Exerccio de colagem

Anglica olha no espelho, repara numa pequena ruga no canto do olho e tenta se recordar de
quando ela aparecera ali. Completava hoje 30 anos mas no sentia vontade de comemorar.

Sentou-se no ltimo degrau da escada, o encontro ontem com a me no correra bem, e isso
afectara-a mais do que o habitual. No compreendia o porque, mas nada do que fazia era o
suficiente para ela, sempre fora assim, desde pequena, anglica fora educada de modo a ser a
mais perfeita possvel, tinha de estar sempre impecavelmente vestida, as notas tinham de ser as
melhores da turma, tinha de ser a mais magra, a mais bonita, a mais inteligente. E por mais que
ela tentasse manter todos esses padres no nvel mais elevado, no era o suficiente, a me era um
ser impossvel de agradar, era to frustrante, e isso irritava-a tanto.

Por mais que j tivesse prometido a si mesma no se importar com as crticas severas daquela
mulher, no conseguia. Quando saiu da casa da me estava agoniada, como algo tivesse preso na
garganta, um aperto no peito, um desconforto horrvel.

Foi directa ao centro comercial, sabia exactamente o que ia fazer ali, s conhecia uma forma de se
livrar daquela angstia que lhe apertava o peito. Na montra, vi-o, cor-de-rosa elctrico vivssimo,
com dois laarotes enormes um preto com bolinhas e o outro rosa, saltos altssimos e finos, o par
de sapatos mais fofos (e pindricos) que Anglica j tinha visto. Tinha de os ter. Pouco importava o
preo. E pouco importava se nem sequer os ia usar. Precisava deles e pronto.

Hoje sentada na escada, recordava o alvio q sentiu depois de os pagar, era como se todos os
problemas tivessem acabado depois de passar o carto na maquineta. Desde que teve o seu
primeiro emprego era sempre assim, sempre que a me no correspondia aos seus afectos ou lhe
fazia uma crtica muito severa (por veze sem motivo algum), comprava sapatos. Um ciclo vicioso
do qual nunca conseguira se livrar.
No entanto, a sensao de alvio era passageira. E to intil como algum tentar se aquecer com
um nico fosforo numa noite de inverno. Anglica sabia isso, mas no conseguia mudar. E hoje,
mais que nunca, se sentia ftil.