Desde sempre, no quis parar, no cansou, e entendia de tudo. Viu o pai plantar, sabia escolher os gros, como e por qu. Sabia da primavera, das folhas, das flores, da sementinha escura e no gostava de bienalidade, essa histria de ficar um ano sem caf. Nunca parou para procurar um cheiro melhor que o de caf torrado - nem se preocupou com sua existncia. Gostava de mos, conversava com todo mundo e achava mquinas bonitas. Era a melhor cafeteira do mundo. E era desde sempre, a garrafa nunca ouviu reclamao. Sem caf fora do ponto, sem doce demais, sem cara feia. No era grande nem pequena demais, ideal, ningum esperava com sede. Haviam outras como ela maiores, menores, bonitas, feias, antigas e modernas. No importava, seria sempre a primeira, a favorita. Trabalhavam juntas todos os dias. Cozinha, casa, rua, praa, quiosque, barraca, bar, restaurante e buf. Foram as melhores amigas do pobre e do rico, do matuto e do prefeito, do ladro e da polcia. Da criana que virou pai e do pai que virou av. Andaram com o tempo ao lado, ouvindo seus chamados. Na fila e nos banquinhos todo mundo era igual, no tinha espao pra desgosto. A pequenina que com sua companheira comeou brincando, fez festa em casa, arrancou lgrimas, sorrisos e risadas. Educou outras pequenas, as ensinou a ser grandes, teve raiva, foi feliz, mudou de plano, tentou, falhou, tentou de novo, tentou diferente, conseguiu e foi conseguindo. Foi vivendo, gostava de continuar, sabia que podia, queria o melhor pro mundo, no acreditava quando ouvia que j fazia, que confiavam nela. Sorria encabulada meneando a cabea. Quantos cafs, quantos bom dia, quantos cotovelos no balco, quantas maletas no cho, quantos carros parados, quantas mes, quantos pais, quantos casais, quanto amor, quanto dio, quantas brigas, quantos beijos, quantos abraos, quantos encontros, quanta saudao, quantas despedidas, quanta saudade. Quanto tempo, quanta histria, quanta pergunta, quanta resposta, quanto caf. Ningum soube. As portas fecharam sem abrir, a placa sumiu, a bancada ficou vazia, a prateleira no tinha garrafas, p nem gro. No armrio no tinha roupa, no sof no tinha gente, a gente no tinha voz e na xcara tinha ch. Ela nunca gostou de ch, dizia que no queria viver pra ver ningum tomar ch. No era bem feito, no tinha cor, o cheiro irritava, no fazia sentido, e tinha caf. Pra qu ch? Tinha caf. Acabou o caf. No foi rpido, no foi barato e no foi bom. Tambm no foi forte, preto ou com leite. Ningum coou, mas ia passar. No foi amargo, no teve gosto. Agora era s garrafa.