Você está na página 1de 2

TRANS OU JUNKIE?

1 Por Beatriz Preciado

Assim esto as coisas, preciso fazer-lhes frente: se no aceito definir-me como transexual, como disfrico de gnero, ento deverei admitir que estou viciado (enganchando) em testosterona Quando um corpo abandona as prticas que a sociedade em que vive autoriza como masculino e feminino, desliza progressivamente em direo a patologia. Essas so as opes biopolticas que me oferecem: ou me declaro transexual, ou me declaro drogada e psictica. No estadual atual das coisas parece mais prudente declarar-se transexual e deixar que a medicina acredite que pode propor-me uma cura satisfatria ao meu transtorno de identidade de gnero. Neste caso deverei aceitar que nasci num corpo com o qual no me identifico, declarar no gostar do meu bio-corpo, meu sexo, minha forma de chegar ao orgasmo. Ser necessrio reescrever a minha histria, modificar qualquer elemento que pertena a uma narrao feminina. Teria que distribuir uma boa srie de mentiras bem calculadas: no gosto das Barbies, nunca brinquei de bonecas, no gosto dos meus peitos e da minha vagina, minha nica maneira de sentir orgasmo com dildo. Se trata, em definitivo, de declarar-me enfermo mental, confirmando assim os critrios fixados pela DMS IV, Manual de Diagnstico de Doenas Mentais da Organizao Mundial da Sade, no qual a transexualidade aparece como doena mental junto com o exibicionismo, o fetichismo, o frotteurismo, o masoquismo, o sadismo, o travestismo e o voyeurismo. Se no aceito esta classificao mdica, ento entro, clara e definitivamente, no territrio irrecupervel das psicoses. Ou melhor, seria preciso dizer que devo escolher entre duas psicoses: em uma (transexualidade) a testosterona aparece como frmaco; em outra (adiccin), a testosterona acabada por ser a substncia cuja dependncia deve ser curada por outros meios. Estou numa trama poltica: o problema que essa emboscada tem a forma de minha subjetividade, o meu prprio corpo. Como podemos ter entregue ao Estado a gesto do desejo, da fantasia sexual, do sentido de habitar ou no o corpo prprio? Ou deveramos dizer o corpo-prprio-do-Estado? Se me administro doses de testosterona, correndo o risco de desenvolver pelo facial, de ver minhas voz ficar cada vez mais grossa, ou de aumentar o tamanho de meu clitris sem pensar em
1

Traduzido a partir de: PRECIADO, BEATRIZ. TESTO YONQUI. ESPASA. 2008, p. 173-4.

viver social e politicamente identificando-me como homem, necessariamente estou louca. No poderei ir diretamente farmcia buscar minhas doses de Testogel, terei que pedir a D. para traficar umas duas caixas de Londres ou terei que compra-las na expressdrogstore.com ou no mercado negro do esporte e aceitar aquilo que me darem. Se possvel, testosterona fabricada na Europa ocidental, no uma dessas variaes sintetizadas da Europa do Leste para os esportistas de elite ou para os fisiculturistas e que poderiam me provocar taquicardias por vrios dias. Prefiro no pensar nisto. Esta semana vou adiar a dose. No me administrarei at o prximo quarta.

Você também pode gostar