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O SUJEITO LIRICO FORA DE SI Michel Collot* Traducao Alberto Pucheu Colocando o sujeito lirico fora de si, afasto-me de toda uma tradicao que, certamente, tem uma de suas origens e maiores expressdes na teoria hegeliana do lirismo, concebida, por oposicao a poesia épica, como “expres- sao da subjetividade como tal [...], e nao de um objeto exterior”!. Segundo Hegel, 0 poeta lirico constitui “um mundo subjetivo fechado e circunscri- to”, “fechado em si mesmo”. “As circunstancias exteriores” lhe sio apenas “um pretexto” “para ele, com seu proprio estado de alma, expressar-se”. Hegel admite, entretanto, que uma tal mediacao possa ser titil, até indispensdvel: “O elemento subjetivo da poesia lirica se sobressai de maneira mais explicita quando um acontecimento real, uma situacao real, se oferece ao poeta [...], como se essa circunstancia ou esse acontecimento fizesse vir 4 tona seus sen- timentos ainda latentes”!. Esses estados de alma estéo tao profundamente escondidos na intimidade do sujeito que, paradoxalmente, nao podem se revelar sendo se projetando para fora: assim, nos “povos do norte”, “a interio- ridade, concentrada e reunida sobre si mesma, se serve freqiientemente dos objetos inteiramente exteriores para fazer compreender que a alma compri- mida nao pode se expressar”®. Além disso, um lirismo sublime como o dos salmistas “sup6e um ser fora de si”®. Minha hipotese é que uma tal saida de si nao é uma simples excecao, mas, pelo menos para a modernidade, a regra. Desalojando o sujeito lirico dessa pura interioridade, e, assim, desti- nando-o a sua morada, nao pretendo, entretanto, seguir apenas e simples- mente a modernidade, que parece o consagrar a errancia e @ desaparicao. Gostaria de me perguntar se a propria verdade nao reside precisamente em uma tal saida, que pode ser tanto ek-stase quanto exilio, e se a recente deca- déncia do sujeito lirico nao Ihe daria uma nova chance. * Um dos excelentes pensadores franceses atuais de poesia, Publicou La Posie Modeme et la Structure horizon, Espace et potsie, Chaosmos, entre outros. 165 166 + Michel Collot Estar fora de sié ter perdido o controle de seus movimentos interiores e, a partir dai, ser projetado em direcao ao exterior. Esses dois sentidos da ex- presséo me parecem constitutivos da emocao lirica: 0 transporte e a deporta- cdo que porta o sujeito ao encontro do que transborda de si e para fora de si. Pelo menos desde Platao, sabe-se que o sujeito lirico nao se possui, na medi- da em que ele é possuido por uma instancia ao mesmo tempo a mais intima de si e radicalmente estrangeira. Essa possessdo e esse desapossamento so tradicionalmente referidos a acao de um Outro, quer se trate, no lirismo mistico ou erético, de um deus ou do ser amado, no lirismo elegiaco, a aco do Tempo, ou ao chamado do mundo que arrebata o poeta césmico. Essa aco nao se separa da que exerce o préprio canto, que mais se apodera do poeta do que dele proprio emana. Fazendo a experiéncia de seu pertencimento ao outro — ao tempo, ao mundo ou 4 linguagem -, 0 sujeito lirico cessa de pertencer a si. Longe de ser © sujeito soberano da palavra, ele se encontra sujeito a ela e a tudo o que o inspira. Ha uma passividade fundamental na posi¢ao lirica, que pode ser similar a uma submissao. Sem poder mais se sustentar em um fundamento transcendente ou trans- cendental, nao seria esse arrebatamento em direco ao outro uma pura e simples alienacao? Sem poder mais cantar Deus ou o Ser ideal através das palavras e das maravilhas tanto da criacdo quanto da criatura, 0 sujeito que se precipita para fora de si se encontra lancado em um mundo e em uma lin- guagem desencantados. A transcendéncia nao era senao a mascara de uma contingéncia, de uma ilusao lirica. Ceder ao canto e ao éxtase nao é se deixar embalar pela lingua, entregar-se ao mundo e aos outros? Portanto, nada de tao brilhante assim, nao havendo motivos para sair por ai bradando sua sub- serviéncia. Talvez seja nessa alienacdo, precisamente ao se distinguir de um eu que sempre se quis idéntico a si mesmo e senhor de si e do universo, que 0 sujeito lirico pode se realizar: nao é na pretensao de sua-majestade-o-Eu a autono- mia que reside a pior ilusao? A verdade do sujeito nao se constitui em uma relacéo intima com a alteridade? Perdendo sua caucao transcendente, 0 ek- stase lirico se depara, em muitos pontos, com a redefinicao do sujeito pelo pensamento contemporaneo. Reinterpretado, o lirismo pode aparecer como um dos modos de expressao possiveis e legitimos do sujeito moderno. A meu ver, uma das vias mais fecundas de uma tal reinterpretacéo da subjetividade lirica é a da fenomenologia, que nao considera mais 0 sujeito em termos de substancia, de interioridade e de identidade, mas em sua rela- ( suerro utco FoR oe si * 167 co constitutiva com um fora que, especialmente em sua versao existencial, o altera, colocando a acentuacao em sua ek-sistence, em seu ser no mundo e para outro. Privilegiarei mais particularmente o pensamento de Merleau- Ponty — como a poesia moderna, ele leva a sério a encarnacao do sujeito. A nogao de carne permite pensar conjuntamente seus pertencimentos ao mun- do, ao outro, a linguagem, nao sob o modo de exterioridade, mas como uma relacao de inclusao reciproca. E pelo corpo que 0 sujeito se comunica com a carne do mundo, abra- cando-a e sendo por ela abracado. Ele abre um horizonte que o engloba e 0 ultrapassa. Ele 6, simultaneamente, vidente e visivel, sujeito de sua visao e sujeito a visio do outro, corpo proprio e, entretanto, impréprio, participan- do de uma complexa intercorporeidade que fundamenta a intersubjetividade que se desdobra na palavra, que 6, para Merleau-Ponty, ela mesma, um gesto do corpo. O sujeito nao pode se exprimir senao através dessa carne sutil que éa linguagem, doadora de corpo a seu pensamento, mas que permanece um corpo estrangeiro. Dada essa tripla pertenca a uma carne que propriamente nao lhe per- tence, 0 sujeito encarnado nao sabera se pertencer completamente. A cega tarefa do corpo e do horizonte o impede de acessar uma plena e inteira consciéncia de si mesmo. Sua abertura ao mundo e ao outro o torna um estranho “por dentro — por fora”’. Ele nao pode, entao, reaver sua verdade mais intima pelas vias da reflexao e da introspeccao. E fora de si que ele a pode encontrar. Talvez, a e-mocio lirica apenas prolongue ou reapresente esse movimento que constantemente porta e deporta 0 sujeito em direcdo a seu fora, através do qual ele pode ek-sistire se exprimir. E apenas saindo de si que ele coincide consigo mesmo, nao como uma identidade, mas como uma ipseidade que, ao invés de excluir, inclui a alteridade, conforme foi bem mostrado por Ricoeur®, nao para se contemplar em um narcisismo do eu, mas para realizar-se como um outro. O poema lirico sera esse objeto verbal gracas ao qual o sujeito chega a dar consisténcia a sua emocao. Em um aforismo de Moulin premier, René Char disse admiravelmente: Audécia de, num instante, ser si mesmo a forma realizada do poema. Instantaneamen- te, reina o bem-estar de ter entrevisto cintilar a matéria-emocao’. O sujeito lirico vira a ser “si mesmo” apenas através “da forma realizada do poema”, que encarna sua emocao em uma matéria que 6 ao mesmo tem- po do mundo e de palavras: “Como vocé sabe, o sentimento”, escreveu em

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