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SIDNEY CHALHOUB UTSGES DA LIBERDADE: uma historia das iltimas décadas da escravidgo na Corte. Tege apresentada ago curs so de doutorado em histo~ ria da Universidade Esta~ dual de Campinas = como parte dos requisitos para a obtengdo do titulo de Doutor em Histéria. Orientador: Professor Dr. ROBERT U. SLENES. UNIUERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS Institute de Filosofia @ Ciéncias Humanas Departamento de Historia Campinas 1989 lOTECA CENTRAL vA 10718/BC Para meus pais, Nabih @ Ermelinda: por tudo. Para meus avés. Norival « Ilka: porque suas histérias sempre emba— laram meu interesze pela historia. AGRADECIMENTOS: A maior parte da pesquisa que dau cricem a esta tesa foi realizada na Arquivo do Primeiro Tribunal do Juri da cidade do Rio de Janeiro (APTI? @ no Arquivo Nacional (AN). No APTI. deve’ agradecer primeiramente ao juiz presidente da tribunal. Dr. Carlos Auguste Lopes Filho, que me concedeu a autorizacdo para pasquisar os autos criminais 14 arquivades. OG escrivée Luiz da Costa Guimaraes @ os funciondrios Ailton Alves de Mello « Cicero Hébraga Gales fizeram o possivel para me proporcionar condi gées minimas de trabalho no juiri. No AN, foram tantas as pessoas que me atenderam, e@ que se desdobraram para localizar meus pedides, que seria impossivel agradect-las nominalmente. Registre winha gratidae a todos com uma mengdo henrosat toda uma serasio de historiadares que tem passado pela sala de consulta do AN nes Wltimos anes saberd reconhecer @ que deve ao conhecimenta e ao profissionalismo de Eliseu de Aradio Lima, o "Sau" Eliseu. Ne capitulo dog agradecimentos 20s Ieiteres critices, a lista poderia ser muito longa. Desculpando-me antecipadamanta pelas omisses, agradeso acs amigos que leram @ comentaram artigos e verstes preliminares de capitulos: Michael Hall, Edgar de Decca, Maria Stella Bresciani ¢ Luiz Marques estdo entre eles. Maria Clementina Pereira Cunha leu = comentou a tese inteira, incentivou sempre, riu da tese, as vezes riudo autor «, sem saber, ajudou assim a manter o meu humor --e @ humor da texto-~ em oniveis razodveis mesmo nos momentos mais dificeis da trajetéria. Duss outras amigas continuam a ser para mim pontos necessérios de referéncia, e sempre acodem a meus pedides de gocorro intelectual: Gladys Ribeiro e Martha Esteves. Por mais que eu tente, nfd consigo pensar esta tase come um rebento individual, Posso agsumir individualmente a responsabili- dade pelos seus erros, pio pelos seus acertos, Desde o inicio, foi essencial a convivéncia intelectual com os companheires da linha de pesquisa sobre escraviddo no departamento de histéria da UNICAMP. Eu era um neéfito no assunte, e de repente me vi cercado por vérios pesquisadores experientes, com muitos anos de trabalho sobre a histéria da escravidéo. Célia Azevedo e Leila Algranti leram ¢ comentaram comigo parte do texto. Rebecca Scott visitou o departamento em 1986, -ministrou um seminario importante, @ me ajudou no precesso de definicko do tema. Peter Eisenberg lia sempre meus textos, fazia seus comentdrios por escrita, e depois repassava camigso os textos @« os comentdrios. Suas cartas comantériogs estiveram sempre comigo, e@ me ajudaram inclusive no esforsa final de revisfo, Silvia Lara fei, nos iltimos anos, uma interlocutera constante. Sua contribuicéo néo estd neste ou naquele ponte espacifico do texte, mas na propria maneira de conceber todo o problema. Como sempre, cla terd suas er{ticas e discordincias om relagio a esta versio final, mas eu rnéo teria chegado até aqui sem estas criticas ¢ discordéncias ©, certamante, precisarei delas para ir adiante. Desta var talver seja maiz facil agradecer a Robert Slenes, ma orientador em duas teases @ ac longo de mais de oito anos. Seria desnecessdrio dizer que o disc{pulo aproveiteu ao maxima todo © conhecimenta e a erudigéa do mestre a respeito do tema do trabalho. Seria desnecessério, porque € ébvio, © ainda seria pouco. 0 que agradeco ao Bob é aquilo que um discipulo deve a0 verdadeire mestre: obrigado por ma ter ensinada o seu off{cic, e 2 waior ambicéo que tenho em relacdo a esta tese é que ela estesa & altura de seus ensinamentos. A familia me brindou com @ apoie incandicienal de sempre. Quanto & Sandra... Bem, 0 que dizer? §é voce conhece "a cutra histéria" de duaz tezes, @ voc soube lidar com isso com uma generosidade e elegincia impressionantes. Nos \Wltimes meses, quando o cansago chegou a abalar a minha garra habitual, foi vec quem me manteve em pa. Agradeco ainda ac CNPq pela ajuda financeira que viabilizou = pesquisa num perfodo em que as autoridades estaduais em 3F pareciam seriamente empenhadas em dastrogar a universidade. Infelizmente, 9 CNPq desistiu de prestar seu auxflio na rete final; felizmente, eu J estava embalado o suficientes para gquir terminar o texto. Finalmente, devo um obrigado aes meus alunos na UNICAMP: aqueles dentre eles que se aventurarem pelas paginas sue se seguem certamente lerio agora muitas coisas que ouviram antes. Maz néo lerfo agora exatamente aquilo que cuviram antes, = isto porque tive a sorte de encontra-los no meio do caminho. Rig de Janeiro, margo de 1989. RESUMOs O objetivo da tese 4 contar uma histéria do processo de aboligto da escraviddéa na Corte. A narrativa se tece a partir da idéia de que € possival entender aspectos dest= processo através da recuperacts da diferentes interpretacdes ou visdes de cativei-~ roe de liberdade existentes no perfode, assim como das lutas das personagens histéricas produtoras destas diferentes interpre taghes ou visées. G primeira capftulo sborda © problema daz percepctes @ das atitudes dos prépricg escravos diante daz situagtes de transferancia de sua propriadade. ( argumento proposte @ 0 de que havia Vistes escravas da escravidéo que transformavam as iransacées de compra @ venda de negros em situagées muite mais complexas do que simples trocas de mercado. © segundo capitulo & uma andlise da ideologia da alforria e suas transformagées na Gorte na segunda metade do século XIX. Propée-se aqui uma reinterpretacdo da lei de 28 de setembro de 1871: em algumas de suas disposicde: mais importantes, como em relagio ao pecdlio dos escravos ¢ ao direito 4 alforria por indentzacéo de preco, a lei ntow o reconheciments legal de uma série do ventre livre repr de direitos que os catives vinham adquirinds pelo costume, @ a aceitacto de alguns doz objetivos das lutas dos. negroes. ultimo capitulo trata da “cidade negra": os escravos, libertos e nearoz livres pobres do Rio institutram ac lenge do século XIX uma cidade arredia @ alternativa, possuidora de suas préprias racio~ nalidades © mowimentos, © cujo sentido fundamental foi fazer desmanchar a instituicto da ascravidido na Corte. SUMMARY: This digsertation is a history of the pracess of the zbolition of slavery in the city of Rio. The text is built on the idea that it is possible to understand important aspects of this historical process through the reconstruction of the Si fferent interpretations or Visions of slavery and freedom which existed in the period, as well as through the investigation of the histerical struggles of the people whe produced such interpretations or visions. The first chapter deals with the problem of the slaves! own perceptions and attitudes regarding property transactions which invelved the selling af themselves. My argument ig that these transactions became increasingly complicated throughout the 13th century due to the pressures and expectations spelled out by the Slaves. The second chapter analuzes the ideology of manumission and its changes in Rio in the last decades of slavery. I alge propose a reinterpretation of the Free Girth Law of 1871: such las was in some essential aspects the legal recognition of a series of rights that slaves had been gradually acquiring in their daily struggles under bondages that ig, in 1@71 the ingti- tutional framework of society was somawhat enlarged in order to encompass customary rights slaves had been seeking and actually obtaining in everyday social relations. The third chapter deals with the “black city that is, blacks transformed the urban environment in the Imperial Court inte an ensemble of meaninas and actions which, independently ar not of the intentions of the historical agents, led to the gradual demise of slavery. SUMARIO: Introducdo: Zadig 2 a Historia. Kotas a Introdugda. | Capitulo I: NegScios da escravidado. 4. Inquérito sobre uma sublevagéo de escraves. 2. FiceGes do direito e da histéria. %. Veludo © os negécios da escravidéo. 4. Nesécios pelo avesso. 5. Castigos © aventuras: as vidas de Bréulic « Sera fim. 6. Gs irmfos Carlos @ Ciriacor mais contusdo ne loja de Veludo. 7. Epflogo. finexo ac Capitule I. Notas ao Capitulo I. Capitulo Il: Vises da liberdade. 3. BONS DIAS: 2. Vida de peteca: entre a propriadade @ a 1i- berdade. 3. Sedutoras @ avarentos. 4. Charadas escravistas. 5. Atos solenes. 6. Cenas do cotidianc. 7. 1871: az prostitutas @ 0 significado da lei. &. G retorna ingléria de José Moreira Veludo. Notas ac capitule IT. pas. ar 69 92 188 412 125 131 132 142 151 1rd 187 226 235 255 Cap{tulo II: Cenas da cidade neora. ie De Bonifécio a Pancrdcio: a concluséo do capitula anterior. 2. Um "objeto" grauissimo: "a sesuranca a guranga". 3. "Profundo abalo em nossa sociedade". 4. & cidade esconderijo. 5. OQ esconderijo na cidade: of cortices « Jiberdades Netas ao capitulo TIT. Epilogo: A despedida de Zadig, # breves considera- gties sobre o centenirio da Abolicto. Fontes @ Bibliografia. I, Fontes manuscritas. Il. Fontes impressas citadas. Ill. Bibliografia citada. Indice Gnomastica. 268 286 2e4 33 358 381 a94 402 40s 47 419 425 INTRODUGAO: Zadig e a histéria. Yadis, 9 sébio da Babildnia que protagoniza go livra de Voltaire --intitulada Zadig ou o Destino, publicado pela primeira i $ vez em 1747 —-, estava decepcionado com seu casamente @ procurou #@ consolar como estudo da natureza, Secunda ele, ninguém poderia ser mais feliz do que “um fildéscfo que 1@ 0 grande livro aberta por Deus diante das nossos olhos". Fascinado por estas idéias, @ como a esposa se tornara mesmo “dificil de aturar’, o sébio recolheu-se a uma casa de campo @ nfo se ocupou, por exemplo, em “calcular quantas polegadas de dgua correm por segundo sob os arcos de uma ponte, ou se no més do rato cai uma linha cdbica de chuva a wais que na més do carneiro". Tais cdlculos nfa o cativavams o que Lhe interessava sobretudo era oo astudo das propriedades dos animais @ das plantas. Zadig acabou adquirindo tal sagacidade, que consaguia apontar "mil diferencas onde os outros homens viam sé uniformidade". 0 mozo entrou logo em apures por causa disso. Carte dia, Passeava ona orla de um bosque quando wiu aproximares-se, esbaforides, um eunuco da rainha e vérios oficiais. Os homens Pareciam 4 procura de alguma preciosidade perdida. Com efeito, o eunuco Perguntou a Zadig s# ele nfo havia visto o cachorre da rainha, que estava desaparecide: este rezpondeu-lhe com uma sorregdo: tratava-se de uma cadela, e@ néo de um cachorro, © Prossequiut "é uma cachorrinha de caca que dew cria ha pouco tempos wanqueia da pata dianteira esquerda @ tem orelhas muito compridas". “Uiueu entio?", tornou a perguntar, impacients, o eunuce. "Néo", respondeu Zadig, “nunca a vi @ nem mesmo sabia que & rainha livesse uma cadela". Justamante naquela ocasige, por um desses caprichas do destina, também c mais belo cavalo da rei fugira para as campinus da Babilénia. (ie perseguidores do cavalo, t#o esbaforidos quanta os da cadela, encontraram=se com Zadia 6 perauntaram-the ge nto “dio cawale Vira passer ¢ animal, 0 sébio respondeu. explicando que melhor galopa..< tem cinco pis da altura eos cascos muito Pequencs; sua cauda mede trés pds de compriments ¢ as rodelas de seu frei séo de oure de vinte e trés quilates: usa ferraduras de prata ge onze dengrios". “Cue caminho tomou ele?", persuntou entdo um dos oficiaig do rei. “Mfo sei", respondeu Zadia, "nao o vi nem nunca ouvi falar nele" Zadig foi preso, suspeito de ter roubado a cadela da rainta @ © savele do rei. Qs animais, todavia, apareceram logo em Seguida, livrando-se assim © moga da acusacto, Apesar disso, os duizes aplicaram-ihe uma wulta “por dizer que no vira o que tinha visto". Paga a mults, os magistrados finalmante resclueram ouvir ag explicagées do sébio da BabilSnia: "juro-vos... qua nunca vi a respeitdvel cadela da rainha, nem o ssarado cavalo do rei dos reis. Aqui asta 9 que ma sucedeur andava eu passeando pelo pequeno bosque onde depois encontrei o venerdvel eunuco © 2 muito ilustre monteiro-mor. Percebi na areia pegadas de um animal, @ facilwente concluf serem az de um cdo. Leves e longos sulces, Visiveis nas ondulagtes da areia entre og vestisios das patas, revelaran-me tratar—se de uma cadela com as tetas pendentes, ¢ que, portante, devia ter dado cria poucos dias antes. Outros traces em sentido diferente, sempre marcando a superficie da areia ao lado das patas dianteiras, acusavam ter la orelhas muito grandes? © coma aldm disso notei sue as impressties de uma das patas eram menos Tundas que das outras trés, deduzi que = vadela da nossa auay rainha manquejava um pouco...". 2 Em seguida, Zadig explicou aos juizes admirades como, usando o mesmo método, fora capaz de descrever o cavalo da rei sem t#-to jamais visto. © fascinio do Zadig de Voltaire vem resistinds ac tempo. Em G Nome da Rosa, de Umberto Eco, a sabederia de Guilherme de Baskerville etd firmamante enraizada em sua capacidade de “recontecer os tragos com que nos fala a mundo coma um grande Lira’ Logo no inicio da narrativa, Guilherme oferece sua primeira demonstracéo de argicia através da aplicacéo do métoda se Zadig. Ele @ Adso, pouco antes de adentrarem a abadia, se encontraram com um agitado grupo de monges © dea famulos. Feitos os cumprimantos de pra: Guilherme agradeceu ao despenseire a gentileza de ter interrcmpids a persesuicde av cavalo do abade Por sua causa, Surpreso, o despenseiro quis saber da visitante quando havia visto o animal. Com um ar divertide, Guilherme respondau ac homem que née vireo cavale, ¢ prosseguiu: "é evidente que andais 4 procura de Brunello, @ cavalo favorito do Abade, o melhor salopador de vossa escuderia, de pélo preta, cinco pés de altura, de cauda guntuosa, de casco pequenc e redon— do mas de galope bastante regulary cabeca diminuts, orelhas finas © olhos grandes. Foi para 4 direita, Os monses 2 os famulos zeguiram na directo apontada por ecapturaram o animal, © retornaram para a abadia Guilherme, logo satisfeitos como sucesso da operagda © um tants atordoadas com a que haviah presenciado. Guilherme explicou depois a Adso como descabrira tanta coisa a reaspeite do cavalo de abade sem jamais ter posto nele os olhes. Assim como no case de Zadig eo cavale a cadela sumides ma Gabilénia, © sdbie retratado por Umberto Eco se valeu de uma observacto cuidadosa day pegadas deixadas no solo, doz galhos de drvore partides, dos pélos grudadoz am egpinhos, etc. Q discfrulo, pordm, née compreendia como o mestre pudera saber que o animal tinha “cabeca diminuta, arelhas finas @ olhos grandes". Cada vez mais orgulhoso de sus perspicdcia, Guilherme explicou a fidso que realmente ndo sabia se o cavalo tinha tais caracter{sticas, “mas com certeza os monges acreditam piamente niss Esta descrigéo condizia com os padrées da beleza de um cavalo segundo Isidore de Sevilha e, portanto, @ cavalo favorito de um douto beneditine certamente teria estas caracterfsticas ou, © que naste contexto significa a mesma coisa, todos no mosteira acreditariam que o animal possufa tais caracterfsticas. Um vaciocinio semelhante fez com que Guilherme adivinhasse que o savalo favorite do abade sé poderia se chamar Brunello. Q Zadia de Voltaire parecia preccupado em aplicar sau método Principalmente ao @studo das "propriedades dos animais © daz plantas"; Umberto Eco sugera que procedimentos setmelhantes podem ser utilizades na andlize de contextes culturais. Como comentou Adso a respeito de Guilherme de Saskerville: "Assim era meu mestre. Sabia ler nfo apenas no grande livre da ratureza, mas também np modo como of monges liam os livros da eeeritura, Bensavam através ‘deles, Dote que, come veremas, lhe seria bastante util nos dias que se sequiriam". 5 QO wdétode de Zadig tem encontrada seus adeptos também entre os historiadores. Nie 4 outro, por exemplo, o pracedimenta de Robert Darnton em O Grande Massacre de Gatos. Partindo de documentos inicialments "opacos" -~algo semelhante aos rastros ou Pistas analisados por Zadig e Guilherme--, Darnton procura ter acasco 2 “um Universo mental estranho”, a significados que lhe ravelem come pessoas de outre tempo e sociedade pensavam aspectos de au Prépria mundo. Gaui tudo comeca com a premissa de que “a expressdo individual ocorre dentro de um idioma geral, de que aprendemos a classificar. ar sensagdes ¢ a entender as coisas pensanda dentro de uma estrutura fornecida por nossa cultura’. o historiador, portante, através de um esforco minuciogo de decodificagio @ cantextualizacto de documentes, poda chesar a descobrir a “dimensfo gocial do pensaments". Assim, torna-se possivel aprender muito sobre a historia cultural francesa do Século MUIII se conseguimos entender o porqué de um grupo de artestos parisianses achar deveras hilariante um episédio aparentements tfo sem grasa quanto uma carnificina de gatos. Podemas lembrar também da forma sistemdtica com que o historiador Carlo Ginzburg persegue e reconstitui as experiancias de leitura de moleiro Menocchio come uma forma de acesso a 4 aspectos da cultura popular na norte da Itdlia no séeulo KUT. 0 Queijo e os Vermes aparece. na Itdlia em 1976; em 1980, exatamente o ano da primeira adi¢do italiana de G Nome da Rosa, Gingburs publicou um artigo sobre os métodge da histéria na revista inglesa History Workshop ~~o artigo intitula-se "Morelli, Freud and Sherlock Holmes:, Clues and Scientific Method" <"Pistas s° @ Método Cienti fica"). ~~Indicios® Mais do que uma reflexdéo e descrig&o pormancrizadas de sua prépria pratica como historiador, o artigo de Ginzburg tem o objetivo de digcutir o suraimento, em fins do século NIX, de um paradigma de construgde do conhecimento mas ciéncias humanas que busca ir além do eterno contrastar esterilizante entre oo “vacional” @ o “irracional", o "particular" @ o “geral", a atitude "fragmentdria" @ a "holistica", ete. Morelli foi um eritico de arte do século passado que criou um controvertido método para a identificac&a correta da autoria de quadros da velbos mestres da pintura. Segundo Morelli, os critices deveriam abandonar a convengdo de que a mangira mais segura de distinguir 2 obra de um mestre da de seus imitsdores era concentrar a andlise nas caractaristicas mais importantes daz pinturas do mestre. Por exemplo, a melhor forma de diztinguir um verdadeiro Leonardo da Uinci de uma imitacéo da Leonardo nfo era centrar tedo © asforso na observaste do sorriso das mulheres nos quadros; este seria um aspecto crucial, @ qualquer impostor mais esperto nfo se deixaria pegar neste ponte. 0 procedimento mais apropriads, entéo, na opinige de Morelli, era focalizar os detalhes & primeira Vista mais irrelevantes na escola do artista em questac —-podiam ser as unhas, os lébuloz daz orelhas, ou qualquer outro aspects nfo explicitamante valorizado naquele contexto--, detalhes que os mestres certamente teriam sua prépria Waneira de abordar, mas aos quais os imitadoras provavelmante nda prestariam tanta atengdo. Numa téenica de cruzamento de fontes semelhante & utilizada em G Queijo @ os Vermes, Ginzburg prova que as idéias de Morelli seduziram pessoas tdo diferentes quante Freud @ Arthur Conan Doyle, © criador das aventurag detetivescas de Sherlock Holme: Freud, num artigo de 1914, comantou assim a méteds de Morelli: "Parece-me que seu metodo de investigacdo tem estreita relacdo com a técnica da pgicandlise que também estd acostumada a adivinhar coisas secretas e@ ocultas a partir de aspectos menosprezades ou inebservades, do monte de Lixo, por assim dizer. 6 de nossas observagtas". Segundo Ginzburg, estes tras casos estamos diante do chamado "paradigma conjectural", ou seja, da proposia de criagio de um método interpretative no qual detalhes aparentemente arginais = irrelavantes sSo formas exsenciais de acesso a uma determinada realidader sic tais detalhes que podem dar a chave para redes de significades sociais ¢ psicelégicos wais profundes, inacessiveis por outros métedos. Zadig foi parar na prisdca porque os juizes da Babilénia de inicio nfo acreditaram que ele pudesse ter descrite tsa detalhadamante a cadela da rainha eo cavalo do rei sem t&-loz jamaiz visto. Para os Juizes, assim como para o eunuca e 9 monteire-mor, parecia inconcebivel que alouém. legrasse saber tanta coisa a respeito dos animais sem ter tide a experi€ncia de encontrd~los cars a cara. O sdbio, porém, consaguiu explicar sos juizes como, a partir dos rastros ou dos vestigios deixados pelos animais, ele fora capaz de construir descrigtes verossimais da eadela da rainha @ do cavalo do rei. Na verdade, Zadig articulou as pistas disponiveis no sentido de oferecer ao eunuco @ ao menteiro-mar visties possiveis dos animais, passiveis de astarem corretas dentro de seus limites ¢ de seu ponte de vista, paren mais ou menos corretas dependendo da acuidade do observador. Assim como Zadig @ Guilherme de Baskerville nunca haviam wisto os animais sue descraveram, Ginzburg © Darnten jamais se depararam com os fatos histéricos ac dobrarem uma esquina mais ou menos deserta da zrauivo, Néo, os fatos nunca estiveram 14, de tocaia, prontos para tomar de agsalto as piéginas dos historiadores; foi preciso investigar seus ragtros --os documantos-- @ constru{-los a partir dos interesses especificos de cada autor e@ da imaginacdo controlada caracterfstica da disciplina histérica. Ginzbura utilizou um-método semelhante 20 de Zadig para desvendar aspects da cultura popular na Itdlia do século UI em 0 Queijo e os Vermes =, no artigo de 1930, para discutir suestées epistemolégicas comune as chawadaz ciéncias humanass Darnton extava empenhado em entender episédion da historia cultural francesa no Antico Regime. Em qualquer dos casos, 9 método utilizado ¢ também una tomada de posicio a respeito do objetive do esforca de produc&o do conhecimente. Ou seja, a explicitagdo de um métoda traz em seu bojo uma concerpaéo a respeito de como construir o objeto a ser estudado. Dapendende das opcées tomadas a este nivel, @ objetive do estore intelectual passa a ser a produgio de uma visto da “cadela da rainha", "da cultura popular do norte da Ttdlia no sécule XVI", etc. "no qualquer visio da cadela da rainha ou da cultura 9 Popular, mas aquela wisdo que a estudiesa far capaz de producir a vartir de suas escolhas tedricas @ metodologicas. Nesta tese, a cadela da rainha 4 © procesza histdrico de abolicdo da escravidéo ma Corte. Ao escrever apenas isto, todavia, jd percebo que hé uma lacuna na fornia coma a discussda vem sendo conduzida até aqui. O que falta ao méteda de Zadig, mesmo am suas formulagées maiz racentes em Ginzburg e Darnton, ¢ 2 movimento da histéria, a preecupacto em propor una teoria explicativa das mudangas historicas. Q sdbio da Babilsnia foi levado 3 investigar as propriedades dos animais @ das plantas porque néo lhe era wais possivel aturar B esposa. J4 o trauma de origem desta tese, aquile que me levou a ascrevé-la, & de natureza completamente diversa. Em Trabalho, Lar ¢@ Gotequim, um estude sobre cultura popular na cidade do Rio de Janeiro no inicia do sécule HH, @ utilizando fontas em grande parte semelhantes 4: que utilize nesta texto, encontrei extrema dificuldade em integrar o material bastante rico coletado na z Pesquisa a uma visdo articulada do processo histérico da épaca. Incapaz de abordar criativamente a questgo, porem i intuitivamants cético quante aos esquemaz historiografices tradicionalmente postulados para o perfodo, acredito aue tenha terminado aquele livra num impasse. Por um lado, os processo criminais analisados se revelaram extremamente uteis no sentido de possibilitar uma "“descricko le densa" --lembrando Clifford Geertz, uma leitura que me foi g bastante importante na gcasiao ~ de aspectos da cultura popular carioca no inicio daste século. Isto é espero ter conzeguido reconstruir entgo, mesma que muito parcialmente, alguns aspects significatives das fortias de sentir, pensar @ agir da classe Arabelhadora carioca da época, Por outro lade, nao foi possiuel higtoricizar of sistemas d@ valores, as crengas e as alternativas de conduta tdo minuciosamente descritas na documentaggo coligida. Sendo assim, naquele momento, sé conzegui tratar do problema das mudangas histéricas recorrendo de forma pouco erf{tica ao “caldo” de culture historiogrdfica dispontvel: aquele era um livre sobre a “implantacéo de uma ordem burguesa na cidade do Rio de Janeiro"; gobre o “pracesgoa de constituigdo piena da ordem capitalista" na capitals ou ainda sobre “a transicéo do trabalho escravo para o trabalho livre no Brasil". Ndo pude ir muito alan da simples repetigdo destas frases: slags entravam onde precisaua estar a explicagdo histérica, no lugar onde precisava figurar uma teoria convincenta a respeito da “légica da mudanca” naquela sociedad, A construgde de uma tal teoria é o’objete desta tesa; @ a cadela da rainha que procuraremos "ver", © cujos movimentos Pelo bosque da BabilSnia tentaremos seguir. Serd sempre uma visto da cadela e de seus movimentoss uma visio, porém, abjetiva e@ verdadeira enquante tal. A €nfase na chamada "transigdo" da escravidde ‘ou do escravisme, ou do moda de pradugéo escravista) ao trabalho livre cou & ordem burguesa> @ problemética porque passa a nocds de lingaridade e de pravisibilidade de sentido ne movimento da historia. Gu seja, postulands uma teoria do reflexc mais ou menos a ornamentada pelo politico @ pelo ideolaaico, 9 que se diz é que 2 decadencia ea extinggés da escravidie sa explicam om dltina andlise a partir de légica da producde @ do mercado. Trata-se, portanto, por mais variadas que sejam az nuancas, da viganeia da metdfors base-superestrutura, da idéia, freatientementa geradora da reducionismos grotescos, de "determinacio am Gltima instancia pelo econamico", Em outras palavras, trata-se da postulate de uma espécia de exterioridade determinants dos rumos da histdria, coma se houvesse um destina histérico demiurga de seu destino — @ das intenstes = das lutas dos propricos agentes sociais. Talvez caita frecorrer aqui a intuisto de um poeta: "34 se For wodificaram muitas nogGes relativas ao movimento: hd de se reconhacer, oz PoUces, que aquilo a que chamamos destino sai de dentro dos homens em vez de entrar neles". Prefiro, entéo, falar em "processo histérica", ndc am “transicto", porque o objetivo do esforco aqui, pelo manos em parte, recuperar indeterminacdo, a imprevigibilidade dos acontecimentos, esforse aste que ¢ essencial se quisermos compreender adequadamente o sentido que as personagens histéricas de outra dpoca atribufam as 18 suas préprias lutaz Ao iniciar a longs pesquisa que iria desembocar neste texto, Procurei administrar da melhor maneira possivel o trauma que ertava ona arigem do esfarce. Oe infcio, & preciso reconhecer francamente que, como alias scorre com freqiignciz, © resultado 12 final que ora se apresents ao leiter @ also bastante divers duquilo que 9 autor havia imaginado 14 no ponto de partida. Para comegar, nfo havia nenhuma decis€o préyia em escrever uma histéria do process de aboligdo da escraviddo na Corte. La, nas erigens, hd quaze cinco anos, axistia um aprendiz de historiador. sinco anos mais jovem, com apenas duas idéias na cabec Primeivo, 14 estava a idéia traumatica geral, meio nebulosa, que sonsistia em dar continuidade, como recua de alqumas décadas, aos seus estudos sobre cultura popular na cidade do Ria de Janeiro: © “recuo de algunas décadas" pareceu aquele jovem aprendiz uma maneira infalivel de garantir que, dasta feita, seria possfvel apreendar a "“légica da mudanca” na sociedade estudada. A segunda iddia era muite especifica, resultado de uma circunsténcia: era preciso aproveitar a aportunidade, que havia surgide na ocasido, de pasquisar os processos criminaiz quardados ho Arquivo do Priweiro Tribunal do Juri da cidade do Rio tratava~se de uma documentagdée rica @ Volumosa, com material a partir da década de 1970. O procedimants inicial foi, digames, ambiciozo ¢ aleatorio estava decidido a pesquisar todos os pracessos criminais que ancontrasse nos masos impares do arquivo do jdrd. Desempenhava- minha tarefa cabalistica de andlise dos impares com disciplina espartana: descia os macos daz estantes, abria-os, espanava o pd, esmagava implacavelments as traqas @ baratas que encontrava pelo caminhe, @ fichava os processos conforme eles iam aparecendo. Come ainda no sabia bem acnde queria chegar. of dias no arquivo @ram longos @ sonolentos. Mas fui percebends, sox poucos, que algumas histériaz sacudiam a letargia: Genuine, Addo Africans, 13 Juvéncio, Erdulio... Tedos negros, vdrios escravos. Resolvi antéo dar uma olhada também rox mages pares. Ld estavam o escravo Bonifacio @ seus parceiros, a quitandeira Maria de So Pedro, a Preta Francelina... Eram processos incriveis, pretagonizados por Personagens densaz 2 enmolventes, © que me obrigaram a centar a sua historia. Surgira, entda, um norte para a pesquisa. Passei a abrir todas os maces referentes 4s d&cadas de 1874 © 1880, @ decidi fichar dai em diante apenas os processos que comprovadamente siwolvessem negros --fossem livres ou escraves, aparecessem eles ma condiséo de réus. ofendidas ou testemunhas. Chaguei a ler qase 580 processos criminais no Arquivo do Frimeiro Tribunal do Juri, @ fichei minuciosamante 137 destes processes --sendo que cerea de T@ dos dossiés fichados néo envolvem comprovadamente nesros, jd que foram pesquisados ainda durante a estratésia ecultista de ler sé 0 que havia nos magos {mpares. Ficou loa evidente que nfo havia motivo para fazer qualquer distingdo muito rigida entre os casos que envolviam negros escraves & aquel: if que diziam respeito a negros libertos ou livres. Aa contrérie, as fantes confundiam, misturavam, carregavam de ambigllidade as gavetinhas cartesianas que o pesquisador procuraua inpingir 4 realidada. O trabalho se diracionava cada vez mais, como veremor logo adiante, para a tentative de compreensio do significado da liberdade para escravos e libertos, © era ébvio que a consecusio de tal objetivo dependia da recureragio mais sistemética da experiéncia histérics doz negros da Certe em aeral. A pesquisa ono juri me ocupou durante dois bens anos de 146 Julho de 1964 até meados de 1986. Por essa época, comacei a tatear um outro tipo de documantagéo --as agées civeis de liberdade, que se encgntram no Arquivo Hacional, @ que consisten em processes judiciais nos quais os escravos, através de seus curadores, “procuram conseguir a alforria a seus senhores pelos Wais variades motives. A historia se repeter Felicidade, Pompeu, Carlota, Desideria @ Joana, Christina... E a frase também: eram Processos incriveis, protagonizados por personasens densas ¢ enolventes, 2 que ma obrigaram a contar a sua higtéria. Trabalhei ono Arsuiva Nacional, em tempo integral, de julho de 1986 a fevereiro de 1987: fichei outros 78 procassos, referentes as décadas de 1860, 78 e 88, ates de liberdade na sua arande meioria, @ pesquisei pontualmente alsumas outras fontes. Paralelamente, procurei me familiarizar um pouca com os debates Politicos que resultariam na chawada lei do ventre livre. Agora, olhando para tris, entendo que foi acertada a decisdo de tentar superar o trauma de origem da tese com um maior adensamento @ variedade de fontes e um alargamento no perfode de tempo a ser abordade. & solugdo era essa, sem poder ser bem essa. be fate, hd um certe parentesco entre o meu raciocinio e aquele utilizado pelos jufzes da Babilénia ao tomarem a deliberagio imicial de encarcerar o jovem Zadig: o sébio nga podia ter descrite corretamente a cadela da rainha eo cavalo do rei sem té-los visto: eu nao conseguiria compreender as transformacder sociais na cidade do Rio no perfoda sem “wi-las" estampadas ono quintal owviu baruiho de berdeadas « gritos de Weludo entto para 1d -correu e wiu Usludo caida ono chio @ muites dos acusados dando-lhe pela sabega @ pelo corpo: entdo servindo-se o interrogade de wm pau curts que congigo levava deu em Veluda duas cacetadas no pescoco # nessa ccasifo intervinds o seixeiro a favor de Veludo, deu-lhe o interresado duas cacetadas © depois fugin para o quintal onde foi Preso". CAl16, 1177 arifa no original.> 9 relate de Constancio imprezsiona primeiramente pela windeia com sue o plano de ataque a VYeludo foi concebido © Sxecutado. Tude foi pensado com bastante antecedéncia e enuoluia um grands nimere de escravas, porém o sigilo pdde ser mantide ¢ o cowarciante foi surpreendido com a agressio. H4 ainda sutileras no plano que ngc aparecem no depoimento de Constincio. Estaua scombinads que alguns escravas que ficariam no quintal iriam derrubar um murs para provocar a repreens¥o de Uelude 32 justificar a infeio da pancadaria. Este muro derrubado iris servir também para a fuga em direcde & subdelegacia apts oo episédic, sendo que pelo menos o crisulo Gongalo tinha a surpreendante @sparanca de alcaniar a liberdade assentande Braga. (ALLS) Hao fica bem claro nos depoimentos se 9 miro afinal foi ou nfo para c chda, mas sabemos que os nears “fizeram sangue" ou “meteram a lenha" na vitima na ocaside prevista 2 com os instruwantos guardados especialmente para o evento: tudo acan- teceu quando Veludo foi tratar da perna de Tomé, @ a maioria doz escraves usou az achas de lenha que traziam escondidas. Seaunda varios depoimentos, © crioule Bonifacio se encarregou de dar o sinal do ataque @ & primeira pancada!” Houve ainda o cuidado de avitar que escravos suspeitos de fidelidade a Veludo, coma proprio Tomé @ 9 crioulo Jacinto, percebessem o que eztava por acontecer.(AIZG, A1199 Tanta precisic @ competancia na concepsio © execucia do plano € acompanhada = de Gustificativas taunlmente consistentes. Como vimos, para Consténcio o negociante era "muita mau" @ era preciso “sair do poder dele", enquanto Filomeno queria participar da combinacdo porque "Jd havia apanhade".CAlI73 He outros escraves que atribuem o remédio radical que resslueram aplicar centra Ueludo ao rigor do tratamenta que o nesociante dispensava 4s "pesas" que estavam a venda no seu estabelecimento. Mas no ¢ essa a unica justificativa que os catives apresentam para os seus ates, nem parece ser esse c mével essencial da decisdo de surrar aquele homem de negécios da Corte. Podemos dar a palavra ag mulate Bonifacio, baisno de Santo Amare, 35 anos 33 presumiveis, analfaheto, ganhador, filho de Banta e Mancel, identificado em vdérios depoimentos como um dos cabagas do movimento "que estanda em casa de José Moreira Veludo para ser vendido foi influide por todas os outros acima mancionados para entrar com eles na combinagdo que fizeram para esbordoar Veludo ¢ fazer sangue nele, 9 que, queriam os outros fazer para néo seguirem para uma fazenda para onde tinham de ir a mandado de um negociante de escravor por nome Bastes que ja of tinha ascelhidos: (sic.? tendo o interrogado raiva de seu Senhor por dar-lhe palmateadas entrou na combinagdés que a4 ectava acertada a mais (sic.? de oite dias". calisy Ppasar de afirmar em sou depoimento que foi "influfde" pelos outros negros na sua decisdo de participar da agressto a Veludo, Bonifacio prossegue descrevendo com detalhes as ates © confessa que partiu na linha de frente ao lado do eardo Francisco, também baianc, sendo que fora ele Bonifacio quem ders as prineiras cacetadas. Ele justifica sua atuagéo no movimento pela "raiva”™ que tinha do comerciante, mas explica que of outros foram movides pela recusa em serem vendidos para, uma fazends de café, 0 crioule cearense Goncalo, por exemplo, disse que "tendo ido para a casa de Valudo para ser vendida foi convidade por Filemeno, @ outros para se agsociar com eles para watarem Veludo para no irem pars a Fazenda de Café para onda tinham side vendides"s (M118) axplin~ cacdo semelhante & oferecida por Francisca, Filomeno, Joaquim, Benedito @ Juvancio. Ha escraves que manifestam ainda a intencdo 4 de “irem para a policia" apés darem as bordoadas, Has decla~ racées doz ezcraves, portanto, 9 que parece estar am jogo nic una fuga coletiva, uma tentativa dezses negroes de escapar de sua 34 condigde de catives, e sim a afirmagio de que se negavam radical- mente a seram vandidos para o interior. Para asses homens, a priséo parecia um mal menor do que % escravidio nas fazendas de cafe, Yodo 0 episédio suger, na verdade, que o atentade contra Yeluds havia sido o d1ltimo recursa disponivel a esses negros para inflwenciarem o rum que tomariam suas vidas dali por diante. Um exame da lista dox Vinte escravos que acabam senda incriminadas pelo relatério do delesado revela que treze deles eram baiancs haviam chegado do norte hd poucas semanas para = serem vendidos. (A113 @ Ai14) Nota-se também que entre esses baianos Lrés eram propriedade de Francisco Camfes -— entre eles o crioula Bonificio--, outros trés eram escravos de José Leone, mais tres eram excravos de Emiliano Moreira, @ havia ainda dois que perten- ciam @ UVicente Faria. Ou seja, o minimo que @ lf{cito imaginar que esse lote de negros continha pequenos grupos de cativos gue 890 3% se conheciam ha tempos por terem sido propriedade do senhor. Essa circunstancia talvex ajude a explicar o entrosamente @ 9 sigilo conseguides no moviments, senda rossivel que existis~ sem laces de solidariedade ou parentesco entre esses nesros que es motivassem & agdo. Seja qual for o sentiments de solidariedade qua esses escraves tenham experimentado entre si, o fate € que reagiram a uma situacfo na qual née lhes fora deixado qualquer espace d@ manobra. Como veremas detalhadamente mais adiante, era comum que of escraves exercessam alsuma forma de pressdo sabre seus genhoras no momento crucial de sua venda. fssas pressdes ou negociacties poderiam ter formas @ intensidades diferentes depen~ dendo de cada situacto especifica. E prowivel. contudo, qe tal 35 espace de sanobra fosge reduzido quase & nulidade quando o senhor encarregava um comerciante de escravos de realizar a venda. Bonifacio © seus companheiros vieram da Bahia @ de outras provine cias do norte para serem vendidos por um negociante préospero da Corte. Estava criada uma situacéo sobre a qual of negres pareciam ng ter qualquer controle, @ isto explica de certa forma a ati- dude dristica tomada contra Velude. Néo hd no episddio, no entanta, um alinhamento ou uma solidariedade automética dos escravos contra o comerciante, Os depoimentos mostram sue 9 movimento foi tecido pacientemente entre os negroes, com Bonifacio, Filomeno @ outros conversando © procurando o angajamenta de todos: o criowle Jofo contou que foi convidado por Filomena, Bartolomeu e Marcoss Conetancia foi canvencide por Bonifacio: (A117¥ Gongalo também foi atraide por Filomeno.sA118> Enfim, howve muito papo antes da acée, = foi preciso ter uma percepeéa mais ou menos clara de que fgo era possivel atingir a tedes, Alguns negros tentam diminuir sua culpa no inquérite afirwanda que, apesar de saberem de plano, no participaram ng espancamento da vitina. nae Prato Tomé, escra~ wo fiel de Uelude, © 0 maranhense Oderico, que s2 achava na loja para ser vendido, nfo pareciam suspeitar de nada, © ainda declan raram que lutaram contra seus parceiros para livrarem a abastado comerciante portusués dos apuros nog quais s@ encontrava, E ha ainda © cricule Jacinto: ele disse "que nfo soube de combine 4 de Veludo para qataren a alguma feita entre os pretos da ca: este, porque se soubesse teria contade a0 prete Tomé para KALL9 contar ac Senho: 36 No @ possivel saber quem ests narrando aquilo que acha que realmente viu acontecer @ quem estd conscientemente torcenda os fatos no sentido de atingir determinados resultados. De sualquer forma, a histéria vai se complicando, 2 de repente podemos nos deparar com “srmagées" -- algumas absurdamenta cémicas, sutras draméticas-- que nos lancam no bojo mesmo das tramas © experianciags de personagens de um outro tempo. Uelude ficou com Varias contusGes na cateca © pelo corpo, sendo seus ferimentos considerades sraves pelos médicos:(A115) no entanto, @ = prépria witima quem contrata um advogado para defender seus agres~ sores.(A1219 Na denincia, em dais de abril de 1872, 0 promotor piblico havia enquadrado os escraves na lei de 16 de junho de 1@35, © que os tornava suisitos 4 pena de morte caso fossem condenados no juri popular. Isto 4, havia um risco de perda total para o dono da casa de comisstes. Muitos contos de réi esiavam em jogo, @ Veludo age rdpidor no dis 15 de abril, portan— te quase un mas apés a agressdo, ele entra com uma patigdo na qual explica que "dois ou trés escravos" Lhe haviam ferido leven mente, @ solicita um exame de sanidada para comprovar sua afir- magéo. Os médicos fizeram um novo exame, pordm conclutram que os ferimentos haviam sido graves mesma, sendo que o paciente ainda neceszitava de uns daz dias para ficar racuperada. (al23> 0 juiz de direite ancarregado da promincia acho que a lei de 14 de junho de 1835 nfo ers aplicdvel, classificou o crime como ofensas fisicas graves e nfo como tentative de morte, e@ julgou procedente a denincia apenas contra sete dor vinta acusa~ dos, Veludo deve ter ficada aliviado, e dias depoiz entrou com licitands aluaré de soltura para os rdus que nto uma paeticto 3 havian sido pronunciados, Pelo manos a maior parte do capital 34 née corria mais perio. A estrategia da defesa para conseguir esse resultado foi simples: por um lado, houve uma certa orques~ tracts dos depoimentos de sumério, onda negociantes vizinhos de Yeludo @ mais o caixeire @ 9 guarda-liures deste declararsm Unanimemente que ndo podiam dizer “quais foram os pretes entre os acusados que tomaram parte no conflite"s (A122) par outro lado, hé & tantativa previsivel de destituir esses nearos escravos de quaisquer resquicios de consciéncia ou racionalidade. 0 sdvesado de defesa arcumenta que “milita em zeu favor wais de uma circunstancia. © especialmente oO embrutecimento de seus espiritos = falta absoluta de educagéaz -- males que sto provenientes de sua forgada condigdo da escravos, © aue, embotando-lhes a consciéncia do mérita e do deméri to, Thes diminud consideravelment= = a responsabilidade moral © a imputabilidude". (A123) E curioso notar que os escudeiros de Ueludo néo consesuem tampouco uma articulacdéc perfeita, Apesar de ter permanecida fiel a seu senhor durante teds © tempo -- declarando tanto no inquérite quanto no sumério que havia lutado contra os seus companheires de cativeire--, Tomé acebou sendc uma pedra no sapato do advesada de defesa, © negro permanscey fiel a eu serhor, mas dentro de sua prépria racionalidade. Ao contriric do que goztaria de ouvir © advogadg contratado por Weludo, Tomé afirma sempre que haviam sido muitos os agressores de seu senhor, que ficara cafde no cho apés a pancadas de Bonifacio, Francisco ¢ Marcos, sendo que “jd nesta ocaside havia um grande arupo de 38 pretes todos armados de paus em redor de seu senbor". Além das trés parceiros mencionados, o preto cita ainda os nomas de Lucio « Constdncio, 0 advogado procura contestar as declaragées de Tomé utilizando-se da prepria hostilidade qua os outros escravos pare~ ciam demonstrar contra ele: "“€ pelo curador foi cantestado dizen~ do que nfo é @xata a informagdée, porque o informante declara que nfo tinha convivéncia com geus parceiras que nfo gostavam dele". O preto sustentou suas dacluragdes. (A129 fA dltima cena dessa histéria ocorreu em 16 de Julho de 1872. 0 Juri popular entendau que Franciscs @ Filomeno eram inocentes, @ Uelude conseguiu assim salvar mais aloung de seus mil~réis. Bonifécie, Luiz, Marcos, Constincio @ Jogo da Deus foram condanades 2 "100 accites, trazenda dapois de as sofrer um ferro ac pescado por is meses". O cricylo Bonifacio, um desses escravos de “espirite embrutecide", coma julgava o prépric bacharel encarresado de sua defesa, admitiu abertamenta no Juri que dera as pancadas na vitima, utilizando para isso uma acha de lenha. Ele explicou mais uma vez que havia surrado Ueludo porque este “estava para Ihe pegar". Numa Ultima tentativa da livrar seus companheires dos ferros @ aqcites que estavam fatalmente por wir, Bonifacio declarou ainda que a= bordoadas haviaw sido dadas "por ele s4, @ que nfo viu mais ninguém dar", Dias depois, o negociante pediu a soltura dos dois ascravos absolvides, anexando os documentos que comprovavam que os ditos negroes lhe haviam zido entregues para serem vendidos. (A123 © 124) Ficgées do direito e da histéria. Meu primeire encontro com a histéria de Ueludo @ Bonifacio ocorreu ono arquive abafado @ poeirents de Primairo Tribunal do Juri da cidade do Rio de Janeiro. Pasteriorments, pude ler a noticia sobre a “sublevacdo" liderada por Bonifacio no Jornal do Comércio do dia 19 marco de 1672. Encontrei Ueludo acidentalmente cutras vezes, @ ecabei decidindo persequir suas pegadas am fontes e momentos diversos. Coma o leitor verd, o negaciante nes acompanhard, em todo o trajeto deste primeira capitulo. & opcdo em perseguir Veludo foi na verdade uma estratésia para ir ao encontra de outros “Bonifacios”, pois figuei interessads em entender melhor as atitudes © os sentimentos de escravos aus estavam na imingncia de sarem negociados. Para o leiter de hoje em dia, a possibilidade de homens @ mulheres serem comprados @ vendidos como uma cutra qualquer mercadoria deve ser algo, no minimo, diffcil de conceber. 4 Primeira sensacée pode ser de simples repugnancia, passando em seguida para a dendincia de um passado marcado por arbitraricdades desse tipo. Com efeito, um pouco de intimidade com os arquivos da escravidse revela de chofre ac pesquisader que ele esta lidando col uma realidade social extremamente violenta: sé encontros cotidiancs com negroz espancados @ supliciados, com mies que tém seus filhos vendidos a outros senhores, com catives que séo ludibriados em seuz constantes esforges para a obtencic da liberdade, com escravos que tentam a Tuga na esperancs de censequirem retornar A sua terra natal, Ag histérias sto muitas © seria preciso uma dose inacreditdvel de insensibilidade 2 anestesia mental para ndéo perceber af muito sofrimento. O mito de cardter benevalente ou ndo-violento da escravidgo no Brasil Ja foi sobejamente demolido pela producto acaddmica daz décadas de 1966 © 1970 e, no momanto am que escrave, nde vejo no horizonte Ainguém minimamente competente no assunto que queira araumentar o contrdrio. A constatacso da violéncia na escravidgo @ um ponte de partida importants, maz 2 crenca de que essa constatagto € tudo o que importa saber e comprovar sobre o assunto acabou gerando seus préprics mites @ imobilismos na produgdo historiogrdfica., Pode- mos, por exemplo, fazer uma breve histéria de um des mitos mais célebres da historiegrafia: a coisificagdo do escrave, Comecemos: por Perdigio Malheiro, em seu conhecido estudo sobre a escraviddo Publicada na década de tee.” Ele demonstra que o cativo se ancontra "reduzido & condicia de cousa, sujeito a0 poder e dom{— nio ou propriedade de um outro, € havide per morte, privado de tedes os direitos, = néo tem representacdo atouna"s” Haste momen— to, Pardiato Malheiro esta preacupado em esclarecer a situacto do escravo do ponte de vista estritamente legal. O auter esclarece também que o senhor é proprietdrio do escrave apenas "por fice géo", ficedo esta que @ essencial no ordenamente juridico da sociedade em questo. Ou seja, o objetivo aqui € 0 desmonta da ideclogia da escravidde, wostrands qua a existéncia de tal insti- tuigfo € um fato da histéria humana, uma invenciéo do direito positive, e ndo algo inscrito na natureza mesma dae coisas.” Tirar a escraviddo do universe harmonioso @ acabado da natureza @ langd-la no campo conflituoso da histéria 4 a contribuigde cru- au cial de Perdiate Malheiro @, nasse sentido, estamos diante de um belo livre de histéria das ideclogiaz: ao demonstrar que a ezcra vatura 4 uma construcée social especifica, o autor esta convidan- do o leitor. implicitamente, a imaginar formas diferentes de imentar ou de ordenar a sociedade na qual participa. Em alguns momentos, no entante, FPerdigée Malheiro tenta ir zlém dessa varsdo meramente juridica da coisificacto doz escraves: “Tedes os direitos lhes eram negados. Todos os sentimentes, ainda os de familia. Eran redvzides 4 condigdédo de coisa, como os irracionais, aos quais éram eqiparades, saluas certas excegdes. Eram até denominados, mesmo cficialmente, pegas, félesas vives, que ge jwandavam marcar com ferro quente ou por castigo, ou ainda por sinal como o gadow Sew consideracdo alguma na seciedade, perde o escraue até a congclancia da dignidade humana, © acaba suase por acraditar que ele nda é realmente uma cristura igual ase damais homens livres, que 6 pouco mais do que um irracional. E procede em conformidade desta errada crensa, filha necessaria da mesma escraviddéo. OGutras wezes o édie, a vinganga o excitam a crueldades".9 OG problema da coisificagie doz escraves ganha entdo uma dimensdio bem mais abrangente. A definicSo legal do ezcravo coma "coisa" se transforma também numa condigio social, havendo aqui a pretensdo de apreender ou de descrever a experiéncia histérica dasses negroes. No primeiro parderafo € 3 Visto dos senhores que e=ta senda interpretada: os proprietirios pareciam quase acreditar que astavam lidando com crigturas que se aszemelhavam ao gade, @ oo tratamenta digpensade acs nearos era em varios aspectes idantica ao dado as bestas. No pardgrafa seguinte nos 6 proposta a iddia 42 de que o préprio cativo introjeta a nosde de que a sua inferioridada em relacdo ao homem livre ¢ algo natural, ¢ de que © escravo ase segundo a crenga de sue "é pouco mais do que” um irracional". A Witima frase sucere que 6 sé através do "Sdio", da “vinganca", sue os negres negam essa consciéncia passiva que parecem ter de sua condicéo. Ef vardade que Perdiato Malheiro teve © cuidado de escrever que o ercrave “acaba quase por acreditar na sua inferioridade, nfo afirmands portanto categoricamente a sutovimagem de criatura naturalmente inferior que os catives teriam de si mesmos, maz o fato é que a discussdo da dimansgo supostamente, cial da coisificagdo do escrave estava destinada a fazer uma longa carreira académica. Em suma, 9 objetivo de Perdigdo Malheire ¢ conuencer setores Wai conseruadores das elites da necessidade de encaminhar a quesigo da abolicto do "elemento servil". e sua eztratégia atacar a inetituicéo da azcraviddo a partir de dois angulos: por um lado, mostrando que o dominio que o senhor exerce sobre 9 escravo tem por base disrosigdes do direito positive, @ nda do “direito natural"s por outre lado, argumantands que o cativeiro @ uma “organizagto anormal do estade social", que exclui a parte escrava da comunhio social, vivendo quase como parasita om relacés & sociadade". a definicéo legal do escrauo coma "coisa" vinha acompanhada de uma violéncia social que parecia inerente 4 escraviddo que embaracava a marcha normal do pais rumo ac “progresse" = & "“civilizagda'. Deinemes Perdigio Malheiro rapousar por agora -- ele sera uma daz personagens principais do seaunds capitula desta historia-~, = vamos tentar um desembarque cem anes adiante, na 43 déeada de 68 do nossa século. Num livro famoso publicado pela primeira vex em 1962, Fernando Henrique Cardozo ascreves oO seguinte: “Po ponto de vista juridico @ Gbvio que, no sul coma no resto dc pats, 9 escravo era uma coiga, sujeita ao poder @ a propriedade de cutrem, €, como tal, “havido per morte, privada d= todes os direitos" 2 sem representagio alouma cobs: hd aqui uma nota de rodape remetends ac texto de Perdiado Malheire, S.C... A : condigd juridica de coisa, entretante, correspondia 4 prépria condigdo social do escrave, A reificagio da escravo produria-se objetiva e@ subjetivamante. Por um lado, tornava~se ums pega cuta necessidade social era criada e resulada pelo mecanizom e@canémico de produgdo. For outro lado, o escrave auto- reprasentava-se @ era reprazentads pelos homens livres como um ger incapaz de agdo autonémica. Houtras palavras, 9 escravo se apresentava, enquanto ser humane tornado coisa, come alguém que, embora fosse capaz de empraender acGex humanas, exprimia, ona prepria conscigneia @ nos ates que praticava, orientactes = gignificactes sociais importas pelos senhores. 4. homens livres, ao contrdris, senda pessoas, podiam exprimir socialmante 3 condicéo de ser humana erganizands 8 orientando a ago através de valores ¢ normas criados por eles préprios. Nesse sentido, a congeiéncia do escrave apenas registrava e esrelhava, passivamente, of significades sociais que Ihe eran impostos".11 Espero que o leitor possa me perdoar por uma citacdo téo jonga, mag ela se fez necessdria porque esses dois pardgrafos de F.H. Cardose resumen, com rara felicidade « preciso, tudo aquilo que en nfo vou argumentar nesta tese. A srimeira fraze nae ote rece problemas, pois apenas define a condis&o juridica do escravo tendo por fonte Perdiaée Malhairo, reconhecidamente = maior auto~ ridade no aggunto. € frase sequinte € um salto: “A condigde Juridica de codsa...corraspondia & prépria candigge social do escravo". Talyez seja posivel reconhecer aqui 2 mdema 44 problemdtica indicada par Perdigéo Malheiro cem anos antes, isto 4, @ hipétese de que o proprio cativo podia acraditar que era "um pouce mais do que um irracional". Oe qualquer forma, o que apa— rece como“uma possibilidade na pena do penssdor do século HIN se transforma agora am verdade absoluta, expressa como rigor cien- tifico apropriada: "A reificaggo do escravo produzia-se objetiva @ subjetivamenta". Confesso que nfo compreando bem essa afir~ magéo, mas, felizmente, F.H. Cardoso se empanha em esmiugi-la. Ele explica que os escravos se autocrepresantavam como seres incapazes de acto autandmicas ou seja, as negroe seriam incapazes de produzir valores © norms préprias que crientassem gua conduta social. A conclusio ébvia, expressa no final do segunda pardura- fo, & & de que os escraves apenas espelhavam passivamente os significados sociais impostos pelos senhores. A explicacde ofarecida deixa patente que eu nto tenho acesso & esse pensamento. Héo consigo imaginar escraves que néo produzam valores préprics, ou que pensem © adam segundo significados que hes sfo inteiramante impostos. Posse fazer, no entante, um asforco de mendria. Houve um tempo no qual consequia ler esses pardgrafos de F.H. Cardoso @ achar que as coisas podiam fazer algum sentido, O preblewa, portanto, ngo é uma “falha" que possa ter existide semere na minhs imaginagdo. E clare que, em parte, sf convicgdes ou Visées de mundo diferentes que esto em jogo. Mas nfo @ arenas isso. O didlogo com outros pesquisadores 2 9 meu préprio trabulha de pesquisa nos Ultimes anos acabaram sua ziando 9 sentido que esses pardorafos de F-H. Cardoso possam aloum dia ter tido para mim, Hd Bonifacics em cada esquina de 45 arquive que nos ensinam a repensar cantinuamente belas legicas de gabinete. Una boa parte das fontes citadas por Fernando Henrique Cardoso no processa de construsdo da teoria do excravs-coisa constitui-se em relates de viajanteg. La esta Saint-Hilaire, Nicolau Dreus, John Luccock @ alguns outros que se aventuraran pelo sul do pais no século passado. NSo hd nada de inerentenents errado em utilizar tais fontes, porém & possivel errar radicalmente ao interpretd-las: veda-se, Por exemple, = passagen saguinte de Saint-Hilaire, citada por Cardoso: “Eles Cos escraves: §.0.) fazem sentir aos aninais que os cercam uma superioridade conzoladera de.sua condi cdo baixa, elevando-se sos seus préprios olhos".12 Neste trecho, Saint-Hilaire estava procurande descrever aquile que ocorria nas mentes dos escravos: os negros se comparavam aos animais, @ se contentavam ac perceber sua superioridade sobre az bestas. € Idgico, todavia, que a tentativa de Saint-Hilaire ew adivinhar 9 pengamento dos @scravos acaba senda principalmente uma explicitacds dos preconceitos culturaiz = do racismo do 13 préprie viajante. Era ele, Saint-Hilaire “branco, europeu, © com ilustes de superioridade natural-- quem aparentemente imaginava og negros mais préximos das bestas do que de si préprio, Cardoso, no entanto, incerpora a observaciio do viajante na sua literalidade: comm os nesros se comparavam “aos animais = nfo aos homens Livres", sstava comprovada “a alienagie essencial 1 do escrayo". Mai adiante, num momento em que Fernando Henrique Cardoso 46 asté preocupado em argumentar que “ers possivel obter a “eoisificagéo" subjetiva do eserave" --isto 4, “sua auto- representagia como ndo-homem"—— encontramos uma passagem de 15 Dreyst “He opinigo constante entre os viajantes, que o tigre observa wwe certs araduagdo no impeto da seus apatites crudiss dizem que achanda facilidade relativa, o tigre atirar-se-ha primeire ao brute, desois ao negro, = por witime ao brancos se ha nuitas experiéncias, em que se fundamente semelhante distribuigdée, nfo o sabemos: mas, © que podemos affirmar he, que em nogsas repetidas viagens a9 travez daquelles campos, ra custoso determinar hum negro a ir sé cortar lenha no capdo visinhe, allegando sempre aquella funesta preferencia para ser acompanhada" HS pelo mence trés observagdes a fazar a raspeite deste trecho. Em primeirs lugar, segundo Dreys og tiogres talvez fossem racistas. Ou melher, © racismo @ os preconceites culturais de Dreys eram to extremados a ponto dele considerar seriamente a possibilidade dos tigres observarem "certa graduacdo no impeto de seus apetites crudis”, senda que esta "“graduasdo" seria uma repreduste da forma como o préprio viajante hierarquizava of seres vives --os homens brancos, depois os negros, © finalwante os animais irracionais. Tanto esta hierarquizacdo seria parte da natureza meswa das coisas que um ser completamente natural -—ne caso, um tigre-- satisfazia seus "apetites cruéis" d@ acordo com lais ditames. Em segundo lugar, temos a informagéo de que c= escrayos do sul utilizavam a suposta preferéncia dos tigres por carne negra -~iste €, queimada pelo “fogo de Deus"-- como justificativa para sua recusa em se embrenhar na mata para cortar 47 Jenha quand desacompantiados. Para um especialists em histéria social, 2 passagem de Dreys narra una situagde classica de trabalhadores tentanda influenciar as condicties ea intensidade das tarefas que deviam realizar: recorranto as estranhas preferanciss do tigre, os negros certamente lutavam por melhores condigées de seguranga © por maior divistio das tarefaz no trabalho drduo de obter lenha, Finalmente, podemoz tenlar remontar @ raciocinio de F.H. Cardoso 20 insorrorar @ trecho de Drave em seu préerio texto. Coma mencionei acima, ele estava preocupado entée em documeantar a “'eoisificacéot subjetiva do excrauo". Pois bem, ao aludir & preferancias do tigre —-= carne negra serie menos preferida co que s carne dos brutes, porém mais requisiteda do que a dos brances--, 9 escrave egtaria revelando que havie introjetads "sua rapresentacéo como nace homam”, Afinal, a opinido corrents na época eva a de que o tigre instintivamente “sabia” que © sare estava mais préximo de si do que o branco, @ og escrauos pareciam compartilhar tal opinige ao recerrerem a ela no momenta de cortar lenha. Na verdade, azta reconstructo do caminho de F.H. Cardoso ¢ feita por minha prépria conta @ risco, Cardozo pensa que & passagem de Drays ¢ téo transparente, to obviamente confirmadera da "“reificacéo subjetiva" do escravo, que ele ne acha sequer necessdric explicitar as mediactes entre a leitura que faz da fonte @ o precipicio teérica no qual decide merauihars ssndo assim, o trecho de Dreus figura no texto de Cardozo sem qualquer comentério ou astorge sistamitico de decadificasio, rite na Capitalismo e Escraviddo no Brasil Meridional foi quase trinta anos, @ a fato da ainda hoje em dia ser pr 4g contest4-lo em termos cantundentes € por si sé una prova de sua forca eda influ@ncia de seus procedimentos. Com efeito, a teoria do escravo-coisa tem prosseguimento, por exemplo, em Jacob Gorender, um autor que parmanece relativamante em vega no meio académico brasileiro: "Q oprimide pode chesar a ver-se qual o vé seu opreszor, 0 gscrave podia assumir como prépria = natural sua condigdo de animal possuida. Um caso-limite desta ordem s# dupreenda de relato de Tollenare. Eo Pernambuco, watavam-se escravos de um inimigo por Vinganga, como se materia seu gado. Um sanhor de engenho, que ganhara & inimizada de moradores despejados das terras que ocupavam, confiara um neare ao visitante francés a fim de acompanhd-lo nos seus passeios., © negro nfo cusava aproximarmse do povoade dos moraderes hostis © s@ justificavar "OG que diria meu senhor g¢ esta gente we watasse?". 16 Neste cago. assim como naquele de Cardoso @ as preferéncias do tigre, 0 autor do pardgrafo néo ge preocupa em mostrar de que forma © apisédio narrado por Tollenare serve de comprovacio 4 assertiva inicial de que "9 oprimido pode chegar a ver-se qwal o ve sau opressor". Devemnoz antds, novamente, procurar preencher 3 lacuna. © racioctnia de Gorender dave tar sido mais ou menos © que se segue. Primeiro, os escravos de Pernambuco sabiam que uma das formas utilizadas pelas inimigos dos senhores de engenho para alingi-loz era matar seu gado e seus catives. Segundo, oF senhores de angenho, por conseguinte, no gostavam quando seus eserauos eran mortos por seus inimigos. Terceire, dadas as duas proposicées anteriores, @ dada a postulacdo logico-filosdfica de extragio hegeliana segundo a qual "“o oprimido pode chegar a wer~ se qual o Ve sau opresger", conclui~se que os ascravos nfo goste~ 49 vam de morrer pelas méos des inimigos de seus senhores porque estes ficavam aborrecidos ac se verem assim privades da "coisa" possufda -~"o que diria a meu senhor se esta gente me matasse?". has palavras do acowpanhante de Tollenare. Q racioeinic de Gorender nesta passagem —-camo, de resto, em todo G Escravismo Colonial-- ¢ de uma coeréncia inexpusnivel. Ac reler agora este pardgrafo. todavia. me ocorre timidamente © sequinte: gerd que o escrave que acompanhava o francés, ac mencionar of possiveis sentimentos do senhor a respeitoe de seu assasdinato pelos “moradores hostis". nfo estaria arenas recorrends a0 arauments que, naquelas circunstancias, mais provavelmente garantiria sua gobrevivencia? Nesta hipdtese, porém, 9 “oprimido" estaria agindo de acordo com sua propria compreensio da situagdo em que se encontrava, @ néo simplesmente reproduzinds a ética do “opressor”. f& teoria do escravercoisa tam freaifentemente como contrapartida = idéia do escravo rebelde. Uimos que em Perdigto Malheiro o escrava que se concebe como uma eriatura inferior apresenta como alternativa a esa auto-representacdéo o "édio", a “Ginganca", as “crueldades". Para F.H. Cardoso restava aos cativos "apenas 4 negacio subjetiva da condicio de coisa, ae se exprimia através de gestos de desespero e revalta e pela ansia indefinida @ genérica de Liverdade”. Para Gorender, "“o primaire ato humano de escrave € o crime, desda o atentado contra sau genhor 4 fuga de cativetro". Os negros, portants, oscilavam entre a passividade @ a rebeldia, sendo que os ates de inconfor~ mismo eram a Unica forma dos escravos négaram sua coisificasse 50. social @ afirmarem sua dignidade humana. © racioc{nio apresenta, sem diivida, certo charme poético, @ tave o mérite de insrirar estudos sérios sobre.= rebeldia nesra ew décadas da sufocad © vepressio politica. Da mesma maneira, a énfase de F.H. Cardoso na suposta "reificagio" dos escraves 4 parte de um asforco académico bem conhecido © louvdyel: no sentido de denunciar @ desmontar © mito da democracia racial no Brasil. O fato, todavia, ¢ que fora do contexto especifico de denincia politica que estava na origem da Capitalismo e Escraviddo, © levando-se em consideragdo os problemas apontados quanto & forma de utilizagéo das fontes no livre, nfo subsiste qualquer motivo para que os historiadores continuam a conduzir seus debates a respeite da escraviddo tendo como balizamento essencial a teoris do escrave~coisa, A violéncia da escravidgo néo transformava os negros em seres “incapazes de agfo autonémica", nem em passives recaptores de valores senhoriais, < nem tampouco em rebeldes valorssos © indomiveis. Acreditar nisso pode ser apenas 2 opgio mais cémodar simplesmente desancar a barbérie social de um outro tempo traz implicita a sugestio de que somos mance birbarcs hoje em dia, de que fizemos realmente algum "progressc" dos tempos da escraviddo até hoje. A idéia de que "progredimos” da cem anos para cd é, no Minimo, angelical @ sddica: ela supGe ingenuidads © cegueira diante de tanta injustica social, @ parte também da astranha crenga de que sofrimentos humanos intensos podem ser de alguma forma pesados ou medidas. OG restante deste capitulo ¢ uma tentativa sistematica de acesso aos valores @ norwas que nortearam Bonifacio @ seus Parceiros nas atitudes que decidiram tomar em relagio a Velude. sv Vou procurar mostrar que esses negros agiram de acardo com légicas ou racionalidades préprias, © que seus mevimentos extio Tirmemente vinculades a experiéncias @ tradigties particulares @ originais -~ no santido de que nfo so simples reflexa ou espelho de representacies da “outros” sociais, A histéria de Bonifacio @ Veludo sera retomada de diferentes persrectivas, © serd feita uma tantativa o quanto possivel exaustiva de entender suas especificidades nua rede mais densa de santidos © experiéncias. Afinal, como os negros pensavam @ agiam disnte da possibilidade, sempre presents nos horizontes da suas vidas, de serem comprados ou vandidos? Deixemos de lado, por alounz momentos, nosso Provavel desconforte diante de uma sociedade onde eram comuns as compras e vendas de homens @ mulheres, @ tentemas penetrar mais funda nas racionalidades e sentimentos de pessoas de um outro tempo. 52 - Veludo @ oF negécios da escravidsa. Bos vinte & quatro escravos sua prestaram dapoimento no inquérito policial sobre a sublevagio na casa da comissdes de Weludo, nada menos do que vinte e um eram provenientes de Rrovincias do norte e@ nordeste. Quatorze desses negros eram baianos, senda gue os demais eram do Maranhde, Ceara = Piaut. Havia ainda dois negros naturais da provincia de Rio = um de Minas Gerais. Com excecdo do preto Tomé @ do crioulo Gdorico, ambos maranhenses © que foram identificados como catives do proprio Veludo, todes as outros negros haviam chegade h4 pouco na Corte @ aguardavam compradores na loja do negociante portugues. @ experigncia desses escrauos, arrancados de suas distantes Provincias de origem @ negociados no sudeste, garalmente para fazendas de café, pode ser melhor contextualizada no quadro wais awplo do tréfico inter~provincial na segunda metade do século HIM. Segundo az estimativas de Robert Slenes, esse movimento de populasdc despejou no sudeste, a partir de 185, cerca de to de transteréncia duzentos mil escravos. G auge desze movin: interna de cativos scorreu entra 1973 = 1881, quando novents mil negros, numa média de dez mil por anc, entraram na regifo, Principalmente atraués dos portas da Rio de Jangire ¢ da Santos. Sé a policia do porto do Rio registrou a entrada de quaze sessenta mil escravos nos nove ancs de apogeu do traéfico inter— provincial. Utilizande-se principalmente das eserituras de compra @ venda de escravon referentes a Campinas, Slenes oferece uma 53 descrigé bastante detalhada da rede comercial que ligava vandedor inicial de um escravo numa provincia do norte ow nordarte e-seu comprador final no sudeste, Para zinplificar az coisas, podenos iwaginar que um proprietario de escraves da cidade de Salvador tenha decidids vander um de seus cativos. Ele se ¢irise a Veludo Junior, dono de uma casa de comisstes na cidade, © Ihe cferece o nesre Bendite, Veludo Junior resolve adquirir 9 cativs @ paga a quantia combinada ao zenhor de Bendito. @ transacfo 4 realizada sam que se lavre a respectiva escritura de compra e venda, pois a intengio de comerciante de escraves € revender o criowlo Bandito lose que possivel. 0 senhor inicial de Bendito, ento, passa a Veludo Jinicr uma procuracie dando-Ihe poderes para vender o escravo, © também lhe entresa uw racibo particular, no qual declara que recebeu do negociante tal quantia como adiantamento da venda do escravo Hendito, 9 sublerfigio da procuragio permite a realizacés do negécia sem que o imposto de transferéncia de propriedade seja pags. A esta altura, Bendite @ arrancado das terras de Bufde, o antigo senhor, @ entregue ac dono da casa de comizstes. Ueludo Jtinior est informade do alto prego que fazendeiros de café do sudeste andam dispostos a pagar pala aquisicio d= novos bracos, @ resolve oferecer o negro a um grande comerciante de importasio ¢ exportacds que atua no porto de Salvador. Veludo Neto, asse grande comerciante, compra Bandito @ recebe de Veluda Jinior um substabelacimanto da procuragde original passada por Bufdo, Agora € Neto quem estd investido doz poderes legais para 4 anda de Bendito, Neto negocia uma variedada enorme de mercadorias @ tem contatos hem estabelecidos com prisperos 54 at negociantes da grea portuaria ds cidade do Rio. Como a demands por bragos @ bastante alta nas provincias do sudeste por esses dias, Neto nfo tem dificuldades em encaixar Bendito num lote de escraves que Ihe havis’ side encomendado por um cliente da torte. © fesoviante providencia o passaporte da Bandi te © embarca, © mercadorias variadas. para juntaments com outros escravo: Valudo TIT, © negociante da Corte que havia tratado a compra. Bandito chega a Corte quatre ou cinco dias depois, @ fica entre gue A policia portudria até ser reclamado por Uelude 111, © estinatdrio indicado no passapurte. Desembarcada na Corte pelas méos de um grande importador, Bendite logs troca de mgs novamente. Dessa vez pode ser um quarto Veluda, o José Moreira, nosso velhe conhecida, o compradar de Bendito. © crigulo baiano chega entdo finalmente 4 casa de comiss$es da rua des Curives, acompanhado da procuragéo passada Pelo senhor Bufdo, procuragda esta que j4 pode estar ornamentada por dois ou trés substabelecimentes. Megmo que o circuito nto tenha sido exatamente esse em todos os casos, ¢ possivel que Bonifdcio e seus parceiras tenham padecide num traieto semelhante desde 9 momento em que deixaram suas comunidades de origem oa Bahia ou outra qualquer provincia do norte ou nordeste ate chaga- rem na loja de José Moreira Veluda. Neste ponte, podemos abandonar as personagens ficti retomar as pegadas de atores histéricos. Um processa iniciade em maio de 1871 nos narra detalhadamente of proce: tos adotados por Veluda na condugie de suas transacdes de compe @ venda de escravos. OG portugués Francisca Queiréz, casado, 35 caixeire, de 43 anos, se dirigiu & segunda vara comercial para dar queixa contra seu compatriota José Moreira Ualude que, zeaun- do ele, Ihe havia ludibriado numa sociedade que haviam feito para . 22 a venda de um lote de escravos nos municipios de "serra acima". Tudo comasara em abril de 187G. Segundo o relato de te: nhas, Veludo estava & procura de alguém que tivesse intere: partir com um lote de vinte @ tantos escravos para vendé-los am municipios da provincia do Rio @ de Minas Gerais, Um conhecide indicou a Yelude a caixeira Gueiroz, eo comerciante se arressou em obter informagd#s sobre a possivel sécia, Satisfeita como que | descobriu, ele enviou um tal Bustamante para uma conversa com © caixeiro. Queiréz gostou da idéia ¢ alguns diaz depois foi acertar og detalhes com Veludo no escritério da rua des (lurives. ® proposta era para que Queiroz viajasse com os negros = realizasea as vendas, ficanda Uelude encarresado de fornecer toda 9 equipamento para a Viagem @ de investir o capital necessdrio para a compra dos escravos que comporiam o lete. Os lucros @ perdas seriam dividides meio a meio. Veludo acertou 3 compra de um grupo de maiz de winte ezcra~ ves pertencentes a Wieira ds Carvalho @ de outro grupo menor de propriedade de Souza Braves. Vieira de Carvalho passou uma procu— racio direta a Veludo, enquanta Souza Breves fez o substalecimen- to numa procuracio anterior. Queiréz entéo retornoy a casa de comissdes © negociou com Veludo os negroes que estariam na lote definitive. O caixeiro recusou alouns negros de pov.co valor ou que lhe parsceram doentes, ¢ os dois homens acabaram ucertands que Queiroz iniciaria sua aventura ainda em waio, conduzinda vinte @ quatre emeraves no valor total de trinta @ cinco cont. 56 selecantor mil-réis. O reteiro da viagem parece ter sido previa~ mente tragada per Ueluds qua, sam duvida, tinha clientes mais ou menos certes nox “municipios de serra acima", sendo que se faz referéncia expressa so jtunicipio de Mar de Espanta, Minas Gerais. © eventureiro seguiu com tras animais -—"duas bestas © um macho"--, além de tude o maiz para a viagem, come duas mudas de roupa pars os negros, mantas, carapucas, camisas de baeta, esteiraz, um caldeirgo, canecas, pratos, café, actears um vidro de "pronto alivie", atc. Nas contas dos fornecimentos @ aastos de viagem, feites pelo réu, consta o pagamento de saldrios 4 apenas um empregado, aparecendo também algunas entradas de despesas com ajudantes ocagionais. Pele correspondéncia de Veluio, sabe-se que Queiroz estava no caminho de volta, com quase todos os escraves vendidos, em agosto de 1874. fo toda foram negociados vinta cativos, no valor de trinta @ cinco contos © trezantos e trinta mil-réis, sendo que os negros restantes foram davolvides a Ueludo. A primeira vista, 3 operacte dera um lucro razoivel, pois com a venda dos Ultimos excravos na casa de comisstes da rua dos Ourives, © mesmo que os precos obtides em taiz transagées fossem aproximadamante oz mezmos pagos na compra desses cativos, ainda assim a sociedade obteria um lucra superior @ cinco contos da réis, sujeitos ainda a daspesas diversas. Mas Queiroz @ Veludo jamais consequiram se entender sobre as contas da sociedade. Na aco iniciada em maio de 1871, exatamente um ano apés ¢ infcie da aventura, Queiroz alega que Velude ertava “de posse de todas az quantias" © néo queria “dar a0 Suplicante a parte que toca nessa sociedade". Ele pede ainda que os livras de ST Veludo sejam examinados por peritos. Nos mases vequintes, os dois homens fazem = refazem.seus cdlculos com tal profusée de minicias a de truques que sé ¢ possivel segui-los com muita atancio « Paciéncia. © Quairez achava que Ueludo Ihe tinha de pagar um conto & quatrocentes @ winte mil-réis, enquanto Veluda dascobria am sau favor um saldo de um conto @ cento @ vinte mil-réis. Varios fatores explicam as diferencas nos cdélculos doz dois “parceiros". Queiroz dava Manoel Crioulo como vendida a José Rodrisves por um conte e novecentos mil-réig, mas a correspondéncia de Veludo mostra que o comprador descobrira que o @scravo sofria da "mal de gota’ @ exigia a anulagie da transacso. G préprio crioulo dizia que estava em tratamento da doenca favia since anos, © o fazendeire solicitava a Ueludo a inutilizagse do vale sue entregara a Queiroz como pasamento. Usludo também née sonseguire recaber a ordem emitida por outro comprador, o bre Paula Tavares. U Dr. Tavares “baixou" & Corte “trazendo a escrava swe comprara ao autor... (e> procurando a ale depoante (Waluded ihe dissera que tinha sido iludide na compra desea escrava, nado valendo ela a quantia porque ajustara, © querenda dela fazer entrega”, Havia ainda divergéncia sabre ox pregos de Leopoldina ¢ Anténia, escravas devolvidas por Queiroz. Finalmente, havia um Resro que Queiroz dava como devoluide, mas que Veludo afirwava sue estava era fugido. Os meandros da questa incluenm outros exemplos de escravos que nic satisfazem seus compradares © sie Sevolvides, para serem vendidos novamente logo adiante, @ verdadeiras pechinchas a respeita de prego de cangalhas, bestas « miudezas que haviam sido utilizadas na viagem. Zz . & claro que um negociante relativamente préspero como Ueludo 58 sai sem muitos arranhées de uma questéo como emsu, Em 27 de maio de 1872, 0 Juiz ds segunda vara comercial considerou a acta movida por Queiroz “improcedente © ngo provada"; apesar das varias irreaularidades: que os peritor constataram nos livros do dono da casa de comissdes. E meswo que esta operasdo née tenha dado oo lucra esperado, os depoimentos das tastemunhas nos autos fazem referéncias a outras empreendimentos semelhantes de Veludo fa mesma época, Essas operagtes deviam ser vantajosas na maiaria das vezes, pois em 1878 ainda encontramos Ueludo no mesmo ramo de negécios © aparentemente na mesma prosperidade. Nessa ocasido ele dividia uma casa de comisstes com Jo&o Joaquim Barbosa na rua da Prainha, 14. Barbesa ficou, em apuros para pagar uma letra no valor de 12 contos de réis, protestada por Manoel Guimarde: Velude, entée, que aparentemante assinara 2 letra junto com o sOcio, fez uma "transagdo" com Guimardes = este desistin da acto dudicial. Uma das testemunhas afirma que Ueludo ficara com a cara de comissdes da rua da Prainha sé para a. A brave descrigéo da organizagéo do tréfico inter-provincial e a leitura desses processos comerciais, onde os escravos aparecem sempre como custes ou lucros, valendo tantos contes de réis e nada mais, nos indicam a face mais impessoal ~~e por isso bastante cruanta-- das transagdes de compra e venda de egcravos. ® légica de lucro parece aqui impenetrével 2 qualquer outre lésica, @ os nomes dos escravos sc nesses wanuscrites como que simples apéndices de seus precos. Ma sua forma mais aparente, guinda Portanto, o problema do mercado interne de escraves na metade do século XIX ¢ apenas uta questée de mimerog, possivel de 59: ser apreendida a partir da regrinha wigica da oferta e da Prowura. Os escravos iam © Vinham como testemunham as excrituras © 20 talante de sanhoras mais ou manos racionais porque maiz ou manos i luminad: por uma tal légica capitalizta ou isgica de mercado, A teoria do escravo-co: completa aqui o seu percurs coisa por “ficedo" do direito, na pena de Perdigio Maiheiror negres cujo eativeiro havia causado "“o embrutecimento de seus espirites..- embotando-lhes a consciencia", nas palavras veementes do advegado de defesa de Bonifdcic @ seus parceiros: @scraves que se auto-representavam como “incapazes de acto autenamica", no Livro famoso de F.H. Cardosor finalmante, 2 ascravo-mercadoria, apenas mais um tem nas calculos dos débitos @ dos haveres de negociantes © proprietirios, ou nas complicadas estatisticas dos historiadores economistas. N&o vou retomar neste contexto as sélidas criticas jd feitas aos debates historiosraticos 3 respeite dos diferentes araus de racionalidade capitalista do qual estariaw supostamente imbuides senhores da escrayos em varias regides do pats, Robert Slenes jd mostrou que a histéria do mercado de escrauor néo se entende apenas a partir de cdlculos econémicos, maz que tal histéria dos genhores 4 também compreande oo problema das percepqte: respeito da estabilidade future da escravidio e de suaz estrategias @ apostas politicas em momentor @ situactes expectticas. be qualquer maneira, eese passeio pela organizagéo do tréfico intar-provincial de escravor @ pelos nestcios de Ueludo talvez tenha ajudado a diminuir nossa surpresa diante is fate, inicialmante ineclite, de que foi o negeciante quem mw 60 empenhou na defesa de Bonifacio @ dos outros escrayos que oo haviam aeredido. . Negdcics pelo avesso. Qs processos comerciais nos quais Usludo asteve envolvide registram algumas informagées, por assim dizer, a contragoste: ha ascrayos que fogems outros que decepcionam seus compraderes @ sie devolvidos; outros que ficam doentes © provocam a anwlagho de transacSes ja fealizadas. Esses dados £6 parecem constar dos manuscritos de natureza comercial porque interferem diretanante nos cdlculoz dos créditos @ débitos de cada negsciante. Mas esses fatos apontam também em outra diregdo, Hd questées polfticas “mindsculas" % considerar nas situactes de compra e venda de escrayvos ~~"minisculas" néo no sentido de serem pouco decisivas ou potencialmente transformadoras, mas na medida em que aparentemente envolvem agdes articuladas apenas em fungio de objativos imediatos. Essas questies permanscem quase sempre invi siveis nas descrigées pancramicas ou nos quadror estatisticos que, de reste, nio tem geralmente como objetivo a andlise de tramas ou significagties mais particulares. Hd muita coisa ainda = destrinchar sobre of negécios da escraviddo. Bonifacio @ seus parceiros podem entrar em cena novamente. Qbservamos que of agressores Planejaram tudo com bastante antecedéncia, conversaram muito antes do movimento e, no entanto, foi possivel manter o zigilo e apanhar a vitima completamente de surpresa. Uimog ainda que entre aqueles negres que se encantravam ma loje de Yeludo havia varios Pequencs grupos que tinham sido 6L cativos de mesmo senhor em seus lgcaig de origem. Tentei levantar uma hipétesa Ginculando eeees fates: devia haver entre vdries desses escravos um cert sentide de solidariedade, ou mesma de amizade ou parentesca, que tinha wotivade e facilitade 4 dacisto da atacar Ualude. No nd, na vardade, cana compravar diretanen= te essa hipétese. Mas os arauivos astée repletos de historias de escraves que, geparados de parentes e amigos por transactes de compra e venda, varren o mapa de alto a taixe em busca de pessoas queridas © de um camino de volta 4 sua comunidade de origen. 0 negociante portugues Joaquim Guimardes fez uma viagem a Bahia em fins da década de 1860. Ho retornar & Corte, — trouxe congigo a preta livre Maria Ana do Bonfim, sue vinha & procura de sua filha Felicidade. Felicidade fora vendida para o sudeste © seu destino era ignorada pela mie. Guimardes consesuiu descobrir que Felicidade estava residindo em Ouro Preto, Minas Gerais, sendo escrava de Jogo da Costa Varela Menna. Sesundo as alesactes de Felicidade, por seu curader, na acto de liberdade que se iniciou em 167@, Maria de Bonfim solicitara a Guimartes que “por compra ou qualquer outra transacdo, consesuisse a vinda da autora (Felicidade) para esta Corte a fim de facilitando-Lha os neios, podé-la Ifbertar". " quinardes fot efativanente a Ouro Prete, racebande da preta valha wua indenizacde prévia pelaz despasas de viagem, © retornou de 14 com Felicidade. Ele pacou dois contes da réis pela excraua, © trouxe na bagagem a procu- rasdo de Jodo Menna que o autorizava a neguciar a criowla. Maria do Bonfim deu prontamente a Guimardes um adiantamanto de trezen— tos mil-réis. Tempos depois, cantudo, o portugués passou a exigir 62 @ pagamente imediato da some restante, no valor de uw conto 2 setecentos mil-réis, ameacando inclusive vender Felicidade nova mente para fora da Corte. Maria do Gonfim recorreu entdo a duas pretas forras quitandeiras, Olivia da Purificacéa e@ Teresa da Canceiso, ambas africanas da Costa da Mina, e foram todas em comissio tentar um empréstimo com o negociante portusués Antania Costa. ( negécio foi fechada; Antanio Costa pagou a Guimaries passou a receber o uslor do ampréstimo am prestacdes um tanto arbitrérias, porém com juros de 3% ao més sobre a divida total, sendo que Marig do Honfim 2 Felicidade continuaram a viver trabalhar juntas para conseguirem saldar a divida. As duas negras pagaram mais de quinhentos mil-réis: no entanto, passaram dois meses sem poder dar qualquer soma ao negociante. AntSnio Costa obteve entio a upreensdc de Felicidade, aja, Costa néo havia ona argumantands falta de pagamentor ou werdade comprado a Guimargex a alforria de Felicidade, como havia sido combinado, mas tinha sim obtido uma escritura de transferancia de propriadade, passande Felicidade a ser sua escrava. Acompanhamos até aqui essencialmente a versdo dos fatos que as duas pretas cfereceram a0 juiz da segunda vara civel da Corte. E ébvio que o negociante Cesta negou que tivesse luditria- do Maria do Bonfim e Felicidade: segundo a sua versio, mie ¢ filha sabiam perfeitamente os detalhes do nesécio que havia sido realizado, sande que ele tomara Felicidade de volta porque os pagamentos nde estavam acontecendo conforme o ajustado. Mesmo a preta forra Glivia da Purificacdo, que havia ajudado Maria do Bonfin a obter o empréstimo, deu razio ag negociante Costa em s- m7 depoimento. Gutros puntos da histéria das negras foram neaados 63 por Guimardest ele decmgntiu aque sua ida a Oure Prete ocorrera gevide ac pedido da Piela velha, © alegou ainda que os trezentos miloréiz que recebers de Maria do Bonfim eram referentes aa Pagamento de sluguéis-que esta Lhe devia. A explicagio @ sim Plest para evitar que Felicidade continuasse a servir como cati- wa, Maria do Bontim havia conseguida que Guinaries lhe alugasse a prépria filha. 553 seria uma solugia proviséria até que az duas fegras arranjassem © dinheira para comprar a liberdade de Felici- dade. Ngo hd mégite Que. endo esses wanuscritos, descubra se sic aS negras ou os negoCiintes portugueses que dizem "a verdade". E isto pouco importa. ms linha fundamentais das ages estdo presentes em ambas a2 verses: os fagécios da escravidés separam duas negras- mie ¢ filha, sande 2 filha pelo menes cativa na ocasido; a preta velba despenca do alte do mapa @ vem parar na Corte & procura da filha escrava; ela localiza a filha em outra provincia € concebe uma forma de trazé-1s para o Rios finalmente, as mulheres acionam a solidariedade de outros negros @ acabam sonsesuinds © dinheiro para a compra da alforria de Felicidade, sé gue para isso cOntraem um empréstima que elas no tém como pagar. Un dos eixes do debate entre os advogados envolvidos nesta sontenda € 2 questSo da “obedi@ncia doméstica". O curador de Felicidade arsumenta que a preta "nunca esteve em poder da Rey co regociante Costa? nem jamais prestou-lhe obediéncia domestica come escrava pelo contrdrio desde logo viveu sobre =i am companhia d= sua mie", sfirmando ainda que “este estado que sem 6e contestasse gozou a Autora (Felicidade? sto indicativos cartos ésic.? que o préprio réu a conziderava passoa livre", Ou seja, o curador inclui na discussio 3 autoridade moral que o senhor devia demonstrar possuir sobre sua cativa, pois tal autoridade seria um componante eszencial da legitimidade de seu dominio. Nao bastaria ao senhor ter sua propriedade devidaments legalizada; ele preci- sava mostrar que tinha a escrava sob seu controle, © que esta o reconhecia como seu senhore GO advogado do negociante Costa, entSo, slega que Felicidade apenas tinha autorizago escrita da seu senhor para-morar fora de casa, mas lhe devia os alugudi= @ admitia sua auteridade. Em suma, parecia essenciel para a resolugéo do caso que se descobrisse qual o tipo de relacdo cotidians que se estabelecia entre Felicidade © seu suposto senhor: era preciso saber se a preta estava convencida da lesitimidade de seu cativeiro. 0 dasfecho da histéria reforga essa impressdo. As duaz partes chegaram a um accrdo: Felicidade seria imediatamente considerada diberta, porém ela @ sua mfe teriam de prestar servicos a0 negeciante Costa por trés anos, para indenizd-le do prec> Faso pela escrava. Uma ocutra opgio era que as litertas pagassem 42 mil-réis mensais a Anténio Costa por igual period. Nin € possivel saber o que as duas negras decidiram fazer, © com certeza a negociante néo levou prejufzo na transacdo. 42 duas mulheres puderam continuar vivendo juntas como livres, sonhando com o dia no qual se veriam livres das prestagSes ou dos servisos que deviam ac portugués, Maiz interessante, contudo, S 4 ociar dustificativa apresentada por Costa para sus decisdo de uum acarde com Felicidade © Maria do Bonfim: @le néo achava aig 65 conveniante fazer valer seus supestos direites sobre a escrava "pelo aspirite de insubordinac#o de que @ natural estar possuida ® histéria de Felicidade e@ Maria do Bontim impressiana primeiramante pela delerminagio das negras em preservar wma relacto que havia sido atropelada pelaz trangagées comerciais tipicag da excraviddo. Leitores mais sisudos podem achar sue isso 4 simples pieguice, mas insisto em registrar a emogdo 2 a afetividade que transparecem na Jeitura de um manuserite como esse, & primeira vista um mero calhamacs legal com quase 258 pdginas @ bastante recheado de formalidades repetitivas @ indteis. E hd algo além de dramaticidade nessa histéria. As actes de Felicidade e Maria do Bonfim foram norteadas por concemgder muito precisas a respeito da legitimidade @ doz limites do domi nio axercido pelo senhor. Felicidade conwiveu com o cativeiro apenas enquanto o cancebeu coms "Juste", ou como proveniente de uma situagéo que, mesmo se percebida na orisem como um ato de forca su imposigdo, 36 teria cantinuidade Ao reconheciments a certos "direitos" seus que ela exigia que fossem respeitados. Em acto cfvel iniciada em marco de 1881, Manoel Talndo tenta anular a compra que fizera da escrava Carlota, preta, africana, com S@ anos de idade, Ele estava arrependids do neadcio aque favia feito, J4 que Carlota "declara que é livre, @ que no serve a pessoa alouma, nem @ possivel fazé-la prestar servicos, porcue recuga-ee a isso, @ fog constantemente, 9 que a torna tnprestavel". Talhgo alega ainda que Manoel Viana, oo réu vendedor da escrava, sabia que a preta estava se comportande 66 dessa forma # nada tentara para convencé-la da legitimidade da Uransacdo que lhe dera um novo senhor. Manoel Wiana também aferece a sua verséo dos fatos 20 juiz da primeira vara civel: "Digse que tendo a escrava Carlota na Casa de Detencio incumbiu a Fugo Rangel para lhe agenciar a venda da mesma escravar © ele diaz depois apareceu-Ihe dizendo que tinha encontrade um comprador... @ no dia seauinte, © megmc agente apareceu-Lhe com o Autor (Talhdo? © este declarou que compraria 3 preta pelo preco que tinha ajustado de quinhentos mil-réis, @ que disso bastava um reciba, porque queria ver primaire se 4 preta Ihe garvia, aus do contrdrio seria passada a outra pessoa a escritura,... Que o Autor pagou quaranta @ cinco mil- réis na Detencdo conforme o agente, @ mais tarde tendo ela fugido do poder do Autor onde estava por trés meses Por té-la castigado, vcltou para a Corracio e ainda o Autor teve de despender trinta mil-réig para retird-la dali. Que o autor nunca exigiu a escritura de venda da excrava, nem tdo pouco lhe deu parte que a dite ascrava se dizia livre, conquants seja esse o costume dela. E somente mais tarde o @uter Lhe exigiu a restituigéa do dinheiro dado pela ezcrava alegando que ela o nao queria servir, @ ele depoente declarcu-Ihe que ongo Ih'o restitufa porque a compra setava recebiada (sic.>". Temos aqui, novaments, uma transacdo de compra @ vanda na qual nfo € feita a escritura definitiva, contentando-se o comprador com uma procuragio € um recibo. A explicagdo oferecida por Viana para esa forma de realizar a negeciagie, pordm, ¢ interessante: ndo se trata apenas de evitar despesas waiores na transferéncia, mas também de ficar com 9 escraua por um perioda de teste. Veremos adiante que a pratica do perioda de teste parecia bastante difundida, pelo menos nas transagées realizadas na Corte na segunda metade do século HIM, @ tal prdtica deixava aes negros um certo espaco de pressio ou interferancia no ruma que teriam suas vidas. 6T Por ora, 60 trecho final dasideclaracdes' do réu Viana que mais interessa. Carlota tinha o “costume” de se dizer livre. Gebemos pelo depcimento d= outra testemunts qua a escrava nic sé ee recusaua a servir a Talhéo como vivia am oritarias pela casa e fugia sempre que possivel. Carlots, essa "coisa" que devia apenas ger usada, comprada @ vendids, ge fez uma “marcadoria” seprestavel, Wiana tem a preccupasdo de se defender da acusagio de Talhfo de que ele nada fizera para convencer a escrava que ela devia obediéncia a seu nevo senhor. Ele alega que, apesar de waber do hébito da africana de se dizer livre, Talhéo nunca Ihe havia informado disso. Assim como na histéria de Felicidade, astamos diante de uma ascrava que precisa convencida da legitimidade de seu cativeiro. Us autes néo trazem as declaragies de prets, porém um dos dapoentes explica que Carlota bradaua sempre que um antigo senhor “a deixara forra". @ origem das alegacfes de liberdade de Carlota podia ser uma carta de alforria extraviada antes de ser devidamente registrada em cartério ou, o que é mais provivel, a preta devia estar sa apegando a ums pro- messa oral de liberdade sue nfo fora cumprida por algum motive. Felicidade © Carlota achavam que tinham direito & liberdade @ nfo parecia possivel submaté-las a um cativeiro que elas percebiam como injusto ou proveniente de uma usurpacie. se manter junto & Felicidade estava ainda motivada pelo desejo d mie. Em sou depoimento, o réu Viana arcumenta que Carlota fugira da casa de Talhéo porque este andara lhe aplicando castigos. Carlota talvez ndo aceitasse us castigos fisicos de seu suposto anhor porque se considerava uma pessoa livre. Mas pode ser também = que Carlota considerasse os castigos excessives ou apli- cados por motivo injuste. Seja como for, o fata é que essa referéncia a castigos intoler4veis nos d4 acezso a todo um Universo de percepgées dos escravos a respeito de seus direitos, Percepcées essaz que fundamentavam acées firmes no sentido de impor certos limites 4 ciranda de negécios da escraviddc. 5. Castigos e aventuras: as vidas de Bréulio @ Serafin. jd havia Filomeno participou ¢a agressfo a Veludo porque apanhado"s Constansio achava que o negociante era “muito mau"s Bonifdcie explicou que tinha "raiva de seu Senhor por dar-lhe palmatoadas", @ acrescentou por ocasife do julgamento no Juri que 29 Veludo Yestava para Ihe pagar” Curiosa masmo € a parte referente ac muro na plano detalhado desses escravos: Filomeno esclareceu “Que hoje a mando de Bonifdcis. crioulo, deitou oo interrogado o muro da casa de Veludo abaixo para que Velude ralhasse com eles © nessa ocaside caissew todos de achas de lenha en cina dele". G muro derrubado era para provocar a repreensso e talvez os castigos do senhor. Farece que as coisas se passaram muito rapido e Uelude comesou a levar pancadas antes mesma que o muro caisse --se ¢ que caiu, pois quase néo se faz referéncia ao fato. Maso que importa @ a preocupacia dos negras, ou pelo menos de alguns dele, como Filomeno @ Bonifdcio, em fabricar uma justificativa para seus ates que pudesse ser entendida tanto pelos seus outros parceiros da cativeiro quanto pelos senhores © agentes encarragades da repressdo a0 movimento, Ndo podemos saber se os castigos aplicades por Ueludo foram realmente a motivacio 63 pringipal dos escravos que decidiram surrd-los no entanto, pode- mos entender o porque de ser essa uma razdo verossimil. Bréulio era baiano, pardo escuro, solteira, analfabeto dinba cerca de 20 anos naquele dia 25 de agoste de-1675, quando foi acusado de tentative de morte contra o negociante portuauss Jodo Indeio Cwelhe da Silvs, supostumente seu senhor. Cl processo criminal cua se sequiu traz informactes suficientes para comparmos uma pequena biografia de Grdulic. A infancia do ascrave, gua familia © algumas circunstancias de sua venda @ sfo descritas num documento enviado da Bahis, e para oo sude: copiado nos autos sem uma indicacto mais precisa quanta & 34 autoria, dats e local: "OQ pardo escuro Erdulic e nfo Braz, foi escrava do Major Nicolau Carneiro da Rocha, sendo o seu nome incluide ono inventario a que se procedeu por morte de seu senor, @ como depois procedesse mal foi entregue aos negociantes Miranda e Leony, os quais, consta, o remeteran para a Corte, Nunca esteve ele «m casa do Dr Antanio Carneiro da Rocha = sempre Vivau com sua mie na de seu senhor o Major Nicolau, devenda constar na Subdelesacia da Sé um ferimento, que esse escrauo fez quands menina em outro menino. certidda junta prova que ele nasceu escravo e 4 filho de Severina, tendo gido padrinho Leopolding José de Monte conhecido por Monterod, @ estas duas dltimas circunstancias casam-se com as declaragtas de seu interrogatério feito na Corte, Brdéulio tem um irmio de nome Durval, o qual com Saverina, m&e comum, foi vendide para o Rio Grande do Sul onde se achaw. A avd de Brdulio chamava-se Gertrudes © morreu pela epidemia de cholera martus. Erdulio antes de ser remetida para a Corte esteve algum tempo recelhide na Corregto a requerimenta de seu senhor por ordem do Chefe, que entéo era oo Br. Espinheira". Essas inforwacties foram provavelmente enviadas pela policia baiana, respondendo a uma solicitag#o do delagado encarragade do 10

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