ¢ Precise ser Bom? Ha varios anos a revista Boston, uma publicacio mensal de grande tiragem da cidade perto de minha casa, apresentou um artigo sobre o problema de mulheres bem sucedidas nos negdci- os encontrarem maridos adequados. No decorrer do artigo éra- mos apresentados 4 mulher que veio a ser conhecida como “a mulher dos bilhetes para a temporada”. Uma executiva foi en- trevistada sobre os esforgos que fazia para encoutrar umn ho- mem tio brilhante, dinamico e bem sucedido quanto ela. Descreveu como, finalmente, tinha conhecido um homem reali- zado, encantador e sensivel, que parecia gostar dela também com a mesma intensidade. Depois de varios encontros e de um senti- mento crescente de afeto reciproco, ela se sentiu bastante confi- ante no relacionamento para perguntar-lhe se ele partilhava de seu amor entusiastico por balé. Ele respondeu que nao, “mas estou pronto a aprender”. Ela rompeu o relacionamento, dizen- do: “No quero alguém que esteja querendo conhecer balé. Quero alguém que tenha os bilhetes para a temporada”. Essa frase gerou uma avalanche de cartas 4 revista de pes- soas que tentavam analisar essa mulher. Algumas a acusavam de‘medo de intimidade, levando-a a romper os relacionamen- tos antes que eles alcangassem um estagio mais definido. Algu- mas achavam que ela sofria de um complexo de inferioridade, rejeitava as pessoas antes que elas tivessem uma chance de rejeita-la. Minhas desconfiangas sio de que a responsavel por esse romance ter azedado é a nossa velha e conhecida inimiga, a busca da perfei¢ao. Tenho a impressio de que o que se pro- cessou dentro dela foi o seguinte: “Em meu trabalho tenho que projetar uma imagem de perfeico. Porque sou uma mu- ther com um emprego muito exigente, tenho que sentir que estou no controle, que fago tudo da melhor maneira. Se eu pudesse encontrar um marido perfeito, isso poderia reforgar a minha imagem de mulher perfeita, que pode fazer qualquer 87 Harold S. Kusner coisa e fazé-la bem. Se eu tiver que ficar com um marido com defeitos, imperfeito, um homem a quem falte algo essencial (como a assinatura para a temporada de balé2), isto poderia ser visto como uma fraqueza, uma falta de perfeigao minha”. As consequéncias para pessoas como essa sao: ou elas continuam a busca, encontrando razes para desqualificar quem quer que aparega, ou elas se convencem de que seu atual parceiro é de fato perfeito, e entio reagem com fria e tristeza quando des- cobrem que ele nao é aquilo que, na verdade, jamais procla- mou ser. Nathaniel Hawthorne escreveu um conto, The Birthmark, sobre um homem que se casou com uma bela mulher que tinha, na face esquerda, um sinal de nascenga. Ela sempre o tinha con- siderado um sinal de beleza, mas para ele isso estragava a sua aparéncia. O sinal a destituia de perfeicio. O marido tornou-se to obcecado com o sinal de nascenga que acabou por sd ver 0 sinal, Nao conseguia mais ver a beleza dela; s6 podia focalizar a sua falha. Como resultado, a mulher concordou em se subme- ter a um tratamento dificil para remover o sinal. Depois disso a marca de nascenga esmaecen e desapareceu, mas a mulher co- mecou a definhar também, e morreu pouco depois. O sinal de nascenca estava ligado ao mistério de sua vida e de sua beleza. Era o elo que mantinha um espirito angelical hospedado num corpo humano mortal. Mas isso nio foi suficiente para o mari- do. Ele nio estava satisfeito com a beleza do corpo e do espirito. Ele queria a perfeicao e, como resultado, acabou perdendo tudo. Os casamentos de hoje tendem a se basear no amor roman- tico. Somos tomados por sentimentos arrebatadores. Como diz um escritor, “Vocé procura uma pessoa que o ponha em orbita e espera que, quando vocé voltar ao normal, ela seja alguém que lhe agrade”. Dizemos para nds mesmos: “Nio posso acreditar que alguém tio maravilhoso, tao perfeito, me ame de verdade”, 88 O Quants & Pracito see Boni? e “Ele/ela me faz sentir tio bem comigo mesmo”, sem perceber que ao dizermos isso estamos admitindo que nao amamos ver- dadeiramente a outra pessoa. Estamos usando-a para ajudar-nos a amar-nos a nds mesmos. “Se alguém tao maravilhoso me ama, eu devo ser realmente digno de amor”. Se a atragio romantica é, no entanto, a base para o amor entre os casais de namorados, nao é a base, a longo prazo, para construir um casamento. A ilusao de perfeic¢3o no outro nio per- sistira. E é por isso que a esséncia do amor conjugal nao é 0 romance, mas 0 perdéo. Deixem-me ser muito claro sobre o que quero dizer com isso. Definir o amor como perdio nfo significa que um homem pode informar a sua mulher sobre seus casos extra-conjugais e, quando ela ficar zangada, dizer: “O fato de que ela nao me per- doa prova que ela nfo me ama, e isso justifica o que eu fiz”. Definir 0 amor como perdao nao exige que uma mulher que apanha do marido continue a sofrer agressées fisicas nas m&os dele. Nem requer que vocé se deixe explorar e ser Passada para tras sem um protesto. O perdao, como a forma mais verdadeira de amor, significa aceitar sem amargura as falhas e imperfeicdes de seu cénjuge c rezar para que ele/ela aceite nossas falhas tam- bém. O amor romntico nao vé as falhas (“o amor é cego”), num esforco para nos persuadir de que merecemos um companheiro perfeito. Um amor conjugal maduro vé as falhas claramente e as perdoa, compreendendo que nfo ha pessoas perfeitas, que nao temos que fingir perfeic3o, e que uma esposa imperfeita é étudoa que uma pessoa imperfeita como nés pode aspirar.(“Durante anos procurei o homem perfeito, e quando finalmente o encon- trei aconteceu que ele estava procurando a mulher perfeita, e essa nao era eu”.) Minha mulher e eu passamos dez dias, a cada inverno, num spa em Tucson, Arizona. Subimos montanhas e fazemos exerci- 89 Harold S. Kesner cios o dia todo e, normalmente, assistimos a palestras sobre esti- los de vida mais saudaveis 4 noite. Certa noite, 0 tdpico da pales- tra era “Problemas de Comunicag3o entre Homem e Mulher”, baseado no livro Men are from Mars, Womem Are from Venus. Podia se notar a tensio na sala, muito diferente do estado de espirito de quando os temas eram exercicios om dietas de baixas calorias. Podia se sentir isso nas piadas e comentarios nervosos que as pessoas faziam. Uma mulher contou a histéria de como ela e o marido, depois de perder uma hora a mais dirigindo para uma reuniio, chegaram constrangedoramente atrasados porque o marido, tei- mosamente, se negava a parar e pedir informages. Outra mu- Iher na sala riu como se soubesse do que se tratava, ¢ os homens ficaram envergonhados ao se reconhecerem na situagao. Mas uma jovem atraente se levantou e disse: “Se um homem fizesse isso comigo, eu sairia do carro, tomaria um taxi para casa e nun- ca mais falaria com ele”. Quis perguntar-lhe (mas nao o fiz): “Vocé nao comete nunca um erro que lhe permita esperar que alguém que a.ame o tolere em voc8? Nio tem nenhuma “mania” capaz de levar alguém 4 loucura, se nado a amar bastante como vocé de fato €?” Fiquei me perguntando se aquela jovem (que, notei, n3o estava usando alianca) seria uma parente da “mulher dos bilhetes para a temporada”, de Boston. A inabilidade para amar outra pessoa frequentemente se manifesta como a inabili- dade para perdoé-la por suas faltas muito humanas. “Eu sou tao maravilhosa que nao preciso me juntar com uma pessoa cheia de defeitos como vocé” diria ela. Comparo os comentarios daquela mulher com os que li de uma mulher casada com um homem ligeiramente maniaco depressivo. Ela nunca sabia quando seu marido ia se comportar racionalmente, quando ele estaria deprimido sem razio e Huan- 90 O Quanto ¢ Precito ser Bom? do seria preciso, em sua fase manfaca, convencé-lo a desistir de alguma idéia maluca. Os amigos lhe perguntavam por que ficava com ele se ele tornava a sua vida tio dificil, e ela respondia: “Me apaixonei pelo que ele tem de mais profundo”. Embora ela niio gostasse de muita coisa que ele fazia, amava a pessoa como um todo que estava por tras de seus atos e optou por “comprar 0 pacote”. Nas palavras do terapeuta que a atendia, “embora o comportamento do marido nao fosse provavelmente mudar ja- mais, ela podia reconhecer e aceitar suas imperfeicées e ainda assim amé-lo pelo que ele tinha dentro de si”. O segredo constrangedor é que muitos de nds somos relu- tantes em perdoar. Nutrimos magoas porque elas fazem com que nos sintamos moralmente superiores. Nio conceder o per- dio nos d4 uma sensagio de poder, frequentemente de poder sobre alguém que, se nio for assim, vai nos fazer sentir impoten- tes. O unico poder que temos sobre eles é 0 de permanecermos com raiva deles. De alguma forma, gostamos do papel de sermos a parte ofendida, aquela que continua sofrendo. O Livro do Deuteronémio, na Biblia, faz uma distingSo entre o assassinato, que deve ser severamente punido, e 0 homicidio involuntirio, que é tratado com menor rigor. Como saber, no entanto, se um ferimento fatal foi causado deliberada ou acidentalmente? O Deuterondmio diz que (Deut. 4:42) se a pessoa que sofreu o ferimento nfo tiver hostilizado a outra nos dois ou trés dias an- teriores, pode-se assumir que foi um acidente. Comentando esse versiculo, os sabios do Talmuid oferecem um enfoque psicolégico fascinante. Dizem que a duracio de uma querela, na vida normal, é de dois ou trés dias. Se uma pessoa 0 fere ou ofende, vocé tem o direito de ficar zangado com ela du- rante esse tempo. (Estamos aqui falando de discuss6es rotineiras e de malentendidos, nio de ofensas maiores.) Se os sentimentos de‘amargura se estendem pelo quarto dia é porque vocé est que- 91

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