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ENGENHO DA MENTE

FILOSOFIA
SOCIOLOGIA
ANTROPOLOGIA
LITERATURA
CURSO DE INTRODUÇÃO

Verão, 2004
SOCIOLOGIA,ANTROPOLOGIA,
FILOSOFIAELITERATURA
CURSO DE INTRODUÇÃO
FELIX QUI POTUIT RERUM COGNOSCERE CAUSAS
(Feliz de quem pôde conhecer a causa das coisas)

“existe um vínculo indissolúvel entre


a objetividade do conhecimento
e a autonomia da consciência
individual”
(Isolda)

A apalavra “sábio” se prende em suas origens a palavra grega Sapio, eu saboreio,


sapiens, o degustador, sysiphos, o homem do gosto mais apurado. Um apurado
degustar e distinguir parece ser, segundo a consciência do povo, a arte peculiar do
pensador.
A Engenho da mente - assessoria em educação - tem o propósito de complementar
o ensino fundamental, médio e pré-vestibular para um sabor distinto dos conteúdos
das apostilas. Experimentando áreas do saber como a Filosofia, a Antropologia, a
Sociologia e a Literatura buscamos uma formação mais humana e mais sólida.
Assim desdobramos o trabalho do pensador , sempre tão solitário, em
seminários, palestras, aulas particulares, em precepção, enfim.
A Engenho da mente visa dar preciosas indicações de como ligar as idéias mais
abstratas as coisas da vida concreta, o universo, o mundo, a sociedade, a sua cidade,
seu bairro, sua universidade, sua escola, sua casa, seus pais, a você e Deus.
Assim, poderemos compreender a estreita ligação da palavra saborear com a
palavra sabedoria.
Nas praças de Atenas ou nas ruas de Paris, na tranqüilidade do seu quarto ou no
tormento das ruas, daremos voz ao escândalo continuo que é o pensar: um perguntar
sem tréguas sobre Deus, sobre o mundo e sobre nós mesmos.
FILOSOFIA
Tales ou o nascimento da Filosofia
Sócrates ou o escândalo de perguntar
Platão ou o amor filosófico
Aristóteles ou o filósofo como homem do mundo
Agostinho ou a serventia do pecado
São Tomás de Aquino ou o intelecto batizado
Descartes ou o filósofo atrás da máscara
Tales ou o nascimento da Filosofia
Quando perguntamos pela raiz da filosofia, comportamo-nos tal qual o ancião à
perguntar pelo próprio passado nebuloso que ainda residi em suas lembranças, não
obtendo respostas definitivas, perguntaremos pela origem de todas as coisas, pela
própria origem da vida, o que nos levaria a reflexões filosóficas. Poderíamos afirmar
que a origem de certas reflexões estaria em Hesíodo, ou em Homero, e ainda mais
genealógico que ela tenha surgido no Oriente e que fora Adão o primeiro de todos os
filósofos.
Entretanto Aristóteles, o primeiro historiador da filosofia, defendia que a ciência e a
filosofia só poderiam ter começado quando as necessidades externas tivessem sido
satisfeitas, pelo menos em certa medida, e que os homens dispusessem de tempo
ocioso para que a reflexão se ice a conceitos filosóficos.
Isso teria ocorrido pela primeira vez entre os sacerdotes egípcios, daí o fruto da
matemática e da astronomia ter-se crescido nesses povos, consideraríamos
simultaneamente o fato de que Adão, como diz a Bíblia, tinha que ganhar o pão com
o suor do seu rosto, não o restando tempo para pensamentos profundos, elevaríamos
assim a conclusão de que é do ócio de um grande mercador, como se referia
Aristóteles a Tales de Mileto, que vem ao mundo a filosofia.
Esse astuto homem de negócios percebeu que a colheita de olivas seria abundante,
comprou todas as mós de azeite disponíveis e as arrendou a um alto preço, tornando-
se rico e respeitável.
Essa história, que não se sabe da afirmação de sua veracidade, poderia passar
oculta diante do brilhantismo que Tales desenvolveu na vida Política, em seus estudos
Matemáticos e maiormente em Astronomia, pois é deste último que advém o pleno
reconhecimento público quando o mesmo prevê um eclipse solar no dia 28 de maio
de 585 a.C.
Dada a digna ociosidade, esse homem incapaz de perceber o mundo que o rodeava,
várias vezes era enganado e reconhecido como ingênuo, certa feita, ao observar o
céu, por um descuido que é peculiar aos filósofos, caí num poço e é satirizado por
uma serva Trácia que não o poupa de levar a publico que a aquele que queria saber
o que estava no céu, permanecia oculto o que estava presente...
Ingênuo e Inocente são os adjetivos que predicam os filósofos diante dos mais
corriqueiros problemas hodiernos, esse parece responde-los com a obviedade
inocente ridícula aos olhos dos homens da práxis, mas se um dia, por acidente, for
a ele perguntado o que é o homem? As sátiras hodiernas e tributáveis se tornariam
risíveis em suas alegações
ante as questões
fundamentais da
existência residida no
âmago dos filósofos.
Daí Platão e Aristóteles o
considerarem o primeiro
filósofo, pois indagara qual
a essência de tudo isso? O
que há por trás da
multiplicidade de formas
do mundo? De onde vem,
de onde surge? Qual a
origem? O que é o Um, o
princípio que tudo
compreende, que faz que
tudo venha a ser, seja e
permaneça?
Mesmo não formuladas
dessa forma as questões
fundamentais da
existência perpassaram a
alma do mais ilustre filho
da rica cidade de Mileto,
perguntava-se pela origem
de tudo, e após notar que
dos cadáveres de todas as
substâncias, de uma
macieira ou de um
homem, o que se esvaia
na morte era a água, e que
essa, se reencontrava
depois de toda a sua
viagem novamente no
Mar, essa era então a
origem de tudo.
Tales é um materialista!
poderia alegar então o
leitor, mas o que dizer da
frase: “tudo está cheio de
Deuses” do mesmo filho de
Mileto? Cria-se então, um
impasse para nós e para
toda a filosofia “ou-ou”? ou
materialista ou o princípio
Divino?
Aristóteles resolve o
problema observando que o Oceano, a que se refere Tales, é como o rio originário
que, segundo as lendas antigas, banhava a terra e era considerado o pai de todas as
coisas. O Estige, rio da morte, no juramento dos Deuses é invocado como o rio que
separa o mundo dos vivos e o mundo das sombras.
Esse lendário rio original e a mágica sacralidade do juramento como mítica potência
do originário, da divindade da origem, pois a água e Deus vivificam tudo em que
penetram, em todo o real atuam como força Divina.
É diante da confusão do mundo exterior, que o homem se volta para si e urge em
suas entranhas a miséria de esclarecer sua crise, a da religião e a do tempo, tendo
como ponto arquimédico a sabedoria competente ao homem, sem o desamparo da
meditação da verdade do saber mítico e religioso na busca da fundura oculta da
realidade,
Sobretudo hoje, subsiste a filosofia o perigo de que, em sua postura de defesa contra
essa forma de saber, os “filósofos” cheguem a uma interpretação do mundo para
qual só existam coisas materiais. O risco é que essa interpretação faça submergir
no oceano o que a filosofia possui de mais profundo em sua gênese, que é a tarefa
do filósofo sentar-se, plantar bem um dos pés no chão, curvar a espinha, fincar o
cotovelo do braço no joelho, e na altura do queixo, apoiar a cabeça no dorso da
mão, e com olhos amenos assistir ao movimento dos astros, dos ventos, das chuvas,
a manipulação misteriosa das ferramentas que o tempo emprega em suas
transformações e nos desígnios insondáveis e sinuosos da existência...
Sócrates ou o escândalo de perguntar
(470 – 399 a.C.)
Quando discorremos sobre a vida de Sócrates é concomitante discorrermos também
a respeito de sua mulher Xantipa. O leitor poderia indagar sobre o que a mulher de
Sócrates tem a ver com sua filosofia? Pois bem, ao avesso da chamada limpeza
ideológica, religiosa, pregada pelo modismo filosófico da filosofia oriunda do chamado
círculo de Viena (1929 – 1938), Sócrates e sua filosofia são totalmente influenciados
por Xantipa, segundo Nietzsche: “Sócrates encontrou a mulher de que precisava...
De fato, Xantipa o empurra cada vez mais para dentro de sua peculiar vocação”.
Como isso pode ser verdadeiro? Pois é justamente da penúria de perpetrar o marido
ao trabalho que Xantipa faz seu alento de impedi-lo de vagabundear, certa feita, a
mesma arrancou sua manta no mercado público para que esse retornasse a casa. O
filósofo, como soldado aposentado ganhava seu dinheiro com pequenas moedas
que encontrava nas ruas e com biscates de empreiteiro, o que chamamos hoje de
pedreiro, na construção de casas.
Por isso, Sócrates após ser acertado pela água arremessada de um pote por Xantipa,
discorre a seguinte frase: “não disse que Xantipa, quando troveja, manda também a
chuva”, por isso ele acreditava que quem desse conta de Xantipa, facilmente se
entenderia também com outros homens.
É a somatória desses acidentes que leva Sócrates a vida pública, visitar feiras e
praças esportivas a dialogar com todo tipo de gente, feirantes, escravos, proprietários
de terras, artistas, legisladores, enfim, causando com o escândalo de perguntar que
as pessoas revelem que não entendem do que falam e, covardemente não conhecem
a si mesmas. Eis o valor da indagação filosófica, sem o que a vida não é digna de
ser vivida segundo Sócrates.
O vagabundo loquaz, isto é, o vagabundo falante, de certo, não caberia ao estereotipo
do vagabundo que foge aos exercícios físicos, Sócrates além da ginástica praticava
dança, afirma-se que possuía primorosa constituição física e que em batalha agira
com a desenvoltura dos bravos, chegando a ficar imóvel pensando horas a fio sobre
o gelo.
Suas questões tinham como mosca o homem, afastado de Tales, afirmava não haver
nenhum interesse por qualquer estudo da natureza. Criara um método, a maiêutica,
a arte da parteira, pois dizia que nada se ensina, mas
apenas se favorece a criação intelectual dos ouvintes,
em Teeteto, de Platão, Sócrates compara seus
ensinamentos a essa arte, porquanto consistem em dar
a luz conhecimentos que se formam na mete dos
discípulos: “Tenho isso em comum com as parteiras:
sou estéril de sabedoria, e aquilo que há anos muitos
censuram em mim, que interrogo os outros, mas nunca
respondo por mim porque não tenho pensamentos sábios
a expor, é censura justa” (Teet., 15c).
A escolha de um método e não de uma ontologia, isto é,
uma realidade, encontra-se firmemente assentada na
interrogação, pois a diferença do método para a
ontologia, que adiante veremos no platonismo, pode ser
exemplificada, embora os exemplos nada digam de
verdadeiro, na cilada que produz o relativismo
antropológico, quando esse afirma serem as culturas
unicamente distintas e jamais uma superior á outra
esquece de dizer que enquanto método isso é claro que
funciona, no entanto, quando essa característica assume
ares de realidade, corremos o risco de considerar que o
sacrifício antropofágico dos filhos mais novos dos índios
tupinambás é equivalente a adoção de órfãos no
cristianismo. O que seria mais reto entre os dois?
Portanto, se o homem não se pergunta se seus atos são decisivos para o seu destino
post mortem? dá-se que nem humano é, torna-se um bicho acuado, não se importando
com o reto pensar, com que se saiba o que se diz, com que se preste conta sobre si
mesmo.
Daí a identificação entre o conhecimento e a virtude, pois Sócrates considerava
possível ensinar e aprender a virtude, dizia que “para o homem, uma vida sem
provação não é digna de ser vivida”.
Diante da crise do espírito grego, sua decadência, para ele perguntar significa ter a
coragem de suportar também o amargor da verdade, a compreensão da miséria
humana que as pessoas negligenciam à elas mesmas.
E quem é que gosta de ser exposto à sua própria ignorância, e além disso, em praça
pública? Eis a causa do desprezo dos atenienses por Sócrates. A ironia com que
afirmava: “só sei que nada sei” conferindo ao adversário o epílogo: “mas sei que sei
mais que vocês que não sabem que nada sabem” foi classifica na história da filosofia,
como bem a utilizou o filósofo renascentista Nicolau de Cusa, como a sábia ignorância
(douta ignorância).
Esse modelo de prática filosófica que se tornara Sócrates, com a peculiaridade de
insistentemente enfiar o dedo nas feridas dos atenienses, cercando-se de jovens
discípulos, concedeu-lhe a acusação de corruptor de menores e dos valores hodiernos,
foi condenado à morte, passagem que se tornou clássica em que ele toma a taça de
cicuta, advertindo que toda certeza advém de uma voz interior que se manifesta
como advertência para o espírito, do qual a conclusão de seu discurso de defesa dá
o testemunho: “é chegada a hora de partir: A mim, para morrer, a vós, para viver.
Quem de nós enfrentará o melhor destino é desconhecido de todos, exceto de Deus”.
Platão ou o amor filosófico
(429 – 327 a.C)
O termo “amor platônico” têm sido o único feitio público de lembrança da filosofia de
Platão, cobiça-se alguém, possuidor do intuito socrático, perguntar pela relação da
frase com o filósofo, este estaria fatalmente diante de uma atração espiritual.
O platonismo reaparece de tempos em tempos como uma estrutura interna e
organizadora do mundo, mais que uma filosofia é um universal humano, uma
manifestação que influenciou todas as estruturas do ocidente, penetrou no
pensamento Judaico, Cristão, Islâmico, Cartesiano, Kantiano, Marxista, Círculo
Vienense, enfim.
Uma das representações mais fiéis do que foi a filosofia platônica está no quadro A
Filosofia do renascentista Rafael, onde encerra como figuras centrais Platão a segurar
seu livro Timeu e seu discípulo Aristóteles, a segurar seu livro Ética. Rafael se
apresenta como grande conhecedor da antiguidade clássica, principalmente na
escolha do professor e de seu mais brilhante discípulo como figuras centrais de todo
o pensamento do ocidente, quando observamos o braço direito de Platão abrangendo
a horizontal e elevando o antebraço na verticalização deste em linha reta até o
indicador estar erigido para o céu, intuímos desse gesto todo o fundamento da filosofia
platônica, pois Platão ali aponta para o mundo das idéias, onde se situa o objeto de
conhecimento do filósofo, por ser este, de um status diferente da multiplicidade da
natureza, sendo único, imóvel e imutável.
A essência imutável enquanto objeto de indagação do filósofo, só poderia se traduzir
numa matemática geométrica e num intelecto, pois quando refletimos sobre um
triangulo sabemos que ele imutavelmente terá três lados, podendo ser isósceles ou
de qualquer outra propriedade de triângulo, sempre terá três lados únicos, imóveis e
imutáveis que essencialmente lhe fazem ser triângulo.
Por isso, o filósofo afirma que o mundo ideal está na idéia única, imóvel e imutável e
se se segue segundo a essência, seria uma grande insensatez se não se considerasse
que a beleza em todos os corpos é uma só e a mesma. E quando compreendido
isso, ao filósofo mostrar-se-á o amor por todos os belos corpos, vindo a desprezar e
menosprezar a perseguição exagerada de um único. Em seguida, virá a consideração
da beleza nas almas mais valorosa do que o amor, porque conforme esse contemple
a beleza em sua multiplicidade, deixará de servir a uma única beleza... e virá a se
ocupar com o vasto mar do belo e dar a luz muitos belos e grandiosos dizeres e
pensamentos em abjurado amor pela sabedoria, até que, então fortalecido e tendo
crescido, contemplará aquele único conhecimento que se volta para a sabedoria
como tal, a idéia única que reduz a unidade todas as outras idéias na totalidade, o
que é perpétuo, o que nem nasce nem morre, nem cresce nem decresce e todas as
coisas belas participam dele em certo modo...
Quando Platão por meio das palavras de Sócrates, que segundo sabemos, jamais
escreveu coisa alguma, narra o amor de Sócrates por meio do reto amor por garotos,
inicia-se a contemplação por aquele belo quase se tocando o objetivo, por isso que
isso significa dirigir-se as coisas do amor, e do amor do próprio belo que se comece
a ascensão de maneira contínua, como bem podemos conferir nas frases de Sócrates:
“de um copo belo a dois e de dois a todos, dos corpos belos aos belos modos de
vida, dos modos de vida aos belos conhecimentos, dos conhecimentos, enfim, ao
conhecimento que a nada mais se refere do que ao próprio belo...”
O fato de Sócrates ter recusado as incessantes propostas sexuais de seu mais brilhante
discípulo, Alcebíades, estas não nos colocam perante a defesa da limitação sensual
como um método, em vez disso, dá ao belo uma dignidade delimitada, mas o
exacerbando a uma forma mais elevada de desejo. Para além das belezas dos corpos,
das almas, da condução da vida e do conhecimento, o amor platônico insta pela
beleza em si mesma, onde no belo urge a aspiração pela idéia do belo, pelo arquétipo
do belo: a doutrina das idéias.
Encontramos portanto nas linhas anteriores a demonstração de uma superioridade
da sabedoria sobre o saber, uma vez que existe uma sabedoria, simultaneamente
encerra a existência da virtude e da justiça, daí o objetivo
político de se escrever A República, pois como meta
final da sabedoria, temos a realização da justiça nas
relações humanas e portanto em cada homem.
Diante dessas reflexões, Platão descobre que o homem
sabe desde sempre, originariamente, o que é a justiça e
o que são as outras virtudes. O homem trás em sua
alma arquétipos de todos esses retos modos de
comportamento e esses devem determinar a sua ação.
Vemo-nos diante da idéia de uma ontologia, leia-se uma
realidade, pois o que até então era método para
Sócrates, isto é, o diálogo, a dialética entre dois ou mais
homens que perguntavam e respondiam como método
de investigação conjunta, para Platão, tornava-se um
simples ponto de partida para chegar aos princípios,
dos quais depois se pode chegar as condições últimas,
definindo-a uma idéia de tal modo que ela pudesse ser
comunicada a todos.
Quando nos deparamos na venda com outra pessoa,
da memória que permanece dessa, tempos após o
encontro, uma abstração, já que não podemos consumir
o outro fisicamente, podemos então vislumbrar a idéia
abstrata desse outro, desse ente, o arquétipo desse ente,
podendo dizer daí então, que aquilo que vemos é um
homem, um crime, uma árvore, uma boa ação.
O real originário está dessa forma livre de toda transitoriedade, toda multiplicidade,
mas a ele se destina, porém, toda a aspiração do mundo como um todo, isto é, o
transitório aspira o eterno universal: esse é, para Platão, o segredo da realidade.
Conhecer para ele é relembrar, pois o homem se lembra de uma contemplação
originária desse arquétipo, a qual precisa ter ocorrido antes de sua existência temporal.
Assim, a doutrina da idéia conduz necessariamente a suposição de uma preexistência
da alma e, conseqüentemente, à certeza da imortalidade.
A nostalgia como aspiração para retornar de onde veio, a libertação das cobiças
sensuais e de, já nesta existência terrena, alcançar a contemplação das idéias nas
coisas mesmas. É pois esse o “maior bem que, como dádiva dos deuses, coubesse
ou viesse a caber aos mortais”, pois arrancando o homem de sua existência cotidiana
e elevando-o para o mundo das idéias, a filosofia iguala-se a sabedoria, objeto
essencial da filosofia.
Esse caráter ideário de Platão levou-o a atitudes reformistas, quando esse então
decide apoiar um golpe de Estado numa cidade próxima a Atenas, sob o comando
de um ex-aluno é preso e vendido como escravo sendo só liberto após a venda do
mesmo para seus leais alunos.
Mas do filósofo vale por acabamento as palavras de Platão na República: “Por sua
natureza ele aspira ao ser. Não pode deter-se nas muitas singularidades, das quais
apenas acredita que sejam. Contrariamente, prossegue e não se desencoraja nem
abandona o Eros antes de ter apreendido a natureza daquilo que é... Quando tiver se
aproximado do que verdadeiramente é e se unindo a ele, criando assim razão e
verdade, então terá alcançado o conhecimento. Agora vive de verdade, cresce e
estará livre de suas dores”.
Eis então a paixão daquele que filosofa, a paixão sem a qual não existiria nenhuma
procura pelo verdadeiro eterno.
Aristóteles ou o filósofo como homem do mundo
(384 – 322 a.C)
“Ecce Homo” ... Eis o homem que Dante em sua Divina Comédia apresenta como “o
mestre de todos os sábios”, não por acaso, mas toda a obra recebe a luz da tradição
filosófica, assim como a escola peripatética, o aristotelismo árabe com Avicena e
Averróis, o aristotelismo cristão medieval com Tomás de Aquino, o aristotelismo
judeu com Maimônides, o aristotelismo do renascimento entre várias outras
tendências do mundo medieval e moderno.
Nascido qual a fina flor ante o deserto da provinciana cidade de Estagira como filho de um
“piluleiro”, ofício de farmácia que era característico ao médico, f` ôra a Atenas decidido a
estudar filosofia após refletir sobre a resposta do oráculo sobre o que deveria fazer.
O fato de os filósofos serem famosos pelo desprendimento das coisas materiais parece
não se adequar a Aristóteles, pois se vestia suntuosamente não dispensando anéis e
cabelos bem cuidados dentro do que um relator da época acrescenta que: “ele era
fraco sobre as pernas e de olhos pequenos” e “ceceava um pouco com a língua”.
No tempo de Aristóteles a filosofia era uma ocupação bastante abrangente, pois se
ocupava do saber e de toda a ciência que um estadista, militar ou educador tinham
como base para a vida.
“O leitor” parece ter sido o apelido que seu mestre Platão lhe dera, é do mestre também a
fala: “Aristóteles escoiceou-me como fazem poltros novos com a própria mãe”. Do maior
filósofo fôra ser mestre do maior gênio militar de seu tempo: Alexandre, o Grande, um
garoto ainda de treze anos. Difícil é precisar a contribuição do filósofo sobre o
desenvolvimento do futuro estadista e general, mas é no mínimo estranho que, por alguns
anos, poder e espírito conviveram na sua expressão mais elevada: o futuro conquistador
do mundo e o homem que, em sentido universal, conquistaria o cosmos espiritual.
Depois da estranha morte de Alexandre e de acusações de traição da parte dos atenienses
que bradavam ser ele cooperador das invasões macedônicas por ter sido professor de
Alexandre, Aristóteles permanece na sua escola perambulante, isto é, peripatética
afirmando que Atenas já havia assassinado de maneira injusta Sócrates, um dos seus
grandes filósofos e que os cidadãos não deveriam cometer o mesmo erro duas vezes.
É na escola peripatética que o mestre de todos os sábios se preocupa com a realidade
da multiplicidade da natureza, autenticando a pintura de Rafael que o coloca ao lado
do mestre Platão com o braço direito apontado diagonalmente em linha reta do ombro
até o indicador para a terra. Pois é da intuição, entendendo intuição como as
possibilidade e impossibilidades que a realidade de um objeto apresenta dessa imagem,
que podemos dizer que Aristóteles, contrariando o mestre Platão, considerava que
nada há na natureza tão insignificante que não valha a pena ser estudado, já que, em
todos os casos, o verdadeiro objeto de investigação é a substância das coisas.
O que é o ser? O que é a substancia? Enfim, o que fundamenta todo o real, sua
origem e seu destino?
Sabe-se que apenas trinta por cento das obras de Aristóteles chegaram até nosso
conhecimento e desses trinta, noventa por cento de suas principais obras, muitas
em forma de apostilas de aulas, de difícil interpretação, o que não nos impede de
fundamentar sua filosofia como a fundadora da ciência ocidental.
No entanto, é na substância que reside o homem do mundo, sua metafísica ontológica,
na qual não se pode conceber o ser vivente como um mero amontoado de partes ou
como um mero aparelho mecânico, o ser vivo como um organismo, um todo que
empresta sentido as suas partes. Aristóteles não para apenas no domínio da vida,
dirige-se a totalidade do mundo: os céus, os astros, a terra.
Parte da investigação sobre a essência dos organismos, pois esses são coesos por
manterem uma unidade singular como um todo e como tal é conduzido pelo fato de
possuir uma finalidade e um motivo. Estes últimos, não são como em Platão, lançados de
fora, como forma de um eidos ti, uma certa forma que dá forma à matéria informe, pois
para Aristóteles é um eidós tino, forma “de” uma certa coisa, captada das coisas sensíveis,
e é nestas que descobrimos o inteligível, en tois eidesi tois aisthetois tà noetà éstin.
Porém, em que consistem finalidade e motivo na substância?
Na enteléquia, tendência para realizar-se em suas possibilidades mais amplas, a
essência da planta é a propensão de realizar-se como planta em todas as suas
possibilidades, pois toda a substância trás em si seu motivo e sua finalidade e se
atualiza conforme essa tendência interna.
Daí todas as substancias aspirarem a sua própria perfeição, assim como a natureza e o Mundo
vivemesseímpetodeauto-realizaçãoeauto-aperfeiçoamento,essateleologiauniversaltambém
é vivida pelo homem, pois o mesmo tende para o que é bom para ele no intuito de se realizar
e aperfeiçoar tanto quanto possível o que é em sua essência. O que ocorre é que o homem
tem que se transformar em homem, pois aí esta a sua destinação mais própria.
“Torna-te o que tu és” é a máxima humanista aristotélica, mas como me tornar a
minha essência se ela é o meu máximo? Bom, se a natureza que não faz nada de
insensato fez também o homem, deve telo feito com o fim de que se realize o que
unicamente no homem pode ser realizado: justamente espírito, razão, logos. Reside
nesses três pilares o sentido da existência humana, aperfeiçoar as faculdades próprias
do homem, aquilo que ele é e não pode deixar de ser, sua essência necessária, quod
quid erat esse, que se torne o que se é: o ser racional.
No grupo de textos reunidos no Organon, no inicio de Analíticos, que com os estóicos
recebe o nome de lógica, o pai da lógica ocidental, reconhece a verdadeira essência
do homem no logos, o homem deve de modo acertado buscar sua essência mais
própria no conhecimento desse logos.
Mas o que se entende por logos?
Tanto para os gregos quanto para Aristóteles o logos é a capacidade de conhecer as coisas
e de leva-las a manifestação, isto é, de desvelar o mundo, conhecer o mundo, e não de
domina-lo como faz o pensamento moderno. Eis o resultado profundo de reflexões acerca
do homem e não da arrogância intelectual, pois em termos coloquiais a filosofia é a
demonstração do senso comum e a forma mais elevada da vida intelectual seria daquele
que conhece, não daquele que age. No entanto, se na lógica demonstramos uma coisa
verdadeiramente existente, uma premissa passível de demonstração, resta ao diálogo, isto
é, a dialética, forma que o mestre escolheu para escrever a maioria dos seus livros, a busca
de premissas prováveis, isto é, a triagem dos argumentos confrontando-os com os vários
“prós” e “contras” de maneira que se guarde igual chance a todos, para ver qual deles se
sustenta, isto é, fica de pé. Do confronto crítico de várias possibilidades acabamos fechando
as alternativas até que num certo momento temos uma certa intelecção ou intuição dos
princípios que governam aquele assunto. Oras, se todo raciocínio lógico parte de premissas
demonstráveis e você na maioria das vezes tem premissas prováveis, o que você tem de
fazer é uma espécie de raciocínio lógico ao contrário, das
conseqüências para as premissas prováveis como fim último,
pois aí reside o método aristotélico, não como fizeram crer a
maioria de seus tradutores e comentadores acreditando ser a
lógica a evolução da obra do mestre esses processos estão
todos descritos em pormenores no livro Tópicos.
.AessefimúltimodetodaaspiraçãonomundoAristóteleschama
de primeiro motor, realidade pura, o ímpeto constante para
realização e para perfeição, o fundamento imóvel do qual
surgemtodososdemaismovimentos.Paraohomemdomundo
a ultima palavra não é o mundo, mas Deus. Mas não se trata
do Deus Cristão que de fora da existência ao mundo, na
organização do caos, mas sim a divindade como fim ultimo e
imanente a ele. O primeiro no ser como ultimo no conhecer.
Portanto, aquilo que o homem é apenas de modo imperfeito –
que, porém é o que há de mais elevado no mundo -, na
divindadedeveserperfeição:logos,razão.Daíserparaofilosofo
aDivindadeopuropensar sobresimesma, umacontemplação
daessênciaquenosrevelaumpensamentodeorigemreligiosa.
Quemcontemplouomundo,temenfimdebastar-seasimesmo
no saber da divindade, eis a tarefa de todo homem manifesta
em sua Ética: “Não se deve escutar a advertência daqueles
que dizem que o homem deve pensar apenas no humano, o
mortal apenas no mortal; antes, devemos empenhar-nos, tanto
quanto possível, em ser imortais”.
Agostinho ou a serventia do pecado
(354 – 430)
Aquele que diante do Bispo de Hipona perguntasse pelo passado do mesmo correria
o risco de se assustar com os diversos caminhos da juventude de Agostinho, como
é que um homem com a índole de rebelde e gatuno noturno de transeuntes indefesos
chegou a se tornar um dos Padres da Igreja?
De Hipona quando jovem, segue para Cartago e Roma para aprender retórica, torna-se
brilhante professor da disciplina em Milão. Na aparente vida ordeira de um mestre sabe-se
que ele engravida uma prostituta a qual ama profundamente dando-lhe filho de presente.
Com o tempo a amante e a vida hedonista de um romano tardio é repudiada pelos tormentos
escrupulosos de Agostinho. Distante da juventude ele é Batizado aos trinta e três anos,
deixando Milão para retornar para sua Hipona vindo a ser contrario a sua vontade Bispo,
pois tinha que administrar os bens da igreja não lhe restando tempo para filosofia. Ainda
assim resta-lhe o mosteiro laico onde escreve uma gama de tratados teológicos e filosóficos
que viria a intervir no Mundo após as disputas espirituais e religiosas de seu tempo.
Aos setenta e dois anos se retira para em solidão esperar a morte e num olhar retrospectivo
de sua vida confere a ela um amontoado de pecados, um Santo não encerraria tão
humanamente sua vida, mas é da humanidade do homem que se afere a sua medida,
pela amplidão das possibilidades que esse pode atravessar e que de fato atravessa, por
isso a servidão do pecado na juventude, pois esse o arremessa como o objeto mesmo
de sua reflexão com a tenacidade que nenhum pensador antes tenha feito.
“Tornei-me para mim mesmo uma pergunta” é a frase que demonstra a reflexão
franca na exibição dos pecados cicatrizados numa vida, daí seu livro Confissões
demonstrar que em todos os acontecimentos que descreve de sua vida regressa,
encontra a si mesmo e instrui-se a compreender a si mesmo.
A contemplação de si mesmo validada na afirmativa da essência humana estar situada,
não com o futuro que é o futuro do presente, e nem com o passado, que é passado do
presente, mas sim com o eterno e imutável presente, que assiste o movimento do
tempo de uma esfera ulterior imutável situada além e que se acrescenta ao ser vivente
na sua pluralidade de formas substanciais é o argumento ontológico de Agostinho.
O homem alcança a verdade através da contemplação de si mesmo: “Não saias de
ti; volta-te para ti mesmo; pois a verdade habita no interior do homem” – conforme
olha para o seu interior esse rompe com o ideal grego
do homem como membro dos cosmos, ou como aqueles
que agem em comunidade, e tão pouco, como os
neoplatônicos que acreditam ser ele apenas uma parte
projetada de Deus na terra.
Há algo de errado no homem pois ele vive no erro e anseia
por escapar a esses grilhões por achar insuportável viver
nessa condição. “Nosso coração é inquieto” afirma o Santo
ante a confusão e a nostalgia que distinguem a inquietude
humana: “Tu nos criaste para Ti, e nosso coração vive
inquieto, enquanto não repousa em ti” .
Assume diante de suas confissões a miséria humana e
procura salva-la na divindade perguntando pelo homem e
por Deus, combinando-os num único grande problema:
“Quero conhecer Deus e a alma. E de resto nada? Não,
absolutamente nada”.
Esse desacerto que o Santo filósofo acredita existir no homem
é exacerbado quando colocado diante de Deus, sendo apenas
solúvelseconcebidocomopecado,opecadooriginalquedesde
Adão,teriacorrompidoaessênciaboadohomemcondenando-
o a não ser mais sem pecado.
Os leitores poderiam argüir que Agostinho comete um erro
quando soluciona o desacerto do homem com Deus, no
pecado original, pois se esse é determinado desde sua origem, o homem então, não
tem culpa alguma de agir erroneamente, pois nascera assinalado.
Por isso o Santo dizia que o pecado não pode ser sem a culpa, pois assim esvaziáramo-
lo de significação, a culpa só pode ser atribuída se aquele que age for ele mesmo
responsável por suas ações, isto é, se ele for entendido como um ser livre.
Como conciliar o conflito do determinismo do pecado original e do livre arbítrio?
Através da predestinação, isto é, da iluminação divina, segundo a qual toda a ação
humana estaria desde a gênese determinada nos inescrutáveis desígnios de Deus, que
salva quem quiser e condena quem quiser, assim a mente humana não pode funcionar
sem a ação iluminadora, predestinada e imediata de Deus não podendo encontrar a
certeza fora das regras eternas e imutáveis da sabedoria Divina.
Quando Agostinho faz demasiada honra ao homem, atribuindo-lhe a liberdade, reduz
as honras de Deus. O pensamento de Deus levado às últimas conseqüências exige
que se lhe atribua a liberdade absoluta, e somente a ele, ainda que isso seja de
impossível compreensão para o homem, pois se trata de curvar ante o mistério divino.
Para o Santo a razão natural é incapaz de obter um conhecimento seguro sobre Deus,
dá-se que essa cognocisbilidade é revelada e acolhida pela fé, sua teologia da fé pode
ser assim expressada: “Nós somos demasiadamente fracos para encontrar a verdade
com a mera razão; por isso a autoriadade dos escritos sagrados nos é necessária”.
O primado da fé não pode ser derrubado, por mais que o Santo insista em que não se pode
abandonar a compreensão racional que existe somente na dependência da fé, que é o que
afere a veracidade da razão, ultrapassando a mesma, que é submetida ao juízo da fé e que
por isso mesmo é superior a razão, entretanto, aquilo que ultrapassa a razão é Deus, daí se
conclui que o critério da verdade deve existir.
É quando o homem contempla a si mesmo e a sua situação no mundo, perguntando
quem é Deus? a quem finalmente o homem e o mundo devem a sua existência?
que ele se mantém contemplando de modo indireto, e não imediato, a única forma
de conhecer Deus. Desse modo, o conhecimento de Deus se dá na experiência que
o homem tem de si mesmo... na aspiração ao bem, ao objeto supremo de toda
nostalgia, ao bem supremo.
Agostinho acha que também pela razão natural é possível conhecer as determinações
mais gerais da essência de Deus, que segundo a tradição cristã nos criou com sua
imagem e semelhança, assentando-nos na condição de criatura, e que essa criatura,
apesar da pequena escala, traz os vestígios do Criador em si e em toda a realidade
para que a partir desses vestígios possamos inferir a respeito do autor da obra.
Essa apreensão indireta da essência de Deus com base no método da analogia através
do caminho do entendimento natural chega a um dos fundamentais mistérios do
cristianismo, o da trindade pois, segundo o Santo o homem tem condições para isso
quando observa a si mesmo e constata que tem uma formação triádica, que consiste na:
memória, na vontade e no entendimento, que são únicos, porém em relação uns com os
outros. Dá-se que se assim se manifesta no entendimento natural, isto é, no homem,
também se manifestará na constituição de Deus que criou todo o real e o próprio homem.
Esse pensamento indistinto entre teologia e filosofia quando se debruça sobre si mesmo,
sobre o homem, sobre a substancia para usando um termo aristotélico, debruça-se numa
das questões mais fundamentais da metafísica que é o tempo do homem. Isso o projeta
como o grande teólogo da história e filósofo da história do Ocidente. A história como
cenário do conflito humano entre o Reino do Diabo, do Mundo e de Deus, manifestados
em épocas marcadas pelas lutas que se iniciam antes de Adão com a queda de Lúcifer, e
encontra seu meio na vinda de Cristo, e seu fim no juízo final e na plena realização do
Reino de Deus. Mas para ele não é, como crêem por exemplo os marxianos, o homem e
sua ação que conduz os eventos decisivos da história, mas à vontade de Deus.
Em todas as questões do Santo Agostinho esse tocou no domínio do homem e no domínio
de Deus, com o empenho de atingir a compreensão das coisas divinas a partir do homem.
Talvez nenhum filósofo tenha penetrado tanto nos mistérios de Deus. Entretanto nos
mistérios do homem são acessíveis apenas, a aquele que for ele mesmo um homem,
como foi Agostinho, isto é, um homem com todos os predicados humanos do homem.
“Quem poderá deter a inteligência do homem para que pare e veja como a eternidade imóvel, que
não é futura nem passada, determina o futuro e o passado? Acaso poderá realizar isto minha mão?
Ou está minha língua, com a palavra, poderia realizar tal obra?” (Confissões, livro XI)
São Tomás de Aquino ou o intelecto batizado
(1224/5 – 1274)
O “boi mudo”, assim era apelidado Tomás por seus companheiros, gordo e quieto eram suas
capitais características, no entanto dentro daquela calmaria escondia mares revoltos que
não queriam se expor de forma alguma se não apenas por um acidente. Nisso situava seu
mais profundo compromisso com a filosofia, quando descoberto por um dos companheiros,
pede insistentemente para que não se desvende que era dono das soluções para os problemas
do professor. Quando submerso em reflexões, esquecesse totalmente das coisas corriqueiras
a tal ponto de num jantar a convite de Luis o Santo, Rei da França, esmurrar a mesa e gritar
“Assim deve-se argumentar contra a heresia dos maniqueus” enquanto todos se manifestaram
estupefatos o Rei, digno do predicado que viria a ter, ordena que anotem as suas falas.
Filho de família nobre destinado a ocupar um vantajoso cargo na Igreja, prefere a
mendicância da recém fundada ordem dominicana que através do ideal ascético
tenta conduzir o cristianismo, saturado em seu tempo, para uma vida segundo o
Evangelho. Maus vistos em seu tempo os dominicanos sofrem com o ostracismo
publico levando a importante Universidade de Paris recusar acolhida ao seu corpo
docente, proibindo os estudantes de comparecerem a exposição inaugural de Tomás.
Certa feita, o grande teólogo e filósofo Alberto Magno, professor de Tomás, diante da
gozação dos alunos responde: “Vós o chamai de boi mudo; eu, porém, vos digo que o
mugir desse boi se elevará tão alto que preenchera o mundo inteiro”.
A fusão da teologia cristã com a filosofia grega que Agostinho propusera, isto é, a síntese da
razão natural e da fé, na qual a razão se submete por completo a fé, para que daí a seu ofício
desenvolva-se de modo pleno, chegara a seu ápice com Anselmo de Canterbury, fora
questionada pela influência deAristóteles no Mundo Árabe, irrompendo nos livros deAvicena
que chegavam até as mãos de Tomás, até penetrar por completo no pensamento ocidental.
Uma filosofia que restituísse a dignidade da própria filosofia em presença da teologia
ao invés de vela apenas como auxiliar como pregava o sólido pensamento cristão,
pareceria no mínimo perigoso. Um sistema como o de Aristóteles que abarcava
dentro de sua filosofia um conhecimento fechado da natureza, do homem, do cosmos
e de Deus causou pânico entre os teólogos, justamente num momento de crise
surge um pensamento que daria suporte ao mundano, criando o problema da
coexistência de duas verdades, a da fé e a da razão.
Aí que se assenta a genialidade de Tomás, pois é do esforço de concatenar a fé e a
razão no homem, sem sobrepor uma a outra, contra o grande risco da dissolução do
homem e do que ele próprio.
Em volumosas obras como a Suma Teológica e a Suma contra os gentis como em
todos seus escritos Tomás procura analisar a razão e a fé e o que pertence a cada uma
delas. Para Tomás a fé relacionava-se com as coisas metafísicas já a razão natural
atinha-se às coisas mundanas. E nessas ultimas tínhamos que decorrer racionalmente.
O leitor mais atento, por analogia, ao ler o parágrafo anterior, chegaria a conclusão agostiniana da
superioridade da fé sobre a razão como iluminação divina para a solução do impasse que criava
a dupla verdade. Contudo, segundo Tomás, tal domínio trata-se mais do mundo sensível que da
iluminação,poisopontoarquimedicodopensamentomundanoéemaltograumaisdaexperiência
sensível, experiência essa que tem como critério de verdade a compreensão racional.
Essa dignidade da razão da a ela possibilidades de apreensão do metafísico mas
desde que esse esteja na realidade do mundo, isto é, uma metafísica ontológica
como propunha Aristóteles, negando a dupla verdade com a prudência de
preservar a integridade do espírito humano. Fé e Razão são galhos do mesmo
tronco que é Deus, e se Deus criou ambas, seria uma contradição elas se
desmentirem dada à mesma origem. A Fé não pode ser anti-racional, assim como
a razão não pode instruir nada que conteste a fé.
Demonstrar os “preâmbulos da fé” é a tarefa da razão segundo Tomás, eis a primazia
da fé sobre a razão, eis a face cristã que vê na verdade da fé a perfeição ante a
verdade da razão natural É a Fé que conduz a razão a atualizar potencialidades
elevadas. “A Graça não suspende a natureza, mas a completa”.
O Apolíneo grego não obstante de suas rédeas virtuosas
colocadas por Agostinho, se manifesta firme e estrutural
na filosofia teológica cristã, quando Tomás resgata a
forma substancial como encarnação e parte do Divino,
trás consigo novamente as formas estéticas do
mundano, da “mundanalidade”.
Além da multiplicidade formas buscava a essência universal
das coisas, debruçando-se sobre elas no conhecimento da
matéria e da forma, considerando a matéria apenas
amalgama da forma que se manifesta sobre ela, vê nas
formas a essencial indubitável das coisas, como no sentido
aristotélico, em que as formas são a essência das coisas
enquanto se desenvolvam nelas dinamicamente.
Diferentemente de Aristóteles acredita que as formas ou
essencialidades existem originariamente como idéias no
espírito de Deus, e a filosofia quando abstrai a essencialidade
da realidade reflete os pensamentos de Deus.
Para ele a uma gradação na reflexão que Deus tem do Mundo,
poisquantomaiselevadaaformasobreamatéria,maiselevada
a sua realidade, por exemplo na planta temos uma faculdade
vegetativa, no animal uma sensitiva e no homem além da
vegetativa e sensitiva uma alma espiritual e portanto imortal,
masaindaligadaaocorpo,porissomaisacimaestãoasformas
dos espíritos incorpóreos: os anjos. Mas estes também são
imperfeitos, são puros, mas criados pelo incriado: Deus.
Qual fusão do Mundo Grego com o Mundo Medieval, uma vez que se o mundo
inteiro é como dizia os gregos, uma tendência incessante da possibilidade para a
realidade, então a realidade mais pura exclui toda possibilidade, e essa é Deus.
Essa realidade máxima e ultima de Deus extraída da enteléquia aristotélica, colocava
Deus no devir do Mundo, não como parte, mas como supremo princípio imóvel de
todas as coisas para qual tudo se movimenta.
Distante do princípio grego de um Deus que organiza o caos Tomás se debruça sobre a
questão do Deus Cristão, para ele Deus não penas sustenta todas as disposições do mundo
como pensaAristóteles, mas é como o princípio de todo acontecer, como o criador do mundo.
ÉatravésdaanalogiadoserqueTomássedebruçasobreomistériodaTrindadeedaEncarnação,
poisobservaquetodarealidadetemseuserpormeiodeparticipaçãoemDeusenquantorealidade
absoluta, assim, Deus e o homem não são os mesmos, mas também não são totalmente
diferentes, são semelhantes, mas sem dúvida de grandezas diversas. E Deus somos em parte,
e enquanto somos, somos semelhantes a Ele, o princípio, mas Deus não é semelhante a nós...
Longedeumpanteísmoqueincorreramospensadoresárabes,oSantoafirmaqueaidéiadacriação
pressupõeumadistanciainfinitaentrecriadorecriatura,reconciliando-oassim,comoprincípiocristão.
E é da base desse mundo criado, isto é, esse Deus em parte, queTomás concebe a capacidade
da razão natural compreender, pela analogia, a existência de Deus. Não na realidade da
alma como afirmava Agostinho, mas sim na realidade do mundo, pois se este é finito não
pode ter seu fundamento em si mesmo, remetendo-nos a Deus enquanto criador.
Se tudo tem uma causa criadora, o leitor poderia chegar a questão de que se Deus
criou o mundo quem criou Deus? Não se pode como bem salientou Tomás, regredir
ao infinito na cadeia das causas, pois tem de haver uma causa primeira.
Dá-se que o homem foi criado por Deus e criar significa comunicar a criatura algo da
própria essência. Mas outra vez, por analogia, o leitor poderia indagar que se somos
semelhantes a Deus e somos finitos, também Deus é finito?
Eis a função da fé, jamais o homem finito pode desvendar a totalidade da infinitude de
Deus, pois somos semelhantes a ele em parte, mas ele não é semelhante a nós, por
isso que na analogia o finito tem de ser negado e ultrapassado pela validação da fé.
“O supremo saber de Deus, que podemos obter nesta vida, consiste em saber que ele esta
acima de tudo que dele pensamos”.
SãoTomásantesdoterminodaSumateológicaabdica-sedapenaeapresentaoseuconhecimentode
modo indiscutível na frase; “Não posso mais; ante o que vi, tudo que escrevi se me parece com palha”.
Descartes ou o filósofo atrás da máscara
(1596 – 1650)
“Do mesmo modo que os atores colocam uma máscara, para que a vergonha não se reflita em
suas faces, assim me penetro no teatro do mundo – mascarado”
Cristão ou não foram os predicados que sempre acompanharam a obra de Descartes.
Seria essa a justificativa de se usar uma máscara? que obscuridades se escondem
por trás da máscara do filósofo René Descartes.
O título de sua primeira meditação de Descartes: “Das coisas que se podem colocar
em dúvida” leva-nos a uma “errante” destruição dos valores tradicionais da filosofia.
Em seu caminho humano pelo “grande livro do mundo”, Descartes mergulha num
universo infinito e múltiplo em que tudo que é apresentado como saber inquestionável
parece-lhe altamente duvidoso.
Descartes acha o “grande livro do mundo” em Paris, mais que em qualquer outro
lugar. Estabelecido na cidade luz, Descartes compartilha da vida social da cidade,
cujo o qual se enfastia, se isolando em seus aposentos afasta-se da família e dos
amigos.
Sabe-se que certa feita alistou-se no serviço militar, vindo a servir tropas conduzidas
por Mauricio de Nassau e que tenha tido um feito vitorioso contra o ataque de navios
piratas. Contornando a Europa quando civil, vindo a residir em Amsterdã, local em
que poderia “ na solidão” viver apenas para as descobertas do espírito humano, o
que exigiria a mais ampla e radical derrubada das convicções professadas pelo
filosofo até agora, porém agora se dedicaria não mais ao “grande livro do mundo”,
mas a investigação de si mesmo.
Cansado das imperfeições da natureza, resolve vestir à máscara do homem, e neste,
também pela dúvida sistemática vê imperfeição e susto, retomando o leito do
pensamento e fé nas suas meditações. O que Descartes pretende depois da destruição
das estruturas é a questão metafísica e, sobretudo, da existência de Deus e da
natureza da alma humana, assim, quer ocupar-se desses temas antiqüíssimos da
filosofia com sua nova metodologia, estabelecida segundo o modelo exato das
matemáticas, convencido de poder dar-lhes uma solução válida. Para Descartes,
filosofar significa propor as perguntas metafísicas e antes de tudo, trata de descobrir
um fundamento seguro, ou seja, um ponto que fosse imediatamente certo e
esclarecedor como os axiomas matemáticos, de tal modo que pudesse suportar
todo o edifício da filosofia, para que assim, chegasse a um princípio absoluto.
Porém, é necessário ser dono do martelo que destruirá todas as certezas provisórias
e colocará em dúvida o que até então tinha se tornado verdade indubitável. Descartes
só se diz capaz de tal evento em sua maturidade e afirma a necessidade de se
começar tudo pelos fundamentos, e que para essa empreitada se realize, é necessário
contrariar as tradições, procurando estabelecer algo firme e constante na ciência.
Com enorme audácia, empreende uma nova fundamentação da filosofia, mas diante
do abismo que se abrira aos seus pés se assusta e recua para as soluções do
pensamento e fé antigos. O fundador da geometria analítica empreendeu sua vida
na tentativa de infiltrar o método exato das matemáticas na filosofia, com o fim de
que ela pudesse igualar-se com a certeza e a evidencia das ciências geométricas
imóveis e imutáveis.
Descartes queria trazer a luz a filosofias que até então permanecera, segundo ele,
na escuridão, mas como corroborar seu projeto com seu Cristianismo? A única solução
era propor as perguntas metafísicas, sobretudo da existência de Deus e da natureza
da alma humana.
Para efetivação de tal projeto megalômano, necessitava estabelecer um ponto
arquimédico que pudesse imediatamente esclarecer como os axiomas matemáticos,
um princípio absoluto, uma verdade indubitável. Mas como chegar a uma verdade
indubitável se o homem vive em estado de dúvida? Primeiro é preciso por em dúvida
tudo o que até então era considerado verdade indubitável, sua tarefa é: “demolir
tudo desde a base e começar de novo desde o alicerce”.
É dessa dúvida radical que atentara toda a filosofia moderna, no sujeito livre para
por em duvida a realidade do mundo externo, duvidar que as coisas sejam
verdadeiramente como aparecem ao homem ou, mesmo, que existam.
Esse argumento coloca-nos a beira do abismo cartesiano, a dúvida exacerbada pelo
argumento de que toda nossa vida pode ser um sonho incessante, e da incapacidade
para se saber se tudo não passa de ilusão, coloca em xeque a própria existência corporal.
No entanto, resta-nos uma saída para esse estado de dúvida que são as verdades
imóveis, tanto no sonho quanto no pensamento, essas são por exemplo, a frase de
que dois e dois são quatro ou conceitos básicos como forma, dilatação, espaço, tempo.
Contudo se essas verdades não estando em Deus como na Idade Média, não estando
na natureza como para os gregos, estaria então, assentada no pensamento do homem,
mas se esse pensamento, devido a sua natureza humana, estivesse enganado até
quando se considera mais certo?
Seriamos errantes, teríamos em nossa constituição um ardil fundamental que
defendida a idéia da criação do homem – como o faz Descartes – chegaríamos à
conclusão de que Deus teria criado o homem errante em sua essência, aí Ele seria,
não “a fonte da verdade” como afirmam a teologia e a filosofia, mas sim um “demônio
maligno”, um “Deus embusteiro”.
Descartes estremeceu quando se deparou ante essas constatações, teve medo de
expressá-los, mas é sintomático que tenha pensado nisso mesmo não escrevendo.
Quando viu que a dúvida radical levaria o homem a correr o risco de afundar-se na
noite do ceticismo definitivo, destruindo toda a certeza da tradição que afirmava que
o conhecimento estava assentado no homem como parte análoga do Criador e que,
por isso mesmo, compreendido na verdade de Deus, Descartes considerou estar
rodeado de “trevas impenetráveis”.
Certo amigo de Descartes perguntou se um de seus leitores morresse antes de
saber que além desse pântano duvidoso existe uma saída, não estaria fazendo que
esse pobre homem que perdera sua crença, perdesse também a bem aventurança,
por culpa do filosofo?
Mas para Descartes o momento em que se desmoronam todas as certezas surge
uma nova certeza, pois é da duvida que deriva a certeza originaria, pois quando
duvido, eu, aquele que duvida, existe. Essa certeza interna não pode ser destruída
nem mesmo se Deus for um enganador. Ainda que ele me enganasse, ainda existiria
eu, o enganado que “penso logo existo” – cogito ergo sum -, e “duvido, logo existo”
ou “sou enganado, logo existo”.
É daí que Descartes retira o lugar da certeza originaria
de Deus e o coloca, num giro no homem determinando
toda filosofia posterior. É na independência do eu, a
fundamentação filosofia primordial e decisiva do filosofo.
Esse eu seria de uma natureza pensante e nada mais,
um solipsismo, isto é, uma forma de acreditar que a
única realidade existente é a do eu pensante, por
exemplo: se você morresse hoje morreriam também toda
a realidade externa a você porque eles só existem
porque você pensa neles. Isso é uma “coisa pensante”
pois o eu, que só vive na consciência, perde o contato
com as coisas. Eis o nascimento da divisão moderna da
realidade em sujeitos desligados do mundo, por um lado,
e puros objetos, por outro, que pesa hoje em dia sobre a
filosofia.
Sendo o conhecimento na filosofia clássica fundado na
unidade entre o sujeito e o objeto, a separação desses
elementos que são constituídos pela realidade
substancial das coisas o fundamento de toda a filosofia
denominada moderna. Agora o sujeito não é mais objeto
de si mesmo na apreensão do conhecimento, pois as
coisas passam a ser o que pensamos que elas são e
não mais o que eram na realidade dada.
Resta-lhe apenas Deus, mas esse Deus só pode se dar no homem finito e imperfeito,
até mesmo em suas afirmações mais profícuas, se engendrado no homem por Deus.
O infinito como tal é precisamente mais perfeito que o finito.
Mas como isso se dá? Descartes afirma que de forma direta como uma certeza
originária já que o homem não pode produzi-la por não abarcar o infinito.
Esse círculo vicioso de compreensão imediata e certeza originaria mais contribuem
para colocar o leitor em duvida do que esclarece as questões propostas, a tentativa
de Descartes reconstruir a metafísica é fadada ao descrédito de quem percebe suas
máscaras.
Por mais que aleguem ser ele o maior influenciador das filosofias posteriores com
traços metafísicos, ou iluministas e até niilistas, sua filosofia só faz crer que o
conhecimento de que a certeza da existência de Deus pertence originariamente ao
homem, quanto a sua própria existência, e que bem próximo dessa certeza mora
também a dúvida que se volta, no final das contas, contra o próprio criador e que a
ameaça entregar a liberdade do eu ao abismo sem fundo.
Se a frase em que se define como “um homem que caminha só em meio às trevas”
estiver correta, Descartes percebeu que sua proposta de fazer da filosofia um campo
seguro como o das matemáticas pelo meio da dúvida metódica, levava em si mesma
a possibilidade perigosa de destruir definitivamente a certeza metafísica que tanto
fez para reestruturar depois que a demoliu. Talvez seja por isso que se oculte atrás
da máscara.
SOCIOLOGIA
O contexto histórico e intelectual do
surgimento da Sociologia
Émile Durkheim
Max Weber
Karl Marx
Maquiavel e seu impactante
pragmatismo político
O contexto histórico e intelectual
do surgimento da Sociologia
O objetivo deste artigo é, mesmo que sumariamente, fornecer ao leitor os conceitos
fundamentais dos três principais autores da sociologia clássica (Durkheim; Weber e
Marx), principalmente no que se refere às suas contribuições metodológicas: o
funcionalismo positivista; a sociologia compreensiva e o materialismo histórico e
dialético. Além disto, busca-se atentar para os desdobramentos políticos
proporcionados por estas formulações teóricas, principalmente aqueles tributários
do marxismo.
A sociologia é uma ciência bastante jovem, nascida na segunda metade do século
XIX, e que busca explicar a vida social através de um arcabouço teórico-conceitual
constituído a partir de um conjunto de métodos e técnicas específicos.
Para melhor compreender esta ciência, faz-se necessário atentar para o contexto
histórico e intelectual de seu nascimento, ou seja, de um lado, há que se analisar o
processo de constituição do capitalismo moderno, com suas vicissitudes e
contradições; e de outro, há que se buscar as referências intelectuais que vinham se
processando desde o renascimento cultural do século XV. Esta contextualização é
extremamente importante, visto que a sociologia, desde seu nascimento, teve (e
tem) por objetivo interferir na organização social, alterando (ou mantendo) as relações
sociais de poder instituídas.
A revolução industrial, muito mais do que a introdução da máquina a vapor, significou
o estabelecimento de novas relações sociais de produção: de um lado, o empresário
capitalista que concentrou os meios de produção e, de outro, uma gigantesca massa
de homens, mulheres e crianças miseráveis, submetidas a jornadas de trabalho
dramáticas e extenuantes. O êxodo rural levou a uma urbanização acelerada, com
efeitos catastróficos: aumento da prostituição, do alcoolismo, da criminalidade, de
epidemias, da mortalidade, etc. Em suma: a Revolução Industrial criou o proletariado
urbano que, à medida que vivenciava as condições a que era submetido, articulava-
se e identificava-se enquanto classe social.
Foi este novo contexto (o desfazer-se de um mundo e o fazer-se de outro) que se
tornou matéria-prima para as primeiras análises sociológicas, na medida em produzia
novas relações econômicas e sociais. Segundo Martins, “A sociologia constitui em
certa medida uma resposta intelectual às novas situações colocadas pela revolução
industrial”1
Além da Revolução Industrial, as transformações
intelectuais que vinham se processando desde o
Renascimento (século XV) também influenciaram o
pensamento sociológico. A observação e o
experimentalismo, largamente utilizados pelas as
ciências naturais, eram agora reivindicados para o estudo
da sociedade, com o propósito de se formular leis gerais
que retirassem dos “deuses” o poder sobre o “devir”
histórico, recolocando, assim, o homem enquanto sujeito
da história.
Nesse sentido, os iluministas (século XVIII) contribuíram
de forma significativa, denunciando as instituições do
Antigo Regime, como “irracionais” e “injustas”, que
atentavam contra a liberdade individual e a igualdade
social. Desta forma, os pensadores iluministas
conferiram ao conhecimento um caráter crítico e negador
da realidade sobre a qual se debruçavam. Em poucas
palavras, os pensadores burgueses se valiam do
conhecimento nascente como instrumento de luta contra
o absolutismo e as instituições feudais, que dificultavam
a plena constituição da empresa racional capitalista.
Os ventos revolucionários (revoluções industrial e francesa) desorganizaram a
sociedade feudal. A tarefa que se colocava, então, aos primeiros sociólogos era,
portanto, a compreensão das leis que regiam os fatos sociais, para assim, reorganizar
e reordenar a nova sociedade, com vistas ao progresso econômico e social.
Visto que a sociologia nasceu em meio ao antagonismo de classes típico do
capitalismo (burguesia x proletariado), esta ciência foi e é objeto de disputas acirradas
acerca de seu objeto de estudo e de seus métodos de análise, gerando assim distintas
“escolas sociológicas” que sustentaram e sustentam posições políticas.
Os fundadores da sociologia (Comte e Durkheim), ao mesmo tempo em que foram
1 MARTINS, Carlos Benedito.
O que é sociologia. Coleção
influenciados pelos iluministas, o foram também pelos chamados “profetas do
Primeiros Passos, nº 57. São passado” (pensadores conservadores), que não viam progresso numa sociedade
Paulo, Brasiliense, 1994. 38ª alicerçada na indústria, na cidade e na ciência, na medida em que estas
edição, p.16. transformações colocavam em risco a propriedade, a autoridade, a religião e, portanto,
a vida. Não é mera coincidência o fato de que os primeiros estudos sociológicos
atentarem para instituições sociais como a família e a religião, e sua significância
para a manutenção da ordem social. Foi neste contexto que a ciência substituiu a
religião, enquanto elemento de conservação e reprodução da vida social. Portanto,
no momento de sua formação, a sociologia assumiu um caráter conservador,
buscando por fim ao estado de “anarquia” e “desordem” reinantes naqueles tempos.
Augusto Comte, por exemplo, buscava com sua filosofia positiva, a reconciliação
entre a “ordem” (defendida pelos conservadores) e o “progresso” (defendido pelos
iluministas). Para ele, a ordem era condição fundamental para o progresso.
Porém, não foi a sociologia nascida do espírito positivista que questionou os
fundamentos da sociedade capitalista. Somente mais tarde, com os movimentos
socialistas, a sociologia se tornou manancial teórico para a luta dos trabalhadores.
Feitas as apresentações, vejamos, agora, os elementos fundamentais da teoria
sociológica clássica.
Émile Durkheim
(1858 – 1917)
Um dos grandes méritos de Durkheim foi, sem dúvidas, estabelecer a especificidade
do objeto sociológico, conferindo assim caráter científico à sociologia nascente.
Segundo ele, a sociologia pode ser definida como a “ciência das instituições”, como
a ciência dos “comportamentos instituídos” pela sociedade. Para compreender as
“regularidades” presentes nas instituições e nos comportamentos instituídos nas
diversas sociedades, elaborou o conceito de fato social, que abarca
“toda maneira de agir fixa ou não, suscetível de exercer sobre o indivíduo uma coerção exterior;
ou ainda, que é geral na extensão de uma sociedade dada, apresentando uma existência própria,
independente das manifestações individuais que possa ter”.2
Em outras palavras, os fatos sociais constituem a moral social e, para reconhecê-
los, é necessário atentar para seus efeitos sobre a coletividade, determinando sua
coesão, ou não. Devem, ao mesmo tempo, apresentar existência objetiva,
independentemente dos desejos individuais; exterioridade, na medida em que age
sobre os indivíduos; e coerção, impondo-se aos indivíduos de forma mais ou menos
violenta.
Dessa forma, dadas as especificidades do fato social, parece justo buscarmos sua
explicação não no indivíduo, mas na vida coletiva, na medida em que
“uma coletividade tem as suas formas específicas de pensar e de sentir, às quais os seus membros
se sujeitam, mas que diferem daquelas que eles praticariam se fossem abandonados a si mesmos.
Jamais o indivíduo, por si só, poderia ter constituído o que quer que fosse que se assemelhasse
à idéia de deuses, aos mitos e aos dogmas das religiões, à idéia de dever e da disciplina
moral.”3
Assim, os fatos sociais são formados pelas representações coletivas, ou seja, pela
idéia que a sociedade faz dela mesma, formada a partir do acúmulo de experiências
ao longo de gerações e manifestando-se através dos conceitos, traduzidos nas normas
de convivência e na comunidade lingüística de um grupo ou nação.
As normas que unem os membros de um grupo se manifestam de maneira mais ou
menos intensa dependendo do grau de solidariedade que ali impere. Alguns fatos
sociais estão menos consolidados, como a moda, e por isso são denominados como
maneiras de agir. Outros fatos sociais encontram-se cristalizados, como as normas
jurídicas e a língua, sendo denominados como maneiras de ser. Mesmo que em
graus diversos, ambos existem externa e independentemente dos indivíduos, ao
mesmo tempo em que se lhe impõem. São, portanto, fatos sociais.
Um argumento bastante forte no sentido de se provar a objetividade, a exterioridade
e a coerção presentes nos fatos sociais é sua necessidade de imposição aos indivíduos
desde a mais tenra idade: o que faz a família, ensinando-nos normas de
comportamento social? O que faz a escola? Educamos e somos educados não como
queremos, mas seguindo normas de valoração socialmente atribuídas.
Por outro lado, esta adequação ao sistema não significa a impossibilidade de erguer-
se contra ele, dependendo de quão grave for a ofensa cometida, mas deve-se estar 2 As Regras do Método
ciente do preço a ser pago. Que o digam as bruxas e os hereges, durante a Idade Sociológico.
Média. Que o digam os defensores do aborto, da descriminalização das drogas ou 3 Formas Elementares da Vida
Religiosa.
da união civil entre homossexuais. 4 As Regras do Método
Outro aspecto bastante interessante sobre os fatos sociais diz respeito à sua dualidade. Sociológico.
Na medida em que o fato social reside na moral coletiva e não no indivíduo que o
encarna, nos é imposto através da coerção. Portanto, era-se de esperar que a ele
resistíssemos, mas ao contrário, a ele aderimos, pois tudo o que eleva a sociedade
também nos eleva. Mesmo que nos seja penoso, nós o desejamos, pois sua existência
nos precede e sucede, garantindo a continuidade do grupo. Segundo Durkheim,
“ao mesmo tempo em que as instituições se impõem a nós, aderimos a elas; elas comandam e
nós as queremos; elas nos constrangem, e nós encontramos vantagem em seu funcionamento e
no próprio constrangimento.”4
Estabelecida a especificidade do objeto de estudo, Durkheim preocupou-se com o
método que deveria orientar as pesquisas sociológicas, garantindo a objetividade do
conhecimento, proporcionando assim caráter científico
à nova disciplina acadêmica. Neste sentido, na própria
gênese do método funcionalista (tributário do método
positivista) 5 , é evidente a influência exercida pelas
ciências naturais, notadamente pela biologia. Não é mera
coincidência a larga utilização de termos como
organismo social, tecido social, atomização e tantos
outros na elaboração de seus conceitos.
O primeiro e mais importante procedimento do sociólogo
ao analisar os fatos sociais deve ser sua coisificação,
pois somente tratando-os como coisas nos é possível
afastar as pré-noções e os pré-conceitos que povoam
nossa mente, e impedem o acesso ao verdadeiro
conhecimento. Para Durkheim,
“A coisa se opõe à idéia (...) É coisa todo objeto do conhecimento
que a inteligência não penetra de maneira natural (...) tudo o que o
espírito não pode chegar a compreender senão sob a condição de
sair de si mesmo, por meio da observação e da experimentação,
passando progressivamente dos caracteres mais exteriores e mais
imediatamente acessíveis para os menos visíveis e profundos”.6
Este distanciamento em relação ao objeto é uma
conseqüência direta da concepção durkheimiana de
ciência, que busca conhecer as relações causais
existentes na sociedade, não se preocupando com
julgamentos de valor acerca do que é observado. Em
outros termos, Durkheim propõe a cisão entre sujeito do conhecimento e objeto a
ser conhecido. Uma implicação política desta concepção metodológica é, sem dúvida,
a incapacidade do sujeito ser construtor de sua própria história, aparecendo, antes,
como mero resultado do jogo de forças existentes na sociedade.
Delimitado o objeto e exposto o método, passemos a uma das principais preocupações
de Durkheim: o que mantinha os homens unidos em sociedade? Para responder
esta questão, elaborou o conceito de solidariedade social, que seria o responsável
pela coesão dos grupos sociais, em graus diversos, dependendo da similaridade ou
não das consciências individuais ao ser social. Tal preocupação decorre da situação
concreta da França no século XIX, onde a rápida industrialização e urbanização
haviam destruído as formas de solidariedade social existentes no Antigo Regime,
sem contudo substituí-las por outras. Em outros termos, imperava o desregramento
social.7
Assim, quanto maior for a consciência coletiva, maior será a coesão social daquele
grupo, e menores serão, portanto, as possibilidades do indivíduo manifestar-se,
diferenciando-se do grupo. Por outro lado, quanto menor for a consciência coletiva,
menor será a coesão social e, logo, as possibilidades do indivíduo diferenciar-se do
grupo aumentam consideravelmente.
Nas “sociedades simples” vigora a solidariedade mecânica. Os elementos que
compõem a coletividade encontram-se unidos pela similitude, sendo portanto tão
solidários, que a própria idéia de indivíduo perde o sentido. Exemplos deste tipo de
5 Sobre o positivismo, consultar,
entre outros: RIBEIRO Jr., João.
solidariedade encontravam-se na África e na Ásia, onde reminiscências do passado
O que e positivismo. Coleção podiam ser observadas sob as formas de “hordas” e “clãs”, sociedades
Primeiros Passos, n 72; São “inorganizadas”, nas quais o tipo coletivo superava, em força, o tipo individual.
Paulo, editora brasiliense, 8ª
edição, s/d. (1º edição, 1982) Com o aumento da densidade moral, proporcionado pela urbanização, e com o
6 As Regras do Método aumento da densidade material, proporcionado pela industrialização, surgiram as
Sociológico. “sociedades complexas”, nas quais vigora a solidariedade orgânica, conseqüência
7 Sobre as condições sociais da
direta do processo de divisão social do trabalho. Nesta situação, o indivíduo ressurge,
França no século XIX, consultar,
entre outros: BRESCIANI, Maria na medida em que se diferencia no interior do “organismo social”, e nele integrando-
Stella M. Londres e Paris no se pela função que desempenha na produção, tanto que
século XIX: O espetáculo da
pobreza. Coleção Tudo é
“chegará o dia em que toda organização social e política terá uma base exclusivamente ou
História, nº 52; São Paulo, quase exclusivamente profissional.”8
editora brasiliense, 1982. Como dito anteriormente, buscando a objetividade do conhecimento, Durkheim
8 A Divisão do Trabalho Social.
condenava a utilização de pré-conceitos na análise sociológica. Como, então,
estabelecer um critério objetivo que diferenciasse as sociedades simples das
sociedades complexas? Visto que um fato social se manifesta pelo seu efeito na
coletividade, Durkheim elegeu as normas do direito como um fato social capaz de
possibilitar a comparação entre os tipos de sociedades, e assim diferencia-las no
que se refere às formas de solidariedade.
Nas “sociedades primitivas” onde o tipo coletivo é forte, a atitude desviante é
considerada uma ofensa ao grupo e, portanto, com base no costume, o infrator é
punido de forma repressiva, impondo-lhe uma humilhação pública, privando-o do
convívio social e, não raro, privando-o da própria vida. Tomemos como exemplo a 9 A Divisão do Trabalho Social.
moral islâmica, pela qual uma adúltera deve ser punida com o apedrejamento público: 10 A divisão do Trabalho Social.
o adultério fere a todos, e não apenas ao marido traído. Mesmo porque as punições
recobrem-se de caráter ritualístico, o que reanima e vivifica os laços de solidariedade
perturbados pela ofensa. “Quando reclamamos a repressão ao crime, não somos a
nós que queremos pessoalmente vingar, mas a algo de sagrado que sentimos, mais
ou menos confusamente fora e acima de nós”.9
Nas “sociedades complexas” onde o tipo coletivo é fraco e, portanto, os indivíduos
encontram-se unidos pela dessemelhança. Nestas sociedades, a atitude desviante
de seus membros é punida com base num código racionalmente estabelecido, através
da aplicação de penas restituitórias, pelas quais o infrator é obrigado a restabelecer
o estado das coisas e das relações afetadas por sua conduta. Exemplos destas
penas podem ser observados nos códigos civil e comercial.
Em suma, é agindo sobre os indivíduos que o fato social se manifesta, unindo-os por
semelhança ou por dessemelhança, de maneira mais ou menos intensa.
Em uma de suas mais instigantes obras, Durkheim analisou o suicídio enquanto fato
social. Aparentemente, os motivos que levam um indivíduo a retirar a própria vida
deveriam ser buscados na psicologia. Porém, por ser o suicídio um fato social, seus
motivos devem ser buscados na maneira pela qual o indivíduo se relaciona com o
tipo coletivo no qual está inserido. Desta perspectiva, o suicídio deve ser encarado
como algo exterior ao indivíduo.
São três os tipos de suicídio. O suicídio egoísta ocorre quando o indivíduo sente-se
deprimido, desamparado. Tal situação ocorre em sociedades que atravessam
processos de desintegração do tipo coletivo: a sociedade moderna, na qual o indivíduo
é forte o suficiente para negar, egoisticamente, a moral coletiva enfraquecida.
O suicídio altruísta, mais freqüente nas sociedades simples, ocorre justamente
naqueles grupos em que a moral coletiva é forte e, por aceita-la inconteste e
integralmente, o indivíduo aceita privar-se da própria vida em nome de um tipo
social forte, em nome da coletividade. Não são outros os sentimentos manifestados
no 11 de setembro. O suicídio, neste caso, é um dever, uma honra que, se não
cumprido, resulta em perda da estima pública.
Por fim, há o suicídio anômico, que acomete os indivíduos justamente devido a não
existência de uma moral coletiva forte. Mais comum nas “sociedades complexas”,
o suicídio anômico pode ser considerado a atitude extrema de quem não suportou o
estado de anomia social, não suportou a frouxidão dos laços sociais dos quais depende
para sentir-se pertencente a um determinado grupo. Este tipo de suicídio seria o
resultado da ausência de normas, fruto do processo de decomposição de antigas
formas de solidariedades social, sem que estas fossem substituídas por novas formas.
Era a sociedade industrial que assistia ao fim dos mecanismos que controlavam as
paixões e os humores individuais: a família, a religião e a corporação de ofício
haviam, enfim, perdido seu poder coercitivo e moralizador.
Segundo Durkheim, “moral é tudo o que é fonte de solidariedade, tudo o que força o
indivíduo a contar com seu próximo, a regular seus movimentos com base em outra
coisa que não os impulsos de seu egoísmo e a moralidade é tanto mais sólida quanto
mais numerosos e fortes são esses laços.”10 Assim, o estado de anomia que se
verificava na França da segunda metade do século XIX era, antes de tudo, o resultado
de uma crise moral, que livre dos laços regulamentadores e protetores do mundo
feudal, ainda não havia encontrado novos mecanismos de solidariedade social. Em
outras palavras, o desenvolvimento material não foi acompanhado do
desenvolvimento de uma moralidade capaz de conter os interesses e estabelecer
limites, manifestado-se sobretudo nas desordens e nos conflitos sociais, que remetiam
a sociedade novamente ao “estado de natureza”, assim como foi definido por Hobbes
no século XVII.
A revolução industrial trouxe nefandos efeitos sobre a família, que de estendida,
passou a ser nuclear, quando não se desintegrou totalmente diante da miséria e do
desespero. As religiões, expostas a multiplicidade das correntes de pensamento,
perdeu seu caráter sagrado, perdeu seu poder de coerção. As corporações de ofício
haviam ruído, e com elas, suas regulamentações sobre a atividade econômica. Diante
de tanto desregramento, Durkheim aponta a divisão social do trabalho como a nova
fonte possível de solidariedade social, substituindo o papel antes desempenhado
pela família. E se o grupo profissional ainda não desempenha tal função, isso é
devido a uma anômica divisão do trabalho que, por sua vez, precisa ser corrigida.
11 A Divisão do Trabalho Social.
Para que a divisão do trabalho gere solidariedade, faz-se necessário que os
trabalhadores percebam que “suas ações têm um fim fora de si mesmas, Daí por
especial e uniforme que possa ser sua atividade, é a de um ser inteligente, porque
ela tem um sentido e ele o sabe”.11
Nesta perspectiva, a luta de classes que sacudiu a Europa durante quase todo o
século XIX é vista como uma anormalidade no nível das relações sociais. Durkheim
explica a regularidade, não sua quebra.
Assim, a moral é desejada e desejável, visto que é sobre ela que a própria sociedade
se sustenta, e é somente em sociedade que somos humanos, que dominamos as
paixões e passamos a considerar outros interesses que não os próprios.
Para substituir a religião, enquanto fator moralizador, Durkheim propõe que se crie
uma espécie de religião laica, fundada na razão, que exerceria um poder coercitivo,
autorizado pela própria crença social atribuída a racionalidade, que se manifesta
sob a forma de conceitos, de categorias do entendimento que expressam “coisas”
sociais. Aqui, novamente, se pode observar um tributo ao positivismo, visto que
Comte também havia proposto um sistema político-religioso destinado a reformar a
sociedade, através de seu “tratado de sociologia instituindo a religião da humanidade”.
Max Weber
(1864 – 1920)
O pensamento weberiano pode ser enquadrado no contexto geral de crítica ao
positivismo, até então reinante nas ciências humanas. Neste sentido, podemos afirmar
que trouxe nova luz metodológica às explicações sociológicas, na medida em que
estabeleceu diferenças substanciais entre as “ciências da natureza” e as “ciências
do espírito”. Herdeiro intelectual de Wilhelm Dilthey (1833-1911), de quem foi
secretário particular, Weber adota a distinção entre explicação e compreensão.
Segundo Tragtenberg, “A compreensão seria o modo típico de proceder das ciências
humanas, que não estudam fatos que possam ser explicados propriamente, mas
visam aos processos permanentemente vivos da experiência humana e procuram
extrair deles seus sentido”12 Esta é a origem da sociologia compreensiva weberiana,
que busca a “captação da relação de sentido” da ação humana. No entanto, é a
partir do conceito de vontade de poder, elaborado por F. Nietzsche (1844-1900) que
se torna possível a compreensão da realidade social, política e econômica.
Além de Dilthey e Nietzsche, outro intelectual com quem Weber dialoga é o próprio
Marx, com quem compartilha o mesmo tema: o capitalismo ocidental. No entanto,
critica de maneira ácida o monismo causal (de ordem econômica) tão comum no
marxismo vulgar. Portanto, foi justamente na busca de novas formas de explicar o
devir que Weber recuperou o sentido atribuído às idéias dos agentes históricos,
como instrumento para a compreensão de aspectos de uma realidade que, no seu
todo, é incompreensível, mas que tem uma marca inquestionável: a marcha da
racionalidade.
Para Weber, a sociologia é a ciência que busca apreender o sentido contido numa
ação social, observando as “regularidades” expressas nos usos, nos costumes e nas
situações de interesse, estabelecendo relações possíveis, a fim de captar e interpretar
a “conexão de sentido em que se inclui uma ação”, dando-lhe, portanto, caráter
social. Assim, ganha destaque em sua construção teórica o conceito de ação social,
entendido como um “ato, omissão ou permissão”, dotado de sentido subjetivo,
socialmente atribuído pelo sujeito da ação.
Visto que a realidade, como se nos apresenta, é incognoscível, Weber elabora tipos
ideais a partir dos quais busca explicar os sentidos atribuídos às condutas humanas,
estabelecendo uma escala valorativa que parte da irracionalidade e, à medida que o
mundo se desencanta, avança rumo a total e completa racionalidade. Definidos a
partir de critérios subjetivos do cientista, ironicamente são os tipos ideais os
responsáveis metodológicos pela objetividade do pensamento weberiano. Neste
sentido, o tipo ideal constitui-se numa abstração elaborada a partir da observação
empírica, naquilo que ele tem de particular e não naquilo que ele tem de genérico,
como propunham os positivistas.
O tipo ideal aponta para como se daria a ação se seu sentido fosse racionalmente
atribuído, orientando se para um determinado fim e, para isso, utilizando-se dos
meios mais eficazes possíveis. Somente a partir deste tipo de abstração do real
seria possível comparar as realidades concretas umas em relação às outras, do
resultaria a objetividade do conhecimento científico.
São quatro os tipos ideais de ação social, que justamente por serem construções
intelectuais, muito dificilmente se verificam empiricamente em estado puro,
apresentando-se, no mais das vezes, de forma difusa. As ações sociais racionais,
cujos sentidos são atribuídos com relação aos fins e aos valores, podem, por
excelência, ser observadas nas condutas econômicas e científicas; por outro lado,
as ações sociais irracionais têm seus sentidos atribuídos pelo afeto e pela tradição,
típicos de sociedades que ainda não se encontram no mesmo nível civilizatório da
sociedade européia, e que por isso são denominadas “sociedades simples”. A diferença 12 TRAGTENBERG, Maurício.
entre os tipos ideais de ações sociais é, portanto, determinada pelo sentido subjetivo “Apresentação”. In: WEBER,
Max. Os Economistas, São
atribuído pelo agente da ação. Por outro lado, isto não quer dizer que o sujeito Paulo, Nova Cultural, 1997, p.06.
possui um leque infinito de opções de sentidos. Estes são franqueados pelo grupo
social, que os tem muito bem definidos, numa escala de valores positivos e negativos,
expressos através das regras de etiqueta, no uso da norma culta da língua, no gosto
artístico, etc. Outra decorrência metodológica de tal conceituação diz respeito aos
limites da sociologia, visto sua dificuldade em apreender os sentidos atribuídos em
ações pautadas pelo afeto e pela tradição, portanto não racionais.
Cabe uma distinção entre ação social e modo de conduta. O modo de conduta não
é dotado de sentido subjetivo, visto tratar-se de uma ação homogênea, na qual o
sujeito perde-se na totalidade; ou tratar-se de uma ação de massa, na qual não se
pode identificar os sentidos individualmente atribuídos.
Quando vários agentes entram em contato estabelece-se uma relação social, na
qual os agentes dotam suas ações de sentido subjetivo referindo-se mutuamente,
mesmo que não haja coincidência de significados. Agem estabelecendo
probabilidades esperadas de conduta, atribuem significado à própria ação a partir do
significado que acreditam que o outro a ela esteja atribuindo. Quando o que baliza
os significados das ações é a razão, mais facilmente estas relações são expressas
sob a forma de normas, ou seja, relações sociais dotadas de racionalidade e, portanto,
capazes de sustentar uma relação associativa, visto que o sentido da ação de seus
membros será atribuído com relação a fins e valores. Porém, quando os significados
das ações sociais são fundados no sentimento irracional (afetivo ou tradicional) de
13 Economia e Sociedade, p. pertencimento mútuo, temos uma relação comunitária, típica das chamadas
49.
“sociedades simples”.
14 Economia e Sociedade.
Como dito anteriormente, para Weber a multiplicidade do real é impenetrável ao
espírito, em sua totalidade, na medida em que o econômico, o jurídico, o político, o
social e o cultural constituem-se em “esferas” autônomas da existência, com lógicas
próprias, e que se combinando das mais diversas formas, dão origem às mais diversas
configurações sociais. Em alguns casos, o agente da ação dota-a de significado
combinando a partir de duas ou mais “esferas” e, ao sociólogo cabe buscar, através
do método compreensivo, as conexões de sentido.
Esta construção teórica tem por objetivo, entre outros, proceder ao estudo de um
dos temas mais caros à sociologia, qual seja: a hierarquia social ou, em outros
termos, a distribuição do poder dentro de determinados agrupamentos sociais. Assim,
para responder o por que os sujeitos históricos aceitam seus “papéis sociais”, Weber
elabora sua clássica distinção entre os conceitos de poder e dominação:
“Poder significa a probabilidade de impor a própria vontade dentro de uma relação social,
mesmo contra toda a resistência e qualquer que seja o fundamento dessa probabilidade”13
Por outro lado, o conceito de dominação busca compreender a probabilidade de
obediência ao poder, definindo-o como
“um estado de coisas pelo qual uma vontade manifesta (mandato) do dominador ou dos
dominadores influi sobre os atos de outros (do dominado ou dos
dominados), de tal modo que em um grau socialmente relevante,
estes atos têm lugar como se os dominados tivessem adotado, por si
mesmos e como máxima de sua ação, o conteúdo do mandato
(obediência).”14
A partir desta distinção, Weber busca apreender os
mecanismos que fazem com que os homens acreditem
na legitimidade, na validez de determinado ordenamento
social. Por exemplo: Na sociedade feudal, o critério de
valoração social era dado pela origem; na sociedade
capitalista, pela propriedade de certos bens econômicos
que determina a posição social. Em outras palavras,
Weber procura quais são as orientações que seguem
os sujeitos ao atribuírem sentido às suas ações: tradição;
afeto; valores; fins.
Nesta perspectiva, novos tipos ideais são concebidos
para se explicar a distribuição do poder dentro de
determinada ordem social: classe, relacionada a riqueza;
estamento, relacionado a distinção; e partido,
relacionado ao poder político.
Ocorre uma distinção a partir da situação de classe
quando as ações sociais dos sujeitos recebem
significados definidos pelo mercado, como a propriedade
ou não dos fatores de produção. A própria definição weberiana para classe social
revela a centralidade do mercado:
“falamos de uma classe quando: 1) é comum a um certo número de pessoas um componente
causal específico de suas probabilidades de existência na medida que 2) tal componente esteja
representado exclusivamente por interesses lucrativos e de posse de bens 3) em condições
determinadas pelo mercado (de bens ou de trabalho)”.15
Outra é a situação quando a distinção dentro do grupo for dada pelo pertencimento
a grupos de status, e celebrado por ritos e convenções sociais, com destaque para o
casamento endogâmico. É bastante clara a distinção entre uma ordem social centrada
no econômico e outra no prestígio:
“em oposição às classes, os estamentos são normalmente comunidades, ainda que, com
freqüência de caráter amorfo. Em oposição à ‘situação de classe” condicionada por motivos
puramente econômicos, chamaremos ‘situação estamental’ a todo componente típico do destino
vital humano condicionado por uma estimativa específica – positiva ou negativa – da ‘honra’
adscrita a alguma qualidade comum a muitas pessoas (...) Quanto ao seu conteúdo, a honra
correspondente ao estamento é normalmente expressa, antes de tudo, na exigência de um modo
de vida determinado para todos os que queiram pertencer ao seu círculo”.16
Como para Weber as sociedade marcham a passos largos para a racionalidade
total, cada vez menos a distribuição do poder vai basear-se na distinção de status e,
cada vez mais, na ordem econômica. No entanto, mesmo assim, a tipificação com
base no status constitui-se um recurso intelectual ainda capaz de apreender a
realidade social. Enfim, tanto uma como outra ordem social, ao nível da disputa pelo
poder, geram partidos, cuja ação é sempre racional, pautada pelo fim último de
obtenção do domínio sobre o aparelho coercitivo, transformando-se assim em poder
político.
O conceito de dominação ocupa posição central na obra de Weber, na medida em
que este se preocupa com os processos sociais que conferem validade a uma ordem,
que mantém persistentes no tempo os sentidos atribuídos às ações sociais. Em
outros termos, o que produz a legitimidade da dominação?
Posto que Weber busca compreender como se processa a produção da legitimidade,
atentemos para as três formas possíveis (tipos ideais) de dominação legítima: a
tradicional, a carismática e a legal.
“A autoridade do ‘ontem eterno’, isto é, dos mores santificados pelo reconhecimento
inimaginavelmente antigo e da orientação habitual para o conformismo. É o domínio ‘tradicional’
exercido pelo patriarca e pelo príncipe patrimonial de outrora (...) Há a autoridade do dom da
graça (carisma) extraordinário e pessoal, a dedicação absolutamente pessoal e a confiança
pessoal na revelação, heroísmo ou outras qualidades da liderança individual. É o domínio
‘carismático’ exercido pelo profeta ou – no campo da política – pelo senhor de guerra eleito,
pelo governante plebiscitário, o grande demagogo ou o líder do partido político. (...) Finalmente,
há o domínio da ‘legalidade’, em virtude da fé na validade do estatuto legal e da ‘competência’
funcional, baseada em regras racionalmente criadas. Nesse caso, espera-se o cumprimento das
obrigações estatutárias. É o domínio exercido pelo moderno ‘servidor de estado’ e por todos os
portadores do poder que, sob este aspecto a ele se assemelham.” 17
Influenciado pelo conceito de “vontade de poder”, Weber afirma que classes,
estamentos e partidos são fenômenos de distribuição do poder no interior de uma
ordem social, e que é no interior das estruturas de dominação que se dá a luta pela
dominação, encarnada nas relações sociais, nas quais os agentes tentam validar
(legitimar) valores e fins como motores das ações sociais.
Embora a estrutura de poder burocrática seja a forma mais racional de organização
da dominação, ela pode ser abalada pelo surgimento da liderança carismática que,
por seus atributos pessoais, torna legítimas as regras por ela criadas ou reveladas.
Talvez a obra mais conhecida de Weber seja “A Ética Protestante e o Espírito do
Capitalismo”, na qual o autor demonstra como o protestantismo legitimou a
racionalização das condutas sociais de seus fiéis, estimulando a prática capitalista. 15 Economia e Sociedade.
16 Economia e Sociedade.
A Reforma Protestante, vetou a salvação pela contemplação, impondo aos crentes
17 A Política como Vocação.
a necessidade de uma vida santa, acética, determinando, assim, os sentidos que os
sujeitos davam às suas ações sociais, principalmente às econômicas.
Foi justamente a vasta presença de protestantes nos países de capitalismo avançado
que sugeriu a Weber a possível relação entre a ética calvinista e o capitalismo
moderno. Segundo preceitos religiosos, para o calvinista, “a perda de tempo (...) é o
primeiro e o principal de todos os pecados (....) A perda de tempo através da vida
social, conversas ociosas, do luxo e mesmo do sono além do necessário para a
saúde (...) é absolutamente dispensável do ponto de vista moral.”18 “Tempo é dinheiro”.
“O bom pagador é dono da bolsa alheia”. Estas são máximas que podem ser citadas
como demonstração do quanto a ética religiosa influiu no comportamento econômico
dos crentes, que então tomam o trabalho como um valor em si mesmo, como uma
manifestação da graça divina. “Na verdade, o que é aqui pregado não é uma simples
técnica de vida, mas sim uma ética peculiar, cuja infração não é tratada como uma
tolice, mas como um esquecimento do dever. (...) Não é o mero bom senso comercial
(...) mas sim um ethos.”19
De fato, este ethos religioso resultou diretamente em capitalistas empreendedores e
trabalhadores disciplinados e dedicados. Assim, influindo decisivamente na vida e
na prática econômica, Weber evidenciou outras causas possíveis na constituição do
capitalismo ocidental, além das determinações econômicas do marxismo, o que não
significa esvaziar seu conteúdo.
Expostos, mesmo que sumariamente, os conceitos centrais da sociologia weberiana,
resta-nos refletir um pouco mais acerca da prática metodológica da sociologia
compreensiva, bem como acerca das conseqüências sociais da racionalização.
Diferentemente de Durkheim, Weber não acredita na coisificação, no afastamento
das pré-noções, visto que na própria seleção do que será estudado, o sociólogo
manifesta seus valores subjetivos. Mesmo assim, faz-se necessário um instrumento
18 A Ética Protestante e o
conceitual que guie o pesquisador na busca de conexões causais, o conceito de tipo
Espírito do Capitalismo. ideal, que almeja captar e explicar os traços essenciais daquelas conexões.
19 A Ética Protestante e o
Mas se os valores do cientista se manifestam na delimitação do objeto, como garantir
Espírito do Capitalismo.
a objetividade do conhecimento científico? Como se relacionam ciência e valores?
A razão guiará o cientista na seleção e ponderação dos valores que balizarão sua
pesquisa e condicionarão seus resultados.
Novamente a razão. A humanidade caminha para a racionalização das ações e das
relações sociais, regulamentadas, cada vez mais pela burocracia, enquanto
instrumento de dominação legitima. Weber defende o estabelecimento de uma
dominação racional-legal capaz de otimizar a gestão dos negócios do Estado e,
assim, serve de inspiração para grande parte das ciências administrativa e política.
Por outro lado, esta mesma tendência à racionalização da vida promoveu o
desencantamento do mundo, vazio de rituais, vazio de símbolos, vazio do sagrado.
Ou seja, chato pra caramba.
Karl Marx
(1818 – 1883)
Dentre os autores clássicos, provavelmente, Marx seja o mais amado e, ao mesmo
tempo, mais odiado. Durante todo o século XX, a ciência e os movimentos políticos
centraram suas discussões e disputas na afirmação ou na negação da teoria marxista.
Herdeiro do ideário iluminista, Marx acreditava que a razão era o instrumento não só
capaz de apreender a realidade, mas também, de construção de uma sociedade
mais justa, na qual a noção de progresso levaria à humanidade à liberdade e à total
realização das potencialidades individuais e coletivas. Pensador e homem de ação,
Marx legou-nos uma vasta obra, de difícil leitura, da qual retiramos apenas alguns
conceitos fundamentais.
O método de análise marxiano parte da dialética hegeliana, para subvertê-la. Num
clichê: Marx busca, com seu método, proceder a “negação da negação”. Hegel (1770-
1831) identifica, com sua filosofia, o papel desempenhado pela contradição e pelo
conflito como sendo a própria substância da realidade que se supera constantemente,
num processo de conservação, negação e síntese, apontando para a transitoriedade
do pensamento, bem como das formas econômicas e sociais por ele geradas. Porém,
para Hegel, este movimento de superação ocorre nos espíritos humanos, onde a
definição do termo só ocorre pelo seu contrário. Marx se apropria de tal procedimento
e o amplia, na medida em que se vale dele para analisar o processo de produção,
conferindo-lhe materialidade histórica. Nas palavras do próprio Marx:
“Meu método dialético não apenas difere em sua base do hegeliano como, além disso, é
totalmente inverso deste. Para Hegel, o movimento do pensamento, que ele encarna com o
nome de Idéia, é o demiurgo da realidade, que não é mais do que a forma fenomênica da Idéia.
Para mim, ao contrário, o movimento do pensamento é o reflexo do movimento real, transportado
e transposto no cérebro do homem... a compreensão positiva das coisas existentes inclui, ao
mesmo tempo, o conhecimento de sua negação fatal, de sua destruição necessária, porque ao
captar o próprio movimento, do qual todas as formas acabadas são apenas uma configuração
transitória, nada pode detê-la, porque em essência é crítica e revolucionária.”20
Em outros termos, o método dialético permite que a análise sociológica entenda as
transformações sociais e econômicas, pois é através da análise critica da realidade
que o pensamento identifica e analisa o que é, e ao mesmo tempo, apreende o “vir
a ser” contido naquilo que é, sob a tensão da contradição. A riqueza gerada com o
advento da sociedade industrial trouxe consigo seu contrário, ou seja, uma massa
de trabalhadores miseráveis. Eis a mais gritante das contradições do sistema
capitalista que, em si, contém sua própria superação.
Marx, utilizando-se do método dialético,e negando o idealismo hegeliano, parte da 20 O Capital.
análise do real, pois “são os indivíduos reais, sua ação e as suas condições materiais 21 MARX, K. e ENGELS, F. A
de vida, tanto aquelas por eles já encontradas, como as produzidas por sua própria Ideologia Alemã. São Paulo,
ação(...) O primeiro pressuposto de toda história humana é naturalmente a existência Hucitec, 1987, 6ª edição, p.p.
26-27.
de indivíduos humanos vivos.”21 22 MARX, K. e ENGELS, F. A
E aquilo que os indivíduos são (ou pensam que são) parte de suas condições materiais Ideologia Alemã. São Paulo,
Hucitec, 1987, 6ª edição, p.39.
de existência, pois todo o edifício marxista se ergue sobre a base da infra-estrutura
econômica, sobre a forma como os homens produzem os bens materiais e imateriais
de sua própria existência. Desta forma, nega a naturalidade e o caráter eterno do
modo de produção burguês, apontando para sua historicidade e, portanto, para sua
transitoriedade.
De posse de seu materialismo histórico e dialético, Marx identifica na produção
material da existência a centralidade de sua construção teórica, atentando para suas
formas de produção e reprodução, pois ele:
“...os homens devem estar em condições de viver para ‘fazer a história’. Mas, para viver, é
preciso antes de tudo comer, beber, ter habitação, vestir-se e algumas coisas mais. O primeiro
ato histórico é, portanto, a produção dos meios que permitam a satisfação destas necessidades,
a produção da própria vida material, e de fato este é um ato histórico, uma condição fundamental
e toda história, que ainda hoje, como há milhares de anos, deve ser cumprido todos os dias e
todas as horas, simplesmente para manter os homens vivos.”22
E, para se manterem vivos, os homens trabalham. Nesta
perspectiva, o conceito de trabalho ganha relevância,
entendido como as relações que os homens estabelecem
com a natureza e entre si, para a produção e reprodução
da vida, acumulando conhecimento que, ao longo de
gerações, é transmitido pela cultura. Notemos que, para
produzir os meios materiais necessários à vida, os
homens estabelecem relações sociais.
Porém, estas relações sociais de produção dependem
do grau de desenvolvimento das forças produtivas que,
por sua vez, demonstram o grau de domínio humano
sobre a natureza. Em conjunto, forças produtivas e
relações sociais de produção determinam as formas
assumidas pelas diversas sociedades ao longo da
história.
Em resumo, o conceito de forças produtivas refere-se
aos instrumentos e habilidades que possibilitam o
controle das condições naturais, e seu desenvolvimento
é cumulativo (máquina à vapor, energia elétrica, energia
atômica). O conceito de relações sociais de produção
faz referência à maneira como os homens se organizam
para produzir; implica em diferentes formas de divisão
do trabalho, em diferentes formas organização da
produção e distribuição, de posse e propriedade dos
meios de produção, bem como em suas garantias legais, constituindo-se, dessa
forma, no substrato para a estruturação das classes sociais.
È importante notar, mais uma vez, que as relações sociais de produção e o nível
técnico as forças produtivas são produzidos por homens e mulheres durante o
processo de produção e reprodução da vida material e, portanto, são históricos, são
transitórios. Nas palavras de Marx:
“... o moinho movido a braço nos dá a sociedade dos senhores feudais; o moinho movido a
vapor, a sociedade dos capitalistas industriais. Os homens, ao estabelecerem relações sociais
vinculadas ao desenvolvimento de sua produção material, criam também os princípios, as idéias
e as categorias conformes às suas relações sociais. Portanto, estas idéias, estas categorias, são
tão pouco eternas quanto as relações às quais servem de expressão.”23
Valendo-nos da metáfora do edifício social, pensemos as forças produtivas e as
relações sociais de produção formando, juntas, a infra-estrutura da sociedade; esta,
sobre si, sustenta uma série de representações coletivas ideologizadas, como a
moral, a religião, os códigos jurídicos, etc., ou seja, sustentando a supra-estrutura.
Nas palavras de Marx:
23 MARX, Karl. Miséria de la
“A consciência nunca pode Ser mais que o Ser consciente, e o Ser dos homens é o seu processo
filosofía. Respuesta a la filosofía
de la miséria del señor
da vida real (...) Não é a consciência que determina a vida, mas sim a vida que determina a
Proudhon.Buenos Aires, Siglo consciência.”24
XXI, 1974. p. 91. A relação de determinação entre a infra e a supra-estrutura é objeto de acalorados
24 A Ideologia Alemã.
debates no interior do pensamento marxista (e quantos reivindicam, ou reivindicaram
o marxismo!). Num degradê que vai de Louis Althusser à E. P. Thompson há muitas
interpretações possíveis. Em nosso entender, há que se perceber que entre elas
existe, sim, uma relação dialética, na qual são possíveis múltiplas determinações.
Não entender isso, é desperdiçar o essencial do pensamento marxista: sua filosofia
da história.
Foi o desenvolvimento das forças produtivas (e sua conseqüente divisão do trabalho)
que gerou o excedente material possível de ser apropriado por não produtores, do
que resulta surgimento das classes sociais, entendidas enquanto “lugar” ocupado no
processo produtivo, representadas através de um esquema dicotômico: escravos e
patrícios; servos e senhores; proletários e burgueses. A constatação da existência
das classes sociais, bem como da relação entre elas, permitiu a elaboração de vários
outros conceitos que foram apropriados pelo vocabulário político marxista, tais como:
exploração; opressão e alienação.
É certo que a posição em relação aos meios de produção determina que a classe
que os possua expresse sua potência ao nível da supra-estrutura, elaborando formas
ideológicas de representação.
“Os indivíduos que constituem a classe dominante possuem, entre outras coisas, também
consciência e, por isso, pensam; na medida em que dominam enquanto classe e determinam
todo âmbito de uma época histórica, é evidente que o façam em toda extensão e,
conseqüentemente, entre outras coisas, dominem também como pensadores, como produtores
de idéias, que regulem a produção e a distribuição das idéias de seu tempo e que suas idéias
sejam, por isso mesmo, as idéias dominantes da época.”25
Se as classes existem e ocupam posições distintas no processo produtivo; e se
existe a apropriação, por parte de uns, da produção realizada por todos, existe uma
contradição latente, que se sustenta na exploração econômica e nas diversas formas
de opressão política, social, intelectual, etc. Se existe a contradição, é lícito supormos
que as classes sociais se apresentam em luta. 25 MARX, K. e ENGELS, F. A
Ideologia Alemã. São Paulo,
E é através da luta de classes que as contradições existentes no sistema fazem com Hucitec, 1987, 6ª edição, p.72.
que este supere a si mesmo, numa nova síntese histórica. Nesta luta, a classe 26 Miséria da Filosofia.
27 THOMPSON, E. P. A
explorada assume o papel de classe revolucionária, ao menos potencialmente. Formação da Classe Operária
“As condições econômicas transformam primeiro a massa da população do país em trabalhadores. Inglesa. A Árvore da Liberdade.
A dominação do capital criou para esta massa uma situação comum, interesses comuns. Assim, Vol. I. Rio de Janeiro, Paz e
pois, esta massa já é uma classe com respeito ao capital, mas ainda não é uma classe para si. Terra, 1987, p. 10.
Na luta (...) esta massa se une, se constitui como classe para si.”26
Assim, fica claro que a efetivação do potencial revolucionário depende da capacidade
da classe superar o estado de alienação em que se encontra: de classe em si, é
necessário que se transforme em classe para si, num salto qualitativo proporcionado
pela consciência de classe. Não foi isso que fez a burguesia francesa ao cortar a
cabeça do rei?
É da percepção da não correspondência entre as forças produtivas e as relações de
produção que surgem as condições materiais para a consciência de classe, porque
escancara aos explorados suas reais condições de existência, fazendo com que
surjam interesses comuns que se opõem a outros interesses, gerando assim
identidades de classe.
Considerando que, em sua obra, Marx fez apenas apontamentos sobre as classes,
nos parece oportuno reproduzir, aqui, a concepção de classe social com a qual mais
nos identificamos, assim formulada por E. P. Thompson:
“a classe acontece quando alguns homens, como resultado de experiências comuns (herdadas
ou partilhadas), sentem e articulam a identidade de seus interesses entre si, e contra outros
homens cujos interesses diferem (e geralmente se opõem) dos seus. A experiência é determinada,
em grande medida, pelas relações de produção em que os homens nasceram - ou entraram
involuntariamente. A consciência de classe é a forma como essas experiências são tratadas em
termos culturais: encarnadas em tradições, sistemas de valores, idéias e formas institucionais.”27
Tais considerações que, assim apresentadas, nos parecem elementares, foram na
verdade fruto de uma demorada e cuidadosa análise do funcionamento do sistema
capitalista, considerado por Marx como a forma mais evoluída das formações sócio-
econômicas já existentes. Nesse sentido, Marx se esforça por entender as relações
de classe no sistema capitalista.
Sua análise parte do concreto, parte da análise da mercadoria, visto que sob o
capitalismo tudo se transformou em mercadoria, a forma mais elementar da riqueza
capitalista. Porém, sob a mercadoria se esconde uma dupla identidade: valor de
uso, quer satisfaça uma necessidade na esfera do consumo; valor de troca, quer
seja produzida com vistas a realizar-se no mercado. Toda mercadoria contém valor
de troca, medido pelo tempo de trabalho social nela contido, que se materializa no
valor de uso.
Sob o sistema capitalista, tudo se transforma em mercadoria, inclusive a capacidade
humana de trabalhar. A força de trabalho é também uma mercadoria, porém bastante
distinta das demais, pois possui uma característica que lhe é própria: é a única
mercadoria capaz de criar valor.
No nível das aparências, ao nível do mercado, a mercadoria força de trabalho é
livremente trocada por uma determinada quantidade de dinheiro, capaz de garantir
a reprodução da força de trabalho. Tem-se a impressão que sujeitos livres e
juridicamente iguais trocam mercadorias de valor equivalente. Mas não, posto que a
mercadoria força de trabalho, ao transformar-se em trabalho efetivamente realizado,
produz um valor superior àquele que lhe foi pago sob a forma de salário. Este sobre
trabalho, realizado e não pago, recebe o nome de mais-valia, fonte do lucro capitalista,
e expressão do nível de exploração à que o proletariado é submetido.
A contradição, que ao nível do mercado é imperceptível, ao nível da produção se
revela em toda sua nudez. Para subverter esta contradição, para subverter esta
negação, faz-se necessário nega-la também. Assim, a negação da negação não é
mais do que a afirmação. A afirmação de um novo modo de organizar a produção.
Contudo, a afirmação de uma nova sociedade impõe a necessidade de fazer ruir a
sociedade capitalista, através de uma revolução que já se anuncia.
“As relações burguesas de produção e troca, as relações burguesas de propriedade, toda essa
sociedade burguesa moderna, que fez surgir tão potentes meios de produção e de troca,
28 Manifesto do Partido assemelha-se ao feiticeiro que já não é capaz de dominar as potências infernais que desencadeou
Comunista. com seus conjuros. As armas de que a burguesia se serviu para derrubar o feudalismo voltam-
se hoje contra a própria burguesia. Porém a burguesia não forjou somente as armas que lhe
darão a morte; produziu também os homens que empunharão essas armas – os operários
modernos, os proletários.”28
Assim, o proletariado, agente revolucionário por excelência, é o único capaz de por
fim a apropriação privada dos meios de produção, alterando a base econômica da
sociedade e, conseqüentemente, toda a supra-estrutura ideológica. Dessa forma,
abrir-se-ia um novo período na história, denominado de ditadura do proletariado,
única forma capaz de barrar a tentativa de contra-revolução que, com certeza, seria
tentada pela burguesia expropriada.
Porém, como fazer com que os proletariados cumpram seu desígnio histórico? A
resposta resiste no desmascaramento do caráter fetichista da mercadoria, que faz
com que os homens não tomem consciência do real processo de exploração a que
estão submetidos. Não são as mercadorias que se relacionam per se, e sim, os
homens que se relacionam no mercado enquanto portadores de mercadorias.
Vistos os elementos fundamentais das três principais “escolas sociológicas”, passemos
agora à uma breve análise da teoria política gramisciniana que, em nosso entender,
constitui uma das leituras mais significativas da prática política esboçada na teoria
marxista. Em outros termos, buscamos uma interpretação alternativa à leitura leninista
da teoria da revolução.
Porém, para proceder tal análise, nos vemos obrigados a retomar os aspectos
principais do pensamento maquiaveliano, buscando entender como o fundador da
ciência política influencia e dá sentido à obra marxista.
Maquiavel
e seu impactante pragmatismo político
O pai da ciência política, como é denominado por muitos, foi iniciador e, ao mesmo
tempo, o mais fecundo realizador dessa tendência à racionalização da prática política.
Filho do Renascimento Italiano em sua fase mais brilhante, o Quintecento (século
XVI), Nicolau Maquiavel (1496-1527) foi um homem da práxis (prática). Funcionário
do governo florentino, escreveu sua obra máxima “O Príncipe” num momento em
que enfrentou um exílio não-voluntário, e portanto afastado de suas funções
administrativas.
O livro é um verdadeiro manual de conduta e procedimento na política e foi concebido
em meio ao contexto de formação das monarquias nacionais européias. Justamente,
o tipo de centralização política que Maquiavel deseja para a Itália, que naquele
momento estava fragmentada em um grande número de principados e repúblicas,
além do estados pontifícios, em poder da Igreja Católica.
Maquiavel inaugura uma nova forma de se pensar a política e o Estado, diferente
daquela até então utilizada pelos gregos e pela igreja. E este rompimento com a
tradição idealista decorre de seu método, que busca a verità effettuale, ou a verdade
efetiva das coisas. Ao nível da política, afirma-se que para ela existe uma moral
própria, uma moral política, que difere da moral privada. A política é amoral. No que
se refere ao Estado, seja ele Principado ou República, Maquiavél aponta como o
único capaz de pôr fim ao estado de anarquia, que para ele em uma dupla origem:
De um lado, existem traços imutáveis na natureza humana. Os homens são “em
geral, ingratos, volúveis, dissimulados, covardes e ambiciosos de dinheiro...”29 . De
outro lado, o Estado é o palco onde se dá a disputa política entre duas forças opostas,
“...e isto provém do fato de que o povo não deseja ser governado nem oprimido
pelos grandes e estes querem governar e oprimir o povo.”30
Uma questão acerca do pensamento de Maquiavel, sobre a qual muito se discute,
diz respeito a quem se dedicava “O Príncipe”. Embora o autor o tenha dedicado à
família Médici, então governantes de Florença, muitos estudiosos afirmam que, na
verdade, Maquiavel, ao falar do poder, fala também sobre a liberdade, instruindo
sua conquista e manutenção.
Segundo a teoria maquiavélica (esse termo não é usado aqui de forma pejorativa,
como se costuma fazer), o verdadeiro príncipe é aquele governante que tem em seu
espírito as benesses da virtù, ou seja, a capacidade de conquistar, manter e expandir
seu governo. Para realizar esse grandioso feito, deve-se obedecer a algumas
condutas, que acompanham todos aqueles que triunfam na arte da política. Além da
virtù, ou seja, dos atributos pessoais do governante, este deve encontrar a Fortuna,
ou seja, a “sorte” no que se refere a uma conjuntura política e econômica que lhe
seja favorável.
Em primeiro lugar, um príncipe deve sentir-se à vontade para utilizar a força e a
violência (fundamentos do poder) como formas de impor sua autoridade sobre os
outros homens, desde que o Poder de Estado seja seu objetivo.
“Moisés, Ciro, Teseu e Rômulo não teriam podido fazer obedecer suas constituições se
estivessem desarmados (...). Não pode haver boas leis onde não haja boas armas”.
Amanutenção dos exércitos é fundamental para quem quer manter-se no poder. Podemos
29 MACHIAVELLI, Niccolò. O
afirmar inclusive, que a fonte teórica que deu respaldo a formação dos exércitos modernos Príncipe. São Paulo, Hemus,
foi o pensamento maquiavélico, já que naquele momento, os reis hesitavam em armar 1977. p. 94.
a população com medo de possíveis revoltas aos seus próprios governos. Mas, o pensador
insiste que a utilização de exércitos mercenários (prática muito comum naquele momento)
é nociva aos próprios governantes, que podem ficar à mercê de generais inescrupulosos.
Sendo assim, só a criação de um exército profissional e regular tornaria o rei livre dos
riscos de se depender tanto do povo, quanto dos mercenários.
O uso inevitável da força nos remete a outro ponto fundamental da obra. Trata-se,
em segundo lugar, da dicotomia vivida pelo Príncipe: ser amado ou temido. Para o
pensador ser amado por seus súditos é muito importante. Porém, ser temido é uma
questão de sobrevivência ao governante. O príncipe deve ser amado e temido e, na
possibilidade de dispor de ambos os sentimentos, que seja temido. Deve-se, contudo,
evitar que o temor leve ao ódio, já que este suplanta a temeridade e inspira a
insubordinação. Aquele que ama pode entregar-se num determinado momento à
ingratidão, e dessa maneira à traição. Já aquele que teme, e que tem certeza da
punição está mais apto à subordinação.
“(...) E os homens receiam menos ofender aquele que se faz amar do que aquele que se faz
temer: o amor mantém-se vinculado à gratidão, esse vínculo, por serem míseros os homens,
rompe-o toda ocasião conveniente; ao passo que o temor é mantido pelo receio aos castigos, e
jamais faz com que te abandonem”.
30 MACHIAVELLI, Niccolò. O Essa dupla abordagem leva ao cerne de toda forma de dominação política: o uso do
Príncipe. São Paulo, Hemus, discurso para se garantir o consentimento; e o uso da força para se fazer consentir
1977. p. 56.
mesmo quando não se deseja. A partir desses componentes, e a legalidade de sua
utilização prevista em lei, o príncipe ganha a Legitimidade para governar. Não há
governo sem a relação consentimento/força e legalidade/legitimidade.
Em terceiro Lugar, a idéia de que a política não se enquadra na valoração moral. Por
isso mesmo o discurso religioso está afastado do fazer político de Maquiavel. Esta
idéia o torna surpreendentemente moderno e pragmático. Prega a benevolência quando
necessário, e na mesma medida, prega o assassinato, se necessário. Temos aqui a
parte mais divulgada (e distorcida) do pensamento maquiavélico, já que esse
pragmatismo deve estar a serviço da realização do governo e da construção do Estado.
Não se aplica, logicamente, ao conjunto de ações cotidianas do homem. Para
Maquiavel, o Estado, e seus dirigentes devem agir dessa maneira para instaurar a
ordem, justamente para que o convívio social seja pautado pela paz e respeito à lei.
Muitos interpretaram e sintetizaram essa linha de raciocínio através da máxima “os
fins justificam os meios”, ou seja os objetivos (conquistar, manter e expandir o poder)
justificam os métodos (ser amado ou temido; ter consentimento ou valer-se da força).
Não foi exatamente isso o que afirmou, pelo menos não com essas palavras. O que
escreveu, foi que
“Muita gente imaginou repúblicas ou principados que jamais foram vistos ou de cuja real
existência jamais se teve notícia. E é tão diferente o como se vive do como deveria viver, que
aquele que desatento ao que se faz e se atém ao que se deveria fazer aprende antes a maneira
de arruinar-se do que preservar-se. Assim, o homem que queira em tudo agir como bom acabará
em meio a tantos que não são bons. Daí ser necessário a um príncipe, para manter-se, aprender
a não ser bom, e usar ou não usar o aprendido, de acordo com a necessidade.”
“Daí ser necessário a um príncipe, para manter-se, aprender a não ser bom, e usar
ou não usar o aprendido, de acordo com a necessidade.” Aí está presente e sintetizado
todo o pragmatismo de Maquiavel, o fio condutor de sua lógica.
A obra, e todo seu conteúdo, sofreram uma implacável
perseguição, tanto política (O Príncipe estava citado no
Index, lista de livros proibidos pela Igreja Católica, no
período da Contra-Reforma), quanto intelectual. O
“maquiavelismo” tornou-se sinônimo de falta de
escrúpulos e imoralidade, quase um xingamento. O que
não é justo – concordando-se ou não com sua teoria -
com a grandeza de seu pensamento, já que n’O Príncipe
encontram-se as mais fundamentais ações do fazer
político. Além disso Maquiavel propõe uma amoralidade
política, e não uma imoralidade política. Ou seja, a
política tem moral própria e apartada do conjunto de
relações econômicas, sociais e culturais de uma
sociedade.
Por último vale ressaltar, que apesar do alto grau de
valorização do homem e suas realizações geradas pela
Renascimento, Maquiavel compartilha de uma
concepção muito difundida na sua época: em sociedade,
os homens sempre fazem e se utilizam de atitudes pouco
nobres, como a ingratidão, a traição e avareza e a
violência e que só utilizando-se desses mesmos artifícios
é que o príncipe conseguirá promover a paz e a
concordância entre os homens. Thomas Hobbes também
compartilha dessa idéia.
Penetrar o pensamento de Gramsci é um desafio e tanto, mesmo porque a maneira
como sua produção veio a lume dificulta, e muito, esta tarefa. Seus escritos
encontram-se espalhados nos “Cadernos do Cárcere”, produzidos durante sua longa
estadia como “hóspede” de Mussolini, na Itália Fascista do período Entre-Guerras
(1918-1939), tendo que burlar seus censores a partir de uma escrita difusa e quase
enigmática. O Salto que se dá aqui, ignorando todo o conteúdo da teoria política do
século XIX, justifica-se pelo fato que originalidade desse século deve-se ao discurso
de Karl Marx e Max Weber, autores suficientemente abordados na parte dedicada à
Sociologia desse curso. Por outro lado, Gramsci realiza uma revitalização do conteúdo
das teorias políticas que analisamos a pouco, que é de fundamental importância
para a compreensão da atualidade.
Seu legado foi de enorme influência para as atividades políticas dos socialistas
europeus do século XX. Realizou, em sua teorização singular, a junção dos conceitos
marxistas sobre a teoria da revolução com a tradição do pensamento político clássico
de autores como Nicolau Maquiavel e Jean-Jacques Rousseau. Gramsci elabora
uma análise voltada para práxis política de construção do socialismo por vias
democráticas. Para o autor, a destruição do capitalismo se realiza através da
organização da Vontade Geral do proletariado (os trabalhadores) a partir da
organização do Partido Comunista, que em sua concepção apresenta-se como o
Príncipe Moderno.
Sendo o delineador das ações políticas do proletariado, o partido tem que desenvolver
uma linha de atuação parlamentar que possibilite a constituição de uma hegemonia
política, ou seja, a conquista democrática das instituições políticas burguesas a partir
de uma maioria atuante que, gradativamente reorganiza o Estado Capitalista para
um Estado Socialista. Assim, Gramsci delega ao partido a tarefa de agir para a
formação de um mundo socialista, mas este nunca deve abster-se de levar em
consideração aquilo que o proletariado quer como rumo apropriado para esse objetivo.
Assim como, para Maquiavel, o Príncipe é o condutor da grandeza realizada na
conquista, manutenção e expansão do Estado (o agente político privilegiado dessa
virtú), o partido comunista é,
para Gramsci, o condutor para a conquista, manutenção e expansão do socialismo.
Por outro lado, assim como o governante é apenas o realizador da Vontade Geral do
Povo – o verdadeiro soberano, o partido, para Gramsci, é constituído e utilizado
para realização da Vontade Geral do Proletariado, o verdadeiro soberano da política
do mundo contemporâneo.
“O moderno príncipe, o mito-príncipe, não pode ser uma pessoa real, um indivíduo
concreto; só pode ser um organismo; um elemento complexo da sociedade no qual
já se tenha iniciado a concretização de uma vontade coletiva reconhecida e
fundamentada parcialmente na ação. Este organismo já é determinado pelo
desenvolvimento histórico, é o partido político: a primeira célula na qual se aglomeram
germes de vontade coletiva que tendem a ser tornar universais e totais” (Antonio
Gramsci – Maquiavel, a política e o Estado Moderno).
Além disso o partido tem também o dever de educar o proletariado para a práxis
política. Realizando uma união de esforços entre o intelectual tradicional (o homem
das teorias e dos livros) ao intelectual orgânico (o líder oriundo do proletariado e que
constitui a pedra fundamental do partido). A partir disso, as condições para a revolução
socialista deixam de ser meramente materiais (a exploração do proletariado pela
burguesia) para ganhar uma esfera quase espiritual de necessidade de criação de
uma nova cultura, e assim da destruição plena e efetiva do Capitalismo.
O universo gramsciniano foi muito importante para a formação da social-democracia
européia no pós-guerra (1945) e do socialismo não-armado, parlamentar, que acredita
conseguir a construção do socialismo por vias democráticas. No Brasil, a maior
expressão dessa tendência foi a criação, no final dos anos setenta, do Partido dos
Trabalhadores.
ANTROPOLOGIA
A Antropologia e sua inserção no
mundo das idéis sobre o homem
O Evolucionismo
O Funcionalismo
O Estruturalismo
As implicações antropológicas no
discurso político da Modernidade
As justificativas do poder estatal
A Antropologia
e sua inserção no mundo das idéis sobre o homem
Homem, Ser Humano ou Homo Sapiens Sapiens; os costumes, ritos e mitos; as
relações entre as pessoas, os atos, as produções e as mentalidades... O Homem,
eis o objeto de estudo a que se dirige a Antropologia. O ato de pensar sobre si
mesmo é, talvez, uma das atividades mais antigas do ser humano. Buscar suas
origens, pensar sua essência, especular sobre seu lugar no cosmos, na natureza, ou
nas relações com outros seres humanos é uma ação constante e imprescindível.
Ironicamente, pensar os homens em todas as suas implicações de um modo
pretensamente “científico” tem sido umas das tarefas mais difíceis dos últimos dois
séculos. Por isso mesmo, a antropologia foi, ao lado da sociologia e da psicologia as
últimas áreas do conhecimento que ganharam o status de “ciência”. A mitologia, a
religião, a arte e a filosofia, não fazem outra coisa (logicamente, cada uma ao seu
modo) a não ser pensar o homem em suas relações com o mundo, seja ele físico ou
metafísico. Porém, uma ciência do Homem só pode ser devidamente estabelecida
em meados do século XIX, quando aqueles primeiros “antropólogos” conseguiram
distinguir o olhar científico do olhar filosófico sobre o homem. Para conseguir tal
façanha, foi necessário emprestar os métodos e os conceitos das ciências já
estabelecidas, como a biologia, por exemplo, para desse modo, conseguir firmar-se,
legitimar-se como uma disciplina estritamente científica.
1 Marx e Engels. O manifesto do
A Antropologia nasce, então, numa relação tempo-espaço (Século XIX-Europa) em Partido Comunista
que o capitalismo monopolista e imperialista das grandes potências industriais estende
seus tentáculos por todas as partes do mundo. O outro se defronta de uma maneira
cada vez mais intensa com o eu. Os “selvagens”, os “nativos”, os “silvícolas”, os
“primitivos”, os “esquecidos por Deus” se defrontam, confrontam e se submetem à
força tecnológica e econômica do Europeu, o “civilizado”, o “branco”, o “superior” o
“eleito por Deus”. Em busca de mercado e matérias-primas, esse Super-Homem,
anabolizado pela força de seu sistema econômico – o Capitalismo – foi corroendo
formas tradicionais de vida e de concepção de mundo e seus saberes, em prol da
“verdadeira” forma de vida, a moderna, através da “verdadeira” religião, o cristianismo
e do “verdadeiro” saber, a Ciência.
“Todas as relações fixas, imobilizadas, com sua aura de idéias e opiniões veneráveis, são
descartadas: todas as novas relações, recém formadas, se tornam obsoletas antes que se
ossifiquem. Tudo o que é sólido se desmancha no ar, tudo que é sagrado se torna profano, e os
homens são finalmente forçados com sentidos mais sóbrios suas
reais condições de vida e com a relação com os outros homens”1
A Antropologia (e a Sociologia) nasce nessa atmosfera
criada pela expansão da civilização Ocidental, com todas
as suas surpresas e contrastes proporcionados por esse
encontro do eu com o outro. Como já foi dito, a preocupação
em se estabelecer um tipo de observação e compreensão
do Homem ou dos homens a partir de um procedimento
estritamente científico fez com que os pais fundadores -
Augusto Comte, Émile Durkheim, James George Frazer e
Lewis Henry Morgan, entre outros – procurassem abrigo
nas ciências biológicas, principalmente nos seus métodos
de investigação. Essa apropriação dos métodos utilizados
principalmente pela biologia acontece justamente pela
dificuldade de se compreender o homem a partir de sua
especificidade em relação à natureza e aos fenômenos
físicos. Como o Homem (sujeito que realiza a análise
científica) pode observar e compreender o próprio Homem
(objeto, aquilo que deve ser analisado) sem que se recorra
a pré-julgamentos e por consequência à pré-conceitos,
estabelecidos através da experiência da trajetória pessoal
e sócio-cultural do observador (sujeito) da investigação
científica?
A análise de uma célula feita por um biólogo não corre o
risco do problema exposto acima, justamente porque
seria muito difícil – ou no mínimo, muito estranho – este
sujeito da investigação manter uma relação afetiva
(subjetiva, como gostam os cientistas sociais) com o
seu objeto de análise. Já nas Ciências Sociais este
problema é sério e ronda as preocupações de seus
pesquisadores até hoje. Durkheim, considerado tanto
fundador da sociologia como da Antropologia defende
que os fatos sociais devem ser tratados como coisas,
caso contrário não se estaria fazendo outra coisa do
que especulação (característica fundamental da
Filosofia) ou na pior das hipóteses, apenas uma
discussão superficial, o que alguns chamam de “senso
comum”. Na tentativa de radicalizar o distanciamento
entre sujeito e objeto, e assim garantir definitivamente
a condição de ciência consolidada e legitimada pelas
disciplinas científicas já estabelecidas como a Biologia,
a Química e a Física; a Antropologia busca então,
compreender o homem que está longe. Ou seja, busca
a compreensão do outro, do primitivo, nativo ou
selvagem. Daquele diferente do eu civilizado, europeu
e Ocidental.
De quebra, a Antropologia foi bem recebida no âmbito
político, já que muito interessava aos governos dos
países europeus e dos EUA, “conhecerem” a realidade
dos povos nativos da África, Ásia e América Latina, o
que facilitou muito suas estratégias de dominação
político-econômica dessas regiões, em suas buscas por matérias-primas e mercados
consumidores.

1.1 – O universo antropológico

“(...)Transformado em Deus, este sapiens-demens fragmentou suas partículas e espargiu seu


sêmem mágico sobre a face da Terra. Encantado com a própria imagem, lançou-se ensandecido
em busca desse outro imaginário – seu duplo – réplica da sua percepção alucinada. A força
dessa paixão levou a construir a ciência, a criar as artes, a brincar de guerra e, assustado com
o seu poder, a refugiar-se na religião e na tirania”2
Da metade do século XIX para os dias atuais, a Antropologia transformou-se
radicalmente, e ampliou seus horizontes, tanto nos métodos quanto no seu objeto
de estudo, e principalmente, no resultado de suas pesquisas. De uma maneira geral
e simplificada, devido aos limites desse trabalho, que é apresentar os conceitos
fundamentais da disciplina, podemos afirmar que surgiram três grandes perspectivas
téorico-metodológicas: o Evolucionismo, o Funcionalismo e o Estruturalismo. Cada
uma apresenta, de formas diferentes, uma visão sobre o modo de organização da(s)
sociedade(s) humana(s) seja na economia, sociedade e cultura. Essas três
2 Edgard de Assis Carvalho –
Polifônicas Idéias: Antropologia e perspectivas levam e transitam a dois procedimentos da ação humana que decorrem
Universalidade. desses estudos:
1º) Relativismo, a consideração de que as sociedades humanas são sempre muito
diferentes e específicas, e que não há pontos em comum entre elas, são pautadas
pela diversidade. Esse ponto de vista é defendido, principalmente pelo Funcionalismo;
2º) O Universalismo, que por sua vez defende a idéia de que os homens, para além
de suas diferenças culturais tem, na verdade uma mesma matriz, uma alma universal.
Esse olhar é defendido, guardadas profundas diferenças, tanto pelo Evolucionismo
quanto pelo Estruturalismo. Os métodos e suas especificidades serão analisados
em maior profundidade mais adiante, neste trabalho.
Em relação ao seu objeto de estudo, houve o que François Laplantine denomina de
um gradativo “alargamento do campo” de estudo que vai do outro ao eu, na medida
que há um amadurecimento da ciência antropológica. Ou seja, do “selvagem” passa-
se ao “camponês”, e desse para o “urbano”.
Podemos afirmar, portanto, que o esforço antropológico
vai da tentativa de reconhecer a diferença entre os
homens à busca de suas semelhanças, ou seja, à
construção de entendimento dos homens em suas
características universais. As palavras de Laplantine nos
revelam que,
“Aquilo que, de fato, caracteriza a unidade do Homem de
que a Antropologia, como já dissemos e voltaremos a dizer,
faz tanta questão, é a sua aptidão praticamente infinita para
inventar modos de vida e formas de organização social
extremamente diversos. E, a meu ver, apenas a nossa
disciplina notar, com a maior proximidade possível, que essas
formas de comportamento e de ida em sociedade que
tomávamos todos por inatas ( nossas maneiras de andar,
dormir, nos encontrar, nos emocionar, comemorar os eventos
de nossa existência...) são, na verdade produto de escolhas
culturais. Ou seja, aquilo que os seres humanos, tem em
comum é a sua capacidade para se diferenciar uns dos outros
para elaborar costumes, línguas, modos de conhecimento,
instituições, jogos profundamente diversos; pois se algo
natural nessa espécie particular que é a espécie humana, é a
sua aptidão à variação cultural”3
Laplantine também nos ajuda a compreender, que o
projeto e o objetivo de uma ciência como a Antropologia
consiste,
“(...) portanto no reconhecimento, conhecimento, juntamente
com a compreensão de uma humanidade plural (mas ao mesmo tempo, uma). Isso supõe ao
mesmo tempo a ruptura com a figura da monotonia do duplo, do igual, do idêntico, e com a
exclusão num irredutível “outro”. As sociedades mais diferentes da nossa, que consideramos
espontaneamente como indiferenciadas, são na realidade tão diferentes entre si quanto o são
da nossa. E mais ainda, elas são para cada uma delas muito raramente homogêneas (como seria
de se esperar), mas, pelo contrário extremamente diversificada, participando ao mesmo tempo
de uma comum humanidade”.4
Para conhecermos o homem em sua diversidade/unidade, a Antropologia precisa
então se encarregar de algumas tarefas indispensáveis. Em primeiro lugar, é preciso
ter sempre o objetivo de criar um corpo teórico que contenha alguns conceitos
fundamentais como o de Natureza, Cultura, Sociedade e (não poderia faltar) Homem,
como forma de nortear a construção do conhecimento pretendido pela disciplina;
em segundo, esse saber não pode ser apenas teórico, mas para a própria construção
da teoria, é preciso antes de uma abordagem empírica (real) das sociedades humanas,
portanto, deve-se realizar uma observação (análise) para a partir daí, a construção
de conceitos (síntese); em terceiro lugar, é muito importante que uma pesquisa
antropológica se preocupe com o homem em sua totalidade, ou seja, em seus
aspectos biológicos, econômicos (a forma pela qual ele extrai a produção e reprodução
de sua vida através dos elementos da natureza), culturais (sua mentalidade,
religiosidade, cosmologia...), lingüísticos (sua fala, idioma) e psicológico (a sua
construção como individuo); em quarto e último lugar, pensar a diferença, como
alternativa para pensar em si próprio, conhecer o outro como forma de compreensão
do eu.
A ultima consideração a se fazer, antes de se discutir as teorias antropológicas, é em
relação aos níveis de pesquisa que se pode realizar no interior da disciplina. Segundo
Levi-Strauss, são três esses momentos antropológicos, 3 Francois Laplantine –
1º) A etnografia – ato de se fazer a pesquisa empírica propriamente dita, ou seja, Aprender antropologia
4 idem.
realizar a coleta de dados sobre a sociedade que se pretende estudar a partir das
viagens de campo, a visita e convivência direta, e a descrição mais detalhada possível
do seu cotidiano;
2º) A etnologia – consiste em realizar uma análise dos fatos e descrições recolhidos
na etnografia, a fim de se encontrar as leis gerais de funcionamento da sociedade
estudada, ou seja buscar a lógica dos fatos.
3º) A Antropologia - ultimo estágio da pesquisa, procura realizar uma análise
comparativa de várias sociedades para, assim, chegar aos pontos comuns que
caracterizam o Ser Humano em seu convívio social, ou seja as leis gerais que
caracterizam o Homem e sua sociabilidade.
O Evolucionismo
O conjunto de escritos e teorias que se convencionou denominar de “Evolucionismo”,
inaugura a Antropologia como ciência. Nele, há um fazer científico inicial, incipiente,
mas que marcou profundamente, não só a própria disciplina, mas praticamente toda
construção do discurso do domínio do Ocidental (o Capitalismo europeu e norte-
americano) sobre o resto do mundo. Mesmo criticado, contestado e desacreditado,
o pensar evolucionista ronda as cabeças não só do universo científico, mas de todos.
Já que toda vez que somos forçados a pensar as diferenças culturais – o índio, o
argentino, ou outros inúmeros exemplos que poderiam ser citados - elas são
colocadas invariavelmente em termo de superioridade (eu) e inferioridade (outro).
Ou como gostavam os primeiros antropólogos evolucionistas, civilizado e primitivo.
A antropologia, na verdade, lutou e luta até hoje para se livrar da herança evolucionista,
tenta desacreditar sua própria produção, talvez por ter consciência dos grandes
malefícios que esse tipo de pensamento trouxe a diversidade cultural da humanidade.
Afinal de contas, se o eu é superior ao outro, como afirma o evolucionismo, o civilizado
tem todo o direito de “ajudar” o primitivo a sair da condição de inferioridade. Essa
tese levou à destruição de grande parte da variação cultural da humanidade, em
nome de um ímpeto civilizador, logicamente identificado com o avanço do capitalismo
europeu e norte-americano, como já se disse, sobre os países a América Latina,
África e Ásia. Portanto, o evolucionismo, com seu status de olhar científico sobre as
culturas, serviu como justificativa ideológica para a ação imperialista, muito comum
no século XIX. Há ainda que se levar em conta que a Antropologia nasceu na
Inglaterra, num momento em que esta dominava política e economicamente vastas
áreas coloniais na África e na Ásia (os ingleses afirmavam arrogantemente que no
seu império o sol nunca se punha).
No Evolucionismo a Antropologia é simplesmente a ciência das sociedades primitivas.
Entre o sujeito (o antropólogo) e o objeto (o homem “primitivo”) há um agente
intermediário, o administrador colonial. A pesquisa é, na infinita maioria das vezes –
feita através de questionários aplicados às populações nativas pelo administrador
colonial de determinada área. Muitas vezes o material de pesquisa era apenas a
experiência relatada desse funcionário em contato com o povo a ser estudado. Não
é incrível, o antropólogo não se dava ao trabalho de conhecer o povo que seria
analisado.
Através de publicações como “O Casamento Primitivo” (Maclennan), “A Cultura
primitiva” (Tylor), “A Sociedade Antiga” (Morgan) e “O Ramo de Ouro” (Frazer), o
objetivo maior do evolucionismo era a construção de um corpo de idéias que
possibilitasse um mapeamento do “primitivo” na tentativa
de construção histórica pela qual o homem formou suas
instituições culturais e como estas foram evoluindo para
as formas encontradas dos países “avançados”. Nessa
perspectiva, o homem civilizado se considera como o
herdeiro de todo um esforço humano para a realização,
através da história da humanidade, de sua cultura
avançada. O primitivo então, aparece aos seus olhos
como um eu-criança, ou seja, com um ancestral vivo,
uma espécie de amostra, conservada nos “laboratórios”
(as áreas tropicais e periféricas ao mundo europeu)
pronto para ser usado para remontar a trajetória
civilizatória da humanidade.
Utilizando ao máximo o discurso biológico, a antropologia
evolucionista vai além da apropriação do método das
ciências naturais, mas também de seus resultados. A
idéia de uma evolução cultural vem da formação do
evolucionismo biológico formulado do Charles Darwin,
em “A Origem das Espécies”. A seleção natural entre os
“mais aptos” à sobrevivência em relação aos “menos
aptos” pode ser facilmente transportada para o universo
antropológico através da já desgastada idéia de primitivo
(o menos apto) e civilizado (o mais apto). Haeckel chega
mesmo afirmar que a Filogênese (formação e evolução
cultural do Homem) é decorrência direta da Ontogênese
(formação e evolução da vida). Ou seja, que a evolução
cultural é uma mera continuação da evolução da vida.
Morgan (junto com Frazer, um dos evolucionistas mais
influentes) defendeu a tese de que a humanidade
atravessou por três “idades”, estágios evolutivos: (1) a
Selvageria – nível sócio-cultural das populações
indígenas brasileiras, os aborígines australianos e as
populações tribais da África, entre outros; (2) a Barbárie
– As grandes civilizações orientais (árabe, egípcia e
hindu) e americanas (inca, mais e asteca); e (3) a
Civilização – a Europa (germânica e anglo-saxônica) e
norte-americana.
Frazer, por sua vez, preocupou-se em demonstrar o
processo evolutivo da religiosidade em seu Livro “O
Ramo de Ouro”. Esse estudo das “crenças e superstições
primitivas” leva em consideração que todo fato religioso
é uma maneira que os homens encontraram para ordenar
e classificar o desconhecido, a primeira forma do Homem
classificar e explorar a Natureza. Desse modo, o primeiro
“estágio” do entendimento do sobrenatural seria a Magia.
Conforme a marcha evolutiva acontece, os homens
constroem a Religião. Com o avanço civilizatório, os
homens abandonariam a religião e se entregariam à
Ciência, a forma mais “avançada” do homem conhecer e explorar a natureza e o
Cosmos. Para Frazer,
“A magia representa uma fase anterior, mais grosseira da História do Espírito Humano, pela
qual todas as raças humanas passaram, ou estão passando, para dirigir-se para a religião e à
ciência”.5
Como podemos perceber, o evolucionismo antropológico não foi mais do que uma 5 James George Frazer – O
tentativa de dar formato científico às ideais de superioridade européia presentes Ramo de Ouro.
desde de o século XVI, com a aventura as Grandes Navegações e suas
conseqüências, os Grandes Descobrimentos, e a formação do Sistema Colonial. E
conseguiu dar sobrevida ao eurocentrismo – a idéia de uma Europa como centro e
referência do mundo – inclusive em seus aspectos mais criminosos. A tão perigosa
Superioridade Ariana, que alimentou o nazismo alemão, que sem contar a Hecatombe
que costumamos denominar de II Guerra Mundial (1939-1945), promoveu o
extermínio de pelo menos seis milhões de judeus nos campos de concentração
nazistas. Na atual política externa dos EUA, que após 11 de Setembro de 2001,
decidiu concentrar-se na promoção de “guerra preventivas” para a destruição de
regimes políticos considerados inimigos, por supostamente darem cobertura e apoio
financeiro à organizações terroristas, pode ser detectada vestígios de um discurso
evolucionista. Já que a justificativa para a invasão do Iraque por forças anglo-
americanas, além das imaginárias armas químicas de Saddan, era a incapacidade
do povo iraquiano de se livrar do seu ditador e implantar uma verdadeira democracia
(logicamente nos moldes da democracia americana).
Além do aspecto político-ideológico, o evolucionismo inverteu, por fim, uma regra
básica do fazer científico, o que lhe desqualificou perante as outras teorias
antropológicas e demonstrou a fraqueza de suas conclusões. Mencionou-se em alguns
parágrafos anteriores desse texto, as tarefas indispensáveis da construção da
antropologia como ciência. Dentre essas, existe a premissa de que a análise
(observação etnográfica) deve anteceder a síntese (a construção de conceitos para
uma formulação teórica). Pois bem, o que os nossos amigos evolucionistas fizeram,
foi muito mais demonstrar a veracidade de uma tese do que realizar a verificação de
uma hipótese (a construção de hipóteses prévias ao trabalho científico é comum e
louvável em qualquer disciplina, seja nas ciências exatas, humanas ou biológicas).
Porém esses antropólogos colhiam material etnográfico apenas para ilustrar uma
teoria que já se tinha convicção. Os costumes, rituais e formas sociais eram utilizados
para caracterizar cada estágio evolutivo previamente.
O Funcionalismo
A partir da virada do século XIX para o século XX, o discurso antropológico começa
ganhar contornos bem diferenciados do Evolucionismo. Como vimos, o processo
evolutivo proposto era de perspectiva essencialmente historicista. Essa visão histórica,
a antropologia denomina de estudos sincrônicos, ou seja, uma abordagem analítica
que leva em consideração as sociedades através do tempo. As fragilidades da
teorização evolucionista levaram os antropólogos do início do século XX a procurar
uma nova maneira de observação e análise das sociedades. A idéia era promover
um corte nesse processo histórico enfatizado pelos evolucionistas e mergulhar no
interior dos grupos humanos afim de se reconhecer a sua coerência interna, os seus
mecanismos de organização e funcionamento. Seria como, por exemplo, se um
biólogo deixasse de se preocupar com a evolução das espécies de uma maneira
geral e pretendesse formular uma análise de apenas uma espécie, através da sua
função vital, ou seja, este biólogo procuraria entender a lógica de funcionamento de
cada órgão e a sua importância para o funcionamento de todo o corpo.
Da mesma maneira, os antropólogos passaram a se ocupar, não com o processo,
mais sim com a função. Os estudos passaram de tratados gerais sobre um tema (o
casamento, a religião) para as monografias, que se organizavam como estudos de
casos sobre um determinado grupo social, e tinham como critério de qualidade a
descrição pormenorizada de todos os aspectos da vida social desse grupo. Assim, o
objetivo era descobrir os mecanismos internos de ligação (a função) dos fatos e
níveis sociais (ou as instituições sociais) em relação aquele “corpo social”. A essa
perspectiva de estudo, uma espécie de análise fotográfica das sociedades, sem um
olhar histórico, denominamos de estudos diacrônicos.
Essa revolução no pensamento antropológico vem acompanhada, também, de uma
mudança de postura do próprio pesquisador em relação às sociedades a serem
6 Francois Laplantine – estudadas.
Aprender antropologia
“A revolução que ocorrerá na nossa disciplina durante o primeiro terço do século XX é
considerável: ela põe fim à repartição de tarefas, até então habitualmente dividas entre o
observador (viajante, missionário, administrador) entregue ao papel subalterno de provedor de
informações, e pesquisador erudito, que, tendo permanecido na metrópole, recebe, analisa e
interpreta – atividade nobre! – essas informações. O pesquisador compreende a partir desse
momento que ele deve deixar o seu gabinete de trabalho para ir compartilhar a intimidade dos
que devem ser considerados não mais como informadores a serem questionados, e sim como
anfitriões que o recebem e mestres que o ensinam. Ele aprende então, como aluno atento, não
apenas a viver entre eles, mas a viver como eles, a falar sua língua e a pensar nessa língua, a
sentir suas próprias emoções dentro dele mesmo. Trata-se, como podemos ver, de condições
de estudo radicalmente diferentes das que conheciam os viajantes
do século XVIII e até o missionário ou o administrador do século
XIX, residindo geralmente fora da sociedade indígena e obtendo
informações por intermédio de tradutores e informadores: este último
termo merece ser repetido. Em suma, a antropologia se torna pela
primeira vez uma atividade ao ar livre, levada, como diz Malinovski,
‘ao vivo’, em uma ‘natureza imensa, virgem e aberta’ ”.6
Bronislaw Malinovski, o mais eminente dos antropólogos
funcionalistas denominou essa postura de observação
participante, o procedimento metodológico que estipula
a participação do Antropólogo na vida cotidiana do grupo
a ser analisado (o próprio Malinovski, chegou a passar
quase três anos entre populações nativas da Austrália e
do Pacífico Ocidental) por longos períodos de tempo, a
fim de “impregnar-se” da vida cotidiana dos nativos, a
ponto de pretender (há muita controvérsia entre os
antropólogos sobre este ponto) captar o ponto de vista,
a mentalidade do nativo. Essa compreensão das partes
constitutivas de um grupo e suas funções para a
reprodução da totalidade, é alcançada por uma espécie
de fio condutor para extensão da observação. Busca-se
então, a partir de um aspecto específico (as formas de
casamento, a vida sexual), a compreensão de todos os
níveis que compõem a realidade.
Ainda segundo as percepções de Malinovski, a análise etnográfica deve dar conta
de três níveis da realidade social que está sendo observada: o fazer, o falar e o
pensar. O primeiro nível é a análise do modo em que a sociedade se organiza para
a produção e reprodução de suas necessidade de sobrevivência, ou seja, aquilo que
Karl Marx denominou de modo de produção econômico. O segundo, o falar, analisa
as relações do indivíduo com o grupo e a suas regras sociais. O terceiro nível, o
pensar, tenta esclarecer a forma pela qual os componentes do grupo constituem a
sua visão de mundo (cosmologia), ou seja, a mentalidade expressa nas concepções
sobre o natural o sobrenatural e sobre o próprio homem.
Outro grande funcionalista foi o antropólogo americano Franz Boas. Pioneiro nas
pesquisas de campo, Boas, que tinha uma postura metodológica muito semelhante
a de Malinovski, elevou a patamares de obsessão a descrição das sociedades que
analisou. Seu ponto de vista micro-sociológico (considerava as sociedades como
totalidades autônomas) era caracterizado pela rigorosa atenção a tudo que era
específico no grupo. Todo costume deve ser anotado, analisado e relacionado com
outro costume para se compreender a função de cada aspecto em relação ao todo.
Boas descrevia exaustivamente todas as receitas das culinárias dos povos que
estudou, preocupava-se com as notas musicais utilizadas nas músicas nativas e
com os trançados dos artefatos de palha construídos pelas mulheres.
O funcionalismo foi coroamento da Antropologia como disciplina científica, livrando-
se dos limites eurocêntricos do evolucionismo e constituindo o fazer antropológico
original, cada vez mais afastado dos esquemas teóricos emprestados de outras
ciências. O método de pesquisa que chamamos de “observação participante”
(invenção funcionalista) é peça fundamental em praticamente todos os estudos
antropológicos atuais, e está longe de ser considerado como instrumento dispensável
pelos antropólogos. O funcionalismo, nos ensinou ainda, que cada grupo deve ser
considerado por suas características próprias, sem recorrer a juízos de valor
preexistentes, e sem comparações amparadas em um discurso primitivo/civilizado.
Por fim, com os pesquisadores funcionalistas aprendemos que cada povo, sociedade
ou civilização tem a sua racionalidade própria.
Se, por um lado, o funcionalismo conseguiu amenizar os problemas gerados pelo
discurso evolucionista, por outro, conseguiu criar os seus próprios problemas.
Em primeiro lugar, podemos afirmar sem correr grandes riscos, que o funcionalismo
é pobre em elaboração teórica. Os funcionalistas realizaram grandes pesquisas
descritivas, mas não conseguiram criar conceitos que pudessem desmascarar as
relações sociais para além de sua própria aparência, sem contudo atingir sua essência.
Os estudos funcionalistas estão repletos de descrições sobre rituais mágicos, mas
nenhum deles conseguiu avaliar a importância da magia
como umas das formas do homem compreender e
manipular a natureza.
Em segundo, a idéia de que cada costume, prática ritual,
ou instituição cultural (o casamento, as regras de
parentesco, etc.) tem a sua função específica e contribui
para a formação do “corpo” social, criou a idéia de que
os grupos humanos se organizam de forma sempre
harmoniosa e positiva, e não leva em conta as
contradições e conflitos entre os homens na luta pelo
poder político e as relações de desigualdade que são
conseqüência dessa luta (nunca é demais lembrar que
todo grupo social tem as suas desigualdades, sejam elas
mais ou menos contrastantes). Além disso, a visão
diacrônica (a análise das partes constitutivas da
totalidade social de um grupo, na forma em que é
encontrada pelo observador) criou a falsa idéia de que
os povos tradicionais e não-ocidentais não tem História.
O funcionalismo negou o dinamismo dessas sociedades
e as interpretou como estáticas.
Em terceiro lugar, (talvez esse seja o maior erro dos
funcionalistas), esses pesquisadores despregaram
conscientemente a presença do colonizador europeu,
assim como a transformações sociais decorrentes desse contato nos povos
tradicionais e nativos. Malinoviski varria a aldeia trobriandesa em que realizou suas
pesquisas para não se incomodar com a latas de sardinha consumidas pelos
trobriandeses. Evans-Pritchard, que elaborou uma magistral etnografia sobre os Nuer,
povo africano, descreveu a importante função do gado bovino para a reprodução
social do grupo, sem contudo, explicar que os africanos só conheceram a pecuária
bovina através da presença inglesa no continente. Com isso tentavam preservar
uma ilusória perspectiva purista, em que a chegada do dominador não era considerada
para se observar a coerência interna das sociedades.
Em quarto e último lugar, o funcionalismo gerou o procedimento relativista na
observação e posicionamento político sobre os povos não-ocidentais. Sendo as
culturas sempre específicas e suas práticas culturais sempre determinadas pela sua
função em relação ao contexto particular de cada povo, restringiu-se a capacidade
da Antropologia de compreender os grupos humanos em suas características
universais. Não se pode, através do funcionalismo, formular uma teoria geral sobre
o Homem, e sim conhecimentos específicos sobre cada grupo humano, numa
perspectiva científica fragmentada e limitada.
Se o evolucionismo considera o homem não-ocidental como “primitivo” na escala
de evolução humana, o funcionalismo separou os homens em realidades totalmente
excludentes. Se por um lado aprendemos respeitar as diferenças culturais, por outro,
não há possibilidade de levar-se em consideração um projeto político em comum, já
que todos são radicalmente diferentes.
Eu e o outro, um e o diverso. Algumas vezes, diverso apenas enquanto partícipe ou
não de um lugar: a consciência (o espaço onde o eu se reconhece). Tão diverso que
faz parte de um mundo desconhecido. Como no Descobrimento da América, marca
um encontro a partir do qual o mundo nunca mais será o mesmo, encontro com um
outro tão diverso, que, de tão diverso, muitas vezes nem sequer se sabia se era
realmente outro. A resposta etnocêntrica (evolucionista) apontava que o outro era,
na verdade, o mesmo, diferenciado cronologicamente, tratava-se de um eu-criança,
cuja descoberta marcaria, na verdade, um encontro com a origem da única
humanidade que se entendia como tal, a do homem ocidental. E mais nada. O
ensinamento a ser tirado dessa ‘situação colonial’ poderia ser de resgatar uma certa
ingenuidade, perdida pelo Ocidente: Olha o outro e você estará se olhando. Mas de
que maneira? O homem americano primitivo era um espelho onde o homem ocidental
veria refletida a sua imagem ancestral, uma imagem que teria sido abandonada em
nome da civilização: o diverso apareceria como um.
A resposta relativista (funcionalista) aponta que o outro era, na verdade, um ser tão
diverso que nada nele poderia lembrar um eu sobre si mesmo. Um outro que não
poderia ser medido de maneira alguma em relação ao um. O relativismo representou
uma forma de redenção da Antropologia, que passou a ser visualizada como uma
ciência que, em nome do ‘respeito à diferença’, poderia remediar todos os danos
causados pela visão etnocêntrica. Isso fez do antropólogo um sujeito que procurava
agir como se não estivesse sujeitado à sua própria realidade cultural, despido de
toda possibilidade crítica e que paradoxalmente, teria como missão preservar o outro
de si mesmo, uma vez que tratava-se de preservá-lo da civilização ocidental, da
qual, quisesse ou não ele fazia parte. O um (eu) e o diverso (outro) tornam-se,
ambos diversos.
Mas, se o diverso é o um como quer o etnocentrismo ou se o um e o diverso são
7 Edgard de Assis Carvalho – ambos diversos como sugere o relativismo,
Polifônicas Idéias: Antropologia e
Universalidade. Onde fica o Universo?7
O Estruturalismo
Até agora pudemos avaliar o desenvolvimento e o amadurecimento da Antropologia
a partir de seus dois universos teóricos mais importantes: o Evolucionismo e o
Funcionalismo. Conhecemos tanto os seus méritos quanto os seus limites e pudemos
reconhecer que uma ciência jovem como essa, está em constante busca para o
aperfeiçoamento e lapidação.
O Estruturalismo entra para a história da Antropologia como um salto qualitativo que
vai contribuir enormemente para o estabelecimento da disciplina entre as mais
importantes para o entendimento do ser humano. Com a visão estruturalista, ganha-
se um complexo corpo teórico que vai ter a pretensão de explicar a essência do
Homem para além de suas diferenças culturais e buscar a universalidade das práticas
sócio-culturais, aquelas características que definem o que é o ser humano em relação
ao domínio da natureza. Como veremos, a compreensão dos aspectos fundamentais
que caracterizam o humano acontece num nível de realidade que a Antropologia até
então não tinha conseguido atingir: o inconsciente.
Até o funcionalismo, o nível de realidade social pesquisado era do empírico, o
palpável e o concreto. A partir de agora o homem real e a sua diversidade vai
gradativamente deixando de existir pela análise estrutural e, no seu lugar, vão surgindo
os elementos estruturais do inconsciente humano, lugar onde residem as peças
fundamentais que determinam de que forma serão constituídas as diferentes maneiras
de organização social do homem. Para o estruturalismo, a magia não “representa
uma fase anterior, mais grosseira da história do espírito humano” (como diria o
evolucionista Frazer), muito inferior à ciência, mas sim, uma outra maneira de se
fazer Ciência. A medicina indígena (caracterizada pelos seus rituais de feitiçaria)
não seria mera superstição inferior à medicina ocidental, mas sim uma outra forma
de medicina. A magia se apresenta às realidades de formas muito diferentes, mas,
justamente por sua estrutura se encontrar no inconsciente de todos os homens, é
porque ela se encontra espalhada nas mais diferentes culturas ao redor do globo.
O criador e principal defensor da antropologia estrutural é Claude Levi-Strauss,
antropólogo francês que está entre os mais importantes personagens da ciência no
século XX. Homem de pensamento fecundo, complexo e abstrato, conseguiu colocar
a Antropologia no centro das discussões teóricas, principalmente com pensadores
de outras áreas do conhecimento científico, pelo caráter inovador e polêmico de
suas idéias. Porém a teoria estrutural não foi uma criação original de Levi-Strauss.
Ele apenas transportou e adaptou à antropologia, o método conhecido de “Lingüística
estrutural”, formulado principalmente pelo russo Roman Jacobson. Além disso o
tema “inconsciente” é presença constante nos debates científicos do século XX,
desde a publicação de “A Interpretação dos Sonhos” de Sigmund Freud, em 1900.
Há porém uma diferença fundamental entre o inconsciente freudiano para o levi-
straussiano: para o primeiro a atividade inconsciente tem ação individual enquanto
que para o segundo essa mesma atividade é irredutivelmente social, coletiva.
O método consiste, então, em promover análises, a partir de três etapas: (1) a
descrição dos grupos sociais, o trabalho etnográfico; (2) a criação de conceitos que
expliquem essa realidade observada, o trabalho etnológico; e, (3) a generalização
que procura atingir elementos estruturais e inconscientes das relações sociais a
partir da comparação dos conceitos criados pelo nível etnológico da pesquisa de
realidades diferentes e determinados por temas. Usemos o exemplo da medicina
indígena e em grupos nativos de outras partes do mundo (xamanismo). A partir da
realização de etnografias sobre o xamanismo em diferentes culturas, criam-se
conceitos que explicam os aspectos gerais do xamanismo, e por último, faz-se a
comparação teórica com outras formas de medicina, para encontrar-lhes aspectos
comuns, que não são encontrados na realidade empírica, mas que expliquem de
uma maneira muito geral, a importância e organização da medicina para o homem.
As preocupações de Levi-Strauss ao longo de sua vida acadêmica se concentram
em duas áreas fundamentais: o parentesco e o pensamento.
Ao se debruçar nos estudos sobre parentesco, Levi-Strauss criou uma elaboração
teórica em seu livro “As Estruturas Elementares do Parentesco”, com o objetivo de
desmascarar o ponto fundamental de diferenciação entre o que é domínio da natureza
do que é domínio da cultura no homem. Em outros termos, ele tentou discernir o que
o homem tem de instintivo e de cultural na sua vida
social. Após uma pesquisa exaustiva e prolongada de
análise de muitos sistema de parentesco, recolhidos de
etnografias sobre grupos sociais de todas a parte do
mundo, Levi-Strauss chegou a conclusão de que a
diferenciação entre natureza e cultura é o tabu do incesto.
Leva em consideração para formular a análise, de que
o instinto é uma pulsão vital que está presente em todos
os indivíduos de uma mesma espécie – por isso universal
– e que o ato cultural é uma escolha (inconsciente) que
cada grupo humano faz para organizar-se para a busca
de suas satisfações básicas na natureza (comer, beber,
vestir, compreender o mundo em sua volta, etc.) – por
isso particular. O autor nos afirma, então, que o incesto
(a proibição da prática sexual em círculos familiares
restritos, por exemplo, pai/filha, mãe/filho irmão/irmã) é
uma prática cultural com amplitude instintiva, já que esse
tabu é encontrado em todas as sociedades humanas
(universalismo instintivo), mas apresenta-se em formas
diferenciadas (porém em número limitado) nos diversos
grupos sociais humanos (particularismo cultural).
O incesto seria, então, o ponto fundamental de
diferenciação entre natureza e cultura e a própria
instituição da cultura que nasceria junto com o
aparecimento do Homo Sapiens. Levi-Strauss nos afirma que a cultura (que pode
ser definida como o conjunto de relações – sociais, econômicas, políticas e culturais
– de um grupo), nasce justamente para garantir ao homem sua inserção e sustento
na natureza e ocupa o lugar em que os instintos se ausentam, e que a partir de seu
desenvolvimento, esses mesmos instintos tenderiam a desaparecer, sendo ocupados
totalmente pelos fatores culturais.
Além disso ele considera que todo universo cultural é um domínio da comunicação,
não só no sentido estrito da palavra, mas numa perspectiva mais ampla. Os homens
comunicam-se constantemente para estabelecer alianças, que fundam, por sua vez
a sociabilidade. Essas trocas seriam de três espécies: de mulheres (parentesco), de
bens (economia) e palavras (lingüística). O incesto nasceria como uma necessidade
de trocar mulheres. Mas porque trocar mulheres? O autor afirma que “expulsar” as
mulheres do círculo familiar cumpre dois papéis importantes para a sociabilidade do
grupo: (1) evita que os homens disputem entre si as mulheres do seu grupo, o que
poderia significar desagregação social e (2) garante alianças políticas com outros
grupos, ato fundamental para a preservação e defesa nos tempos difíceis, em que
aparecem as guerras ou períodos de grande escassez alimentar. Essas afirmações
se destacam do conjunto da obra levi-straussiana tanto pela sua interessante
originalidade, quanto pela fúria despertada entre as lideranças do movimento feminista
francês nos anos 50 e 60 do século passado.
A teoria do pensamento selvagem, também foi um ponto de destaque em sua obra.
A grande preocupação de Levi-Strauss é criticar as teorias sobre o pensamento na
antropologia que consideravam o pensamento não-ocidental como inferior em
qualidade ao pensamento ocidental, caracterizado pela lógica científica. Sua teoria
é elaborada na obra “o Pensamento Selvagem”, tem complemento em inúmeras
publicações, organizadas nos livros “Antropologia Estrutural I e II e é finalmente
completada em sua obra monumental, “As Mito-lógicas”.
Para esse pensador, a importância do homem em conhecer a natureza, nasce não
só das exigências de suprir as suas necessidades básicas de sobrevivência, mas
também vontade (inconsciente, é claro) de colocar ordem no caos aparente da
natureza e do cosmos. Essa dupla carência, organiza tanto o pensamento científico,
quanto o não-científico. O pensamento selvagem (e não dos selvagens, como Levi-
Strauss gosta de ressaltar, já que ele está presente no nosso cotidiano, por exemplo
na poesia) é organizado como mitológico-simbólico. Enquanto a ciência fundamenta-
se na lógica - a observação empírica que busca construir conceitos e teorias a partir
de leis gerais - o mito fundamenta-se numa perspectiva analógica.
O conhecimento analógico se caracteriza pela significação (busca de sentido e
significado) a partir da relação de coisas de naturezas diferenciadas, ligadas pela
comparação. A forma inicial dessa comparação se faz pela relação Homem/Natureza.
Para conhecer a natureza o homem a humaniza, ou seja, lhe confere características
humanas como maneira de classificar os fenômenos naturais. Da mesma maneira,
mas num processo inverso, para se identificar e se caracterizar socialmente, o homem
se naturaliza, portanto lhe confere características que são próprias dos fenômenos
naturais que vivencia.
“A felicidade é uma gota de orvalho numa pétala de flor,
Voa tranqüila, depois de leve oscila,
E cai como uma lágrima de dor.”
Vinícius de Morais e a sua inspiração poética nos dão um ótimo exemplo. Para
definir o caráter efêmero e passageiro da felicidade (expressão humana), ele utiliza-
se de uma imagem natural – “a gota de orvalho numa pétala de flor”. O que ele
produz é uma pequena demonstração de naturalização do que é uma experiência
essencialmente humana. Esse magnífico jogo de espelhos para a construção de um
conhecimento da natureza e do próprio homem, não se limita a conhecer, mas também
a intervir e manipular tanto o domínio natural quanto o social, afinal de contas, uma
natureza com dotes humanos, é uma natureza mágica. A magia se apresenta como
a forma de ação humana na natureza, mas também, na própria sociedade, pois a
posse do discurso mágico por alguns membros de determinado grupo, lhes confere
poder político sobre esse mesmo grupo.
O discurso mágico-religioso é portanto uma forma legítima de conhecimento e fonte
de poder, pois quem conhece e manipula a natureza, tem a chave de acesso daquilo
que os seres humanos necessitam para a sua sobrevivência e por isso deve ser
respeitado. Os feiticeiros e xamãs têm grandes poderes para influenciar a vida social
de seus grupos, já que suas ações podem mudar o curso dos fenômenos naturais e
humanos, como por exemplo, na arte de curar. Em dois trabalhos de extrema
importância para a história da Antropologia – A Eficácia Simbólica e O Feiticeiro e
sua Magia (ambos compõem, entre outros estudos, a obra Antropologia Estrutural
‘I’) – Levi-Strauss demonstra que o xamanismo (nome genérico dado às práticas
médicas pautadas por intervenções mágicas) tem poder real de cura a partir da
utilização que o xamã faz da eficácia simbólica. Esse conceito demonstra que quando
o doente e o grupo social estão realmente convencidos do poder operado pelo
feiticeiro, se realiza uma ação psicológica que desencadeia um processo de ação
fisiológica de cura no doente, já que o ritual se orienta a dar uma explicação (um
significado) sobrenatural à causa da doença, amenizando, assim, as angústias
sentidas pelo doente e pelo grupo, que não encontravam respostas para origem de
seus males.
O autor faz uma comparação desse processo com a ação do psicólogo, que resolve
os traumas dos seus pacientes através de um esforço de reconhecimento dos
problemas que originaram a sua falta de auto-aceitação individual e que lhe dificulta
o convívio social, ou seja, fazendo com que seu paciente atribua explicações
coerentes para as suas dificuldades, dessa maneira encontrando a sua própria “cura”.
A diferença, diz Levi-Strauss, entre o psicólogo e o feiticeiro, seria que, enquanto o
primeiro usa uma ação psicológica (a terapia) para resolver problemas psicológicos
(os traumas), o segundo utiliza uma ação psicológica (o ritual xamanístico) para
resolver problemas fisiológicos (a doença). Portanto, o feiticeiro seria um agente de
cura que estaria no meio do caminho entre o psicanalista e o médico.
Essa ciência do concreto, na concepção levi-straussiana, tem o mesmo status que a
ciência, já que o conhecimento científico conheceu seu esplendor nos últimos
duzentos anos, enquanto que o conhecimento mitológico garantiu a sobrevivência
da humanidade nos últimos dez mil anos.
Essas considerações introdutórias sobre a visão estrutural de Levi-Strauss têm como
objetivo demonstrar o quanto a antropologia ganhou em riqueza teórica a partir dos
seus trabalhos. As características universalizantes do inconsciente humano e a
determinação de seus aspectos sobre a realidade social do homem, demonstram
que, na verdade, as diferenças culturais são conteúdos variáveis de um conjunto de
estruturas invariáveis. A universalidade do homem está mascarada pela diversidade.
Levando a análise além da realidade concreta, Levi-Strauss nos evidencia que o
caráter universal do homem se realiza nessa diversidade aparente, já que ele usa as
mesmas estruturas inconscientes do pensamento de maneiras diferentes, na
construção de realidades culturais a partir dos desafios que o mundo natural lhe
impõe.
“O homem é semelhante ao jogador pegando na mão, ao sentar à mesa, cartas que não inventou,
já que o jogo de baralho é um dado da história e da civilização. Em segundo lugar, cada
repartição das cartas resulta de uma distribuição contingente entre os jogadores, e se dá
independentemente da vontade de cada um. Existem as distribuições que são sofridas, mas
cada sociedade, como cada jogador, interpreta nos termos de vários sistemas, que podem ser
comuns ou particulares: regras de um jogo ou regras de uma tática. E sabe-se bem que, com a
mesma distribuição, jogadores diferentes não fornecerão a mesma partida, embora não possam,
compelidos também pelas regras, fornecer uma determinada distribuição de qualquer partida”.8
8 Claude Levi-Strauss – A As criticas existem e são muitas. Para os que não concordam com o estruturalismo
Análise Estrutural Em
Antropologia (e eles tem uma certa razão), Levi-Strauss matou o homem, ou melhor, o fez parecer
uma mera marionete nas mãos de uma estrutura inconsciente, onde as realizações
humanas significam muito pouca coisa. O homem não seria senhor do seu destino,
mas um figurante manipulado por este. A história teria pouca ou nenhuma importância,
já que esta é o reino da ação humana. Para os marxistas (apesar de existir uma
perspectiva estruturalista no interior do marxismo) e existencialistas, que consideram
o homem agente privilegiado da História e senhor do seu destino, o estruturalismo
seria quase uma aberração.
De qualquer forma, não há como negar o enriquecimento e a complexidade que
Antropologia conheceu após o surgimento da análise estrutural. Além disso, o mundo
não-ocidental ganhou dignidade ao ser colocado em pé de igualdade com o universo
cultural do ocidente. Atualmente, alguns ramos da disciplina vêm tentando flexibilizar
a rigidez estrutural, a partir do estabelecimento de diálogos teóricos com outras
visões sobre o homem, como por exemplo, o marxismo antropológico, a partir do
cruzamento das idéias de Karl Marx com o mundo conceitual de Levi-Strauss.
As implicações antropológicas
no discurso político da Modernidade
Desde o século XV, há uma longa caminhada das forças capitalistas em direção à
construção de uma sociedade que lhe seja própria e ajustada aos seus interesses.
Nesse processo histórico de afirmação da burguesia como classe hegemônica, houve
a necessidade de criação de um espaço político apropriado aos seus objetivos
econômicos de produção e comercialização; um espaço de uniformidade legal e
burocrática, que garantisse a paz e normalidade necessária para essas atividades,
muito diferente, é claro, da descentralização político-adminstrativa e sua consequente
instabilidade social, tão característicos do feudalismo. Esse espaço seria, portanto,
o Estado-Nação.
Estado, na concepção moderna e política do termo, seria a organização político-
burocrática de um determinado espaço. Tendo como partes constitutivas fundamentais
o governo, o corpo burocrático-administrativo, as leis e o monopólio da violência
(exército e polícia). Nação, por sua vez, seria espaço onde o Estado exerce o seu
poder, tendo como partes constitutivas um território e suas bem demarcadas fronteiras,
um povo, um idioma oficial e a noção de pertencimento (identidade cultural) que
esse povo deve ter para aceitar o comando do Estado.
Como já vimos acima, a construção do Estado-nação decorre de uma maneira mais
explicita, da crescente interferência de uma classe social específica – a burguesia –
diretamente proporcional ao desenvolvimento das forças do sistema econômico que
é comandado por ela – o capitalismo. Portanto, as noções introdutórias do pensamento
político que vamos discutir estão em relação direta com o estabelecimento do
capitalismo no mundo e o assalto ao poder que a burguesia realiza na medida em
que vai se tornando a classe economicamente dominante em relação aos grupos
que comandavam os destinos do mundo medieval (o clero católico e a nobreza
feudal), ou mesmo quando esse mundo medieval não existia mais, a forma de
comando que se apresentava como seu resquício, sua herança - o rei absolutista.
Vale lembrar também que esse esforço realizado pela burguesia, resulta num processo
de dessacralização (deslegitimação da dominação construída a partir do discurso religioso)
do ato político que lentamente vai se fundamentando num processo de racionalização
(legitimação do poder político a partir de um discurso racional, “científico”). Deus vai
sendo substituído pelo próprio homem e suas realizações na política.
Os autores que discutiremos mais adiante tentaram, com as suas construções teóricas,
justificar a existência do Estado-Nação a partir de uma íntima relação com os objetivos
sociais e econômicos vigentes desde o século XVI até os nossos dias. Daí deriva,
também, a necessidade de afirmar quem deve comandar esse Estado. O rei, a
burguesia, ou povo? Thomas Hobbes, John Locke e Jean Jacques Rousseau
utilizaram uma metodologia teórico-filosófica - o contratualismo – que leva em
consideração a observação das civilizações não-ocidentais (e mais especificamente
a América indígena) para a análise da própria civilização européia, e obviamente, a
justificação do Estado-Nacional. É muito importante ressaltar nesse momento, que
esses filósofos dos séculos XVII e XVIII utilizaram um procedimento antropológico
antes do surgimento como da antropologia como ciência.
Porém, antes de analisar esses pensadores, vale discutir um aspecto fundamental
do pensamento político e da própria política. A noção de poder. Para tanto, optou-se
discutir as idéias de um pensador contemporâneo que analisou as relações de poder
na sociedade capitalista de uma maneira muito ampla, que não se restringiu à ciência
política, mas partiu da história e da antropologia: Michel Foucault. A escolha deliberada
desse autor para compor este trabalho, justifica-se pelo fato de que sua obra tem
relevância não só para o tema “poder”, mas para áreas importantes no universo
contemporâneo das ciências sociais, como a sociologia do conhecimento, história
das ciências, assim como a preocupação com grupos minoritários de nossa sociedade,
como os “doentes” mentais, os homossexuais e a sexualidade infantil e feminina.
Porém, existem outros autores contemporâneos que podem e devem ser levados
em conta para uma análise mais aprofundada das relações de poder, como por
exemplo Max Weber e Norberto Bobbio.
Michel Foucault e a relação saber-poder
Pensador francês que incomodou e atrapalhou a bem demarcada controvérsia entre
a fenomenologia marxista e o estruturalismo levi-straussiano, nos anos 50/60 e início
dos 70, Michel Foucault chega a estabelecer, segundo Machado, “um novo caminho
para as análises históricas sobre as ciências”9 , apesar do próprio pensador insistir
no caráter sempre fragmentário de seus estudos.
Foucault inicia sua trajetória intelectual na década de 50, a partir da construção de
uma “arqueologia dos saberes” que possibilitasse compreender a emergência do
humano como sujeito, ou seja, como ser construtor de conhecimentos positivos no
seio da formação do capitalismo na Europa, entre os séculos XVIII e XIX. Vale dizer,
a elaboração do homem como sujeito implica, também, na sua objetivação. Na
ânsia repleta de interesses (econômicos, políticos) em conhecer, precisa empreender
um conhecimento do próprio humano; portanto torna-se sujeito, será também objeto.
O autor propõe, então, formular uma visão da forma como o conhecimento positivo,
que se convencionou denominar de ciência, dominou e sufocou a possibilidade de
existência das outras formas de conhecimento, deslegitimando-as. Descaracterizando
as demais formas de conhecer, eliminou, também, suas respectivas formas de agir.
Assim, no decorrer histórico das hostilidades e lutas entre esses saberes, aquele
que se sobrepõe, formula, também, as relações de poder que vão domesticar,
disciplinar as formas de ação do homem sobre o próprio homem.
A cada livro publicado por Michel Foucault uma intercorrelação se impõe às suas
preocupações teórico-metodológicas: a indissolúvel articulação entre saber e poder.
Procurando formular uma análise em áreas “não-privilegiadas” e periféricas do
conhecimento – os comportamentos “desviantes” como o do louco, seu primeiro
foco de análise – Foucault procurou demonstrar que o saber sobre esse “desvio”
implicava, primeiro, num esmagamento da outras interpretações sobre a loucura;
segundo, na formulação de uma forma de agir sobre ela; e, terceiro, na sua
institucionalização como prática de saneamento e recuperação, agindo em prol do
“retorno” à “normalidade”. Além disso, que a fundamentação desse saber-poder sobre
os desvios está em plena conformidade como a estrutura sócio-econômica vigente,
o capitalismo, e com sua estruturação política maior, o Estado.
É importante salientar, contudo, que o fato dessas formas articuladas de “saber-
poder” estarem em plena conformidade com a macro-política do Estado - sendo
este o correspondente supra-estrutural da infra-estrutura econômica capitalista –
não significa ser apenas uma decorrência lógica das relações do poder estatal, ou
meramente, uma de suas expressões. O autor insiste na sua autonomia, a partir da
luta entre os vários saberes, sem obviamente, negar que esta autonomia é cooptada
pela ação estatal.
Qual seria então, o rascunho de uma conceituação teórica, ainda que em forma de
apontamentos, sobre o poder? Uma maneira segura de iniciar essa discussão seria
indicar o que o poder não é: uma coisa, algo palpável e material. O poder não é,
também, uma instituição, apesar de sua realização se dar através de instituições.
9 Machado, R. “Por uma
“Não existe algo unitário e global chamado poder, mas unicamente formas díspares,
genealogia do poder”. In heterogêneas, em constante formação. O poder não é um objeto natural, uma coisa; é uma
FOUCAULT, Michel. “Microfísica prática social, como tal, constituída historicamente”. 10
do Poder”. Rio de Janeiro:
Foucault nos afirma que o poder só acontece a partir do seu exercício; ou seja, não
Edições Graal, 4ª edição, 1984,
295p. se detém poder, mas sim alguém que exerce poder. Por isso sua realização formula-
10 Machado, R. “Por uma se através de uma relação.
genealogia do poder”. In
FOUCAULT, Michel. “Microfísica “Abordar o tema do poder através de uma análise do “como” é, então, operar diversos
do Poder”. Rio de Janeiro: deslocamentos críticos com relação à suposição de um poder fundamental. É tomar por objeto
Edições Graal, 4ª edição, 1984, de análise relações de poder e não um poder(...)”11
295p.
11 DREYFUS, Hubert L. &
Além disso, não se configura uma relação de poder o exercício de dominação sobre
RABINOW, Paul. “Michel algo; sobre alguma coisa, aí temos a noção de capacidade técnica. Não é poder,
Foucault: Uma Trajetória também, uma relação de comunicação, ou seja, a forma pela qual se “transmite
Filosófica – Para além do uma informação através de uma língua, de um sistema, de signos ou de qualquer
estruturalismo e da
hermenêutica”. Tradução: Vera
outro meio simbólico”(...), apesar de que, completa Foucault, “a produção de
Porto Carrero. Introdução: elementos significantes podem perfeitamente ter por objetivo ou por conseqüências
Traduzida por Antonio Carlos efeitos de poder, que não simplesmente um aspecto dessas. Passando ou não por
Maia. FU, 2000, p. 229-249. sistemas de comunicação as relações de poder tem sua especificidade”12 .
Por fim as relações de poder. O que seriam essas relações? Ou melhor, como se
exerce as relações de poder em sua especificidade? Antes de qualquer coisa, uma
relação de poder é uma ação de uns sobre outros, ou melhor, é ação de uns sobre
a ação de outros, ou seja, para determinar-lhes a ação dentro de um campo de
possibilidades. Antes de prosseguir o pensador nos adverte que, na sua concepção,
não há espaço para a noção de consentimento dentro dessa conceituação;
“(...) ele não é (o poder), em si mesmo, renúncia a uma liberdade, transferência de direito,
poder de todos e de cada um a alguns (o que não impede que o consentimento possa ser uma
condição para que a relação de poder exista e se mantenha); a relação de poder pode ser o
efeito de um consentimento anterior ou permanente; ela não é, em sua própria natureza, a
manifestação de um consenso”13 .
Assim como, o recurso de violência, para o autor, implica numa ação direta sobre o
corpo, e não numa ação sobre a ação do outro: “Uma relação de violência age sobre
um corpo, sobre as coisas; ela força, ela submete, ela quebra, ela destrói; ela fecha
todas as possibilidades; (...)”14 . Portanto a violência e o consentimento – dois
fundamentos tão caros à teoria clássica sobre o poder – são colocados antes, em
relação ao poder, como seus “instrumentos ou efeitos, não constituem, contudo, seu
princípio ou sua natureza”15 .
Vale afirmar aqui que esta visão periférica da importância do consentimento e da
violência foi o suficiente para suscitar uma enorme controvérsia em relação aos
cientistas políticos “tradicionais”, que podem enxergar aí uma tentativa de
desmoronamento do universo teórico dos autores contratualistas, assim como todo
o seu arcabouço conceitual acerca das relações entre sociedade e Estado. De
qualquer forma, é importante salientar a necessidade que Foulcault tem de ultrapassar,
sempre, a noção do Estado como fonte única de geração e exercício do poder, e que
para ele, as relações de poder estendem-se quase que infinitamente na complexidade
das relações do social, inclusive, e, justamente, em seus aspectos mais cotidianos e
banais. Mesmo assim não deixa de ser uma discussão interessante promover um
diálogo teórico entre esses dois universos conceituais.
Mas retomando o empreendimento conceitual das relações de poder, Foucault,
delimita, então, que sua natureza consiste num
“modo de ação que não age direta e imediatamente sobre os outros, mas que age sobre sua
própria ação. Uma ação sobre a ação, sobre ações eventuais, ou atuais, futuras ou presentes”.
(o poder) se articula sobre dois elementos que lhe são indispensáveis por ser exatamente uma
relação de poder: que “o outro” (aquele sobre o qual se exerce) seja inteiramente reconhecido
e mantido até o fim como o sujeito de uma ação (ação governada, é certo) e que se abra, diante
da relação de poder, todo um campo de respostas, reações efeitos, invenções possíveis.(...); ele
incita, induz, desvia, facilita ou torna mais difícil, amplia ou limita, torna mais ou menos
provável; no limite, coage e impede totalmente, mas é sempre uma maneira de agir sobre um
ou vários sujeitos ativos, e o quanto eles agem ou são suscetíveis de agir, Uma ação sobre
ações”. 16
Dessa maneira o ato de “conduzir condutas” que é próprio da relação de poder, se
configura a partir da restrição do espectro de possibilidades de ação do dominado
pelo dominador a uma ação, o que implica, então, agir sobre a liberdade dos outros
de modo a determiná-la segundos os interesses de quem exerce o poder.
“O poder, diz o autor, só se exerce sobre “sujeitos livres”, enquanto livres – entendendo-se por
isso sujeitos individuais ou coletivos que tem diante de si um campo de possibilidades onde
diversas condutas, diversas reações e diversos modos de comportamento podem acontecer”17 .
Além da relação de poder, implicar, necessariamente, numa refutação de parte do
dominado, portanto, pela emergência de formas de resistência. Assim, a relação de
dominação tem condição de existência, tanto o conflito imanente, quanto o jogo de
relações estratégicas que impõe lógica de obtenção de empreendimentos para realizar 12 Idem.
13 Idem.
as condições que compõe a relação de dominação. Nas palavras do próprio Foucault, 14 Idem.
“como não poderia haver relações de poder sem pontos de insubmissão, que, por definição, lhe 15 Idem.
escapam toda intensificação e toda a extensão das relações de poder, para submetê-lo conduzem 16 Idem.
apenas aos limites do exercício do poder; (...). Em suma, toda estratégia de confronto sonha 17 Idem.
18 Idem.
tornar-se relação de poder; e toda relação de poder inclina-se, tanto ao seguir sua própria linha
de desenvolvimento quanto ao se deparar frontais, a tornar-se a estratégia vencedora”18 .
As justificativas do poder estatal
Como vimos, Michel Foucault estabelece que as relações de poder estão
disseminadas no amplo espectro de relações de uma sociedade, permeando as
ações entre pais e filhos, professores e alunos, médico e doente, etc. Porém, mesmo
reconhecendo esta infinidade de tipos de relações de poder, o autor não nega, contudo,
a centralidade de uma forma específica: o poder estatal. Assim, o Estado, como o
norteador das ações praticadas pelos indivíduos, categorias e classes sociais,
encontrou, ao longo de seu processo histórico de formação (séculos XV-XVIII) uma
série de pensadores dispostos a realizar a elaboração teórica das justificativas
ideológicas de sua existência, e o que é mais importante, de seus objetivos. Os
autores tratados aqui, como já se disse, contemplam uma visão sobre Estado
fundamentada numa abordagem antropológica, sendo que outros autores e temas
do universo político estão dimensionados em outras partes desta obra.

Thomas Hobbes e o Estado Leviatã


Este grande teórico do absolutismo vai, diferentemente do pensamento maquiavélico,
utilizar-se de uma farta visão filosófica do homem para demonstrar aos homens
reais de sua época, a necessidade do universo político endurecido pela autoridade e
.pela constituição das leis. Hobbes é precursor de uma elaboração teórica muito
utilizada nas idéias de fundamentação política até o final do século XIX (mas para
justificar posicionamentos políticos diferenciados) denominada de contratualismo
ou teoria do contrato social, apresentado em sua obra máxima O Leviatã ou a Matéria,
a Forma e o Poder de Um Estado Eclesiástico e Civil. Essa idéia nasce justamente
no impacto das grandes transformações do século XV para o século XVI e se arrasta
até os nossos dias.
A transição Feudo-Capital nos trouxe a aventura magnífica das grandes navegações,
com elas o Descobrimento da América, e a mais surpreendente das descobertas: o
ser humano até então ignorado pela civilização européia: O Homem Americano
(denominado por Colombo de índio). Esse encontro trouxe um impacto até então
impensado na História da Humanidade, e, a partir dele, gerou um movimento duplo
de reflexão: (1) afinal de contas, quem ou o que são os índios? São humanos como
nós ou animais? E (2) nós, o que somos? Será que éramos índios? Se éramos como
eles, o que nos fez mudar? Portanto, a curiosidade de se entender o outro levou à
refletir sobre si mesmo.
Hobbes elaborou um discurso de legitimação do absolutismo monárquico a partir
desse tipo de reflexão. Para ele, o Homem americano,
assim como o europeu num passado mais longínquo, é
um Homem Natural, o homem que vive num Estado de
Natureza. Como Maquiavel, esse pensador considera a
essência da alma humana repleta de características
maléficas. Sendo assim, como se comportaria esse
humano em Estado Natural, ou seja em plena liberdade,
sem qualquer compromisso com seus pares, sem
reconhecer lei, autoridade ou propriedade? Homo homini
lupos é a resposta que nos dá Hobbes: se a maldade
orienta a ação humana e se essa humanidade encontra-
se em forma naturalizada, o homem é o lobo do próprio
homem.
O homem, livre de qualquer tipo de restrição exterior a
sua individualidade não permite a convivência pacífica
em sociedade, que por sua vez, torna estéril o
desenvolvimento do seu lado construtivo e engenhoso.
Portanto o Estado de Natureza é reino da guerra
permanente, da violência, da morte e do assassinato.
De que maneira os homens conseguiram reverter essa
situação para estabelecer a paz e, ao mesmo tempo,
construir positivamente seu universo cultural? A única
alternativa – ele nos diz – é partir de um acordo entre os
homens – o contrato social - estes renunciariam a esta
liberdade destrutiva e se submeteriam ao poder de um déspota (um príncipe, diria
Maquiavel). Com isso, os homens transformariam esta liberdade abdicada em uma
concentração de poderes manipulados com mãos de ferro por um único homem,
sendo esta a única e derradeira oportunidade de construção de uma sociabilidade
civilizada. Em outros termos, troca-se a liberdade política pela segurança, capaz de
gerar a liberdade econômica e a elaboração de um universo cultural superior, pautados
pela “verdadeira” religião – o Cristianismo – e pelo “verdadeiro” conhecimento – a
Razão.
Esse ser que despreza a própria liberdade por não saber controlá-la, necessita de
uma força muito maior que a sua - a força acumulada de vários homens, mas orientada
por apenas um – que é o Estado (civitas, em grego). Através da instituição do Estado,
conheceríamos o nascimento de um novo homem – o Homem Artificial – que
finalmente encontra a paz, a segurança e a felicidade plena (como vimos, condições
necessárias por sua vez para o florescimento das ciências e das artes, bem como do
desenvolvimento econômico). O homem, então estaria ambientado no Estado de
Civilização.
Para dar a dimensão da magnitude da força que caracteriza o Estado, que tem
como tarefa instaurar a convivência pacifica entre os seres humanos, Hobbes utiliza
uma alegoria bíblica, a do grande monstro Leviatã. A sua imagem está estampada
na capa do livro (existem edições atuais que contém essa magnífica ilustração) e é
a de um ser gigantesco que:
“(...) é moreno, de vastos cabelos e bigodes, com um olhar fixo, penetrante, com um sorriso
imperceptivelmente sarcástico (...). A parte visível de seu corpo, busto e braços, é feita de
milhares de pequeninos indivíduos aglomerados. Com a mão direita empunha, erguendo-a
acima do campo e da cidade, uma espada; com a esquerda uma cruz episcopal. Abaixo,
enquadrando o título da obra, defrontam-se duas séries de emblemas em contrastes, uns de
ordem temporal ou militar, outro de ordem espiritual; uma coroa, uma mitra, um canhão, os
raios de excomunhão; uma batalha de cavalos empinados (...)”.19
Hobbes identifica, por fim, todos os benefícios da sua visão política que legitima o 19 Jean Jacques Chevalier – As
poder do soberano, e ao mesmo tempo, fundamenta a necessidade do Estado, da Grandes Obras Políticas, de
Maquiavel aos Nossos Dias.
seguinte maneira:
“(...) a arte do homem (...) pode fazer um animal artificial (...) Mais ainda, a arte pode imitar
o homem, obra prima racional da natureza. Pois é justamente uma obra de arte esse grande
Leviatã que se denomina coisa pública ou Estado (...), o qual não é mais do que um homem
artificial, embora de estatura muito mais elevada e de força muito maior que a do homem
natural, para cuja proteção e defesa foi imaginado. Nele a soberania é uma alma artificial, pois
que dá a vida e o movimento a todo corpo(...). A recompensa e o castigo são seus nervos. A
opulência e as riquezas de todos os seus particulares, a sua força. Salus Populis, a salvação do
povo, é a sua função(...). A equidade e as leis são para ele razão e vontade artificiais. A concórdia
é a sua saúde, a sedição, a sua doença e a guerra civil a sua morte. Enfim, os pactos e os
contratos, que, na origem, presidiram a constituição, agregação e união das partes desse corpo
político, assemelham-se ao fiat ou o façamos o homem, pronunciado por Deus na criação”
(Thomas Hobbes – O Leviatã).
O pensamento hobbesiano vai exercer um profunda influência sobre a teorização e
a prática política do século XVII até os nossos dias. Criou o fundamental conceito de
Contrato Social que vai impor-se no Iluminismo do século XVIII para filósofos como
John Locke e Jean Jacques Rousseau. E, no século XIX, influenciou o positivismo
científico de Augusto Comte, Émile Durkheim e companhia, com as suas teorias
amparadas na biologia, para a elaboração do conceito de corpo social.
John Locke e o individualismo político.
Até agora pudemos constatar o quanto esses pensadores
fundamentais da teoria política moderna levam em
consideração tanto uma visão dignificante quanto
degradante do Homem. Maquiavel e Hobbes acreditam
na formação de estruturas políticas modernas (Estados)
feitas pela eminência das ações humanas; mas
acreditam, também que esta estrutura é imprescindível
para minimizar o ímpeto auto destrutivo desse mesmo
ser. Sinal dos tempos. Os séculos XVI e XVII foram
marcados tanto pela ideal renascentista (o homem, obra
prima da natureza) quanto pelo temor da Contra-reforma
(o homem, esse ser nefasto que ousa se rebelar contra
Deus).
Essa intrigante contradição vai perdendo o seu sentido,
à medida que os ventos do tempo trazem o século XVIII.
Nesse século “iluminado” e “iluminista”, o ser humano
perde sua face vil e mesquinha para ser, cada vez mais
perfeito e repleto dos melhores aspectos que se pode
reconhecer: do pensamento racional e científico e até
uma certa ingenuidade, uma bondade natural,
corrompida e aprisionada pelo pensamento religioso e
pelos déspotas. Estes últimos os representantes de uma
época de trevas e obscurantismo que o homem deve,
utilizando suas forças benéficas, libertar-se o mais breve possível.
Na verdade, essa visão exaltada do ser humano corresponde a um contexto de
desenvolvimento econômico bem sucedido da burguesia européia, e principalmente
inglesa, que está às portas da Revolução Industrial. A burguesia amadurece suas
forças produtivas, torna-se a classe mais importante no contexto do Antigo Regime
(séculos XVI/XVIII), sentindo-se forte e confiante para assaltar o poder político das
mãos do Rei e do seu suporte burocrático-militar, a nobreza. Além disso, o mundo
burguês, alicerçado no desenvolvimento tecno-científico, não vê mais razão para
submeter-se ao discurso dogmático do Cristianismo. O homem está a procura de
um outro Deus: ele próprio.
John Locke está imerso nessa atmosfera. O inglês que pode ser considerado, sem
sombra de dúvida, um iluminista, dirige toda a sua perspicácia intelectual a um
decidido objetivo: deslegitimar o Absolutismo Monárquico. Para tanto, se utiliza da
mesma estratégica teórica que Thomas Hobbes: a teoria do Contrato Social.
Em sua obra, “O Ensaio Sobre o Governo Civil” (vale dizer, nome genérico, porque
sua obra é composta por dois ensaios de denominação extensa), o Estado de Natureza
não é o reino da destruição humana; antes seu espaço de felicidade. Ali o homem, já
está dotado de suas capacidades nobres – a razão e a liberdade – e já tem o seu
cantinho de realização – a propriedade (o canto do cisne para os ouvidos burgueses).
Então, porque esse ser agraciado deixaria a natureza e abraçaria o Estado de
Civilização? A explicação de Locke é que nesse universo natural impera também o
individualismo. Não que esta seja uma característica maléfica, pois o homem se
realiza nela, mas a ação individual pode levar a uma situação em que o bom senso
não seja plenamente realizável, e o equilíbrio social possa estar ameaçado. Podemos
afirmar, em síntese, que o homem é bom, mas ausência de regras para o convívio
social pode colocar em risco sua vida feliz.
Daí a necessidade do Contrato Social e do homem abdicar de apenas uma parte de
sua liberdade para o estabelecimento de regras sociais (as leis) e de um governo,
visando garantir a continuidade de seu mundo caracterizado pelo Equilíbrio, Razão,
Auto-Determinação e Vontade. Porém os homens não vão renunciar facilmente do
controle dos seus próprios destinos. No lugar de um déspota, eles se reservarão o
direito de escolher seus próprios governantes, e se estes atentarem contra a liberdade
daqueles que o escolheram, os homens tem um compromisso com a insubordinação.
Portanto aos seres humanos cabe o direito de escolher e remover os seus líderes
políticos, não ao seu bel prazer, pois há regulamentação através das leis, mas quando
essas ações forem necessárias para manutenção e perpetuação da sua liberdade
natural.
Locke estabelece também uma divisão nas formas de realização política por esse
Estado Democrático, que serve tanto para racionalizar a competência dos
governantes, quanto para evitar acumulação de poderes nas mãos de um só homem,
e assim a sociedade não correr o risco do despotismo. Diz ele, que no Estado de
Natureza, os homens guardavam para si dois direitos fundamentais, a saber: (1)
direito à conservação, que determina que se pode fazer tudo o que for necessário
para a conservação de si e de seus pares; e o (2) direito de punir aqueles que
cometem os crimes que atentam contra o equilíbrio (frágil, no Estado de Natureza)
da ordem natural dos homens.
No Estado de Civilização, esses dois direitos vão se aperfeiçoar e vão originar os
dois poderes fundamentais do governo civil: (1) o poder legislativo, ou seja, a busca
de conservação através da elaboração das leis que vão determinar o equilíbrio entre
os homens; e (2) o poder executivo, oriundo do direito de punir, que tem como
objetivo fazer valer as leis que foram elaboradas pelo outro poder constituído. É
interessante notar que no poder executivo, em Locke, está implícito também o poder
judiciário. Mas este poder só será separado do executivo na teoria política de outro
pensador iluminista, Montesquieu, em seu livro o Espírito das Leis, onde é plenamente
desenvolvida idéia de separação dos três poderes.
Não é preciso muito esforço para notar a amplitude e a importância da teoria
desenvolvida por John Locke. Basta afirmar que todo país que se organizou em
termos democráticos é tributário das idéias desse pensador. O processo de
constitucionalização parlamentarista que ocorreu na Europa nos séculos XVIII e XIX,
a elaboração do Estado Federativo do Estados Unidos da América (a constituição
americana é uma obra escancaradamente lockeana) e o processo de constituição
das repúblicas em todo o mundo ocidental foi alimentado por seu corpo teórico.
Porém, a fomentação do espírito de liberdade não pára por aí. Rousseau vem para
radicalizar essa busca tipicamente moderna do homem.

Jean Jacques Rousseau.


Homem de letras e pensamentos amplos, que se estende não só ao universo político,
mas à literatura, educação, e outras áreas, esse pensador, com suas idéias, orientou
boa parte dos destinos políticos da Revolução Francesa. Além disso, é considerado
por muitos, uns dos fundadores das ciências humanas e principalmente, da
antropologia, já que Levi-Strauss o considera como precursor da idéia da
universalidade do humano para além de suas particularidades. Suas noções políticas
são derivadas justamente dessa perspectiva pré-antropológica, já que parte da
premissa filosófica da Bondade Natural do homem. Para Rousseau, o homem no
Estado de Natureza se realiza como o Bom Selvagem. Este viveria em situação de
infinita felicidade (maior que a natureza lockeana) até que um dia...
“(...) O verdadeiro fundador da sociedade civil foi o primeiro que tendo cercado um terreno,
lembrou-se de dizer isto é meu e encontrou pessoas suficientemente simples para acreditá-lo.
Quantos crimes, guerras, assassínios, misérias e horrores não pouparia o gênero humano aquele
que, arrancado as estacas ou enchendo o fosso, tivesse gritado a seus semelhantes: defendei-
vos de ouvir esse impostor; estarei perdidos se esquecerdes que os frutos são de todos e que a
terra não pertence a ninguém!” .20
Diferentemente dos autores que discutimos até agora, Rousseau, vislumbra um estado 20 Jean Jacques Rousseau - O
de natureza com espaço privilegiado a ação humana. Nesse ambiente, caracterizado Discurso Sobre a Desigualdade.
pela relação direta do homem com os recursos natureza, e pela força coletiva
orientando essa relação, seríamos plenamente realizados. O homem estaria livre da
ganância e do egoísmo. Mas algo desiquilibrou esse mundo harmonioso; a sociedade
civil (o Estado) teria nascido dessa atitude corrompida e perturbadora do equilíbrio
natural do Homem: a criação da propriedade. Os governos e suas leis serviriam
para defendê-la e manter a desigualdade entre os homens. Orientado pelos interesses
individuais, a propriedade instituída corrompeu a os interesses coletivos, gerou as
desigualdades e a pobreza levando a maioria dos homens (despossuidos) a uma
situação de dependência em relação a outros homens (possuidores). Essa relação
de dependência dos homens acabou por substituir a relação de dependência das
coisas, situação vivida por aqueles que estavam no estado de natureza, e que nada
mais significa do que a relação direta do homem com a natureza e como forma
produção e reprodução de sua sobrevivência.
Para sanar tal problema, Rousseau propõe-nos um novo Contrato Social que vise,
pelo menos, amenizar as graves conseqüências da instituição da propriedade para a
sociabilidade dos homens. A idéia é que o novo pacto seja estabelecido com o
consentimento geral dos homens e que as perdas sejam diretamente proporcionais
aos ganhos. Nele, os homens iriam se despir de todo e qualquer direito de ação
individual, visando a construção de uma ação coletiva, em que fosse estabelecida
uma Vontade Geral, que, longe de ser uma somatória de vontades indviduais, seria
justamente a forma de impor o coletivo, o interesse geral, aquilo que beneficia a
todos, mas não satisfaz nada que seja do âmbito do desejo individual. O autor deixa-
se levar por um certo maniqueísmo, em que o mal se personifica no individual e o
bem no coletivo. Abdicando de seus direitos individuais, o homem torna-se parte de
um todo e é retribuído, por isso, com os seus direitos coletivos, que, para Rousseau,
é qualitativamente superior, porque está afinado com valores morais não-egoistas.
Assim, todos obedecem a vontade geral, que por sua vez, garante a liberdade de
todos. A partir da idéia de obediência e liberdade, o homem cidadão torna-se
respectivamente súdito e soberano.
“Quando prevalece a opinião contrária à minha, isto prova apenas que eu me enganara, julgando
ser vontade geral o que não era. Se tivesse prevalecido a minha opinião particular, eu teria feito
algo diverso do que queria é então que não seria livre”
O contrato social rousseauniano pretende, portanto, anular as desigualdades
individuais fundadas na violência e na usurpação e, no seu lugar, impor a igualdade
coletiva, fundada convenção (o comum acordo) e no direito (a lei como expressão
da vontade geral) como forma de resgatar a harmonia do bom selvagem e ataca os
malefícios de uma sociedade civil fundada nos interesses individuais, personificados,
como já vimos, na idéia de propriedade. O pensador, contudo, não pretende como
pode parecer, estabelecer uma sociedade socialista. Nem tampouco, suprimir a
existência da propriedade privada. Sua intenção está direcionada em remodelar
essa noção. Para ele, a propriedade das coisas e dos bens deve ser atribuída ao
Estado e direcionada para os interesses coletivos. As pessoas iriam deter tão-somente
a posse desses bens. Desse modo, estaria anulada a possibilidade da propriedade
como fonte de concentração de riqueza, e por conseguinte, de miséria, a partir de
uma regulamentação, pelo poder estatal, dos excessos ocorridos pelos interesses
individuais. Deixaríamos de ter a propriedade-fato para usufruirmos da propriedade-
direito.
Vale ressaltar, porém, que essa visão de propriedade e sua regulamentação por
parte do poder estatal, não significa uma total equidade
entre os indivíduos. Representa, apenas, evitar grandes
distorções que levem a ruína da liberdade como peça
fundamental da formação da sociedade civil. Já que,
para Rousseau, não existe exercício de liberdade se um
mínimo de igualdade não for garantida para a reprodução
da condição e existência do contrato social, realizado
indispensavelmente por homens livres e iguais.
“Quereis, portanto, dar consistência ao Estado? Aproximai os graus
extremos, tanto quanto possível; não suporteis nem opulentos nem
indigentes. Essas duas condições, naturalmente inseparáveis, são
igualmente funestas ao bem comum... Que nenhum cidadão seja
assaz opulento para poder comprar outro e que nenhum será bastante
pobre para se achar constrangido a vender-se.”
A soberania, que só pode ser exercida pelo e para o
povo, encontra sua plenitude em algumas características
fundamentais, que são:
(1) Inalienável, ou seja, só ao povo é dada a capacidade
de fundar a função política, sendo a representatividade
um entrave para o exercício da vontade geral, na medida
que delega a ação política a uma pequena parte do povo.
Essa pequena parte, estaria muito vulnerável, segundo
Rousseau, a tentação dos seus interesses particulares;
(2) Indivisível, não se pode delegar seu fazer político a outrem de maneira nenhuma,
tanto pelo caso representativo – como acabamos de analisar, quanto pela possibilidade
de uma classe ou categoria social específica (a burguesia, os intelectuais, os partidos
ou sindicatos) deter uma pequena parte, que seja, dessa soberania;
(3) Infalível, a soberania, quando exerce verdadeiramente a vontade do povo, não
corre risco de errar, já que, pela ótica maniqueísta do pensador, o coletivo é sempre
a encarnação do Bem e o particular, a própria materialização do Capeta; e, por fim,
(4) Absoluta, o poder coletivo que expressa a vontade geral sobrepõe-se
absolutamente sobre as iniciativas pessoais e tem a primazia sobre qualquer situação
ou circunstância.
Por fim, a lei, que é a expressão máxima da Vontade Geral, é a maneira mais
sagrada de submeter as iniciativas individuais à força coletiva da sociedade. Rousseau
dá um grande destaque à figura do Legislador, aquele sábio homem que tem por
função catalisar os anseios e os desejos da vontade geral. E ao governo, que deve
ser o executor dos desígnios da vontade geral e cristalizadas na forma de leis pelo
legislador. Na concepção Rousseauniana, o rei, príncipe ou governante eletivo (o
que viríamos denominar de presidente) não deve ser encarado como o senhor do
povo, mas sim como seu servo.
Interessante notar, que tanto apelo à liberdade e igualdade não implica, contudo na
elaboração de um governo essencialmente democrático. O povo não pode exercê-
lo diretamente por não poder desviar seu olhar dos interesses coletivos, já que o
governante deve trabalhar pela coletividade através de atos particulares, que é,
então vedado ao povo. A melhor forma de governo, diz Rousseau, seria a aristocracia
eletiva, por seu um governo de poucos, substituído num determinado período de
tempo, o que diminui as tentativas do homem de governo de servo do povo, tornar-
se seu senhor.

BIBLIOGRAFIA:
DREYFUS, Hubert L. & RABINOW, Paul. “Michel Foucault: Uma Trajetória
Filosófica – Para além do estruturalismo e da hermenêutica”. Tradução de
Vera Porto Carrero. Introdução: Traduzida por Antonio Carlos Maia. FU,
2000, p. 229-249.
FOUCAULT, Michel. “Microfísica do poder”. Tradução de Roberto Machado. 4ª
edição. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1984, 295 p, capítulos II, XI, XIV,
XV.
MACHADO, Roberto. “Introdução: Por uma Genealogia do Poder” in
FOUCAULT, Michel. “Microfísica do Poder”. Tradução de Roberto
Machado. 4ª edição. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1984, 295 p.
LITERATURA
O nascimento da literatura ocidental
e a antiguidade
Homero e a Ilíada
Virgílio e a Eneida
A Idade Média e as literaturas
nacionais
Dante Alighieri e a Divina Comédia
Cervantes e Dom Quixote
Shakespeare e Hamlet
Do Romantismo a Modernidade
Goethe e o Fausto
Baudelaire e As Flores do Mal
O Indivídio e a literatura
contemporânea
Kafka e O Processo
Dostoievski e Os Irmão Karamazov
Pessoa e sua Poesia
O nascimento da literatura ocidental e a
antiguidade
A síntese de realismo e idealismo, que consiste em harmonizar as formas da natureza
com as formas ditadas pelo espírito, percorre toda a arte produzida na Grécia antiga
e constitui um princípio básico da estética ocidental, especialmente em seus
momentos de recuperação dos valores clássicos. A arte grega antiga remonta ao
segundo milênio antes da era cristã e originou-se na ilha de Creta, próspero núcleo
comercial, famoso pela decoração suntuosa de palácios como Cnossos e Festo.
Foram desenvolvidos pólos gregos em filosofia, dramaturgia e poesia, ao lado da
sistematização da história, artes plásticas, arquitetura e narrativas mitológicas como
a Teogonia, principal fonte de origem sobre deuses. Ainda, com o surgimento das
cidades-estados (polis) – cidades politicamente ativas no século VIII a.C. é organizada
a primeira Olimpíada na cidade de Olímpia.
Das cidades políticas gregas, destacaram-se: Atenas “democrática e comercial” e
Esparta “oligárquica e agrícola”. Utilizavam-se de mão de obra escrava em todos os
setores da economia, sustentada sobretudo pelo comércio marítimo. Os principais
cultivos eram: oliveiras, videiras e trigo.
No continente, a civilização micênica criou uma arte própria que deixou traços
profundos na Cultura Helênica. No primeiro milênio a.C. produziu-se a arte grega
propriamente dita, que nos séculos IV e III a.C., por intermédio de Alexandre o
Grande e seus sucessores, propagou-se para além do Egeu e do Mediterrâneo e
chegou até a Índia.
Na segunda metade do século V, a arte clássica grega atingiu o apogeu, superando
inteiramente os traços arcaicos e dirigindo-se rapidamente para o realismo idealizado
e para o rigoroso equilíbrio que se revelou no estilo “severo” não só na escultura,
como nas demais artes e na arquitetura. Nasceu então uma concepção tipicamente
grega do universo, totalmente desligada de tradições culturais ou intelectuais herdadas
do mundo antigo. O novo conceito helênico da ordem universal e a vocação heróica
influenciaram toda a produção artística grega.
A Grécia continental passou a segundo plano quando, após a morte de Alexandre o
Grande (323 a.C.), foram criados reinos independentes na costa da Anatólia e no
Egito. O centro da produção artística do mundo helênico se deslocou para cidades
como Rodes, Alexandria, Antioquia e Pérgamo.
Deu-se a esse período o nome de helenístico, para diferenciá-
lo do helênico. De modo geral, foram paulatinamente
abandonados os princípios clássicos da harmonia
rigorosamente orgânica e do movimento em potência, para
representar o movimento desencadeado, de influência
asiática. Gradualmente, a arte deixou de satisfazer as
necessidades estéticas das comunidades para preencher
as dos indivíduos. Teve início o gosto pelo colossal, a estética
do dramático, a representação da velhice, da fealdade e da
infância e a multiplicação dos retratos individuais.
A era helenística marcou a transição da civilização grega
para a romana, em que inoculou sua força cultural. Não se
encontra nela o esplendor literário e filosófico do período
áureo da Grécia, mas divisa-se um grande surto da ciência
e da erudição. Chama-se civilização helenística a que se
desenvolveu fora da Grécia, sob influxo do espírito grego.
Esse período histórico medeia entre 323 a.C., data da morte
de Alexandre III (Alexandre o Grande), cujas conquistas
militares levaram a civilização grega até aAnatólia e o Egito,
e 30 a.C., quando se deu a conquista do Egito pelos romanos.
Grande parte do Oriente antigo foi então helenizado e
assistiu-se a uma fusão da cultura grega, revitalizada nas
áreas conquistadas, com as tradições políticas e artísticas
do Egito, Mesopotâmia e Pérsia.
Depois da morte de Alexandre, a transmissão da cultura grega persistiu nos grandes
centros urbanos, embora sofresse influência dos costumes orientais. A tentativa de
Antígonos, um dos mais antigos generais de Alexandre, de manter intacto o império
conquistado pelo guerreiro macedônio, fracassou após a Batalha de Ipso, na Frígia
(302 a.C.). A partilha do império foi feita entre três generais: Seleucos I Nicator,
Ptolomeu I e Lisímacos. As lutas, entretanto, continuaram, e vinte anos depois o
império foi dividido em três estados independentes: o reino do Egito ficou com os
Lágidas, descendentes de Ptolomeu; o da Síria, com os Selêucidas, descendentes
de Seleucos; e o da Macedônia coube aos antigônidas, descendentes de Antígonos
Alexandria, no Egito, com 500.000 habitantes, tornou-se a metrópole da civilização
helenística. Foi um importante centro das artes e das letras, e a própria literatura
grega tem uma fase chamada “alexandrina”. Lá existiram as mais importantes
instituições culturais da civilização helenística: o Museu, espécie de universidade de
sábios, dotado de Jardim Botânico, Zoológico e Observatório Astronômico; e a
Biblioteca, com 200.000 volumes, salas de copistas e oficinas para preparo do Papiro.
O Reino Egípcio só terminou com a conquista de Otavius, no reinado de Cleópatra.
O reino da Síria abrangia quase todo o antigo império persa até o Rio Indo. A capital
era Antioquia, outro grande centro da cultura helenística, perto da foz do Orontes, no
Mediterrâneo. Os selêucidas, entretanto, não puderam manter a unidade de seu
vasto império, que acabou conquistado pelos romanos no século I a.C. Já o reino da
Macedônia teve de enfrentar a luta das cidades gregas, ciosas da defesa de sua
autonomia, e acabou incorporado ao Império Romano.
Do ponto de vista cultural, o período compreendido entre 280 e 160 a.C. foi
excepcional. Tiveram grande desenvolvimento a história, com Polibius; a matemática
e a física, com Euclides, Eratostenes e Arquimedes; a astronomia, com Aristarcus,
Hiparcus, Seleucus e Heráclides; a geografia, com Posidonius; a medicina, com
Herofilus e Erasistratus; e a gramática, com Dionisius Tracius.
Na literatura, surgiu um poeta extraordinário, Teocritus, cujas poesias idílicas e
bucólicas exerceram grande influência. O pensamento filosófico evoluiu para o
individualismo moralista de Epicuristas e Estóicos, e as artes legaram à posteridade
algumas das obras-primas da antigüidade, como a Vênus de Milo, a Vitória de
Samotrácia e o grupo do Laocoonte.
À medida que o Cristianismo avançava, a civilização helenística passou a representar
o espírito pagão que resistia à nova religião. O espírito grego não desapareceu com
a vitória dos valores cristãos; seria, doze séculos depois, uma das linhas de força do
Renascimento.
Homero
A Homero se atribuem os dois maiores poemas épicos da Grécia antiga, que tiveram
profunda influência sobre a literatura ocidental. Além de símbolo da unidade e do
espírito helênico, a Ilíada e a Odisséia são fonte de prazer estético e ensinamento
moral.
De acordo com o historiador grego Heródoto, Homero nasceu em torno de 850 a.C.
em algum lugar da Jônia, antigo distrito grego da costa ocidental da Anatólia, que
hoje constitui a parte asiática da Turquia, mas as cidades de Esmirna e Quio também
reivindicavam a honra de terem sido seu berço. Até mesmo as fontes antigas sobre
o poeta contêm numerosas contradições, e a única coisa que se sabe com certeza é
que os gregos atribuíam a ele a autoria dos dois poemas.
A tradição lhe atribuiu também a coleção dos 34 Hinos homéricos, dos quais procede
a imagem lendária de Homero como poeta cego, mas que depois se constatou serem
de fins do século VII a.C.
Os maiores especialistas gregos não admitem que tenha sido Homero o autor de
obras como o desaparecido poema Margites ou a paródia épica Batracomiomaquia.
As muitas lendas e a escassa confiabilidade dos dados biográficos sobre Homero
fizeram com que já no século XVIII muitos questionassem até mesmo a existência
do poeta.
As diferenças de tom e estilo entre a Ilíada e a Odisséia levaram alguns críticos a
aventar a hipótese de que poderiam ter resultado da recomposição de poemas
anteriores, ou de que teriam sido criadas por autores diferentes.
Todas essas dúvidas constituem a chamada “questão homérica”, e permanecem
abertas à discussão. Os pontos em que há maior concordância dos estudiosos são:
a Ilíada é anterior à Odisséia; quase com certeza os dois poemas foram compostos
no século VIII a.C., cerca de três séculos após os fatos narrados; foram originalmente
escritos em dialeto jônio, com numerosos elementos eólios - o que confirma a origem
jônica de Homero; pertenciam à tradição épica oral, pelo menos no que se refere às
técnicas empregadas, já que existem opiniões divergentes quanto ao emprego ou
não da escrita pelo autor.
A versão na forma escrita, tal como se conhece hoje, teria sido feita em Atenas
durante o século VI a.C., se bem que a divisão de cada poema em 24 cantos
corresponderia aos eruditos alexandrinos do período helenístico. No decorrer desse
período teriam sido introduzidas várias interpolações. Com base nesses dados, todos
mais ou menos hipotéticos, deduziram-se alguns dados básicos sobre Homero e
sua obra.
Tanto a Ilíada como a Odisséia apresentam diversas
inconsistências internas, como alusões a técnicas e
equipamentos de combate que existiram em épocas
diferentes. Tais inconsistências, porém, poderiam ser
explicadas pelo fato de o poeta, se é que realmente existiu,
ter utilizado materiais anteriores e por terem sido
provavelmente incorporados alguns outros.
Quanto à existência de um autor único para a Ilíada, a
mais antiga das duas obras, argumenta-se que embora seja
evidente a existência de poemas épicos orais anteriores
sobre os mesmos temas, não parece haver existido nenhum
de extensão sequer aproximada, nem dotado de tal
complexidade estrutural. Tal constatação indicaria a
existência de um criador individual, que deu uma nova
estrutura aos temas tradicionais e integrou-os em sua visão
pessoal da realidade.
Encontramos na Ilíada a narração da guerra travada entre
gregos e troianos, no episódio conhecido como “Guerra de
Tróia”. Esta guerra teve origem, acreditam alguns, nos altos
impostos cobrados pelos troianos para a passagem de
especiarias no porto de Tróia, estrategicamente localizado
no estreito de Dardanelos, entre os mares Egeu e de
Mármara. Os gregos, insatisfeitos, em ação pelo
exército, destrói Tróia, tomando o controle sobre o
comércio marítimo na região, o que poderia ter
acontecido entre 1250 e 1240 a.C.
Os que negam a autoria comum de ambas as obras
argumentam que a primeira foi composta em tom
mais heróico e tradicional e que a segunda tende
mais para a ironia e a imaginação. Acrescentam ainda
o emprego de um léxico posterior na Odisséia. Já a
tese que defende a autoria única baseia-se na
afirmação de Aristóteles, de que a Ilíada seria uma
obra da juventude de Homero, enquanto a Odisséia
teria sido composta na velhice, quando o poeta
decidiu redigir a segunda obra como complemento
da primeira e ampliação de sua perspectiva.
Ambas as obras têm características comuns
absolutamente inovadoras, como a visão
antropomórfica dos deuses, a confrontação entre os
ideais heróicos e as fraquezas humanas e o desejo
de oferecer um reflexo integrador dos ideais e valores
da emergente sociedade helênica. Esses
argumentos, somados à mestria técnica evidente nos
dois poemas, favorecem a conclusão de que o autor
da Ilíada, esse grande poeta jônico a quem os gregos
chamavam Homero, foi também o autor, ou principal inspirador da Odisséia.
Ao mesmo tempo em que refletiram luminosamente a antiguidade mais remota da
civilização grega, os poemas homéricos projetaram-na adiante com tamanha
originalidade e riqueza que ela se faria presente nas mais diversas manifestações
da arte, da literatura e da civilização do Ocidente.
Inúmeros poetas partiram de sua influência, inúmeros artistas se impregnaram de
sua fortuna criativa, seu colorido e suas situações, que se tornaram símbolo e síntese
de toda a aventura humana na Terra, a ponto de o nome de um poeta cuja existência
mesma não se pode provar passar a confundir-se com a própria poesia. Quanto à
morte de Homero, a versão mais aceita é de que teria ocorrido em uma das ilhas
Cíclades.
Como disse Platão, Homero foi, no mais pleno sentido, o educador da Grécia. Além
disso, quase toda a literatura ocidental foi diretamente influenciada pelos poemas
homéricos. A Eneida de Virgílio (30/19 a.C.), os Lusíadas de Camões (1572) e o
Ulisses de Joyce (1921) são apenas alguns dos exemplos...
Ilíada
A Ilíada é a mais antiga e mais extensa das obras atribuídas a Homero; tem 15.693
versos hexâmetros e, desde o Período Helenístico, costuma ser dividida em 24
livros ou cantos de extensão variável. A divisão em cantos foi feita pelos filólogos de
Alexandria.O nome do poema deriva de Ílion, nome alternativo da lendária cidade
de Tróia, assim chamada em homenagem a Ilos, um dos ancestrais dos reis troianos.
A cólera de Aquiles, como se anuncia desde o primeiro verso, é o motivo central da
Ilíada, epopéia do poeta grego Homero, que inicia a literatura narrativa ocidental.
Relato de um dos episódios da guerra de Tróia, travada entre gregos e troianos, a
ação da Ilíada se situa no nono ano depois do começo da guerra, a qual duraria um
ano mais, e abarca no conjunto cerca de 51 dias. O título deriva de Ílion, nome grego
de Tróia. A Ilíada narra um drama humano, o do herói Aquiles, filho da deusa Tétis e
do mortal Peleu, rei de Ftia, na Tessália, em torno do fim da guerra dos gregos
contra Tróia. Segundo a lenda, a guerra foi motivada pelo rapto de Helena, esposa
do rei de Esparta, Menelau, por Páris, filho do rei Príamo, de Tróia. Agamenon,
chefe dos exércitos gregos, arrebatara a Aquiles, o mais valoroso dos guerreiros
gregos, sua cativa Briseide. Em protesto, Aquiles retirou-se para o acampamento
com seus guerreiros, e recusou-se a entrar em combate. É nesse momento que tem
início a Ilíada, com o verso “Canto, ó deusa, a cólera de Aquiles”. Para apaziguar
Aquiles, Agamenon envia-lhe mensageiros, com o pedido de que entre na luta. Aquiles
recusa-se e Agamenon com seus homens entram no combate. Os troianos tomam
de assalto as muralhas gregas e chegam até os navios. Aquiles concorda em
emprestar a armadura a seu amigo Pátroclo, que repele os troianos mas é morto por
Heitor. Cheio de dor pela morte do amigo, Aquiles esquece a divergência com os
gregos e investe contra os troianos, vestido com uma armadura feita por Hefesto,
deus das forjas. Consegue fazer recuar para dentro dos muros da cidade todos os
troianos, menos Heitor, que o enfrenta, mas aterrorizado pela fúria de Aquiles, tenta
fugir. Aquiles o persegue e finalmente atravessa-lhe com a lança a garganta, única
parte descoberta de seu corpo. Agonizante, Heitor pede-lhe que não entregue seu
cadáver aos cães e às aves de rapina, mas Aquiles nega piedade, e depois de
atravessar sua garganta mais uma vez com a lança, ata-o pelos pés a seu carro e
arrasta o cadáver em volta do túmulo de Pátroclo. Somente com a intervenção de
Zeus, Aquiles aceita devolver o cadáver a Príamo, rei de Tróia e pai de Heitor. O
poema termina com os funerais do herói troiano. Alguns dos personagens da Ilíada,
em particular Aquiles, encarnam o ideal heróico grego: a busca da honra ao preço do
sacrifício, se necessário; o valor altruísta; a força descomunal mas não monstruosa;
o patriotismo de Heitor; a fiel amizade de Pátroclo; a
compaixão de Aquiles por Príamo, que o levou a restituir
o cadáver de seu filho Heitor. Nesse sentido, os heróis
constituem um modelo, mas o poema mostra também
suas fraquezas - paixões, egoísmo, orgulho, ódio
desmedido. Toda a mitologia helênica, todo o Olimpo
grego, com seus deuses, semideuses e deidades
auxiliares, estão maravilhosamente descritos. Os
deuses, que mostram vícios e virtudes humanas,
intervêm constantemente no desenvolvimento da ação,
alguns em favor dos aqueus, outros em apoio aos
troianos. Zeus, o deus supremo do Olimpo, imparcial,
intervém apenas quando o herói ultrapassa os limites,
ao proporcionar o tenebroso espetáculo de passear à
volta de Tróia arrastando o cadáver mutilado de Heitor.
O poema encerra grande volume de dados e pormenores
geográficos, históricos, folclóricos e filosóficos, e
descreve com perfeição os modelos de conduta e os
valores morais da sociedade do tempo em que foi escrita
a obra. Uma questão muito discutida é o fundo histórico
do ciclo da guerra de Tróia. Possivelmente, sua origem
remonta a reminiscências da luta, travada antes da
invasão dória, no século XII a.C., entre povos de cultura
micênica, como os aqueus, e um estado da Anatólia, o
de Tróia. É historicamente comprovada a existência de estabelecimentos micênicos
na Anatólia, sem que se conheçam as causas possíveis da guerra. O mundo helênico
a que se refere a Ilíada não parece circunscrever-se ao de uma época cronológica
determinada. É muito provável que as lendas foram incorporando elementos de
diferentes etapas da civilização, no curso de sua transmissão oral e até textual.
Aponta-se, por exemplo, a descrição de armamentos e técnicas militares, e até
rituais, correspondentes a diferentes períodos históricos, desde o micênico a
aproximadamente meados do século VIII a.C. Salvo alguns prováveis acréscimos
atenienses, nenhum dado ultrapassa esse período, o que reforça a tese de que o
poema foi redigido nesse último período. A língua e o estilo homéricos foram em
grande medida herdados da tradição épica. Por esse motivo, a língua, basicamente
o dialeto jônico, com numerosos elementos eólios, é um tanto artificial e arcaizante,
e não corresponde a nenhuma modalidade falada normalmente. A métrica empregada
é o hexâmetro, verso tradicional na épica grega.
A Ilíada é antes de tudo poesia, isto é, uma linguagem diferente da linguagem do dia
a dia. Em primeiro lugar ela era cantada. A sua música, que no entanto se perdeu,
sem dúvida auxiliava na memorização desse longo texto. Em segundo lugar, ela é
em versos. Não no sentido usual que esse termo tem hoje em dia, de empregar a
rima, mas na poesia grega os versos consistiam em um mesmo ritmo geral, que era
o ritmo da própria música. Para compor obedecendo este padrão, o poeta era obrigado
a alterar a expressão natural, dando um efeito de artificialismo à expressão. E o
estilo, por se tratar de tema sério, era elevado e solene.
Devido as características da língua grega, é impossível uma tradução da obra que
evidencie todas as suas qualidades formais. É como se víssemos uma tapeçaria
pelo avesso, apenas as suas linhas gerais poderiam ser observadas. Diante de tantas
dificuldades a maioria dos tradutores brasileiros optou por uma tradução em prosa,
traduzindo apenas o conteúdo sem se preocupar muito com a forma.
Poucos aceitaram o desafio de traduzir Homero em versos. Se no século passado
ficou famosa a tradução em versos de Homero feita por Odorico Mendes, neste
século é o trabalho de Carlos Alberto Nunes que se destaca.
Este tradutor traduziu os dois poemas homéricos, a Ilíada e a Odisséia, em dois
formatos, tanto em prosa como em verso. A tradução em prosa é, sem dúvida, de
mais fácil leitura para o leitor comum, mas a tradução em verso permite, uma vez
ultrapassados os obstáculos iniciais, que nos aproximemos em maior grau de algumas
das características formais da poesia homérica.
Eis uma pequena lista com algumas das passagens mais notáveis:
O ‘Catálogo das Naus’ (II)
A ‘Observação do Alto da Muralha’ (III)
O duelo entre Menelaus e Páris (III)
A revista das tropas gregas (IV)
As proezas de Diomedes (IV-V)
O encontro de Diomedes e Glaucos (VI)
O adeus de Héctor e Andrômaca (VI)
A ‘Dolonéia’ (X)
O ‘Engano de Zeus’ (XIV)
A nova armadura de Aquiles (XVIII)
A luta entre Aquiles e o rio (XXI)
Os jogos fúnebres em honra de Pátroclos (XXIII)
Virgílio
(70 - 19 a.c.)

Considerado o maior poeta latino, era natural da região


de Mântua - nasceu em Andes - e filho de uma família
de camponeses proprietários. Alcançou pelo casamento
uma situação estável, podendo então ouvir, em
Cremona, Milão e Roma, as lições de filósofos
epicuristas. Amigo de Horácio, como ele protegido por
Mecenas, entrou em contato com o imperador, de quem
recebeu o incentivo para escrever a Eneida.
Virgílio, uma das maiores expressões da intelectualidade
latina, viveu na época de Augusto, 44 a 14 a.C., e se
tornou célebre por suas obras. Durante essa época houve
paz., prosperidade e proteção às artes e letras, bem
como um retorno aos valores tradicionais da vida romana
e o fortalecimento de suas raízes: a vida campesina,
familiar e religiosa.
Admirador da cultura helênica, empreende uma viagem
à Grécia, berço e viveiro da cultura, sonho que há muito acalentava: o destino
concedeu-lhe a realização desse anseio, mas morreu no regresso, junto da Brindisi.
O seu túmulo encontra-se em Nápoles.
A obra de Virgílio compreende, além de poemas menores, compostos na juventude,
as Bucólicas ou Éclogas , em número de dez, em que reflete a influência do gênero
pastoril criado por Teócrito.
As Geórgicas, dedicadas ao seu protetor Mecenas, constam de quatro livros, tratando
da agricultura. Trata-se de uma obra de implicações políticas indiretas, embora bem
definidas: ao fazer a apologia da vida do campo, o poeta serve o ideal político-social
da dignificação da classe rural. Reflete a influência de Hesíodo e Lucrécio.
Literariamente, as Geórgicas são consideradas a sua obra mais perfeita.
E finalmente, a Eneida, obra a qual à elaboração dedicou dez anos de sua vida, e
que o poeta considerou inacabada, a ponto de pedir, no leito de morte, que fosse
queimada, constitui a epopéia nacional de Roma. Esta, refere-se a lenda do troiano
Enéias, que, fugido de Tróia, saqueada e incendiada, acaba por chegar a Itália onde
se tornará o antepassado do povo romano. Epopéia erudita, a Eneida tem como
objetivo dar aos romanos uma ascendência não grega, formulando a cultura latina
como original e não tributária da cultura helênica. O poema consta de doze livros e
a sua construção serviu de modelo definitivo às grandes epopéias do renascimento,
nomeadamente para Os Lusíadas , de Luís de Camões.
“... a Eneida é poema de Roma, da Roma de todos os tempos, da lendária e da histórica. Mas
não só de Roma. Virgílio presta culto às virtudes antigas da estirpe, honra as conquistas da
civilização de seu tempo, mas antecipa a pureza da fé nos séculos vindouros, une o passado e
o porvir com um áureo elo de poesia. Seu poema não é um poema oficial da Roma imperial,
mas sobretudo um poema de profunda humanidade. Humanidade que despreza a guerra e que
deseja a paz....”
Eneida
Dizia uma lenda grega conhecida dos romanos que Enéias teria vindo à Itália. O
assunto da “Eneida” não é criação de Virgílio. A tradição, que prende a origem de
Roma às lendas mitológicas, parece que foi introduzida na Itália já pelos fins do 9
século antes de Cristo. Poetas como Ênio e Névio conheciam-na, e o tema era do
domínio popular. Virgílio a aproveita e nela incorpora a história de Roma, referindo-
a no discurso de Anquises e na descrição do escudo de Enéias.
É a grande epopéia do povo romano composta por Virgílio, que tomou as obras de
Homero para modelos da sua. Virgílio utiliza como modelo épico a Odisséia, para os
seis primeiros livros da Eneida. Inspira-se também na Ilíada, sobretudo para a
composição dos seis últimos cantos. Na Ilíada, Posídon salva o herói da morte e
declara seu destino:
"... Vamos, furtêmo-lo nós mesmos à morte, a fim de que não se irrite o filho de Cronos, se o
matar Aquiles. O seu destino é escapar, para impedir que, por falta de semente, desapareça e
pereça a raça de Dárdano, que o filho de Cronos amou mais do que todos os filhos nascidos
dele e de mortais. ..." Ilíada, canto XX, v.300 e seg., S.Paulo: Difel, 1961, trad. Octávio Mendes
Cajado.
Incorpora episódios colhidos em outras fontes, como o reencontro de Dido e Enéias,
que Névio cantara. Mostrou originalidade e talento, além de pesquisa, reflexão e
conhecimentos.
Seu poema compõe-se de 12 livros. Era intenção do poeta escrever mais 3, só que
não pôde fazer por ter sido colhido pela morte. Estilizada no verso heróico ou seja,
no hexâmetro, propõe-se a “Eneida” a celebrar a história do Império Romano, e
louvar a César, como descendente de Enéias, o herói do poema.
Começa por narrar (após célebre proposição) o terrível temporal que se abatera
sobre a frota de Enéias, quando em fuga do desastre de Tróia. Enéias é filho de uma
deusa, Vênus, e um mortal, Anquises, descendente da casa real de Tróia. Seu destino
é sobreviver à destruição de Tróia e fundar uma nova civilização na Itália. Enéias
foge de Tróia levando consigo o velho pai, Anquises, os Penates (deuses pátrios), o
filho Ascânio (que será Iulo) e a esposa Creusa. Esta não terá êxito em segui-lo.O
maior traço de Enéias é a piedade. Como guerreiro, a coragem. Coroam essas
qualidades a compaixão e humanidade.
Tinha o príncipe reunido muitos guerreiros e com eles embarcado em direção às
costas da Itália. Na borrasca, muitas das naus soçobram. A de Enéias e mais seis
conseguem aportar num sítio da África, onde os navegantes encontram a próspera
região de Cartago. Ali, Enéias conhece a rainha Dido,
que lhe pede para contar sua história. o filho de
Anquises começa, então, o relato de suas aventuras,
que se abrem com os famosos versos:
‘’Infandum, regina, jubes renovare dolorem.” (I,. II, v. 3)
(Mandas, Ô rainha, que eu renove uma indizivel dor. )
O amor que Enéias desperta em Dido, constitui a
grande passagem lírica do imortal poema. Enéias
conta para a rainha a tomada de Tróia, o ardil
concebido por Ulisses relata as viagens que
empreendera até chegar a Cartago. Dido, acometida
de grande paixão, roga a Enéias para não deixá-la. O
príncipe, surdo às súplicas, resolve continuar viagem.
Dido, não resistindo ao abandono, busca no suicídio
alivio para sua desventura.
Segue o herói para a Sicília. Cultua a memória de seu
pai, visitando os Campos Elísios, lugar no qual os
romanos julgavam estar as almas dos mortos. Lá tem
um colóquio com o pai, que lhe mostra a raça de varões
ilustres, os quais descenderão de Enéias e farão a
grandeza do povo latino.
"Outros modelarão, bem o creio, bronzes com vida e sem dureza; extrairão dos mármores
seres animados; defenderão melhor as causas; medirão com o compasso o curso dos céus e
anunciarão o nascer dos astros.
Tu, romano, sê atento a governar os povos com o teu poder - estas serão as tuas artes -, a impor
hábitos de paz, a poupar os vencidos e derrubar os orgulhosos." Eneida VI, 847-853. In: Romana,
ed. cit., p. 164.
Enfim, Enéias atinge o Lácio É bem acolhido pelo rei latino, que lhe promete a sua
filha única, Lavinia, herdeira do trono. Com isso não concorda Turno, rei dos rútulos,
povo também de origem latina. Eclode a inevitável guerra. Ferem-se vários combates,
e, quando tudo indica a derrota dos troianos. Enéias volta ao campo, munido de um
escudo que lhe fizera Vulcano (o mesmo que fizera a armadura de Aquiles), e muda
a sorte da luta. Na última batalha, um prélio singular entre os dois chefes se realiza.
Enéias é ferido pelos guerreiros adversários, mas Vênus, envolvida numa nuvem
escura, pensa-lhe a ferida. o herói se recupera, e volta ao duelo, a espada de Turno
se parte, e ele foge, o príncipe teucro o persegue alcança-o e o mata.

A “Eneida” é considerada um misto da “Ilíada” e da “Odisséia”. Os seis primeiros


livros lembram a “Odisséia”, pois encerram as aventuras e viagens do herói; os seis
últimos, nos quais se historiam os combates de Enéias na península itálica lembram
os feitos épicos da “Ilíada”. Tal é a observação feita por Sainte-llenve.
Vergílio, não tendo tempo de rever sua obra, recomendara sua destruição no que
não foi atendido por L. Vario e Tuca, que avaliaram bem a sua importância.

Fonte: TAVARES, H. Teoria literária. [s.d.e.]

Eneida - Edições, Traduções e Bibliografia


Públio Virgílio Marão. A Eneida. Trad. de Nicolau Firmino. Porto: Livraria Simões Lopes,
1955.
Virgílio. Eneida. trad. de Tassilo Orpheu Spalding. S.Paulo:Abril Cultural, 1983.
Virgile. L'Éneide. trad. de Maurice Rat. Paris: Garnier, 1947. 2 volumes.
L. Laurand et A. Lauras. Manuel des Études Grecques et Latines. Paris: Éditions A et J.
Picard et Cie. Tome II.
H. Bornecque e D. Mornet . Roma e os Romanos. S.Paulo: E.P.U.-EDUSP, 1976.
Augustín Millares Carlo. Historia de la Literatura Latina. México-Buenos Aires: Fondo de
Cultura Económica, 1950.
Ettore Bignone. Historia de La Literatura Latina. Buenos Aires: Editorial Losada, 1952. Trad.
de Gregorio Halperín. Original: Il Libro della Letteratura Latina.
Ettore Paratore. História da Literatura Latina. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1987. Trad. de
Manuel Losa, S.J. Original: Storia della Letteratura Latina.
Maria Helena da Rocha Pereira. Estudos de História da Cultura Clássica. Lisboa: Calouste
Gulbenkian, 1984, II vol. Cultura Romana.
Ludwig Bieler. Historia de la Literatura Romana. Madrid: Editorial Gredos, 1968.Trad. de M.
Sanchez Gil. Original: Geschichte der Roemischen Literatur.
Zélia de Almeida Cardoso. A Literatura Latina. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1989.
Eneida - síntese
Canto I – Partindo da Sicília, os navios de Enéias são atingidos por violenta
tempestade provocada por Éolo a pedido de Juno; (excertos 5 e 6); Netuno acalma
os mares (excerto 6); os navios são desviados para as praias do norte da África
(excerto 8). Vênus intercede pelos troianos (excerto 9); a chegada a Cartago (excerto
10); Dido acolhe os náufragos e lhes oferece um banquete durante o qual se apaixona
por Enéias (fig. 4).
Canto II – Por solicitação de Dido, Enéias relata a história da guerra de Tróia,
enfatizando os episódios que lhe determinaram o fim: o aprisionamento do grego
Sinão, instruído por Ulisses para enganar os troianos, a introdução do cavalo de
madeira na cidade, a saída dos soldados escondidos na calada da noite, a batalha
noturna, o incêndio, o ataque ao palácio do rei, a vitória dos gregos, a fuga de Tróia,
com Anquises e Ascânio (fig. 5), o desaparecimento de Creúsa (excerto 11).
Canto III – Continuando a narração, Enéias relata à rainha as peripécias e prodígios
que marcaram a viagem dos troianos: as escalas na Trácia (excerto 12) e em Creta,
a partida para a Itália, o encontro com as harpias, a chegada ao Epiro e à Sicília e a
morte de Anquises.
Canto IV –Dido se apaixona por Enéias (excertos 13 e 14), convida os troianos para
participarem de uma caçada (excerto 15) e se vale de um encontro casual, durante
uma tempestade, para entregar-se ao chefe troiano (excertos 16 e 17). Censurado
por Júpiter, que lhe envia Mercúrio como emissário (excerto 18), Enéias se dispõe a
abandonar Cartago, disposto a cumprir a missão para a qual fora preservado. Dido,
desesperada, o amaldiçoa (excerto 19) e se suicida (fig. 6).
Canto V – Chegando novamente à Sicília, Enéias realiza jogos fúnebres em
homenagem ao primeiro aniversário da morte de Anquises.
Canto VI – Fazendo uma escala em Cumas, Enéias consulta uma sacerdotisa de
Apolo, toma ciência do que o espera, no futuro, e obtém permissão para fazer uma
visita ao reino dos mortos (fig. 7); encontra-se com Anquises que lhe dá preciosas
informações e fala do futuro de Roma (excerto 20).
Canto VII – Enéias chega à região do Tibre e o rei Latino se dirige ao oráculo de
Fauno (excerto 21); são enviados embaixadores troianos ao rei, que oferece a Enéias
a mão de sua filha, Lavínia. Amata, a rainha, se enfurece com a aliança, o mesmo
ocorrendo com Turno, chefe rútulo a quem a moça fora prometida em casamento. É
declarada a guerra entre latinos e troianos. Turno obtém aliados, entre os quais os
volscos, chefiados por Camila (excerto 22)
Canto VIII – Enéias procura fazer aliança com o rei Evandro enquanto Vênus solicita
a Vulcano armas para o troiano.
Canto IX – Eclode a guerra. Turno ataca os acampamentos de Enéias e dois jovens
troianos, Niso e Euríalo, têm oportunidade de mostrar seu valor, embora encontrando
a morte. A mãe de Euríalo se lamenta (excerto 23). A guerra prossegue.
Canto X – Júpiter procura conciliar Juno e Vênus, a fim de que a guerra chegue ao
fim (fig. 8). A violência, entretanto, continua. Há perdas importantes de ambos os
lados. Morre Palante, o jovem filho do rei Evandro, aliado dos troianos.
Canto XI – Faz-se uma trégua para que se enterrem os mortos; realiza-se o funeral
de Palante (excerto 24); cogita-se numa proposta de paz; os exércitos inimigos,
todavia, se defrontam. A carnificina é terrível e morre Camila, rainha dos volscos,
aliada de Turno.
Canto XII – Vendo o exército desanimado, Turno se dispõe a enfrentar Enéias num
duelo; firmam-se as condições, mas o tratado é violado; uma seta fere Enéias e
Vênus o cura. O exército troiano chega até os muros da cidade e Amata se suicida.
Trava-se o combate singular entre Enéias e Turno. O chefe troiano vence o inimigo
e o sacrifica (excerto 25 e fig. 9).

Prof.ª Dr.ª Zélia de Almeida Cardoso (FFLCHUSP - DLCV)


A Idade Média e as literaturas nacionais
A descoberta de novos continentes, a visão antropocêntrica do mundo, a invenção
da bússola e da imprensa, a afirmação dos estados nacionais e a difusão de variadas
formas artísticas inspiradas no mundo Greco-Latino definiram a configuração do
Renascimento, um brilhante período da cultura européia que se seguiu à Idade Média.
Como Renascimento designa-se o poderoso movimento artístico e literário que surgiu
na Itália dos séculos XV e XVI, irradiando-se depois para a Europa, promovendo em
toda parte um pronunciado florescimento da arquitetura, escultura, pintura e das
artes decorativas, da literatura e da música e um novo enfoque da política. Embora
hoje também se fale, metaforicamente, em renascenças na história da civilização
Egípcia antiga ou da Chinesa, trata-se na verdade de um fenômeno específico da
civilização européia moderna que, malgrado o intervalo da Idade Média, nunca
esqueceu suas bases na civilização Greco-Romana da antiguidade, da civilização
“Clássica”. Considerado a princípio por eruditos e historiadores como um
ressurgimento da cultura clássica depois de um amplo declínio medieval, mais tarde
o termo adquiriu também uma série de conotações políticas, Econômicas e até
Religiosas. Embora, de modo geral, o movimento tenha sido considerado como de
total oposição ao período medieval, alguns historiadores tendem a ver o Renascimento
mais como um processo evolutivo do que uma ruptura profunda, pois diversas
manifestações renascentistas foram identificadas já no início do século XII. Entre
esses prenúncios destacaram-se a redução da influência da Igreja Católica e do
Sacro Império Romano-Germânico, o surgimento das cidades-estados, o
desenvolvimento das línguas nacionais e o início do desmoronamento das estruturas
feudais. Tendo descoberto o mundo, o Renascimento também quis dominá-lo pela
inteligência. Não dispondo ainda das ciências naturais e matemáticas, de Galileu e
Descartes, pretendeu realizar sua ambição pela magia, pelos estudos cabalísticos e
pela Astrologia, em que acreditavam mais que na religião cristã. No entanto, pelas
façanhas desse individualismo, o Renascimento pagou um alto preço: a decadência
moral. O espírito renascentista expressou-se desde cedo no Humanismo, movimento
intelectual que teve início e alcançou seu apogeu na Itália.
Os humanistas buscaram respostas para as questões do momento e para isso
recorreram tanto ao Cristianismo como à Filosofia Greco-Latina. Criaram assim um
sistema intelectual caracterizado pela supremacia do homem sobre a natureza e
pela rejeição das estruturas mentais impostas pela religião medieval. A intenção do
humanismo era desenvolver no homem o espírito crítico e a plena confiança em
suas possibilidades, condições que lhe haviam sido proibidas durante a época
medieval. O anseio pelo
conhecimento e o espírito
científico do homem
renascentista provocaram
uma verdadeira revolução.
Difundiram-se e
aperfeiçoaram-se inventos
orientais como a pólvora,
que transformou a
estratégia militar, e a
bússola, que permitiu os
grandes descobrimentos
geográficos. Talvez o fato
mais marcante tenha sido
a invenção da Imprensa,
atribuída ao alemão
Johannes Gutenberg. O
desenvolvimento da
cartografia, os avanços na
arte da navegação, o
conhecimento da bússola,
o desaparecimento das
rotas comerciais das
caravanas para o Oriente, devido à presença dos turcos
otomanos, e o espírito dinâmico e curioso do homem
moderno foram fatores que se conjugaram para tornar
possíveis os grandes descobrimentos marítimos dos
séculos XV e XVI, nos quais espanhóis e portugueses
tiveram papel preponderante. As explorações
portuguesas, incentivadas pelo Infante D. Henrique o
Navegador, foram protagonizadas por Bartolomeu Dias,
que chegou até o Cabo das Tormentas (posteriormente
cabo da Boa Esperança), no sul da África; Vasco da
Gama, que alcançou a costa da Índia; e , que no ano de
1500 descobriu o Brasil. Os espanhóis, por sua vez,
exploraram mais o Atlântico, pois pretendiam chegar às
Índias pelo oeste, convencidos da esfericidade da Terra.
O pioneiro dessas explorações foi Cristóvão Colombo,
que realizou quatro viagens às terras que acreditava
serem a Índia e que constituíam um novo continente. O
dia 12 de outubro de 1492, quando a primeira expedição
de Colombo desembarcou nas novas terras, é
considerado a data do descobrimento da América. A partir
de então e durante todo o século XVI os espanhóis,
seguidos dos franceses, britânicos e portugueses,
lançaram-se ao descobrimento de novas terras: Hernán
Cortés conquistou o império asteca, Vasco Núñez de
Balboa chegou até o mar do Sul (posteriormente oceano
Pacífico), Francisco Pizarro dominou o império inca, Álvar Núñez Cabeza de Vaca
percorreu o sul do que seriam os Estados Unidos e Juan Sebastián Elcano conseguiu
completar a primeira circunavegação da Terra, iniciada por Fernão de Magalhães.
Dante Alighieri
(1265-1321)
Dante Alighieri nasceu em Florença em 1265 de uma família da baixa nobreza. Sua
mãe morreu quando era ainda criança e seu pai, quando tinha dezoito anos.
Pouco se sabe sobre a vida de Dante e a maior parte das informações sobre sua
educação, sua família e suas opiniões são geralmente meras suposições. As
especulações sobre a sua vida deram origem à vários mitos que foram propagados
por seus primeiros biógrafos, dificultando o trabalho de separar o fato da ficção.
Pode-se encontrar muita informação em suas obras, como na Vida Nova (La Vita
Nuova) e na Divina Comédia (Commedia).
Na Vida Nova Dante fala de seu amor platônico por Beatriz (provavelmente Beatrice Portinari),
que encontrara pela primeira vez quando ambos tinham 9 anos e que só voltaria a ver 9 anos
mais tarde, em 1283. Nos tempos de Dante, o casamento era motivado principalmente por
alianças políticas entre famílias. Desde os 12 anos, Dante já sabia que deveria se casar com
uma moça da família Donati. A própria Beatriz, casou-se em 1287 com o banqueiro Simone
dei Bardi e isto, aparentemente, não mudou a forma como Dante encarava o seu amor por ela.
Provavelmente em 1285, Dante casou-se com Gemma Donati com quem teve pelo menos
três filhos. Uma filha de Dante tornou-se freira e assumiu o nome de Beatrice.
Em 1290, Beatriz morreu repentinamente deixando Dante inconsolável. Esse
acontecimento teria provocado uma mudança radical na sua vida o levando a iniciar
estudos intensivos das obras filosóficas de Aristóteles e a dedicar-se à arte poética.
Dante foi fortemente influenciado pelos trabalhos de retórica e filosofia de Brunetto Latini - um
famoso poeta que escrevia em italiano (e não em latim, como era comum entre os nobres),
tendo também se beneficiado da amizade com o poeta Guido Cavalcanti - ambos mencionados
na sua obra. Pouco se sabe sobre sua educação. Segundo alguns biógrafos, é possível que
tenha estudado na universidade de Bologna, onde provavelmente esteve em 1285.
A Itália no tempo de Dante estava dividida entre o poder do papa e o poder do
Sagrado Império Romano. O norte era predominantemente alinhado com o imperador
(que podia ser alemão ou italiano) e o centro, com o papa (veja mapa).
A Itália, porém, não era um império coeso. Não havia um único centro de poder. Havia
vários, espalhados pelas cidades, que funcionavam como estados autônomos e seguiam
leis e costumes próprios. Nas cidades era comum haver disputas de poder entre grupos
opositores, o que freqüentemente levava a sangrentas
guerras civis. Florença era, na época, uma das mais
importantes cidades da Europa, igual em tamanho e
importância a Paris, com uma população de mais de 100
mil habitantes e interesses financeiros e comerciais que
incluíam todo o continente.
Apolítica nas cidades representava os interesses de famílias.
A afiliação era hereditária. A família de Dante pertencia a
uma facção política conhecida como os guelfos (Guelfi) -
representados pela baixa nobreza e pelo clero - que fazia
oposição a um partido conhecido como os guibelinos
(Ghibellini) - representantes da alta nobreza e do poder
imperial. Os nomes dos dois grupos eram originários de
partidos alemães, porém os ideais políticos eram um mero
pretexto para abrigar famílias rivais. Florença se dividiu em
guelfos e guibelinos quando um jovem da família
Buondelmonti não cumpriu uma promessa de casamento
com uma moça da família Amadei e foi assassinado. As
famílias da cidade tomaram partido por um lado ou por outro
e Florença se dividiu em guelfos e guibelinos.
Dante nasceu em uma Florença governada pelos
guibelinos, que haviam tomado a cidade dos guelfos na
sangrenta batalha conhecida como Montaperti (monte
da morte), em 1260. Em 1289, Dante lutou com o
exército guelfo de Florença na batalha de Campaldino,
onde os florentinos venceram os exércitos guibelinos
de Pisa e Arezzo, e recuperaram o poder sobre a cidade.
Na época de Dante, o governo da cidade era exercido por
representantes eleitos de corporações de operários, artesãos,
profissionais, etc. chamadas de guildas. Dante se inscreveu
na guilda dos médicos e farmacêuticos e disputou as eleições
em Florença, tendo sido eleito em 1300 como um dos seis
priores (presidentes) do Conselho da Cidade.
Amaior parte do poder em Florença estava então nas mãos dos
guelfos - opositores do poder imperial. Mas o partido em pouco
tempo se dividiu em duas facções. A causa foi novamente uma
rixa entre famílias, desta vez, importada da cidade de Pistóia. Os
Cancellieri era uma grande família de Pistóia, descendentes de
um mesmo pai que tivera, durante sua vida, duas esposas. A
família Cancellieri se dividiu quando um membro desajustado da
famíliaassassinouotioecortouamãodoprimo.Osdescendentes
da primeira esposa do Cancellieri, que se chamava Bianca,
decidiramseapelidardeBianchi.Osrivais,quedefendiamojovem
assassino,seapelidaramdeNeri(negros)emespíritodeoposição.
A briga tomou conta de Pistóia e a cidade acabou sofrendo
intervenção de Florença, que levou presos os líderes dos grupos
rivais.MasasfamíliasdeFlorençanãodemoraramatomarpartido
e, por causa de uma briga de rua, a divisão se espalhou pela
cidade, dividindo os guelfos em negros e brancos.
Depois de criados, os partidos assumiram posições políticas. Os guelfos brancos,
moderados, respeitavam o papado mas se opunham à sua interferência na política
da cidade. Já os guelfos negros, mais radicais, defendiam o apoio do papa contra as
ambições do imperador, que era apoiado pelos guibelinos.
Os priores de Florença (entre eles Dante) viviam em constante atrito com a igreja de Roma
que, sob o governo do papa Bonifácio VIII, pretendia colocar toda a Itália sob a ditadura da
igreja. Em um dos encontros com o papa, onde os priores foram reclamar da interferência da
igreja sobre o governo de Florença, Bonifácio respondeu ameaçando excomungá-los. A
briga entre os Neri e Bianchi tornou-se cada vez mais intensa durante o mandato de Dante
até que ele teve que ordenar o exílio dos líderes de ambos os lados para preservar a paz na
cidade. Dante foi extremamente imparcial, incluindo, entre os exilados, um dos seus melhores
amigos (Guido Cavalcanti) e um parente de sua esposa (da família Donati).
No meio da confusão entre os guelfos de Florença, o papa decidiu enviar Carlos de
Valois (irmão do rei Felipe da França) como pacificador para acabar com a briga
entre as facções. A suposta ajuda, porém, revelou ser um golpe dos Neri para tomar
o poder. Eles ocuparam o governo de Florença e condenaram vários Bianchi ao
exílio e à morte. Dante foi culpado de várias acusações, entre elas corrupção,
improbidade administrativa e oposição ao papa. Foi banido da cidade por dois anos
e condenado a pagar uma alta multa. Caso não pagasse, seria condenado à morte
se algum dia retornasse a Florença.
No exílio, Dante se aproximou mais da causa dos guibelinos (o império), à medida em que
a tirania do papa aumentava. Ele passou o seu exílio em Forlì, Verona, Arezzo, Veneza,
Lucca, Pádua (e também provavelmente em Paris e Bologna). Em 1315 voltou a Verona
e dois anos depois fixou-se em Ravenna. Suas esperanças de voltar a Florença retornaram
depois que o sucessor de Bonifácio VIII chamou à Itália o imperador Henrique VII. O
objetivo de Henrique VII era reunir a Itália sob seu reinado. Porém a traição do papa, que
ainda alimentava a idéia de ter um império próprio, seguida por uma nova vitória dos Neri
e a morte de Henrique VII três anos depois enterraram de vez as suas esperanças.
Na obra La Vita Nuova, seu primeiro trabalho literário de importância, iniciado pouco depois
da morte de Beatriz, Dante narra a história do seu amor por Beatriz na forma de sonetos
e canções complementadas por comentários em prosa. Durante o seu exílio Dante escreveu
duas obras importantes em latim: De Vulgari Eloquentia, onde defende a língua italiana, e
Convivio, incompleto, onde pretendia resumir todo o conhecimento da época em 15 livros.
Apenas os quatro primeiros foram concluídos. Escreveu também um tratado: De Monarchia,
onde defendia a total separação entre a Igreja e o Estado. A Commedia consumiu 14 anos
e durou até a sua morte, em 1321, ocorrida pouco após a conclusão.
Divina Comédia
o imortal cantor de Beatriz estilizou sua epopéia numa nova espécie de gênero
literário, por ele criada: o terceto. A obra é uma trilogia o inferno, o Purgatório e o
Paraíso. o poeta diz que, tendo se perdido numa floresta sombria, encontra Virgílio,
a quem pede auxílio.
“Nel mezzo del camin di nostra vita
Mi ritrovai per una selva oscura,
Che la diritta via era smarrita.” (I, 1-2-3)
Virgílio o conduz, então, ao Inferno, em cuja a porta se lia a terrível inscrição:
“Laseiati ogni speranza, voi ch’entrate!”
No primeiro ciclo, denominado Limbo, estavam as almas dos bons e justos, mas que
viveram antes do Evangelho e, que, não tendo recebido o batismo, não puderam
ingressar no Paraíso. Lá estavam, entre outros, Sócrates, Platão, Homero, César e
muitos outros filósofos reis, poetas e artistas, enfim, todos os ilustres pagãos. No
segundo ciclo ou círculo, jaziam aqueles que foram condenados pelos pecados da
carne, pela luxúria ou concupiscência. Pertence a esse ciclo a desditosa história da
linda Francesca da Rimini, que narra ao poeta os seus pecados de amor. o episódio
está no canto V, no qual a infortunada paixão, que ligou Francesca ao seu cunhado
Paolo Malatesta, é descrita com notável e sentida urdidura trágica pela pena do
grande vate italiano. o amor de Francesca tão grande era, que nem ali pudera se
acabar:
“Amor, che a nullo amate amar perdona,
Mi prese del costui piacer si forte,
Che, come vedi, ancor non m’abbandona.” (V, 103)
E diz ao poeta a desventurada: “Ed ella a me: “Nessun maggior dolore Che ricordarsi
del tempo felice Nella miseria; é ciò sa il tuo dottore. “ (V, 121). Ainda nesse ciclo
estão as almas de Semiramis (rainha lendária da Assíria, esposa de Nino), Cleópatra,
Helena, Aquiles, Páris, Tristão e Dido. No 3 ciclo vê-se Cérbero, o cão de três cabeças,
dilacerando com os dentes as vítimas da gula. No quarto ciclo estão os condenados
pelo mau uso da riqueza, sejam os perdulários, sejam os usurários. No 5 ciclo,
revolvem-se em lama imunda, enquanto se atacam furiosamente os que foram
punidos pela ira. Os hereges, encarcerados em sepulturas de fogo, são os moradores
da sexta região. Na sétima, encontram-se os tiranos e assassinos, submersos num
rio de sangue; os suicidas transformados em árvores, entre as quais andam
horripilantes harpias: os que violaram Deus e a Arte;
enfim, nele estão os violentos. No oitavo ciclo, está a
Fraude, de rosto humano e corpo de monstro punindo
os aduladores, os hipócritas, os farsantes. No nono vê-
se a morada dos traidores, tendo ao fundo Lúcifer, que
ostenta três rostos: o da impotência o do ódio e o da
ignorância. As suas bocas despedaçam três monstros
humanos: Judas Iscariotes, Bruto e Cássio (estes dois
últimos assassinos de César)
Demandam a seguir o Purgatório. São recebidos por
Catão e Virgílio, obedecendo às suas ordens, lava o rosto
do poeta com orvalho, para limpar-lhe a fumaça do
inferno. No primeiro socalco do Purgatório, os espíritos
proclamam a vaidade das glórias terrenas e vozes
dulcíssimas entoam: “Bem-aventurados os pobres de
espírito” Eram as almas pecadoras por culpa da soberba
No Purgatório todas as almas estão exaustas devido ao
peso de enormes pedras. No segundo socalco acham-
se os cegos, pois tinham as pálpebras cosidas, - eram
os invejosos; no terceiro, os que pecaram pela cólera;
no quarto, os que haviam caído por indiferença e
preguiça; no quinto, os avarentos; no sexto, os gulosos,
que sofriam fome e sede, aspirando a fragrância de frutos
apetitosos; no sétimo e último, os incontinentes, que
enalteciam a castidade.
Virgílio conduz Dante até uma muralha de fogo, que
nem sequer o chamuscou. No alto fica o Paraíso. Ali o
Mantuano se despede, e Beatriz toma-lhe lugar como
guia. No Céu, diz ter sido o poeta testemunha de
maravilhas que não pode a língua humana descrever.
Após invocar Apolo, o poeta descreve como se ergueu
do Paraíso terrestre a esfera de fogo, Segundo as teorias
de Ptolomeu, a terra é fixa, e em volta dela, giram os
céus da Lua (primeiro céu), Mercúrio ( (2), Vênus (3),
Sol (4), Marte (5), Júpiter (6) e Saturno (7). Ainda há o
oitavo céu, que encerra dentro de si, todos os demais,
pois em seu bojo havia a esfera das estrelas fixas. No
primeiro céu, Dante sustenta interessante discussão com
Beatriz a respeito das manchas da lua. No segundo,
encontra o imperador Justiniano, que lhe explica ser
Mercúrio a morada das almas boas, cujo amor a Deus
estava, contudo, misturado com os afetos terrenos. No
terceiro, depara-se com a famoso Carlos Martel, rei da
Hungria. e também com Folco que tivera a coragem de
censurar papas e cardeais. No quarto está Santo Tomás
de Aquino, que faz o panegírico de Sao Francisco de
Assis. Conversam ali também com São Boaventura e
Salomão. No quinto céu ou Marte, entretém Dante
colóquio com um antepassado seu, que lhe prediz o futuro desterro; no sexto, em
Júpiter, depara-se a morada dos que souberam administrar justiça com retidão no
sétimo, em Saturno, estão as almas que passaram a existência em piedosa
contemplação S. Bento dirigiu-se ao poeta, lamentando a vida dissipada daqueles
monges, que usavam seu nome. Ao erguer os olhos, contemplou o poeta esplendores
inefáveis, ouvindo a harmoniosa melodia do ‘Regina Coeii”. S. Pedro, S. Tiago e S.
João interrogaram-no sobre questões de fé, no que se saiu bem. Finalmente, foi
alçado até o oitavo céu, no qual só habita a Divina Essência. Graças à intervenção
de S. Bernardo, o poeta pode contemplar a Deus em todo seu esplendor, visão de tal
doçura que as palavras humanas não na podem traduzir:
‘’Oh, quanto è corto il dire e come floco
Al mio concetto! E questo, a quel ch’io vidi, tanto, che non basta a dicer “poco”. “ Paraíso,
C. 33, 121)
A “Divina Comédia”, na sua grande extensão de l00 cantos (34 para o Inferno; 33
para o Purgatório e 33 para o Paraíso), é a grande epopéia medieval. É um repositório
de conhecimentos enciclopédicos, em relação à época. A física, a filosofia, a teologia,
a geografia, a história, a política, a religião, — todas repontam na narrativa de Dante.
Em verdade, constitui uma grandiosa súmula da arte e saber medievais, na qual
Virgílio simboliza a razão e a filosofia, e Beatriz, a teologia e a fé.
Divina Comédia - síntese
Inferno
Quando Dante se encontra no meio da vida, ele se vê
perdido em uma floresta escura, e sua vida havia deixado
de seguir o caminho certo. Ao tentar escapar da selva,
ele encontra uma montanha que pode ser a sua salvação,
mas é logo impedido de subir por três feras: um leopardo,
um leão e uma loba. Prestes a desistir e voltar para a
selva, Dante é surpreendido pelo espírito de Virgílio -
poeta da antigüidade que ele admira - disposto a guiá-lo
por um caminho alternativo. Virgílio foi chamado por
Beatriz, paixão da infância de Dante, que o viu em apuros
e decidiu ajudá-lo. Ela desceu do céu e foi buscar Virgílio
no Limbo. O caminho proposto por Virgílio consiste em
fazer uma viagem pelo centro da terra. Iniciando nos
portais do inferno, atravessariam o mundo subterrâneo
até chegar aos pés do monte do purgatório. Dali, Virgílio
guiaria Dante até as portas do céu. Dante então decide
seguir Virgílio que o guia e protege por toda a longa
jornada através dos nove círculos do inferno, mostrando-
lhe onde são expurgados os diferentes pecados, o
sofrimento dos condenados, os rios infernais, suas
cidades, monstros e demônios, até chegar ao centro da
terra, onde vive Lúcifer. Passando por Lúcifer,
conseguem escapar do inferno por um caminho
subterrâneo que leva ao outro lado da terra, e assim
voltar a ver o céu e as estrelas.

Purgatório
Saindo do inferno, Dante e
Virgílio se vêem diante de
uma altíssima montanha: o
Purgatório. A montanha é
tão alta que ultrapassa a
esfera do ar e penetra na
esfera do fogo chegando a
alcançar o céu. Na base da
montanha encontram o
ante-purgatório, onde
aqueles que se
arrependeram tardiamente
dos seus pecados
aguardam a oportunidade
para entrar no purgatório
propriamente dito. Depois
de passar pelos dois níveis
do ante-purgatório, os
poetas atravessam um
portal e iniciam sua nova
odisséia, desta vez
subindo cada vez mais.
Passam por sete terraços,
cada um mais alto que o
outro, onde são expurgados cada um dos sete pecados capitais. No último círculo do
purgatório, Dante se despede de Virgílio e segue acompanhado por um anjo que o
leva através de um fogo que separa o purgatório do paraíso terrestre. Finalmente,
às margens do rio Letes, Dante encontra Beatriz e se purifica, banhando-se nas
águas do rio para que possa prosseguir viagem e subir às estrelas.
Paraíso
O Paraíso de Dante é dividido em duas partes: uma material e uma espiritual. A
parte material segue o modelo cosmológico de Ptolomeu e consiste de nove círculos
formados pelos sete planetas (Lua, Mercúrio, Vênus, Sol, Marte, Júpiter e Saturno),
o céu das estrelas fixas e o Primum Mobile - o céu cristalino e último círculo da
matéria. Ainda no paraíso terrestre, Beatriz olha fixamente para o sol e Dante a
acompanha até que ambos começam a elevar-se, “transumanando”. Guiado por
Beatriz, Dante passa pelos vários céus do paraíso e encontra personagens como
São Tomás de Aquino e o imperador Justiniano. Chegando ao céu de estrelas fixas,
ele é interrogado pelos santos sobre suas posições filosóficas e religiosas. Depois
do interrogatório, recebe permissão para prosseguir. No céu cristalino Dante adquire
uma nova capacidade visual, e passa a ter visão para compreender o mundo espiritual,
onde ele encontra nove círculos angélicos, concêntricos, que giram em volta de
Deus. Lá, ao receber a visão da Rosa Mística, se separa de Beatriz e tem a
oportunidade de sentir o amor divino que emana diretamente de Deus, “o amor que
move o Sol e as outras
e s t r e l a s ” .
o do Paraíso. Cinco anos
antes de sua morte, foi
convidado pelo governo de
Florença a retornar à
cidade. Mas os termos
impostos eram
humilhantes, semelhantes
àqueles reservados à
criminosos perdoados e
Dante rejeitou o convite,
respondendo que só
retornaria se recebesse a
honra e dignidade que
merecia. Continuou em
Ravenna, onde morreu e
foi sepultado com honras.
Helder da Rocha
Fontes: [Encarta 97],
[Larousse 98], [Mauro 98],
[Musa 95], [Cambridge].
Miguel de Cervantes
(1547 - 1616)
Miguel de Cervantes nasceu em 1547, em Alcalá de
Henares, cidade perto de Madri. É filho de um modesto
cirurgião. De formação autodidáctica, aos vinte e três
anos é soldado em Itália; toma parte na Batalha de
Lepanto, na qual perde uma mão (1571). Aprisionado
por piratas, só se libertou cinco anos depois. Mais tarde
passou a residir em Lisboa. Em 1580, voltou à Espanha
e chegou a trabalhar como cobrador de impostos. Devido
a essa profissão, viajou por toda a Espanha, conhecendo
de perto as dificuldades de seus conterrâneos.
Em 1585 publica a sua primeira obra, La Galatea,
romance pastoril. Em 1605 publica a primeira parte de
O Engenhoso Fidalgo Dom Quixote de la Mancha, sendo
imediato o seu êxito literário. Os últimos anos da sua
vida são caracterizados por uma intensa produção
criativa: Novelas Exemplares, Viaje del Parnaso, Ocho
comedias y ocho entremeses, e um romance de
aventuras em que trabalha até à morte — La historia de
los trabajos de Persiles y Sigismunda. Em 1615 publicou
a segunda parte de Dom Quixote. Morreu no ano seguinte, muito conhecido mas
ainda sem recursos.
Em Miguel de Cervantes, representante máximo das Letras de língua castelhana,
confluem todos os géneros novelescos até então cultivados: o picaresco, o pastoril,
o mourisco e o cavalheiresco. Como poeta, cultiva quer a poesia italianizante quer a
tradicional. A sua obra principal neste domínio encontra-se nos sonetos e,
particularmente, em Al túmulo del rey Felipe en Sevilla. Como autor dramático,
destaca-se pelo tom humorístico de pequenas peças como El retablo de las maravillas
ou La cueva de Salamanca. Deve referir-se também a sua tragédia Comedia del
cerco de Numancia, que só é publicada em 1784, sendo hoje considerada uma das
melhores tragédias escritas em castelhano.
Dom Quixote
Por sua inovação - a história traz grande ousadia ao
mostrar os personagens comentando o próprio livro —,
a obra de Miguel de Cervantes é considerada o primeiro
romance moderno, um marco da literatura.A história não
podia ser mais delirante: Dom Quixote é um nobre
espanhol que de tanto ler histórias de cavalaria passa a
acreditar nos feitos dos cavaleiros medievais e decide
se tornar um cavaleiro andante.
Dom Quixote era um fidalgo, filho de pais ricos. No
entanto, durante sua vida ele vai perdendo sua riqueza,
pagando dívidas e comprando livros, mergulhando na
literatura em busca da solução para essas dificuldades.
A história mostra esse ingênuo senhor rural cujo
passatempo favorito era a leitura de livros de cavalaria.
Na sua obsessão, acreditava literalmente nas aventuras
descritas e decide tornar-se um cavaleiro andante. Dom
Quixote começa a agir como um cavaleiro em busca de
uma mudança, uma nova vida. Ele já tinha uma idade
relativamente avançada e vivia muito só, por isso deixa-
se levar pela imaginação e passa a viver num mundo
ilusório, fantasioso.
Muito mais que uma sátira às novelas de cavalaria, a
obra é também uma exaltação ao idealismo e à amizade, retratada no relacionamento
entre Dom Quixote e Sancho Pança. Quixote é um louco, mas tem as grandes
virtudes humanas da esperança e da dignidade. A dupla ficou tão conhecida que se
tornou uma das maiores fontes de inspiração para artistas, escritores, cineastas,
dramaturgos. Uma das imagens mais conhecidas é o desenho feito pelo artista plástico
espanhol Pablo Picasso do cavaleiro e de seu escudeiro, com os famosos moinhos
de vento ao fundo.
Com uma armadura de sucata e papelão e o cavalo, um decrépito pangaré. O fiel
escudeiro Sancho Pança, um ingênuo lavrador, e se auto-intitulando Dom Quixote
de La Mancha, o nosso herói confunde a realidade com as histórias dos livros e sai
pelo mundo em busca de aventuras. As viagens se sucedem sob a alucinação de
quem deseja combater as injustiças do mundo. O nobre e patético Quixote enfrenta
situações supostamente perigosas e ridículas: imagina gigantes em rodas d´água;
vê um cavaleiro de elmo num barbeiro; ajuda criminosos a fugirem, pensando estar
libertando escravos... Será que o nosso herói recupera a razão?
Em suas andanças, Dom Quixote encontra moinhos de vento que na sua alucinação
são tomados por cavaleiros em armas, por gigantes que ameaçam sua adorada
Dulcinea. Sancho alerta Dom Quixote para o engano. Dom Quixote aproximou-se
dos moinhos e arremeteu de lança em riste contra o primeiro moinho. O vento ficou
mais forte e lançou o cavaleiro para longe. Sancho socorreu-o e reafirmou que eram
apenas moinhos. Dom Quixote, respondeu que era Frestão quem tinha transformado
os gigantes em moinhos.
Na batalha conta o “exército de ovelhas” é relatado o encontro de Dom Quixote com
dois rebanhos de ovelha. O cavaleiro, com todo o seu sonho, criou paisagens,
personagens que não existiam, atribuindo-lhes armas, coroas e escudos. Foi então
que o “herói” avançou em direção ao rebanho e foi surrado pelos pastores e pelas
próprias ovelhas.
Ao final da segunda parte do livro, Dom Quixote volta à razão , renuncia aos romances
de cavalaria e morre como piedoso cristão.
William Shakespeare
William Shakespeare, um dos maiores poetas de todos os tempos, nasceu em Abril
de 1564 na cidade de Stratford-upon-Avon. Existe uma pequena controvérsia sobre
a data de nascimento de William. Sabe-se que ele foi batizado no dia 26 de Abril,
como era comum batizar as crianças após alguns dias do nascimento e como o dia
23 de Abril é dia de São Jorge (o santo da Inglaterra) , muitas pessoas dizem que o
poeta mias famoso da Inglaterra nasceu neste mesmo dia (23 de Abril).
Os pais de William eram John e Mary Shakespeare. William foi o terceiro filho a
nascer e também o primeiro homem. John (o pai) era um trabalhador de couro, ele
fabricava cintas, bolsas e luvas. Aparentemente ele era um cidadão respeitado, ele
chegou a até ter o cargo que é comparável a prefeito da cidade. Porem suas dividas
o alcançaram e ele perdeu quase tudo. Se você quiser saber mais sobre a família de
Shakespeare Clique Aqui para ver a genealogia completa de Shakespeare.
A educação de Shakespeare veio principalmente da A Escola do Novo Rei(“The
New King’s School”). Nesta escola os alunos aprendiam o Latim e liam diversos
livros (em latim e em outras línguas). O horário escolar durava nove horas, começava
as seis ou as sete dependendo da estação do ano. Outra fonte de educação veio da
igreja, lá Shakespeare foi exposto à Bíblia e a diversos livros de reza.
Uma possível fonte de inspiração foi a paisagem do interior de Warwickshire (onde
ficava Stratford-upon-avon ). Essas paisagens são mencionadas em varias obras de
Shakespeare.
No dia 28 de Novembro de 1582 William Shakespeare se casa com Anne Hathaway.
William tinha 18 anos de idade e Anne 26. Muitos acreditam que Anne estava grávida
de três meses quando se casou isto é reforçado pelo fato da cerimônia ocorrer tão
rapidamente. Isto também explica o por que Shakespeare se casou com uma mulher
que era oito anos mais velha do que ele.
Susanna foi a primeira filha de Shakespeare, ela foi batizada no dia três de Maio de
1583. Dois anos depois os gêmeos Judith e Hamnet.
Após o nascimento dos gêmeos pouco se sabe sobre a vida de Shakespeare. Esses
anos (de 1586 a 1592) são conhecidos como os anos perdidos. Existem muitas
teorias sobre o que aconteceu na vida de Shakespeare durante estes anos. Ninguém
sabe com certeza por que Shakespeare se mudou de Stratford e foi para Londres.
A teoria mais aceita diz que, Shakespeare teve que se mudar porque caçou nas
terras de um Senhor Thomas Lucy que pelo jeito era um cara muito importante.
Shakespeare se mudou para Londres porque não queria
sofrer com a pena que seria dada a ele. Também dizem
que Shakespeare se vingou de Lucy na obra As Alegres
Comadres de Windsor.
Londres foi o lugar onde Shakespeare se destacou como
um dos maiores poetas de todos os tempos. Foi em
Londres onde tudo começou e foi em Londres onde ele
fez o maior sucesso. Foi também em Londres onde ele
escreveu suas maiores obras. Tudo o que podemos
afirmar é que por volta de 1592 Shakespeare já estava
sendo reconhecido por seu trabalho no teatro. E também
por volta deste período ele já tinha escrito A Comédia
de Erros, A Megera Domada e pode ter escrito Tito
Andrônico , Henrique VI (as três partes) e talvez ainda
Ricardo III.
Desde o inicio de sua carreira Shakespeare se associa
com varias companhias teatrais, ele tinha um ambiente
de trabalho muito fluente. Mas tudo mudou quando a
peste chegou a Inglaterra, e todos os teatros foram
fechados. E só re-abriram de verdade na primavera de
1594.
1594 - 1599 foram anos excelentes para Shakespeare,
ele produziu varias obras de altíssima qualidade. Ele
continuou como ator principal e administrador da
companhia “The Lord Chamberlain’s Men” que também
foi formada durante está época(1594). Durante estes
anos a companhia virou a mais popular de Londres, e
também foi a que mais se apresentou na corte.
Aparentemente a família de Shakespeare continuava
morando em Stratford enquanto ele trabalhava em
Londres. Em Agosto de 1596, seu único filho Hamnet
morreu (Hamnet tinha somente 11 anos de idade).
Em 1603 a rainha Elizabeth morreu e James VI da
Escócia virou James I da Inglaterra. A idade Jacobina
começou, e com isto o grupo “The Lord Chamberlain’s
Men” tornaram-se o grupo “The Kings Men” pois eram o
grupo patrocinado pelo reino.
Em algum tempo entre 1599 e 1601 Shakespeare
escreveu Hamlet, e depois disto escreveu as chamadas
peças problemáticas até que em 1608 escreveu os
grandes romances. Muitos perguntam porque a mente
de Shakespeare virou as tragédias, o que levou ele a
escrever as peças problemáticas. Existem varias
sugestões sobre o que aconteceu mas isto é para outra
hora. De qualquer maneira o importante é que o estilo
de Shakespeare mudou drasticamente, de comedia
(anos 90) para tragédia, e dai para romance.
Shakespeare terminou sua carreira trabalhando com o
novo escritor do grupo “The King’s Men” John Fletcher. Junto a John ele escreveu
três peças finais, Henrique VIII (1613), Os Dois Nobres Parentes(1613 ou 1614) e a
peça que hoje está perdida Cardenio. As duas primeiras ai não são as peças prediletas
de ninguém, e pouco se sabe sobre a ultima.
Shakespeare com certeza foi tratado por, Dr. Hall, seu genro. Não se sabe (para
variar) qual foi a doença que acabou com a vida do poeta. Mas com certeza foi
alguma coisa da idade. Qualquer foi a causa da sua morte Shakespeare chamou
seu advogado para fazer uma revisão final em seu testamento. Shakespeare morreu
no dia 23 de Abril e foi enterrado no dia 25 de Abril.
Hamlet
O Rei Hamlet da Dinamarca, morrera subitamente. Dois meses depois, a Rainha
Gertrudes casou-se com seu cunhado, Cláudio. O jovem príncipe Hamlet, filho do
falecido monarca e legítimo herdeiro do trono, não se conformou com a leviandade
da rainha. Amando o pai, possuindo senso de honra, ficou profundamente magoado
com o procedimento da mãe. Perdeu toda a alegria; já não encontrava prazer na
leitura ou nos exercícios próprios da juventude. O mundo parecia-lhe hostil e triste.
O que mais perturbava Hamlet era não saber ao certo como morrera o pai. Cláudio
afirmava que o rei tinha sido picado por uma serpente, mas Hamlet suspeitava de
que a serpente fora o próprio Cláudio.
Chegou aos ouvidos de Hamlet o rumor de que um fantasma, parecidíssimo com
seu pai, fora visto pelas sentinelas do palácio duas ou três noites seguidas. A aparição
usava a mesma armadura do rei. O espectro aparecia quando o relógio batia meia-
noite e entre os que o haviam visto estava Horácio, amigo íntimo de Hamlet.
Assombrado com a narrativa, Hamlet não teve dúvida de que se tratava do espectro
do pai, e decidiu montar guarda com os soldados.
Como nas noites anteriores, o fantasma apareceu e confessou a Hamlet que era a
sombra do Rei, e que fora cruelmente assassinado pelo próprio irmão, Cláudio, que
pretendia casar-se com Gertrudes e ocupar o trono – exatamente como suspeitara o
p r í n c i p e .
Perturbado com a estranha ocorrência, Hamlet esteve a ponto de ficar louco. Seu
comportamento diante dos outros já não era o mesmo. Temendo que seu
procedimento acabasse despertando a desconfiança do tio, resolveu fingir que
realmente enlouquecera; só assim o rei deixaria de suspeitar dele, julgando-o um
louco inofensivo.
Antes da morte do pai, Hamlet amava uma moça chamada Ophelia, filha de Polônio,
o principal conselheiro do rei. Fizera-lhe muitas declarações de amor e cercava-a de
atenções carinhosas. Ofélia acreditava na sinceridade de Hamlet. Durante a sua
crise de melancolia, o príncipe a esquecera. Agora, fazendo-se de louco, passara a
tratá-la com desprezo, gestos e palavras rudes. Entretanto, meigas lembranças de
Ophelia muitas vezes o enterneciam. Arrependido de algumas palavras mais rudes,
escreveu a Ophelia uma carta apaixonada e extravagante, mas entremeada de frases
afetuosas. Ophelia, de acordo com os costumes antigos, mostrou a carta ao pai, e o
velho a levou ao rei e à rainha. Estes, diante daquela prova evidente, não tiveram
mais dúvidas de que era o amor o verdadeiro motivo da loucura de Hamlet.
Mas Hamlet ainda queria vingança pela morte do pai, e nessa época surgiu no
palácio um grupo de atores. Teve a idéia de fazer o grupo representar para a corte
alguma peça, na qual aparecesse uma cena semelhante
à do assassínio de seu pai. Teria então, oportunidade
de observar no rosto do tio o efeito produzido pelo
espetáculo. Poderia ter desse modo uma idéia mais
segura sobre a culpa de Cláudio. Com esse intuito,
ordenou que se preparasse uma representação para a
qual convidou o rei e a rainha.
A peça escolhida narrava o assassínio de Gonzaga, um
duque de Viena. Quando, na peça, Luciano apareceu
para envenenar Gonzaga, adormecido no jardim, a cena
perturbou de tal forma o tio que este, fingindo um súbito
mal-estar, deixou bruscamente a sala.
Logo em seguida, a pedido do rei, Hamlet foi chamado
aos aposentos da rainha. Esta devia dizer-lhe o quanto
desgostara a ambos o procedimento do príncipe.
Receando que Gertrudes escondesse algum detalhe da
conversa, o rei ordenou à Polônio que se colocasse atrás
das cortinas do quarto da rainha.
Num momento da discussão, Polônio fala de trás da
cortina, e Hamlet acreditando que o rei ali se escondera,
puxou da espada e golpeou várias vezes o pano. Quando
arrastou o corpo, viu que se tratava de Polônio.
Com a morte do pai, Ophelia começara a sofrer graves
perturbações. Quando andava pelas margens de um
riacho, caiu nele e acabou por afogar-se. Hamlet chegou
durante a cerimônia do enterro, quando Laertes,
alucinado pela dor, ao perceber Hamlet, causador da
morte do pai e indiretamente da irmã, partiu para ele e
agarrou-o como um inimigo. Depois do enterro, Hamlet
pediu desculpas e os dois jovens pareceram
r e c o n c i l i a d o s .
Mas o rei Cláudio, sempre procurando eliminar o
sobrinho, convenceu Laertes de que, celebrando as
pazes, devia bater-se em esgrima com Hamlet.
Influenciado pelo rei, Laertes preparou uma arma
envenenada. Depois de alguns lances, Laertes feriu
mortalmente Hamlet com esta arma. Na confusão da
luta, as espadas foram involuntariamente trocadas
depois de caírem no chão. E chegou a vez de Laertes
ser também atingido por um golpe mortal.
O rei preparara para Hamlet uma taça de vinho
envenenada, caso falhasse a espada de Laertes.
Esquecera-se porém, de prevenir a rainha, e esta, tendo
bebido dessa taça, morreu em terríveis convulsões,
declarando ter sido envenenada. Quando Hamlet sentiu
que seu fim se aproximava, voltou-se contra o traiçoeiro
tio, atravessando-lhe com a espada, e força-o a beber
da taça envenenada. Cumpria enfim a promessa que
fizera ao espectro do pai.
Do Romantismo a Modernidade

Goethe
A poucas pessoas é possível denominar de modo tão tranqüilo o epíteto de gênio
quanto a Johann Wolfgang von Goethe. Goethe se destacou de tal forma na literatura,
ajudou a criar um movimento literário, o Romantismo, que influenciou e guiou
praticamente toda a cultura alemã e, no seu rastro, a universal. Nascido em 1749,
em Frankfurt-sobre-o-Meno, ainda adolescente já estudava italiano, latim, grego,
inglês, hebraico e desenho artístico. Escreveu critica literária, romances, peças,
poesia, contos, poesia lírica, cartas e descrições de viagens. Sua inteligência, no
entanto, não se limitava à literatura.
Além de dedicar-se à literatura, Goethe também dedicou-se à ciência. É autor da “A
Doutrina das Cores”, obra em que expõe o resultado de suas pesquisas e estudos
acerca de fisiologia, física e química para tratar do fenômeno das cores. Em “A
Doutrina das Cores” Goethe rivaliza nada mais nada menos com um intelectual da
envergadura de sir Issac Newton. Na verdade, causa espanto a quantidade e
variedade de seus interesses: era um cientista, fez pesquisas em óptica, geologia,
mineralogia, botânica, anatomia humana e zoologia. E, todas as vezes que você
ouvir falar do osso intermaxilar no ser humano, saiba que isso foi contribuição de
Goethe. Foi conselheiro político e militar em Weimar, onde ajudou a construir estradas,
prédios públicos, teatros. Quando morreu em 1832, com 83 anos, foi reverenciado
como um mito da humanidade.
Em virtude disto tudo não pode-se deixar de considerar a semelhança existente
entre a personagem (Fausto) e seu autor. Afinal, Goethe também perseguia o
conhecimento e as canções que irrompiam durante a noite registradas por ele bem
que poderiam ser sopradas em seu ouvido pelo próprio Mephistófeles. De qualquer
maneira o importante é que neste como em outros casos a vida imita a arte.
Outro livro do escritor alemão, ”Werther”, um dos símbolos máximos do Romantismo,
do qual foi fundador, foi escrito quando Goethe tinha 25 anos de idade. Escrito na
forma de cartas, narra as desventuras amorosas do jovem Werther que, na
impossibilidade de consumar seu amor por Carlota, acaba se suicidando. O livro
causou comoção mundial. A identificação com o personagem se tornou tão grande
que começaram a se alastrar os casos em que jovens resolvem seguir o mesmo
exemplo. Tornou-se moda matar-se por amor. A coisa foi tão séria que ficou conhecida
como o “mal do século”. Se já era conhecido nos círculos cultos alemães e um
pouco no exterior, com “Werther” a fama de Goethe explode. Até morrer, nunca
perderia a popularidade. Muito diferente do seu personagem suicida, porém, Goethe
não morreu jovem, teve muitas paixões, algumas correspondidas e outras não, e
pôde gozar muito bem a vida.
Resumo de uma época e prova da genialidade de Goethe, “Fausto” faz parte do
patrimônio cultural da humanidade, é obra da vida inteira do escritor. Começou a ser
escrita em 1774, sendo que a primeira parte foi publicada em 1808; a segunda
somente foi concluída em 1832, pouco antes da morte do autor.
Fausto
Hélio Schwartsman dá um panorama sobre o mito de Fausto.Alerta-nos sobre a existência do
homem que o inspirou (Jörg Faustus) e dá a entender que os primeiros a ficcionalizá-lo, a
transformá-lo em uma personagem foram os cléricos protestantes que acusaram-no de
“vagabundo”, “falastrão”, “patife” e “louco”. Haveria, ainda, segundo Ian Watt, um Fausto mais
jovem, que teria vivido no século V acusado de heresia que se indispôs com Santo Agostinho.
Segundo Schwartsmam o primeiro a associar Faustus ou Fausto a satã foi Lutero
(Conversas à Mesa). Todavia, o mais importante texto que refere-se às peripécias
do mago é o Faustbuch, de autor anônimo. Este data do século XVI e é o primeiro a
desvincular a personagem do homem Jörg Faustus e a mencionar o contrato através
do qual Fausto vendeu sua alma ao diabo.
Após o surgimento da imprensa, o Faustbuch foi reeditado várias vezes sendo utilizado
como fonte de inspiração por Chistopher Marlowe em 1592. Diferentemente da
personagem do Faustbuch, o Fausto criado pelo dramaturgo que rivalizava com
Shakespeare é capaz de cativar o público. Apesar disto, somente com Goethe Fausto
adquiriria uma maior profundidade literária e o direito de ser salvo de seu pecado de
desejar o conhecimento. Depois de Goethe, Thomas Mann (Docktor Faustus) e Klaus
Mann (Mephisto) também dariam sua contribuição à construção desta personagem
comparável à D. Quixote, D. Juam e Robinson Crusoé.
Faustopoderiaserentendidocomoummito,umavezquetambémtraduzumtraçofundamental
da personalidade humana, que é o desejo do conhecimento e do poder que dele advém.
Porém, até mesmo nesse sentido definir Fausto como um mito é um problema. Como frisou
Schwartsmam,háevidênciasdequeoFaustoimortalizadonaliteraturaporChristopherMarlowe,
Johann Wolfgang von Goethe, Tomas Mann e seu filho Klaus Mann, existiu realmente. Teria
vivido entre os séculos XV e XVI e chamado-se Jörg ou Johanes Faustus.
O Fausto de carne e osso teria sido um astrólogo e nigromante que gostava de
impressionar as pessoas e de desfrutar os prazeres da mesa e da cama. O primeiro
a associá-lo a satã (entidade demoniaca da tradição cristã) foi Lutero em sua obra
“Conversas à Mesa”. Com o tempo o homem acabou sendo ofuscado pela sua
imagem. Assim, o mito do sábio que celebra um pacto com o demônio encontra
suas raízes na realidade ao contrário de Édipo, que não foi rei de Tebas e talvez
nunca tenha existido a não ser no imaginário de seu criador.
Fausto situa-se nos limites entre a mitologia e a história, talvez seja esta a razão do
poema de Goethe ter se transformado num clássico. Além disso, deve-se ressaltar
que Fausto encontrou um solo fértil a partir do Iluminismo. Desde então, o
conhecimento é muito valorizado, o que não ocorria na época em que o Jörg Faustus
vagou pela Europa. Assim, foi o fim da Idade Média que abriu caminho para que
Fausto fosse transformado num verdadeiro mito.
De certa maneira, o homem moderno também realiza a mesma trajetória que Fausto,
também faz o seu pacto com secreto com Mephistófeles. Persegue avidamente o
conhecimento para a partir dele desfrutar os prazeres da vida. Não é isto que estamos
fazendo neste exato momento? Hoje mais do que nunca o homem é literalmente
empurrado nesta direção. Nada é capaz de o deter, nem mesmo os freios religiosos.
Originalmente judaísmo, cristianismo e até mesmo o islamismo partilham da mesma
posição em relação ao conhecimento, encarado como a fonte de todo mal. A expulsão
de Adão e Eva do paraíso ilustra bem esta questão. Contudo, na atualidade estes três
grandes sistemas religiosos são obrigados a tolerar a ciência e o desejo de conhecê-la.
Em razão da tradição judaica e cristã podemos dizer que o mito de Fausto é como
que uma atualização, uma modernização de crenças muito anteriores ao século XV
e mesmo ao século V de nossa era. Crenças que encontram-se retratadas de maneira
muito original na Tora ou Velho Testamento. A exemplo de Adão, Fausto obtém o
conhecimento e o prazer, mas acaba sendo obrigado a vagar pelo mundo. Adão é
condenado a trabalhar para seu próprio sustento e Fausto a acompanhar
Mephistófeles. Portanto, de certa maneira ambos foram expulsos do paraíso, se
entendermos este como um estado inicial, primitivo, em que não havia nem prazer,
nem dor. Não parece ser acidental a coincidência de que o primeiro conhecimento
adquirido pelos dois curiosos é relacionado ao prazer. Adão copula com Eva e, na
versão de Goethe, a primeira coisa que Fausto descobre depois do pacto celebrado
com Mephistófeles é o prazer sexual com Margarida.
Goethe fez sua primeira tentativa de escrever sobre o mito alemão Fausto em
1775, no Urfaust, em prosa, que é às vezes denominado de Fausto Primitivo. Em
1797 a idéia foi retomada segundo um plano completamente diferente: em 9 episódios
e como poema dramático para Teatro. Esta nova versão será publicada como texto
definitivo em 1808 (Fausto Parte I). Cumprindo uma promessa feita a seu grande
amigo Friedrich Schiller (1759-1805), Goethe vai trabalhar na Parte II de Fausto até
1831, que na realidade, tem pouca relação com a Parte I, mais conhecida e divulgada,
com a publicação póstuma do texto definitivo em 1832.
Em Goethe o mito encontra sua versão mais acabada e genial. A chave para entendê-
lo está logo no início do poema, onde Deus dialoga com Mephistófeles. A entidade
diabólica pede a Deus a permissão para tentar o cientista obtendo-a com a restrição
de que não poderá ficar com sua alma. Mephistófeles aceita a condição e retruca
que a ele como ao gato só interessa o rato enquanto estiver vivo. Assim, temos na
verdade dois contratos, um entre Deus e Mephistófeles e outro entre este e Fausto.
Mas, Fausto não tem conhecimento do primeiro e sua ignorância é que o faz acreditar
que sua alma pertence ao companheiro de jornada. A sua maneira, Goethe mantém
a tradição religiosa mas escapa à solução maniqueista, conferindo maior colorido e
valor ao mito. Enfim Fausto reencarna Adão, mas não é nem poderia ser condenado
à perdição em virtude de perseguir o conhecimento.
Ao a registrar sua versão sobre o mito de Fausto, Goethe deu a ele algo de sua
própria educação clássica. Com efeito, pode-se estabelecer um paralelo entre a
trajetória de sua personagem e a do filosofo Sócrates, que viveu no século IV aC.
Todos os discípulos que escreveram sobre o ateniense, referem-se ao fato de que
ele admitia que falava com sua entidade protetora, com seu daímom (vocábulo
grego traduzido como sendo equivalente a “demônio”). Como vê-se, o grego e o
personagem de Goethe entram em contato com seres supranaturais e perseguem o
conhecimento. A identidade entre ambos não parece ser meramente casual.
Historicamente, a primeira parte de Fausto é mais importante pelo papel que
representou no movimento pré-romântico alemão Sturm und Drang (Tempestade e
Ímpeto): a peça foi vista como símbolo da alma e cultura moderna, a personificação
da angústia que marcava o espírito da época. Em nossa perspectiva de início de
século XXI, percebemos que Goethe conseguiu orquestrar uma verdadeira tragédia
do desenvolvimento humano, a aventura de Fausto inicia-se na solidão de um obscuro
laboratório medieval de um sábio alquimista e seu idealismo na primeira parte e
termina na segunda parte simbolicamente em meio às convulsões provocadas pela
Revolução Industrial burguesa, o avanço das forças do capitalismo e a destruição
completa sem deixar vestígios, da sociedade e modo de produção feudal, mundo
este que foi transformado através de uma imensa força de trabalho organizada
juntamente com a maquinaria e grande indústria.
A questão trágica do pacto e o desenvolvimento do capitalismo no poema é analisado
em 3 “metamorfoses” de Marshall Berman: o Sonhador, o Amador e o Fomentador.
Fausto em sua primeira metamorfose, antes do seu pacto, vive somente no mundo
platônico das idéias e sonha em voltar ao convívio humano e social, mas a sociedade
e as relações feudais em que vive, não oferece possibilidades de ação e transformação,
de desenvolvimento de todas as suas potencialidades intelectuais e espirituais.
Na sua segunda metamorfose, depois do pacto com Mefistófeles, Fausto rejuvenesce,
tem dinheiro, velocidade e mobilidade social; tenta se adaptar para a integração entre
seu novo mundo de possibilidades infinitas e a estreiteza do mundo feudal. Seu
relacionamento com Gretchen (Margarida) é o símbolo dessa incompatibilidade de
mundos. Fausto tira a jovem camponesa de sua inocência, adulando-a com presentes,
tira-lhe sua virgindade, torna-se seu amante, despertando nela o desejo de mudança,
de desenvolvimento, algo muito difícil para ela, devido a seu forte laço de ligação com
sua comunidade e as exigências do casamento, que não interessa a Fausto, pois este
tem muitas experiências para vivenciar em seu desenvolvimento contínuo.
Na sua terceira e última metamorfose e nos 2 últimos atos do poema, Fausto passa
por diversas experiências: na corte do Imperador, ele evoca Helena de Tróia, símbolo
da beleza clássica; ao cabo de uma longa busca por ela entre as alegorias, deuses e
seres mitológicos da Antigüidade, ele traz Helena para a Alemanha e casa-se com ela.
Mas ela não tarda a desaparecer depois da morte de Euforion, filho do casal, símbolo
do gênio poético (Goethe queria prestar sua homenagem póstuma ao poeta Lord Byron).
Fausto - síntese
É como um herói insaciável e em conflito que Fausto é apresentado por Goethe. Sua
sede de onipotência leva-o a dominar várias ciências, mas nenhuma delas o conduz ao
mistério da existência. Fausto chega, assim, a perder a fé nas vias ordinárias da ciência.
Anseia por conhecer mais e mais: vida, alegria, amor, magia. Anseia por transformar-se
numa espécie de deus, com acesso ilimitado a todas as manifestações da natureza.
No momento em que Fausto tem consciência dos seus limites, Mefistófeles entra
em cena. O demônio se oferece para conduzi-lo a um novo universo, onde as emoções
são íntegras, a sabedoria é infinita e tudo está em perfeita harmonia com a vontade.
E principalmente Mefistófeles lhe propõe o prazer total e pleno da alegria e do amor,
mais o Dom de controlar os sentimentos e as pessoas como um mago, retendo nas
mãos o tempo, e fazendo a natureza oscilar segundo seu próprio desejo. Gozando
plenamente o ato de ser feliz, Fausto deverá no entanto, pagar um preço a
Mefistófeles: entregar-se a ele. Nesse instante, o diabo terá vencido Deus.
O episódio de Fausto e Margarida constitui o motivo central da peça. A jovem é a
personificação da pureza e da candura, atraindo a paixão de Fausto desde o primeiro
momento em que a vê saindo de uma igreja. Mas Mefistófeles não tem poder sobre
ela para lançá-la aos braços de Fausto: Margarida está mais próxima de Deus pelas
suas virtudes. Fausto é insistente e Mefistófeles acaba por se comprometer, criando
uma situação favorável e aproxima Fausto de Margarida. O herói aborda a jovem e
consegue penetrar em seu quarto. Mas invadido por uma onda de ternura, Fausto
não consegue ter senão pensamentos nobres, e afasta-se antes de Margarida chegar.
Fausto acaba por seduzir Margarida. Para poder possuí-la tranqüilamente, Fausto
dá a Margarida um sonífero, destinado à sua mãe. Na verdade, o sonífero era um
veneno que Mefistófeles prepara e, em conseqüência, a mãe da jovem morrerá.
Mas naquela noite, ébria de amor, Margarida nada vê, além de Fausto.
Valentim, o irmão da jovem, é morto por Fausto num duelo. Ciente de sua desgraça,
Margarida sente dentro de si todas as forças do mal. Quando dá à luz ao filho de
Fausto, não vê outra saída senão matá-lo. É então presa por infanticídio.
Fausto ignora totalmente a desgraça. Mefistófeles, porém, deseja ganhar tempo e
afastar o herói da cena trágica. Transporta-o para a noite da Valburga, onde reina
entre os demônios e as feiticeiras. É noite de 1º de maio, quando todas as forças
telúricas se reúnem numa alucinante luxúria.
Porém, a imagem da meiga Margarida é muito forte para que Fausto se abandone
aos sentidos. Sentindo-se um estranho na festa das
bruxas, Fausto depara com uma adolescente de olhos
mortos que o deixa obcecado por rever Margarida.
Mefistófeles não vê outra saída senão transportá-lo ao
cárcere onde a jovem está louca e indiferente à prisão e
à realidade. Não reconhece Fausto e é imune às súplicas
para que fuja com ele. Margarida está consciente da
necessidade do castigo e só pensa em expiar sua culpa.
À visão de Mefistófeles, a jovem recua com horror e
suplica aos céus perdão e proteção. E diante de Fausto
– a quem chama de Henrique, pois com esse nome o
conhecera - seu horror não é menor, ao descobrir nele o
agente da sua destruição. “Ela foi justiçada!” diz
Mefistófeles; “Está salva!” proclamam as vozes vindas
do alto. Sua ânsia de expiação acaba por redimi-la.
No final, Fausto desaparece com Mefistófeles, seguido pelo
grito longínquo de Margarida. O herói alcança sua redenção,
quando, depois de morto, sua alma é disputada com
Mefistófeles e a legião infernal contra a legião celeste de anjos,
que apossam de sua alma, conduzindo-a através da trajetória
ascensional celeste, no indizível do chorus mysticus, e no
encontro com o “eterno feminino”, confirmando “(...) que um
homem puro, embora com ambições, conhecendo o trilhar
de tais aspirações, seguro está do rumo a percorrer na vida”.
Charle Baudelaire
1821-1867
O homem que mudou a literatura moderna: definir o francês Charles Baudelaire
somente desta maneira o manteria muito aquém de sua verdadeira importância.
Tradutor, poeta, crítico de arte e literato, Baudelaire foi o ápice da poesia oitocentista.
Charles foi o único filho de Joseph-François Baudelaire e de sua jovem segunda
esposa, Caroline Archimbaut Defayis. Seu pai havia sido ordenado como padre
quando neófito, mas largou o ministério durante a revolução francesa. Trabalhou
como tutor dos filhos do duque de Choiseul-Praslin, o que lhe proporcionou um certo
status. Ganhou dinheiro e respeito e aos 68 anos se casou com Caroline, então com
26. Vivendo num orfanato e já passada da idade de se casar, ela acabou por não ter
opção. Em 1819, casaram-se. Charles-Pierre Baudelaire veio ao mundo um ano e
meio depois, em 9 de Abril de 1821.
A vida acadêmica de Baudelaire começou no Collège Royal em Lyon, quando Aupick
levou a família inteira ao assumir um cargo na cidade. Mais tarde, foi matriculado no
Liceu Louis Le Grand, quando retornaram a Paris em 1836. Foi justamente aí que
Baudelaire começou a se mostrar um pequeno gênio. Escrevia poemas execrados
por seus professores, que achavam que seus textos eram um exemplo de devassidão
precoce, afeições que não eram normais em sua idade. A melancolia também
despontava no jovem. Aos poucos, ele se convenceu de ser um solitário por natureza.
Em abril de 1839, acabou expulso da escola por seus atos de indisciplina constantes.
Mais tarde, tornou-se aluno da Escola de Direito. Na verdade, Charles estava vivendo
de maneira livre. Fez os seus primeiros contatos com o universo da literatura e
contraiu uma doença venérea que o consumiu durante a vida inteira. Tentando salvar
seu enteado do caminho libertino, Aupick o enviou para uma viagem à Índia, em
1841, uma forte inspiração para sua imaginação, e que trouxe imagens exóticas ao
seu trabalho. Baudelaire retornou a França em 1842.
Neste mesmo ano, ele recebeu sua herança. Mas como dândi que era, consumiu
rapidamente a pequena fortuna. Gastou em roupas, livros, quadros, comidas, vinhos,
haxixe e ópio. Os dois últimos, um vício adquirido após consumir pela primeira vez
entre 1843 e 1845, em seu apartamento no Hotel Pimodan. Pouco depois deste seu
retorno, ele conheceu Jeanne Duval, a mulher que marcou definitivamente a sua
vida. A mestiça primeiro se tornou sua amante e mais tarde, controlou sua vida
financeira. Ela ira ser a inspiração para as poesias mais
angustiadas e sensuais que o poeta escreveu. Seu
perfume e o seus longos cabelos negros foram o mote
da poesia erótica “La Chevelure”.
Charles Baudelaire continuou levando sua vida
extravagante e em dois anos dilapidou todo o seu
dinheiro. Também se tornou presa de agiotas e bandidos.
Neste período, acumulou dívidas que o assombraram
para o resto da vida. Em setembro de 1844, sua família
entrou na justiça para impedi-lo de mexer no pouco
dinheiro da herança que ainda sobrava. Baudelaire
perdeu e acabou recebendo somas anuais, que mal dava
para manter o seu estilo de vida e muito menos para
pagar o que devia. Isto o levou a uma dependência brutal
de sua mãe e ao ódio de seu padrasto. Seu
temperamento isolacionista e desesperador, fruto de sua
adolescência conturbada e que ele apelidou de spleen
retornou e se tornou cada vez mais freqüente.
Após a sua volta a França, ele decidiu se tornar um
poeta a qualquer custo. De 1842 a 1846, compôs o que
mais tarde foi compilado na edição “Flores do Mal”
(1857). Baudelaire evitou publicar todos estes poemas
separadamente, o que sugere que ele realmente tenha
arquitetado em sua mente uma coleção coerente,
governada por uma temática própria. Em outubro de 1845, compilou “As Lésbicas” e
em 1848, “Limbo”, obras que representam a agitação e a melancolia da juventude
moderna. Nenhuma das duas coleções foram lançadas em livros e Baudelaire só foi
aceito no circuito cultural de Paris porque também era crítico de arte, trabalho que
exerceu por um bom tempo.
Inspirado pelo exemplo do pintor Eugène Delacroix, elaborou uma teoria da pintura
moderna, convocando os pintores a celebrarem e expressarem o “heroísmo da vida
moderna”. O mês de janeiro de 1847 foi importante para Baudelaire. Ele escreveu a
novela “La Fanfarlo”, cujo o herói, ou melhor, anti-herói, Samuel Cramer, um alter-
ego do autor, oscila desesperado entre o desejo pela maternal e respeitável Madame
de Cosmelly e o erótico pela atriz e dançarina Fanfarlo. Com este texto, Baudelaire
começava a chamar a atenção, mesmo que timidamente.
Este anonimato acabou-se em fevereiro de 1848, quando participou de manifestações
para a derrubada do Rei Luís Felipe e para a instalação da Segunda República.
Consta que comandou um violento ataque contra o general Aupick, seu padrasto,
então diretor da Escola Politécnica. Este acontecimento leva vários especialistas a
minimizarem a participação do do poeta burguês nesta revolução, já que seus motivos
não seriam sociais e políticos mas sim pessoais, que ainda não havia publicado
nada. Porém, estudos recentes assumem uma veia política brutal em Baudelaire,
em especial sua associação com o anarquista-socialista Pierre-Joseph Proudhon.
Sua participação na revolta de proletários em junho de 1848 é comprovada e também
na resistência contra os militares de Bonaparte, em dezembro de 1851. Logo após
este episódio, o poeta declarou encerrado seu interesse em política e voltou toda a
sua atenção para seus escritos.
Em 1847, ele descobriu um obscuro escritor norte-americano: Edgar Allan Poe.
Impressionado pelas similaridades entre os escritos de Poe com seu próprio
pensamento e temperamento, Baudelaire decidiu levar a cabo a tradução completa
das obras do norte-americano, trabalho este que lhe tomou boa parte do resto de
sua vida. A tradução do conto “Mesmeric Revelation” foi publicado em julho de 1848
e depois, outras traduções apareceram em jornais e revistas antes de serem
compiladas no livro “Histórias Extraordinárias” (1856) e “Novas Histórias
Extraordinárias” (1857), todas precedidas por introduções críticas feitas por Charles
Baudelaire. Depois se seguiu “As Aventuras de Arthur Gordon Pym” (1857), “Eureka”
(1864) e Histórias Grotescas” (1865). Como tradução, estes trabalhos foram clássicos
da prosa francesa, e o exemplo de Poe deu a Baudelaire uma confiança em sua
própria teoria estética e ideais para a poesia. O poeta também começou a estudar o
trabalho do teórico conservador Joseph de Maistre, que, junto com Poe, incentivaram
seu pensamento a ir numa direção antinaturalista e anti-humanista.
Do meio de 1850, ele iria se pronunciar arrependido de ser um católico romano,
apesar de manter sua obsessão pelo pecado original e pelo demônio. Tudo isto sem
a fé no amor e perdão de Deus, e sua crença em Cristo se rebaixou tanto a ponto de
praticamente não existir mais. Entre 1852 e 1854, dedicou vários poemas à Apollonie
Sabatier, sua musa e amante apesar da reputação de cortesã da alta-classe. Em
1854, Baudelaire manteve um caso com a atriz Marie Daubrun. Ao mesmo tempo,
sua fama como o tradutor de Poe aumentava. O fato de ser crítico de arte permitiu
que publicasse algum de seus poemas. Em junho de 1855, a Revue des Deux Mondes
publicou uma sequência de 18 de seus poemas, com o título de “As Flores do Mal”.
Os poemas, que ele escolheu pela originalidade e pelo tema, trouxeram-lhe
notoriedade. No ano seguinte, Baudelaire fechou um contrato com o editor Poulet-
Malassis para uma coleção completa de poemas sob o título prévio.
Quando a primeira edição do livro foi publicado em junho de 1857, 13 dos 100
poemas foram imediatamente acusados de ofensas à religião e à moral pública. Um
julgamento ocorreu no dia 20 de agosto de 1857 e 6 poemas foram condenados a
serem retirados da publicação sob a acusação de serem obscenos demais. Baudelaire
foi multado em 300 francos (mais tarde, reduzido a 50 francos). Em 1866, na Bélgica,
os seis poemas foram republicados sobre o título de “Les Èpaves”. A proibição dos
poemas só foram retirados da França em 1949. Como toda polêmica sempre é
benéfica, “As Flores do Mal” se tornou um marco por sua obscenidade, morbidez e
devassidão. Nascia a lenda de Baudelaire como um poeta maldito, dissidente e
pornográfico.
Porém, as vendagens não foram nada boas. Baudelaire
nutria uma expectativa gigantesca pelo sucesso - o que
não aconteceu - e imediatamente se tornou amargo. Os
anos que vieram transformaram Baudelaire numa
personalidade soturna, assombrado pelo sentimento de
fracasso, desilusão e desespero. Após a condenação
de seu livro, ele se juntou com Apollonie Sabatier e a
deixou em 1859 para retomar seu relacionamento com
Marie Daubrun, novamente infeliz e fracassado. Apesar
de ter escrito alguns de seus melhores trabalhos nestes
anos, poucos foram publicados em livro. Após a
publicação de experimentos de prosa em verso, ele se
concentrou numa segunda edição de “As Flores do Mal”.
Em 1859, enquanto vivia novamente com sua mãe, perto
do rio Sena, onde ela se mantinha reclusa após a morte
de Aupick em 1857, Baudelaire produziu uma série de
obras-primas da poesia, começando com “Le Voyage”
em janeiro e culminando no que é considerado seu
melhor poema, “Le Cygne”, em dezembro. Ao mesmo
tempo, compôs dois de seus mais provocativos ensaios
de crítica de arte: “Salão de 1859” e “Os Pintores da
Vida Moderna”. Este último, inspirado por Constantin
Guys, é visto como uma declaração profética dos
elementos do Impressionismo, uma década antes do
surgimento da escola. Em 1860, publicou “Os Paraísos
Artificiais”, uma tradução de partes do ensaio de “Confissões de um Inglês Comedor
de Ópio”, de Thomas De Quincey, acompanhado por sua pesquisa e análise das
drogas. Em fevereiro de 1861, uma segunda edição, maior e ampliada, de “As Flores
do Mal” foi publicada por Poulet-Malassis. Ao mesmo tempo, publicou ensaios críticos
sobre Theophile Gautier (1859), Richard Wagner (1861), Victor Hugo e outros poetas
contemporâneos (1862), e Delacroix (1863). Estes textos seriam compilados em “A
Arte Romântica”, em 1869. Os fragmentos de sua autobiografia entitulada “Fusèes”e
“Mon Coeur Mis à Nu” também foram lançados entre 1850 e 1860. É também desta
época seu ensaio onde afirma que a fotografia era um engodo, que aquela nova
forma nunca seria arte. Mais tarde, o poeta se arrependeu e voltou atrás em suas
declarações e chegou a ser retratado por Félix Nadar.
Em 1861, Baudelaire tentou se eleger à Academia Francesa mas foi fragorosamente
derrotado Em 1862, Poulet-Malassis faliu e ele foi implicado na falência, o que piorou sua
condição financeira. Seus limites mentais e físicos atingiram o topo.Abandonando a poesia,
ele foi fundo na prosa em versos. Uma sequência de 20 de seus trabalhos foi publicada
em 1862. Em abril de 1864, ele deixou Paris para se instalar em Bruxelas, onde tentaria
persuadir um editor belga a publicar suas obras completas. Lá ficou, amargurado e
empobrecido até 1866, quando após um ataque epilético na Igreja de Saint-Loup at Namur,
sua vida mudou. Baudelaire teve uma lesão cerebral que lhe ocasionou afasia (perda da
capacidade de compreensão e de expressão pela palavra escrita ou pela sinalização,
assim como pela fala) e paralisia. O dândi nunca mais se recuperou. Retornou a Paris no
dia 2 de julho, onde ficou em uma enfermaria até sua morte. Em 31 de agosto de 1867,
aos 46 anos, Charles Baudelaire morreu nos braços de sua mãe.
Quando a morte o visitou, Baudelaire ainda mantinha vários de seus trabalhos não
publicados e os que já haviam saído estavam fora de circulação. Mas isto rapidamente
mudou. Os líderes do movimento Simbolista compareceram ao seu funeral e já se
designavam como seus fiéis seguidores. Menos de 50 anos após a sua morte,
Baudelaire ganhou a fama que nunca teve em vida: havia se tornado o maior nome
da poesia francesa do século XIX.
Conhecido por sua controvérsia e seus textos obscuros, Baudelaire foi o poeta da
civilização moderna, onde suas obras parecem clamar pelo século XX ao invés de
seus contemporâneos. Em sua poesia introspectiva ele se revelou como um lutador
à procura de Deus, sem crenças religiosas, procurando em cada manifestação da
vida os elementos da verdade, de uma folha de uma árvore ou até mesmo no franzir
das sobrancelhas de uma prostituta. Sua recusa em admitir restrições de escolha de
temas em sua poesia o coloca num patamar de desbravador de novos caminhos
para os rumos da literatura mundial.
As Flores do Mal
A principal obra do francês Charles Baudelaire foi e ainda é certamente o seu livro
de poemas Les Fleurs du mal, publicado originalmente em 1857 pelos editores Poulet-
Malassis e De Broise. O volume reunia todos os poemas outrora publicados na
imprensa e outros ainda inéditos. Apresentava-se dividido em cinco partes - Spleen
et ideal, Fleurs du mal, Révolte, Le vin e La mort - e continha 100 poemas, além do
introdutório Au lecteur.
A maior parte destes poemas havia sido escrita desde 1840 e publicada na imprensa
e em revistas literárias européias, como as Revue de Paris, em 1852, Revue de
Deux Mondes, em 1855, Revue française, em 1857, e Revue contemporaine, em
1859, sendo que em junho de 1855 aparece pela primeira vez o título Les Fleurs du
mal sobre um conjunto de dezoito poemas publicados na Revue de Deux Mondes.
O livro sofreu grave processo poucos meses depois do seu lançamento, acusado de
imoralidades, assim como o livro de Gustave Flaubert, Madame Bovary, e tanto o
autor quanto seus editores são condenados por ultraje à moral pública e o livro a ter
suprimido alguns poemas.
Em 1861 sai sua segunda edição, rearranjada e modificada: por um lado, reduzida
pela saída dos poemas censurados - Les bijoux, Le Léthé, À celle qui est trop gaie,
Lesbos, Femmes damnées e Le métamorphoses du vampire - e pela nova formação
do poema Un fantôme, somando quatro sonetos; por outro lado, aumentada com
outros 35 poemas novos, totalizando 126. Os poemas aparecem distribuídos em
outra ordem e é ainda nessa edição que Baudelaire faz mais uma subdivisão em
seu livro, acrescentando o subtítulo Tableaux parisiens. Na época, publica ainda
duas coletâneas de poemas: Les Épaves - também dividida em cinco partes: Pièces
condamnées, Galanteries, Épigraphes, Pièces diverses e Buffonneries, divulgada
principalmente na Bélgica - e Nouvelles Fleurs du mal.
Por fim, ainda sairia uma edição póstuma, em 1868, visto que o poeta falecera um
ano antes, em agosto de 1867, organizada por Charles Asselineau e Théodore de
Banville e produzida por Michel Levy. Essa edição troca o título do poema Au lecteur
por Préface e traz, além dos poemas da edição de 1861 e alguns das coletâneas,
outros poemas publicados na imprensa e mesmo inéditos, totalizando 166.

PERFUME EXÓTICO

De olhos fechados, quando, alta noite, no outono,


Respiro o cheiro bom dos teus seios fogosos,
Vejo entreabrir-se além cenários deleitosos
Cintilando ao ardor de um sol morno de sono:

Uma ilha preguiçosa e molenga e sem dono


Em que há árvores ideais e frutos saborosos;
Homens de corpos nus, finos e vigorosos,
Mulheres cujo olhar tem franqueza e abandono.

Guiado por teu perfume às paragens mais belas,


Vejo um porto a arquejar de mastros e de velas
Ainda tontos talvez da vaga alta que ondu1a,

Enquanto um verde aroma — o dos tamarineiros —,


Que passeia pelo ar e que aspiro com gula,
Se mistura em minha alma à voz dos marinheiros.
Correspondências

A Natureza é um templo onde vivos pilares


Deixam sair às vezes palavras confusas:
Por florestas de símbolos, lá o homem cruza
Observado por olhos ali familiares.

Tal longos ecos longe onde lá se confundem


Dentro de tenebrosa e profunda unidade
Imensa como a noite e como a claridade,
Os perfumes, as cores e os sons se transfundem.

Perfumes de frescor tal a carne de infantes,


Doces como o oboé, verdes igual ao prado,
- Mias outros, corrompidos, ricos, triumfantes,

Possuindo a expansão de um algo inacabado,


Tal como o âmbar, almiscar, benjoim e incenso,
Que cantam o enlevar dos sentidos e o senso.

O AZAR

Para tomar tal peso a peito,


Mister, Sísifo, é o teu valor!
A obra, é certo, excita ardor,
Mas a Arte é vasta e o Tempo estreito.

Rumo de esconso cemitério,


Das tumbas célebres desviado,
Meu coração, tambor velado,
Batendo vai, num tom funéreo.

- Ha muita jóia que se oculta


No esquecimento, ou jaz sepulta,
Das sondas longe, e do alvião;

Muita flor ha, que exala a medo


Olor subtil como um segredo,
Na mais profunda solidão.

Os cegos

Veja-os, minha alma, são mesmo horrorosos!


São críveis manequins, vagamente ridículos;
Terríveis, singulares como os soníloquos;
Dardejando por aí seus globos tenebrosos.

Seus olhos, de onde a divina faísca é fugida,


Como se olhassem ao longe, restam alçados
Para o céu; não se vê nunca para os calçados
Pender em sonhos sua face entorpecida.

Eles atravessam assim o negro ilimitado,


Este irmão do silêncio eterno. Oh cidade!
Enquanto que entorno há cantos, risos e ecos,

Namorada do prazer até a atrocidade,


Vês! Arrasto-me aliás! mas, mais abestalhado,
Digo: Que buscam no Céu, todos esses cegos?
A uma passante

A rua ensurdessente entorno a mim uivava.


Longa, magra, em grande luto, dor majestosa,
Uma mulher passou, com uma mão pomposa
Provocando, balançando o festão e a anágua;

Ágil e nobre, com suas pernas de estátua,


Eu, bebia, crispado como um basbacão,
Em seu olho, céu níveo onde nasce o furacão,
A doçura que fascina e o prazer que mata.

Um clarão... depois a noite! - Fugaz beldade


Cujo olhar subitamente renascer me fez,
Não te veria mais senão na eternidade?

Longe daqui! tarde demais! jamais talvez!


Pois ignoro onde foste, não sabes aonde ia,
Oh tu que o sabias, oh tu que eu amaria!

A Morte dos Amantes


Max Brandão e Ricardo Meirelles

Teremos leitos cheios de cheiros ligeiros,


E profundos divãs a túmulos parelhos,
E estranhas flores que, sobre os tabuleiros,
Eclodem para nós sob esses céus mais belos.

Usando ciosos seus calores derradeiros,


Nossos dois corações serão dois vastos brilhos,
Que refletirão duplos seus gêmeos luzeiros
Nos nossos dois espíritos, esses espelhos.

Uma tarde feita de rosa e azul místico,


Entre nós dois trocaremos um clarão único,
Como um longo soluço, de adeus, carregado;

E mais tarde um Anjo, entreabrindo os portos,


Terá, fiel e alegre, em nós reanimado
Os espelhos opacos e os fogos mortos.

O vinho do solitário

O olhar singular de uma mulher galante


Que desliza sobre nós como o branco raio
Que a lua ondulante envia ao lago verde-gaio
Quando quer banhar sua beleza indolente;

O último ouro nos dedos de um jogador;


Um beijo libertino da magra Adelina;
Os sons de uma música que enerva e anima,
Lembrando longe o grito da humana dor,

Tudo isso não vale, oh garrafa profunda,


O bálsamo intenso que tua pansa fecunda
Guarda aos corações loucos dos poetas mais pios;

Verte-lhe tu a esperança, a juventude e a vida,


- e o orgulho, de toda mendicância a medida,
Que nos torna triunfantes e aos Deuses eqüios.

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