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Jane Galvão 1
1 School of Public Health, Abstract This article focuses on the Brazilian National AIDS Program and its policy of distrib-
University of California.
uting and producing antiretroviral drugs, emphasizing links between local decisions and global
140 Earl Warren Hall,
Berkeley, CA HIV/AIDS policies. Emphasizing recent developments in the Brazilian and international sce-
94720-7360, U.S.A. nario with regard to access to treatment for people with HIV/AIDS, the article highlights the par-
jgalvao@uclink.berkeley.edu
ticipation by the pharmaceutical industry, governments, civil society, and UN agencies in estab-
lishing responses to the pandemic. The author concludes by identifying transnational activism
as a key response to both the power of pharmaceutical corporations and the law of the market
(including patent laws), thus fostering global solidarity for people with HIV/AIDS.
Key words Acquired Immunodeficiency Syndrome; Drugs; Patents
Resumo Este artigo apresenta algumas considerações sobre o Programa Brasileiro de AIDS, no
que diz respeito à distribuição e produção de medicamentos anti-retrovirais, enfatizando as co-
nexões entre as decisões locais com as políticas globais de respostas frente à pandemia de HIV/
AIDS. Destacando os mais recentes desdobramentos no cenário brasileiro e internacional, no to-
cante a acesso a medicamentos para pessoas com HIV/AIDS, o artigo ressalta a participação da
indústria farmacêutica, de governos, da sociedade civil e de organismos do sistema das Nações
Unidas no estabelecimento de respostas frente à pandemia. O artigo conclui apontando o ativis-
mo transnacional como uma das respostas ao enfrentamento do poder das grandes corporações
farmacêuticas e das leis de mercado – incluindo aí a lei de patentes – impulsionando, desta for-
ma, uma solidariedade global para as pessoas com HIV/AIDS.
Palavras-chave Sindrome de Imunidefeciência Adquirida; Medicamentos; Patentes
conseguiu baixar o custo anual de um pacien- rapia anti-retroviral nas mortes das pessoas
te, com tratamento com ARV, de US$ 4,860, em com HIV/AIDS e nos custos do tratamento. Por
1997, para US$ 2,530, em 2001 (MS, 2001c). exemplo, foi observada com a administração
No caso brasileiro, para a distribuição dos dos ARVs, uma redução de aproximadamente
medicamentos contra a AIDS, vigora, até o mo- 54% do número de óbitos por AIDS no Municí-
mento, a regulamentação estabelecida “em pio de São Paulo e de 73% no do Rio de Janeiro,
agosto de 1998, sobre a divisão de gastos entre no período de 1995-2000 (MS, 2001c). Com re-
as diferentes esferas do governo, e que atribuiu à lação à redução dos custos das internações hos-
União a aquisição dos anti-retrovirais e a esta- pitalares e diminuição dos custos com o trata-
dos e municípios a aquisição de medicamentos mento das infecções oportunistas, a estimativa
necessários ao tratamento de manifestações as- de economia é da ordem de 677 milhões de dó-
sociadas à AIDS” (MS, 1999b:38-39). Na evolu- lares para o período 1997-2000 (MS, 2001c).
ção dos custos do MS com os ARVs temos os
seguintes números: 1996, 34 milhões de dóla-
res; 1997, 224 milhões de dólares; 1998, 305 mi- A produção nacional de medicamentos
lhões de dólares; 1999, 336 milhões de dólares; e a interseção com as políticas globais
2000, 303 milhões de dólares e para o ano de de AIDS
2001, os gastos estão estimados em 422 mi-
lhões de dólares (MS, 2001c). Em relação ao or- No que diz respeito à produção nacional, em
çamento do MS, os gastos com os anti-retrovi- 1999, 47% dos ARVs que corresponderam a 19%
rais corresponderam a: 0,2% em 1996; 1,2% em dos gastos, foram adquiridos de empresas na-
1997; 1,8% em 1998; 3,2% em 1999; 2,9% em cionais (92.5% de laboratórios estatais e 7.5%
2000 e está estimado em 2,9% para o ano de de privados) e 53% dos ARVs que correspondem
2001 (MS, 2001c). a 81% dos gastos, foram adquiridos de compa-
O custo, junto com questões como adesão e nhias multinacionais. Já no ano 2000, 56%, cor-
possíveis falhas no tratamento – tendo como respondendo a 41% dos gastos, foram para in-
uma das conseqüências mais discutidas o apa- dústria nacional e 44%, que corresponderam a
recimento de cepas de vírus mais resistentes – 59% dos gastos, para companhias farmacêuti-
são os principais argumentos dos que são con- cas internacionais (MS, 2001c). No momento, o
tra que os países chamados “em desenvolvi- Brasil estaria produzindo sete dos 13 ARVs usa-
mento” aloquem recursos financeiros para a dos no tratamento de pessoas com HIV/AIDS
compra de medicamentos, sobretudo os ARVs. no país (MS, 2001c). A política nacional de me-
A recomendação, vinda de organismos como o dicamentos anti-HIV também visa à transfe-
Banco Mundial, tem sido que tais países invis- rência para outros países de tecnologia em
tam mais em prevenção do que em tratamento produção, compra centralizada e logística (ar-
(World Bank, 1997). Ao mesmo tempo, recen- mazenamento e distribuição) de medicamen-
tes acontecimentos, como a Sessão Especial tos. No momento, segundo o MS, dada a limi-
em HIV/AIDS da Organização das Nações Uni- tação da capacidade de produção nacional, não
das (ONU), que aconteceu em junho de 2001, tem prioridade a adoção de estratégias de ven-
em Nova York (UN, 2001), e dados que revelam da para o mercado externo, “no entanto, pode-
que 90% do número de pessoas infectadas es- se avaliar a possibilidade de suprir necessida-
tão em países em desenvolvimento, estão le- des pontuais de países parceiros para a aquisi-
vando a que tal recomendação esteja sendo re- ção de medicamentos anti-retrovirais” (MS,
pensada (UN, 2001). 2000a:2).
Mas cumpre destacar, que a questão de co- Como parte do cenário no enfrentamento
mo tornar disponível os ARVs nos países afri- da pandemia de HIV/AIDS, um dos setores que
canos tem sido motivo de análises e, não so- vêm ganhando importância é a indústria far-
mente por parte de organismos como o Banco macêutica. O acesso aos ARVs remete aos cus-
Mundial. Pesquisadores apontam a anarquia tos que, por sua vez, remete à produção dos
que, eventualmente, poderia ocorrer em países medicamentos, à indústria farmacêutica e à lei
africanos dependendo da forma de distribui- de patentes, na sua interseção com as priorida-
ção dos medicamentos (Horton, 2000). Outros des nacionais e os interesses transnacionais.
reconhecem as dificuldades, mas buscam mo- Em destaque desde o início de 2001, a política
delos que possam tornar factível a distribuição brasileira de ARVs tem apresentado aspectos
(Harries et al., 2001). inovadores não somente por garantir a distri-
No caso brasileiro, há pelo menos, dois ar- buição gratuita e universal dos medicamentos,
gumentos para a manutenção da gratuidade e mas também, por estimular a produção nacio-
universalidade do tratamento: o impacto da te- nal de ARVs, assim como por posições contun-
dentes no tocante à possibilidade da quebra aos preços dos medicamentos produzidos pe-
das patentes – ou seja, o licenciamento com- las grandes companhias farmacêuticas, e não
pulsório – de alguns medicamentos. Um dos somente os preços dos medicamentos para a
argumentos do Brasil para o licenciamento AIDS, colocando, como há muito tempo não se
compulsório menciona, por exemplo, os cus- via, uma questão de saúde pública no centro
tos exorbitantes cobrados pelas companhias do debate mundial.
farmacêuticas internacionais, o que poderia
comprometer a continuidade do programa bra-
sileiro de AIDS na garantia do tratamento das A participação local da sociedade civil
pessoas com HIV/AIDS (MS, 2001a; OXFAM, e o ativismo transnacional
2001). Em fevereiro de 2001, a questão de pa-
tentes ganhou as manchetes com notícias sen- No caso brasileiro, se a decisão de realizar a
do veiculadas na mídia mencionando a possi- distribuição dos medicamentos pode ser vista
bilidade do Brasil quebrar as patentes dos me- pelo ângulo técnico-político, para a sua manu-
dicamentos Nelfinavir, fabricado pela Roche, e tenção tem sido fundamental a mobilização da
Efavirenz, fabricado pela Merck, caso os labo- sociedade civil.
ratórios não reduzissem os preços (Paraguas- Em 1999, por questões de desvalorização
sú, 2001). Após intensas negociações, o MS cambial, a compra de medicamentos para AIDS
conseguiu a redução de cerca de 60% no preço e outras doenças quase foi suspensa, mas uma
do Efavirenz. mobilização em caráter nacional, das organi-
Ainda em fevereiro de 2001, os Estados Uni- zações da sociedade civil com atividades em
dos entraram com um pedido na Organização HIV/AIDS foi importante para garantir a libe-
Mundial do Comércio (OMC) contra o Brasil ração dos recursos financeiros necessários pa-
questionando “o inciso 1 do parágrafo 1o do ar- ra a manutenção da compra internacional dos
tigo 68 da lei brasileira de propriedade indus- medicamentos. Em 8 de setembro de 1999, as
trial, que permite o licenciamento compulsório entidades fizeram passeata nas ruas de diver-
de patente se o seu detentor ‘...exercer os direitos sas cidades brasileiras. Esta foi a principal es-
dela decorrentes de forma abusiva, ou por meio tratégia, mas também mensagens foram envia-
dela praticar abuso de poder econômico...’ (...). das para diversas autoridades brasileiras solici-
O Artigo 68 determina que somente poderá ser tando a liberação dos recursos.
concedida a licença compulsória a um produtor Em novembro de 2000, a compra de medi-
local após o prazo de 3 anos da data de registro camentos voltou a ficar comprometida pela
do produto. No processo (...) movido contra o possibilidade de falta de verba para o MS (Pa-
Brasil, o Governo norte-americano argumenta raguassú, 2000). Mais uma vez, os grupos co-
que este Artigo da lei brasileira estaria violando munitários se mobilizaram e os recursos foram
os artigos 27.1 e 28.1 do Acordo de TRIPS – acor- liberados. Uma das estratégias foi pedir que
do sobre Direitos de Propriedade Intelectual, fir- pessoas e entidades enviassem o maior núme-
mado pelo Brasil no âmbito da OMC” (MS, ro possível de e-mails para o Ministro da Fa-
2001a). Documentos sobre o tema podem ser zenda, Pedro Malan. Ao destacar a mobilização
encontrados na página da CNDST/AIDS <http: da sociedade civil, não quero afirmar que os re-
//www.aids.gov.br>, na seção Política Brasilei- cursos foram liberados somente porque as or-
ra para a Garantia do Acesso Universal aos Me- ganizações reivindicaram. Mas, não apenas no
dicamentos para AIDS. Para uma visão geral so- caso brasileiro, cumpre ressaltar a importância
bre questões relativas a patentes ver Macedo & do movimento social organizado como um
Barbosa (2000), OXFAM (2001) e UNAIDS/WHO componente, da maior relevância, na imple-
(2000a). mentação, ampliação e manutenção das res-
O resultado do painel da OMC, que sur- postas em HIV/AIDS.
preendeu a quase todos, foi a retirada da quei- Nesse sentido, uma das lições da resposta
xa, em junho, pelos Estados Unidos (Ashraf, global frente à pandemia de HIV/AIDS é a mo-
2001; Crossete, 2001). Mas cumpre destacar, bilização e a participação da sociedade civil co-
que a lei de propriedade industrial brasileira, mo parte fundamental das respostas nacionais
de 1996, foi resultado da nova legislação inter- e internacionais (Galvão, 2000). No Brasil, além
nacional sobre a questão e que, apesar de to- da participação da sociedade civil, também
das as ameaças do MS, até o momento que o ocorre o envolvimento das pessoas com HIV/
caso brasileiro foi levado a julgamento na OMC AIDS que desde o final da década de 80 – se-
nenhuma patente de ARVs havia sido violada. guindo uma tendência internacional – criaram
Mas a disputa na OMC revelou, mais do que organizações e espaços que deram corpo e voz
tudo, aspectos importantes no que diz respeito às reivindicações das pessoas soropositivas. Ao
Agradecimentos
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