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I

Lê atentamente o excerto transcrito.

(…) Outra grande novidade da faculdade era que tinha alunas. Naquele
tempo, não eram numerosas; e não havia, entre nós e elas, camaradagem
nenhuma. Quando eu entrara para o liceu, ainda havia no último ano
algumas, que eram entidades míticas de quem se diziam horrores, e os
últimos remanescentes de o liceu ter sido misto. Entretanto, para a
separação dos sexos, e para atender-se a uma população estudantil
feminina, haviam sido criados em Lisboa dois liceus femininos. E, para nos
espantarmos com a concentração de raparigas que estudavam
(estudariam?) o mesmo que nós, muitas vezes tínhamos faltado, em
grupos, às aulas, e tínhamos ido em excursão até um deles. Elas fugiam
em grupos também, e não voltáramos lá, desde que, às esquinas, estavam
polícias encarregados de enxotar-nos. Agora, na
faculdade, lá estavam elas. E nós dificilmente concebíamos como colegas
os membros de uma espécie humana que, sem sexo, eram mães, tias ou
irmãs, com algum sexo eram pessoas conhecidas, e com o sexo todo eram
tudo isso, mas para os outros. As irmãs de um colega nosso haviam sido
célebres por essa ambiguidade, que era aliás partilhada pelas primas de
nós todos. Umas festas que havia em casa dele – que era um palacete nas
avenidas, dentro de um jardim – acabavam sempre por elas e as amigas
delas nos levarem para os cantos escusos da casa, para umas actividades
meramente exteriores em que eram peritas. (…) As nossas colegas de
faculdade eram, porém, animais estranhos. Pouco a pouco, dividiram-se
em três categorias que constituíam, na verdade, o “status” de que
gozavam, segundo as regras existentes e que fomos aprendendo. Umas,
muito poucas (e eram mais as vozes que as nozes), passavam por ser
mulheres muito acessíveis que, todavia, adquiriam, nos corredores e nas
conversas, uma respeitabilidade discreta que nos intimidava e era,
contraditoriamente, partilhada por outra categoria: a das muito feias e
sem graça, que ninguém se lembrava de considerar femininas, apesar dos
esforços desesperados delas ou de algumas delas. Uma terceira categoria,
de muito poucas também, difundia sobre as outras duas o manto de uma
altura que as aparentava às damas medievais das cortes de amor.
Não seriam bonitas todas, nem ninguém lhes fazia poemas ou era seu
“chevalier-servant”; mas, em círculo respeitoso, ouviam-se os seus
decretos sobre a forma de resolver os problemas, e obtinham-se
informações sobre as aulas a que não tínhamos assistido. E, às vezes,
lanchava-se com elas (e com algumas da primeira categoria citada) no
“General” que era o nome tradicional de uma pastelaria que havia
defronte da escola e que pertencia ao folclore familiar de toda a gente,
através das recordações de pais e tios.

Jorge de Sena, Sinais de Fogo, Col. Mil Folhas, Ed. Público (texto com
supressões)

1. Chevalier-servant: aquele que presta vassalagem à sua dama,


servindo-a de maneiras várias, nomeadamente através da poesia (no
contexto da poesia trovadoresca, mais especificamente das cantigas de
amor).

O romance Sinais de Fogo, de Jorge de Sena, tem como pano de fundo o


eclodir da Guerra Civil espanhola em 1936, mostrando-nos também os
primeiros tempos da ditadura fascista que se imporia em Portugal durante
décadas. Foi publicado postumamente, sendo possível encontrar no
protagonista elementos biográficos que remetem para o próprio autor.

1. Resume sucintamente, num parágrafo, o conteúdo deste excerto.


1.1. Atribui-lhe um título, explicitando as relações de sentido que
estabeleceste.
2. Explica por que motivo podemos afirmar que existe uma distância
temporal entre o “eu” narrador e o “eu” personagem.
2.1. Caracteriza o “eu” personagem.
2.2. Faz o levantamento das marcas do sujeito adulto que recorda e
escreve.
3. A dinâmica da relação entre os jovens de ambos os sexos descrita é
bastante diversa da que hoje conhecemos.
3.1. Caracteriza essa relação, durante o período pré-universitário, no
Portugal de finais da década de 30.
3.2. Descreve, por palavras tuas, as categorias em que as universitárias
eram organizadas de acordo com o olhar masculino.
3.3. Partindo das expressões “entidades míticas” (l. 3) e “animais
estranhos” (l. 15), e de outras que consideres relevantes, caracteriza o
modo como este olhar masculino encara a figura feminina.
4. Refere as características autobiográficas do texto.
4.1. Explica por que razão poderemos afirmar que este excerto apresenta
algumas características de texto memorialístico.

II
1. Atenta na frase seguinte:
“Quando eu entrara para o liceu, ainda havia (…) algumas [alunas], que
eram entidades míticas” (ll. 2-3)
1.1. Classifica morfologicamente os vocábulos sublinhados.
1.2. Refere a função sintáctica desempenhada na frase pela expressão
“que eram entidades
míticas”.
1.3. Transforma a frase de modo que a mesma expressão desempenhe
uma outra função sintáctica.
2. Atenta no excerto seguinte:
“Quando eu entrara para o liceu, ainda havia no último ano algumas
[alunas], que eram entidades míticas (…), e os últimos remanescentes de
o liceu ter sido misto.” (ll. 2-4)
2.1. Atendendo aos elementos sublinhados, identifica os processos que
neste excerto asseguram a coesão textual ao nível lexical.

III
1. Recorda factos da tua infância que a marcaram negativa ou
positivamente. Pode ser uma pessoa, um animal, uma situação, um
objecto, etc.
1.1. Respeitando as características dos textos autobiográficos, elabora um
texto, com cerca de duzentas e cinquenta a trezentas palavras, em
que relates como viveste esse facto na altura, bem como as reacções que
essa recordação te provoca hoje.

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