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ARTIGO ARTICLE 213

A política brasileira de distribuição


e produção de medicamentos anti-retrovirais:
privilégio ou um direito?

Brazilian policy for the distribution and production


of antiretroviral drugs: a privilege or a right?

Jane Galvão 1

1 School of Public Health, Abstract This article focuses on the Brazilian National AIDS Program and its policy of distrib-
University of California.
uting and producing antiretroviral drugs, emphasizing links between local decisions and global
140 Earl Warren Hall,
Berkeley, CA HIV/AIDS policies. Emphasizing recent developments in the Brazilian and international sce-
94720-7360, U.S.A. nario with regard to access to treatment for people with HIV/AIDS, the article highlights the par-
jgalvao@uclink.berkeley.edu
ticipation by the pharmaceutical industry, governments, civil society, and UN agencies in estab-
lishing responses to the pandemic. The author concludes by identifying transnational activism
as a key response to both the power of pharmaceutical corporations and the law of the market
(including patent laws), thus fostering global solidarity for people with HIV/AIDS.
Key words Acquired Immunodeficiency Syndrome; Drugs; Patents

Resumo Este artigo apresenta algumas considerações sobre o Programa Brasileiro de AIDS, no
que diz respeito à distribuição e produção de medicamentos anti-retrovirais, enfatizando as co-
nexões entre as decisões locais com as políticas globais de respostas frente à pandemia de HIV/
AIDS. Destacando os mais recentes desdobramentos no cenário brasileiro e internacional, no to-
cante a acesso a medicamentos para pessoas com HIV/AIDS, o artigo ressalta a participação da
indústria farmacêutica, de governos, da sociedade civil e de organismos do sistema das Nações
Unidas no estabelecimento de respostas frente à pandemia. O artigo conclui apontando o ativis-
mo transnacional como uma das respostas ao enfrentamento do poder das grandes corporações
farmacêuticas e das leis de mercado – incluindo aí a lei de patentes – impulsionando, desta for-
ma, uma solidariedade global para as pessoas com HIV/AIDS.
Palavras-chave Sindrome de Imunidefeciência Adquirida; Medicamentos; Patentes

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Introdução 1996 – após a XI Conferência Internacional de


AIDS, realizada em Vancouver, Canadá, onde a
Este texto apresenta uma abordagem prelimi- terapia tripla, popularmente conhecida como
nar sobre a política de medicamentos anti-re- “coquetel”, foi apresentada – é que a questão
trovirais (ARVs) no Brasil, e busca reunir alguns tomou a dimensão que conhecemos hoje. No
dos dados disponíveis sobre a questão – basi- Brasil, a Lei n o 9.313, de 13 de novembro de
camente provenientes da Coordenação Nacio- 1996 – de autoria do Senador José Sarney e as-
nal de Doenças Sexualmente Transmissíveis e sinada pelo Presidente da República, Fernando
AIDS (CNDST/AIDS), Ministério da Saúde (MS). Henrique Cardoso – tornou obrigatória a dis-
Neste sentido, este texto também visa analisar tribuição de medicamentos anti-HIV pelo sis-
a resposta brasileira frente à epidemia de HIV/ tema público de saúde (MS, 1999a).
AIDS, oferecendo uma contribuição para o de- A distribuição de medicamentos para AIDS,
bate sobre as respostas que levam a formas dis- além do aspecto financeiro, possui aspectos lo-
tintas de gerenciamento dessa epidemia. gísticos e estratégicos que em um país, com a
dimensão do Brasil, não podem ser minimiza-
dos. Cumpre destacar, que a existência de uma
O acesso gratuito e universal rede básica de serviços – apesar de todas as di-
para o tratamento em HIV/AIDS ficuldades – estruturada para oferecer atenção
à saúde de toda população brasileira, de forma
Uma das facetas mais conhecidas do programa gratuita, universal, integral e descentralizada
brasileiro de AIDS é a distribuição gratuita, e (Sistema Único de Saúde – SUS), a capacitação
universal, de ARVs para o tratamento do HIV/ de recursos humanos do SUS em diagnóstico e
AIDS na rede pública de saúde. Tal distribuição assistência em HIV/AIDS e o fortalecimento
é totalmente subsidiada pelo Tesouro Nacio- dos laboratórios públicos, foram elementos
nal, ou seja, faz parte do orçamento do MS. Mas, fundamentais para a implementação de uma
ao lado da distribuição, vem ganhando impor- rede de distribuição de medicamentos anti-
tância a produção nacional de medicamentos, HIV. Também importante é o estabelecimento
que é apresentada como uma estratégia funda- de critérios para a administração dos ARVs e,
mental para a manutenção do programa de no caso brasileiro, comitês assessores auxilia-
distribuição (MS, 2001a). Sobretudo a produ- ram o programa nacional de AIDS na elabora-
ção local dos ARVs deu destaque internacional ção de recomendações para o tratamento de
à forma como o Brasil está enfrentando a epi- adultos/adolescentes, incluindo gestantes e
demia (OXFAM, 2001; Rosenberg, 2001). crianças.
A ressalva acima, sobre quem está arcando Pelos pontos destacados, no caso brasilei-
com os custos do tratamento, é em virtude dos ro, o acesso aos medicamentos não pode estar
empréstimos do Banco Mundial ao Brasil – que desvinculado da existência de uma rede de ser-
beneficiam o programa nacional de AIDS – viços, incluindo exames laboratoriais e de pro-
mas tais empréstimos não são para a compra fissionais capazes de diagnosticar, tratar e aco-
de medicamentos anti-HIV. Os componentes lher o paciente de maneira adequada, o que
do Acordo de Empréstimo incluem, basica- possibilita que o medicamento seja dispensa-
mente, prevenção, vigilância epidemiológica e do de forma correta e segura. Igualmente im-
desenvolvimento institucional. O primeiro em- portante é o paciente se sentir apoiado pelo
préstimo, iniciado em 1993 e finalizado em profissional e pelo serviço de saúde que fre-
1998, foi da ordem de 160 milhões de dólares qüenta. Estes dois últimos pontos, segundo a
que, somado à contrapartida nacional de 90 experiência brasileira, são fundamentais para a
milhões de dólares, totalizou 250 milhões de adesão ao tratamento.
dólares. O segundo empréstimo, para o perío- Com um número total de notificações de
do de 1998 a 2002, está distribuído entre o Ban- 210.452 casos de AIDS (sendo que aproximada-
co Mundial, 165 milhões de dólares, e a contra- mente 50% já foram a óbito) acumulados de
partida nacional, de 135 milhões de dólares, to- 1980 até março de 2001 – 155.792 masculinos
talizando 300 milhões de dólares. (74%) e 54.660 (26%) femininos (MS, 2001b) – a
Em 1988, foi iniciada no Brasil, na rede pú- previsão é que em torno de noventa e oito mil
blica de saúde, de uma forma classificada co- pessoas estão recebendo a terapia anti-retrovi-
mo “tímida” em publicação da CNDST/AIDS, a ral no país (MS, 2001c), sendo que marcadores
distribuição de medicamentos para infecções laboratoriais e clínicos determinam o ingresso
oportunistas em pacientes com AIDS e, em do paciente no tratamento. Com relação aos
1991, começou a ser oferecida a terapia anti- custos, informações disponíveis mencionam
retroviral (MS, 1999a). Mas somente a partir de que a produção nacional de medicamentos

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conseguiu baixar o custo anual de um pacien- rapia anti-retroviral nas mortes das pessoas
te, com tratamento com ARV, de US$ 4,860, em com HIV/AIDS e nos custos do tratamento. Por
1997, para US$ 2,530, em 2001 (MS, 2001c). exemplo, foi observada com a administração
No caso brasileiro, para a distribuição dos dos ARVs, uma redução de aproximadamente
medicamentos contra a AIDS, vigora, até o mo- 54% do número de óbitos por AIDS no Municí-
mento, a regulamentação estabelecida “em pio de São Paulo e de 73% no do Rio de Janeiro,
agosto de 1998, sobre a divisão de gastos entre no período de 1995-2000 (MS, 2001c). Com re-
as diferentes esferas do governo, e que atribuiu à lação à redução dos custos das internações hos-
União a aquisição dos anti-retrovirais e a esta- pitalares e diminuição dos custos com o trata-
dos e municípios a aquisição de medicamentos mento das infecções oportunistas, a estimativa
necessários ao tratamento de manifestações as- de economia é da ordem de 677 milhões de dó-
sociadas à AIDS” (MS, 1999b:38-39). Na evolu- lares para o período 1997-2000 (MS, 2001c).
ção dos custos do MS com os ARVs temos os
seguintes números: 1996, 34 milhões de dóla-
res; 1997, 224 milhões de dólares; 1998, 305 mi- A produção nacional de medicamentos
lhões de dólares; 1999, 336 milhões de dólares; e a interseção com as políticas globais
2000, 303 milhões de dólares e para o ano de de AIDS
2001, os gastos estão estimados em 422 mi-
lhões de dólares (MS, 2001c). Em relação ao or- No que diz respeito à produção nacional, em
çamento do MS, os gastos com os anti-retrovi- 1999, 47% dos ARVs que corresponderam a 19%
rais corresponderam a: 0,2% em 1996; 1,2% em dos gastos, foram adquiridos de empresas na-
1997; 1,8% em 1998; 3,2% em 1999; 2,9% em cionais (92.5% de laboratórios estatais e 7.5%
2000 e está estimado em 2,9% para o ano de de privados) e 53% dos ARVs que correspondem
2001 (MS, 2001c). a 81% dos gastos, foram adquiridos de compa-
O custo, junto com questões como adesão e nhias multinacionais. Já no ano 2000, 56%, cor-
possíveis falhas no tratamento – tendo como respondendo a 41% dos gastos, foram para in-
uma das conseqüências mais discutidas o apa- dústria nacional e 44%, que corresponderam a
recimento de cepas de vírus mais resistentes – 59% dos gastos, para companhias farmacêuti-
são os principais argumentos dos que são con- cas internacionais (MS, 2001c). No momento, o
tra que os países chamados “em desenvolvi- Brasil estaria produzindo sete dos 13 ARVs usa-
mento” aloquem recursos financeiros para a dos no tratamento de pessoas com HIV/AIDS
compra de medicamentos, sobretudo os ARVs. no país (MS, 2001c). A política nacional de me-
A recomendação, vinda de organismos como o dicamentos anti-HIV também visa à transfe-
Banco Mundial, tem sido que tais países invis- rência para outros países de tecnologia em
tam mais em prevenção do que em tratamento produção, compra centralizada e logística (ar-
(World Bank, 1997). Ao mesmo tempo, recen- mazenamento e distribuição) de medicamen-
tes acontecimentos, como a Sessão Especial tos. No momento, segundo o MS, dada a limi-
em HIV/AIDS da Organização das Nações Uni- tação da capacidade de produção nacional, não
das (ONU), que aconteceu em junho de 2001, tem prioridade a adoção de estratégias de ven-
em Nova York (UN, 2001), e dados que revelam da para o mercado externo, “no entanto, pode-
que 90% do número de pessoas infectadas es- se avaliar a possibilidade de suprir necessida-
tão em países em desenvolvimento, estão le- des pontuais de países parceiros para a aquisi-
vando a que tal recomendação esteja sendo re- ção de medicamentos anti-retrovirais” (MS,
pensada (UN, 2001). 2000a:2).
Mas cumpre destacar, que a questão de co- Como parte do cenário no enfrentamento
mo tornar disponível os ARVs nos países afri- da pandemia de HIV/AIDS, um dos setores que
canos tem sido motivo de análises e, não so- vêm ganhando importância é a indústria far-
mente por parte de organismos como o Banco macêutica. O acesso aos ARVs remete aos cus-
Mundial. Pesquisadores apontam a anarquia tos que, por sua vez, remete à produção dos
que, eventualmente, poderia ocorrer em países medicamentos, à indústria farmacêutica e à lei
africanos dependendo da forma de distribui- de patentes, na sua interseção com as priorida-
ção dos medicamentos (Horton, 2000). Outros des nacionais e os interesses transnacionais.
reconhecem as dificuldades, mas buscam mo- Em destaque desde o início de 2001, a política
delos que possam tornar factível a distribuição brasileira de ARVs tem apresentado aspectos
(Harries et al., 2001). inovadores não somente por garantir a distri-
No caso brasileiro, há pelo menos, dois ar- buição gratuita e universal dos medicamentos,
gumentos para a manutenção da gratuidade e mas também, por estimular a produção nacio-
universalidade do tratamento: o impacto da te- nal de ARVs, assim como por posições contun-

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dentes no tocante à possibilidade da quebra aos preços dos medicamentos produzidos pe-
das patentes – ou seja, o licenciamento com- las grandes companhias farmacêuticas, e não
pulsório – de alguns medicamentos. Um dos somente os preços dos medicamentos para a
argumentos do Brasil para o licenciamento AIDS, colocando, como há muito tempo não se
compulsório menciona, por exemplo, os cus- via, uma questão de saúde pública no centro
tos exorbitantes cobrados pelas companhias do debate mundial.
farmacêuticas internacionais, o que poderia
comprometer a continuidade do programa bra-
sileiro de AIDS na garantia do tratamento das A participação local da sociedade civil
pessoas com HIV/AIDS (MS, 2001a; OXFAM, e o ativismo transnacional
2001). Em fevereiro de 2001, a questão de pa-
tentes ganhou as manchetes com notícias sen- No caso brasileiro, se a decisão de realizar a
do veiculadas na mídia mencionando a possi- distribuição dos medicamentos pode ser vista
bilidade do Brasil quebrar as patentes dos me- pelo ângulo técnico-político, para a sua manu-
dicamentos Nelfinavir, fabricado pela Roche, e tenção tem sido fundamental a mobilização da
Efavirenz, fabricado pela Merck, caso os labo- sociedade civil.
ratórios não reduzissem os preços (Paraguas- Em 1999, por questões de desvalorização
sú, 2001). Após intensas negociações, o MS cambial, a compra de medicamentos para AIDS
conseguiu a redução de cerca de 60% no preço e outras doenças quase foi suspensa, mas uma
do Efavirenz. mobilização em caráter nacional, das organi-
Ainda em fevereiro de 2001, os Estados Uni- zações da sociedade civil com atividades em
dos entraram com um pedido na Organização HIV/AIDS foi importante para garantir a libe-
Mundial do Comércio (OMC) contra o Brasil ração dos recursos financeiros necessários pa-
questionando “o inciso 1 do parágrafo 1o do ar- ra a manutenção da compra internacional dos
tigo 68 da lei brasileira de propriedade indus- medicamentos. Em 8 de setembro de 1999, as
trial, que permite o licenciamento compulsório entidades fizeram passeata nas ruas de diver-
de patente se o seu detentor ‘...exercer os direitos sas cidades brasileiras. Esta foi a principal es-
dela decorrentes de forma abusiva, ou por meio tratégia, mas também mensagens foram envia-
dela praticar abuso de poder econômico...’ (...). das para diversas autoridades brasileiras solici-
O Artigo 68 determina que somente poderá ser tando a liberação dos recursos.
concedida a licença compulsória a um produtor Em novembro de 2000, a compra de medi-
local após o prazo de 3 anos da data de registro camentos voltou a ficar comprometida pela
do produto. No processo (...) movido contra o possibilidade de falta de verba para o MS (Pa-
Brasil, o Governo norte-americano argumenta raguassú, 2000). Mais uma vez, os grupos co-
que este Artigo da lei brasileira estaria violando munitários se mobilizaram e os recursos foram
os artigos 27.1 e 28.1 do Acordo de TRIPS – acor- liberados. Uma das estratégias foi pedir que
do sobre Direitos de Propriedade Intelectual, fir- pessoas e entidades enviassem o maior núme-
mado pelo Brasil no âmbito da OMC” (MS, ro possível de e-mails para o Ministro da Fa-
2001a). Documentos sobre o tema podem ser zenda, Pedro Malan. Ao destacar a mobilização
encontrados na página da CNDST/AIDS <http: da sociedade civil, não quero afirmar que os re-
//www.aids.gov.br>, na seção Política Brasilei- cursos foram liberados somente porque as or-
ra para a Garantia do Acesso Universal aos Me- ganizações reivindicaram. Mas, não apenas no
dicamentos para AIDS. Para uma visão geral so- caso brasileiro, cumpre ressaltar a importância
bre questões relativas a patentes ver Macedo & do movimento social organizado como um
Barbosa (2000), OXFAM (2001) e UNAIDS/WHO componente, da maior relevância, na imple-
(2000a). mentação, ampliação e manutenção das res-
O resultado do painel da OMC, que sur- postas em HIV/AIDS.
preendeu a quase todos, foi a retirada da quei- Nesse sentido, uma das lições da resposta
xa, em junho, pelos Estados Unidos (Ashraf, global frente à pandemia de HIV/AIDS é a mo-
2001; Crossete, 2001). Mas cumpre destacar, bilização e a participação da sociedade civil co-
que a lei de propriedade industrial brasileira, mo parte fundamental das respostas nacionais
de 1996, foi resultado da nova legislação inter- e internacionais (Galvão, 2000). No Brasil, além
nacional sobre a questão e que, apesar de to- da participação da sociedade civil, também
das as ameaças do MS, até o momento que o ocorre o envolvimento das pessoas com HIV/
caso brasileiro foi levado a julgamento na OMC AIDS que desde o final da década de 80 – se-
nenhuma patente de ARVs havia sido violada. guindo uma tendência internacional – criaram
Mas a disputa na OMC revelou, mais do que organizações e espaços que deram corpo e voz
tudo, aspectos importantes no que diz respeito às reivindicações das pessoas soropositivas. Ao

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mesmo tempo, no caso brasileiro, a participa- Lucro x vida


ção dessas organizações em instâncias de con-
trole social, como o Conselho Nacional de Saú- Com um total global de casos estimados de
de e a Comissão Nacional de AIDS, além de en- pessoas com HIV/AIDS de 36.1 milhões, sendo
tidades estaduais e municipais e a criação de que 5,3 milhões de novos casos no ano 2000
fóruns de organizações não-governamentais (UNAIDS/WHO, 2000b), começando a ser tra-
sobre AIDS (ONG/AIDS) e de redes de pessoas tada pela ONU na esfera dos assuntos de segu-
com HIV/AIDS, em muito tem contribuído pa- rança mundial, a pandemia de HIV/AIDS entra
ra a manutenção e expansão dos direitos das no século XXI, sem uma solução que consiga
pessoas vivendo com HIV/AIDS no Brasil, as- equacionar justiça social e direitos humanos
sim como para a continuidade da resposta go- com as leis de mercado e os interesses transna-
vernamental para a epidemia. cionais e está relacionada, cada vez mais, com
É possível apontar que se na década de 80 pobreza e sendo apontada como fator de de-
foi de extrema importância a mobilização da sestabilidade para alguns países, sobretudo os
sociedade civil para forçar os governos a im- africanos. Como exemplo das implicações é
plantarem iniciativas de prevenção, desde mea- possível citar a 4.172a Reunião do Conselho de
dos da década de 90, está sendo cada vez mais Segurança da ONU, realizada em 17 de julho de
premente o envolvimento da sociedade civil 2000, onde foi adotada a Resolução 1.308/2000,
organizada e das pessoas com HIV/AIDS em que coloca a AIDS como uma questão de segu-
ações relativas a acesso a medicamentos anti- rança global (UN, 2000).
HIV. Mas, mais recentemente, à luta do acesso Ao mesmo tempo, esforços são feitos mas
ao tratamento anti-retroviral foi somada uma ainda não são suficientes para lançar estraté-
nova área, que impulsionou o que é possível gias eficazes de prevenção e tratamento para
denominar de ativismo transnacional: paten- os países africanos, por exemplo, e em países
tes (Stolberg, 2001). No século XXI, ativistas de como o Brasil é uma incógnita até quando será
todo o mundo clamando por justiça global e possível manter o equilíbrio entre direitos so-
soberania nacional para a produção local de ciais e o que, muitas vezes, é classificado como
medicamentos – o que, na prática, poderia im- privilégio. Este último ponto, tanto diz respeito
plicar na quebra de patentes dos medicamen- ao programa de distribuição dos ARVs que,
tos – fazem com que a pandemia de HIV/AIDS apesar de ganhar cada vez mais legitimidade,
seja recolocada em um lugar de onde ela nun- fica algumas vezes, internamente ameaçado –
ca saiu e que é marcado pela injustiça, desi- como aconteceu em 1999 e voltou a ocorrer em
gualdade e opressão social. novembro de 2000 – quanto à disputa com a in-
Como exemplo da mobilização comunitá- dústria farmacêutica, no que diz respeito a pre-
ria transnacional, pode ser citado o dia 5 de ços, sobretudo considerando o aparecimento
março de 2001, declarado “Dia Global de Ação”, de novos medicamentos.
data em que, em diferentes cidades ao redor do O que quero destacar é que o curso da epi-
mundo, ativistas fizeram manifestações não demia está sendo, cada vez mais, determinado
somente sobre acesso a medicamentos, mas por questões de mercado, como muito clara-
também, no que diz respeito a patentes. Um mente ilustra o confronto de governos e ativis-
dos motivos para a manifestação foi o julga- tas com a indústria farmacêutica. Mas não po-
mento, que aconteceria na África do Sul, onde demos esquecer que o mercado sempre esteve
39 companhias farmacêuticas moviam uma presente na pandemia de HIV/AIDS, vide a dis-
ação na Suprema Corte contra o Governo sul- puta pela paternidade da descoberta do HIV,
africano pela possibilidade da quebra de pa- na década de 80, entre Robert Gallo (Instituto
tentes para a produção local de ARVs e a com- Nacional do Câncer, Estados Unidos) e Luc
pra de medicamentos, a preços mais baixos, de Montagnier (Instituto Pasteur, França). Tal dis-
outros países. Dada a pressão exercida, sobre- puta – que estava relacionada à comercializa-
tudo por ativistas de ONGs, e campanhas de- ção do teste – foi resolvida através de um acor-
sencadeadas por organizações como OXFAM do, assinado em Washington DC, Estados Uni-
(The Oxford Committee for Famine Relief) e dos, em 1987, entre o presidente norte-ameri-
Médicos sem Fronteiras, o julgamento marca- cano Ronald Reagan e o primeiro-ministro
do para março, foi adiado para abril. No dia 19 francês Jacques Chirac e determinou que os lu-
de abril de 2001, as 39 companhias farmacêuti- cros da produção e comercialização dos testes
cas, em uma decisão considerada inédita, deci- seriam distribuídos entre franceses e norte-
diram interromper o processo judicial que mo- americanos.
viam contra o governo da África do Sul (Baleta, Mas, recentes acontecimentos sinalizam
2001). que alguma coisa está mudando. A 57a Sessão

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da Comissão de Direitos Humanos da ONU, a necessidade de realocar mais recursos finan-


que ocorreu em Genebra, aprovou em 23 de ceiros para prevenção e tratamento (Attaran &
abril de 2001, com 52 votos a favor, nenhum Sachs, 2001). Modelos de gerenciamento da
contra e uma abstenção dos Estados Unidos, a epidemia que desconhecem o fator humano e
Resolução, proposta pelo Brasil, intitulada se atrelam somente aos lucros – como ocorrem
Acesso a Medicamentos no Contexto de Pande- em alguns empréstimos e nas grandes corpo-
mias como o HIV/AIDS. Com a aprovação de tal rações farmacêuticas (OXFAM, 2001) – podem
resolução, que não tem caráter de lei, a Comis- não favorecer à implantação de políticas públi-
são reconhece o acesso a medicamentos como cas de saúde que, no caso de uma pandemia
elemento fundamental para a realização do di- como a de HIV/AIDS, está dizimando popula-
reito humano à saúde (MS, 2001d). ções inteiras.
Ao mesmo tempo, a questão de acesso aos No que diz respeito ao Brasil, o que pode
medicamentos anti-HIV mostra um mundo ser destacado é que a resposta nacional para a
onde as escolhas e o empoderamento indivi- epidemia – aqui incluindo tanto o governo
dual – apesar de importantes – contam muito quanto a sociedade civil – na questão de aces-
pouco. No que diz respeito aos ARVs, as evi- so a medicamentos anti-HIV tem demonstrado
dências indicam, por um lado, a relevância da que é possível mesclar decisões financeiras e
participação da comunidade no seu sentido garantia dos direitos individuais e coletivos, no
mais amplo e, por outro lado, que ou as pes- enfrentamento de uma questão de saúde pú-
soas com HIV/AIDS têm acesso aos medica- blica. Como diferentes análises mencionam, a
mentos ou morrem. pandemia de HIV/AIDS é uma questão de saú-
Essas são algumas das escolhas e desafios de pública e revela, cada vez mais, a conexão e
que a pandemia de HIV/AIDS coloca no século sinergia com pobreza e desenvolvimento (Bas-
XXI, sendo que o poder das empresas transna- tos & Szwarcwald, 2000; Farmer, 1999; Kalich-
cionais, como a indústria farmacêutica, requer man, 1994; Parker & Camargo, 2000; Souza,
a formulação de novas estratégias e o estabele- 2000; UNAIDS/World Bank, 2001). No caso bra-
cimento de novas parcerias. Nesse sentido, o sileiro, mesmo a pauperização – junto com a
comprometimento de governos, da sociedade feminização e a interiorização – sendo reco-
civil organizada, do setor privado e das agên- nhecida pelo Programa Brasileiro de AIDS co-
cias de fomento e cooperação internacional na mo tendência da epidemia (MS, 2000b) ainda
elaboração de respostas coordenadas frente à precisa, como destacam alguns autores, da ela-
pandemia de HIV/AIDS, mais do que uma ne- boração de referênciais conceituais que permi-
cessidade é uma imposição. Mas, mais do que tam avançar tanto em pesquisa quanto em for-
tudo, o que está em jogo são novos modelos de mas de ação (Bastos & Szwarcwald, 2000; Par-
gerenciamento da epidemia, tanto local quan- ker & Camargo, 2000). Ao mesmo tempo, como
to globalmente. Tal aspecto pode ser observa- evidente nos aspectos relacionados a acesso
do tanto na reflexão sobre os empréstimos des- aos medicamentos anti-retrovirais, o atual qua-
tinados aos países que estão sendo duramente dro da pandemia aponta para as desigualdades
atingidos pela epidemia de HIV/AIDS (Anony- impostas pelas políticas globais de gerencia-
mous, 2001), quanto nas análises que mostram mento dos bens econômicos.

Agradecimentos

Agradeço a leitura do texto e as sugestões de Carlos


Passarelli e Juan Carlos de la Concepción Raxach (As-
sociação Brasileira Interdisciplinar de AIDS – ABIA);
Daniel Hoffman (Departament of Anthropology, Uni-
versity of California, Berkeley – UC Berkeley); Francis-
co Inácio Bastos (Fundação Oswaldo Cruz); e Marco
Antônio de Ávila Vitória (Coordenação Nacional de
DST/AIDS – CNDST/AIDS). Flávio Guilherme de Sou-
za Pontes (CNDST/AIDS) e Aline Moreira Lopes (ABIA)
pelo envio de matérias jornalísticas relativas ao tema.
Agradeço o apoio da Fogarty International AIDS Trai-
ning Program (UC Berkeley), Grant Number 1-D43-
TW00003, agradecimento que estendo à Arthur Rein-
gold, Diane Hinkly, Juanita Cook e Susan Meyer
(School of Public Health, UC Berkeley).

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ACESSO A MEDICAMENTOS PARA AIDS NO BRASIL 219

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