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O lugar da subjetividade no espaço escolar

Alice Marques

RESUMO: Este trabalho versa sobre as questões subjetivas no âmbito das relações interpessoais
implicadas no contexto escolar. Considera-se subjetividade, no presente trabalho, como um sistema
organizador e articulador dos sentidos produzidos pelos sujeitos nas situações diversas (González
Rey, 2005a). Os recursos metodológicos utilizados foram baseados na Epistemologia Qualitativa
de González Rey (2005b). Para o diálogo teórico, recorri a Berger e Luckmann (2008) e González
Rey (2005a, 2005b, 2006), sempre orbitando na esfera da subjetividade. A pesquisa teve a
colaboração de uma violista, 38 anos, que contribuiu com memórias de sua história escolar. A
principal questão levantada dentro da produção de sentidos subjetivos em âmbito escolar pontuou
aspectos da interação e comunicação, sob a forma de gestos e palavras entre professor e aluno.
Como produção interpretativa ressalta-se: modelos pedagógicos que descuidam da subjetividade do
aluno podem comprometer o desenvolvimento deste frente ao conhecimento e a si próprio. A
pesquisadora reflete ainda que ignorar o subjetivo nas relações escolares faz negar a escola como
espaço socializador e humanizante. Essa condição somente será resgatada se a escola puder se
comprometer com a construção de significados de valia social.
Palavras-chave: subjetividade, sentidos subjetivos, aula de música.

ABSTRACT: This paper deals with the subjective questions involved interpersonal relationships
involved in the school context. The present work considers subjectivity to be an organizer and
articulator of meaning produced by subjects in different situations (González Rey, 2005a). The
methodological resources used were based on Qualitative Epistemology González Rey (2005b).
For the theoretical dialogue, I employ Berger and Luckmann (2008) and González Rey (2005a,
2005b, 2006), always focusing on the sphere of subjectivity. The research involved the
collaboration of a 38 year-old violinist who contributed his/her memories of his/her schooling. The
main issue raised in the production of meaning at the school pointed to subjective aspects of
interaction and communication in the form of gestures and words between the teachers and
students. Among the interpretative conclusions are that pedagogical models that neglect the
subjectivity of the student may compromise his or her development of knowledge and of
subjectivity itself. The researcher also reflects that ignoring the subjective in school relationships
denies that the school is a socializing and humanizing space. This condition will only be salvaged if
the school engages with the construction of meanings of social value.
Keywords: subjectivity, subjective senses, music lesson.

Introdução

Este trabalho foi baseado em uma monografia de disciplina, esta chamada


Subjetividade, Cultura e Educação, ministrada no curso de Doutorado (2008), da
Faculdade de Educação da Universidade de Brasília. A monografia buscou desenvolver um
tema qual pudesse ser interpretado à luz da Teoria da Subjetividade de González Rey.

Por subjetividade, González Rey (2005 a) entende como um sistema complexo de


produção de sentidos; uma elaboração interna e constante pelo sujeito de suas vivências
internas e relacionais. A presente abordagem realça questões subjetivas no âmbito das
2

relações interpessoais implicadas no contexto escolar. Nesse sentido, recorri à narração de


uma violista sobre experiências marcantes de sua trajetória musical.

Procedimentos metodológicos

Os procedimentos metodológicos se basearam na Epistemologia Qualitativa de


González Rey (2005b), na forma de um estudo de caso.

Após duas entrevistas semi-estruturadas com a pesquisada, decorreu-se uma análise


sustentada pelo espírito “construtivo-interpretativo”, característico da Epistemologia
Qualitativa, e em cuja produção de conhecimento considera-se várias possibilidades de
construção teórica (González Rey, 2005b, p. 6).

Uma flor desabrochando

Violeta começou a estudar música, ainda adolescente. Foi após ouvir Haroldo na
Itália de Hector Berlioz1, obra na qual a viola é apresentada com destaque, que Violeta fez
a opção por esse instrumento.

A estudante não associava a música à escolha profissional, no entanto, seguiu a


carreira de estudos e já aos dezessete anos, ingressou em um curso de licenciatura em
música. Nada empolgante, segundo ela.

Viola aqui. Viola acolá.

Em uma das atividades da universidade na qual estudava, Violeta participou de um


Master Class2. O professor convidado era um violista estrangeiro que já havia se
apresentado no teatro da cidade. Na ocasião, a estudante fora chamada para auxiliar nas
traduções do inglês para o português durante a atividade mencionada.

Após o atendimento de 5 ou 6 estudantes de viola, chegara a vez de Violeta e esta


iniciou dizendo ao professor ter achado muito interessante a sua técnica de tocar viola sem
espaleira3 e que motivada por isso, havia preparado uma peça usando a técnica.

1
Haroldo na Itália, Sinfonia em quatro movimentos para viola e orquestra – Op. 16 de Hector Berlioz, escrita
em 1834. Foi baseada em um poema de Lord Byron (Childe Harold) e composta a pedido de Paganini (1782-
1840) que ambicionava exibir-se virtuosisticamente em sua viola recém adquirida. Na obra, a viola solista
representa o herói da história. Paganini, no entanto, nunca tocou a obra afirmando ser a obra fácil demais
para ele.
2
Master Class: prática pedagógica instrumental em forma de aula individual com platéia, geralmente
constituída por outros estudantes afins à disciplina. Muito comum no Metier musical. (nota da autora).
3
Acessório utilizado para adaptar o instrumento ao corpo do instrumentista (nota da autora).

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Após tocar a peça anunciada, o professor se dirigiu à Violeta dizendo-lhe que ela
jamais poderia ingressar em qualquer orquestra que fosse, bem como realizar qualquer
concurso, já que sua técnica era reprovável e que para uma execução admissível, seria
necessário recomeçar os estudos do zero.

Quão impactante. Ainda cheia de expectativas, Violeta oscilou. Talvez fosse uma
brincadeira. No entanto, o professor continuou tematizando a aula com os ‘erros’ de
Violeta. Seus dizeres chocaram os colegas que ali estavam, segundo a violista. Nem ela
nem os colegas que colaboravam na tradução se animaram a reproduzir as palavras duras
do professor. Após grande silêncio, um dos presentes na platéia, professor de música, se
levantou e bradou – vamos minha filha, traduza pra gente, que nós precisamos saber o que
ele está falando. Abalada, a violista arriscou algumas frases apenas para justificar a fala do
professor.

Desde então, uma enorme e pesada carga emocional acompanhou a violista por
muitos anos. Várias crises acompanharam sua trajetória como violista. Ela reflete que sua
atitude sempre foi negativa nessas circunstâncias, não sendo isso admissível na profissão
musical. Violeta declara que músicos bem sucedidos são arrogantes, agressivos,
exibicionistas, mesmos em diferentes graus de excelência técnica e que ela não atende a
esse perfil.

Viola aqui. Violeta acolá.

Sob a perspectiva de Berger e Luckmann (2008) múltiplas são as influências


subjetivas verificadas nos processos sociais. Não são necessariamente influências
submetidas a processos conscientes, mas todavia se impõem como direcionadores de várias
produções objetivas. Contextos de ensino e aprendizagem pertencem ao mundo social.
Neste as pessoas vivem e sobrevivem às situações mais diversificadas. Também é nessa
conjuntura que ocorre a experiência humana social mais importante: aquela vivida sob
situações “face a face [...] o caso prototípico da interação social” (Berger e Luckmann,
2008, p. 47). De acordo com esses autores, é impossível não se sensibilizar mediante uma
expressão subjetiva de outrem, tal a importância desse contato.

Segundo González Rey (2005a) o sentido que a pessoa produz em suas vivências
não se reduz aos significados configurados nele, mas se estabiliza emocionalmente gerando
uma força dinâmica irredutível ao significado em si. Quer dizer, não é só aquele momento,

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não foi só a decepção que Violeta sofreu - entre outros sentimentos de diminuição – mas
aquele acontecimento de dor veio a se instalar em um ambiente íntimo aberto por ela,
provocado por seu interesse em aperfeiçoar uma habilidade nova, recém aprendida. Eu
interpretei o momento como uma ocupação inimiga – o gesto do professor - em uma fenda
subjetiva – a abertura de Violeta ao conhecimento desejado, sua pré-disposição em ouvir e
ser ouvida.

Psicologicamente o sujeito não é um epifenômeno dos processos pelos quais passa,


tendo em vista a possibilidade de ruptura do mesmo diante das situações (González Rey,
2005 a), no entanto, os processos incidem em ações, pensamentos e sentimentos no ser
humano.

Segundo González Rey (2005 a) a subjetividade está estreitamente vinculada à


emocionalidade.

“as emoções são registros complexos que com o desenvolvimento da


condição cultural do homem passam a ser uma forma de expressão
humana ante (a) situações de natureza cultural que surgem em sistemas
de relações e práticas sociais” (González Rey, 2005 a, p. 243).

Os sentidos são captados e organizados por meio das emoções e passam a


caracterizar nossas ações. Palavras, gestos, atitudes emitidas são impressas um no outro,
nas situações face a face, sob a forma produtiva de sentidos que influem e confluem em
suas expressões e sentimentos (González Rey, 2005a; 2005b; Berger e Luckmann, 2008).
Não raro o silêncio oculta sentimentos, que em ambiente escolar, atingem a própria
aprendizagem ou setores ainda mais interiores (Cerqueira, 2006). O silêncio de Violeta
perdurou por anos a ocultar sentimentos e quiçá aprendizagens.

“A comunicação educativa, carregada de valor emocional, não se limita


apenas a mediar um momento cognitivo, mas alcança, além disso, um
lugar na subjetividade, participando intensamente no desenvolvimento de
atitudes favoráveis ou desfavoráveis frente às atividades realizadas em
sala de aula, ou mesmo frente ao próprio conhecimento” (Tacca, 2000, p.
26)

Dentro do processo educativo, palco de subjetivações, o que faz o professor que


não se reconhece no seu aluno, no sentido da subjetividade, da fragilidade humana, da
sensibilidade? No domínio de aulas individuais de instrumento, a situação face a face é
latente. O ambiente é intimista. A dinâmica em sala chega a implicar em tensa troca de
sentidos. Na maioria das vezes, as atividades correspondem à reprodução de exercícios,
mantidos alheios aspectos mais subjetivos, fragilizando ainda mais o ser musical. Foi a não

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reprodução de uma habilidade técnica que corroborou prova suficiente de que Violeta teria
de recomeçar sua música do zero.

Segundo Schroeder (2005), o modelo conservatorial, muito em voga no meio


musical, tende a focar “a transmissão de conhecimentos musicais específicos segundo uma
lógica pré-estabelecida pelo professor com vistas à formação de músicos profissionais” (p.
67). O esquema escolar musical é forte e faz com que seja verdadeiro o modelo; quem não
puder reproduzi-lo, não é verdadeiramente bom. Violeta não pode mais ser
verdadeiramente boa, e além do mais ela não pode começar do zero. Principalmente
porque começar do zero é difícil; somente coisas zeram. O ser humano é histórico.
Constitui-se na história fazendo parte dela ativamente.

O professor não disse nada além de que com sua técnica ela jamais poderia
ingressar no mercado musical se não refizesse o modelo. Independente da autenticidade da
informação, pedagogicamente o modelo predominou mais importante do que o esforço e o
interesse da estudante em aprender algo novo e próprio para ser aprendido. O foco no
‘erro’ de Violeta impediu o professor de ver seus acertos. Legado de uma pedagogia. Seria
esta desumana?

Considerar a subjetividade alheia não significa ser bonzinho ou patriarcal, mas


reconhecer a própria condição humana no outro. Será que o professor, violista, concertista,
renomado, foi desumano quando determinou que Violeta não sabia fazer o que ela disse
que sabia? Será que somos desumanos às vezes como professores?

Persistir ignorando o subjetivo nas relações entre os sujeitos escolares, nega a


escola como espaço socializador e humanizante e essa não deveria permanecer alheia aos
apelos de mudança que tanto se invoca. Uma sociedade escolar que queira ser dinâmica
deve se comprometer com a construção de significados de valia social, engajados em
ações.

Referências

BERGER, Peter L. e LUCKMANN, Thomas. A construção social da realidade – tratado


de sociologia do conhecimento. 6ª edição. Petrópolis, Vozes, 2008.
CERQUEIRA, Teresa Cristina S. O professor em sala de aula: reflexão sobre os estilos de
aprendizagem e a escuta sensível. PSIC. Revista de Psicologia da Vetro Editora, v. 7, n. 1,
p. 29-38; jan-jun, 2006.

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GONZÁLEZ REY, Fernando. Sujeito e subjetividade: uma aproximação histórico-cultural.


Trad.: Raquel Souza Lobo Guezo. SP: Pioneira Thomson Learning, 2005 a.
. Pesquisa qualitativa e subjetividade: os processos de
construção da informação. Trad.: Marcel Aristides Ferrada Silva. SP: Pioneira Thomson
Learning, 2005b.
. O sujeito que aprende: desafios do desenvolvimento do
tema da aprendizagem na psicologia e na prática pedagógica. In: TACCA, M. C. V. R.
(org.). Aprendizagem e Trabalho Pedagógico. Campinas, SP: Editora Alínea, 2006.
ISAACS, Alan e MARTIN, Elizabeth (org.). Dicionário de música. Tradução: Álvaro
Cabral. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1985.
SCHROEDER, Sílvia C. N. Reflexões sobre o conceito de musicalidade: em busca de
novas perspectivas teóricas para a educação musical. Tese de doutorado em Educação.
Unicamp - Universidade Federal de Campinas, 2005.
TACCA, Maria Carmen Villa Rosa. Ensinar e aprender: análise de processos de
significação na relação professor x aluno em contextos estruturados. Tese de doutorado em
Psicologia. Universidade de Brasília; Brasília, 2000.

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