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FEBASP – CENTRO UNIVERSITÁRIO BELAS

ARTES DE SÃO PAULO

FELIPPE MORAES

MACKINTOSH: ARTISTA, ARQUITETO E


DESIGNER

Trabalho de Iniciação Científica


Apresentado à FEBASP – Centro Universitário
Belas Artes de São Paulo

SÃO PAULO
2008
1
FELIPPE MORAES

MACKINTOSH: ARTISTA, ARQUITETO E


DESIGNER

Trabalho de Iniciação Científica


Apresentado à FEBASP – Centro Universitário
Belas Artes de São Paulo
Curso: Design de Produto

ORIENTADOR:
Profª MSc Patrícia Helena Soares Fonseca R. de
Resende

São Paulo

2008
2
MORAES, Felippe

Mackintosh: Artista, Arquiteto e Designer / Felippe Moraes – São Paulo,


2008

Xxx f.: il.

Trabalho de Iniciação Científica orientado pela Profª MSc Patrícia Helena


Soares R. de Resende Fonseca

1. Charles Rennie Mackintosh 2.Art Nouveau 3.Proto-Modernismo

3
À todos aqueles que preferiram o
erro honesto às gélidas perfeições do mero estilismo.

4
Agradecimentos

Agradeço à orientadora deste trabalho Profª Patrícia Fonseca, à


FEBASP– Centro Universitário Belas Artes de São Paulo, à minha
mãe, avó, madrinha, Othello, amigos, professores da academia e da
vida, pois de cada um recebi influências voluntárias ou involuntárias,
que, tenho certeza, contribuíram de alguma forma para esta obra.

5
Sumário

INTRODUÇÃO............................................................................................................................12

CAPÍTULO 1 - O princípio do Movimento Moderno: a sociedade e o imaginário


Art Nouveau.......................................................................................................15
1.1 O Nascimento do Art Nouveau e suas origens no Arts &
Crafts......................................................................................................17
1.2 As Influências sobre o Estilo.............................................................18
1.3 As Denominações do Estilo..............................................................19
1.4 O Cenário Arquitetônico de Glasgow................................................21
1.5 O Cenário Social de Glasgow...........................................................25

CAPÍTULO 2 – Um Gênio em Formação..........................................................28

CAPÍTULO 3 – O Glasgow Style.......................................................................42

CAPÍTULO 4 – Os Primeiros Anos do Arquiteto................................................63


4.1. The Glasgow Herald.........................................................................63
4.2 Queen Margaret’s College................................................................67
4.3 Martyr’s Public School.......................................................................69
4.4 Buchanan Street Tea Rooms............................................................71

CAPÍTULO 5 – The Glasgow School of Art.......................................................74


5.1 A Natureza do Edifício e sua Construção.........................................74
5.2 As Características do Edifício...........................................................81
5.2.1 A Face Norte......................................................................81
5.2.2 A Face Sul.........................................................................83
5.2.3 O Oriente e o Ocidente da Escola.....................................85
5.2.4 O Interior............................................................................89
5.2.5 A
Biblioteca...........................................................................91

6
CAPÍTULO 6 – Mackintosh: Artista, Arquiteto e Designer................................95
6.1 Primeiras Manifestações como Designer.........................................96
6.2 Mains Street....................................................................................100
6.3 Windyhill..........................................................................................102
6.4 The Rose Budoir.............................................................................105
6.5 The Willow Tea Rooms...................................................................106
6.6 The Hill House.................................................................................112
6.7 Walberswick....................................................................................121
6.8 Derngate,78.....................................................................................123
6.9 Port Vendres...................................................................................127

EPÍLOGO:O Fim dos Erros Honestos.............................................................131

BIBLIOGRAFIA................................................................................................132

7
Lista de imagens
Fig.1 CRAWFORD, 1996. p.14
Fig.2 CRAWFORD, 1996. p.15
Fig.3 CRAWFORD, 1996. p.17
Fig.4 WALKER, 1996. p.123
Fig.5 CRAWFORD, 1996. p.18
Fig.6 JONES, 1990. p.30
Fig.7 CRAWFORD, 1996. p.16
Fig.8 CRAWFORD, 1996. p.25
Fig.9 HELLAND, 1996. p.93
Fig10 ROBBINS, 1996. p.65
Fig.11 HELLAND, 1996. p.92
Fig.12 CRAWFORD, 1996. p.25
Fig.13 ROBBINS, 1996. p.75
Fig.14 ROBBINS, 1996. p.74
Fig.15 ROBBINS, 1996. p.67
Fig.16 CRAWFORD, 1996. p.23
Fig.17 WALKER, 1996. p.128
Fig.18 WALKER, 1996. p.130
Fig.19 WALKER, 1996. p.130
Fig.20 CRAWFORD, 1996. p.43
Fig.21 JONES, 1990. p.94
Fig.22 WALKER, 1996. p.134
Fig.23 GIROUARD. 1996. p.161
Fig.24 GIROUARD. 1996. p.162
Fig.25 GIROUARD. 1996. p.163
Fig.26 WALKER, 1996. p.136
Fig.27 CRAWFORD, 1996. p.150
Fig.28 GIROUARD. 1996. p.165
Fig.29 JONES, 1990. p.120
Fig.30 JONES, 1990. p.119
Fig.31 CRAWFORD, 1996. p.154
Fig.32 KIRKHAM, 1996. p.230
Fig.33 KIRK\HAM, 1996. p.231
Fig.34 KIRKHAM, 1996. p.233
Fig.35 CRAWFORD, 1996. p.55
Fig.36 JONES, 1990. p.139
Fig.37 KIRKHAM, 1996. p.238
Fig.38 CRAWFORD, 1996. p.86
Fig.39 CRAWFORD, 1996. p.86
Fig.40 CRAWFORD, 1996. p.92
Fig.41 CRAWFORD, 1996. p.109
Fig.42 JONES, 1990. p.168
Fig.43 CRAWFORD, 1996. p.112
Fig.44 JONES, 1990. p.168
Fig.45 MCKEAN, 1996. p.174
Fig.46 CRAWFORD, 1996. p.102
Fig.47 CRAWFORD, 1996. p.119
Fig.48 JONES, 1990. p.154
Fig.49 MCKEAN, 1996. p.192
Fig.50 JONES, 1990. p.159
Fig.51 KIRKHAM, 1996. p.251
Fig.52 CRAWFORD, 1996. p.165
8
Fig.53 CRAWFORD, 1996. p.171
Fig.54 KIRKHAM, 1996. p.258
Fig.55 CRAWFORD, 1996. p.168
Fig.55 CRAWFORD, 1996. p.90

9
Resumo

Procurando trazer à luz a obra de Charles Rennie


Mackintosh, um dos maiores e talvez o mais incompreendido
dos artistas e arquitetos escoceses, buscou-se revelar
principalmente o cenário fin de siécle em que se encontrava,
e sua importância para a história da arte, arquitetura e
design.

De forma a revelar a intrigante realidade em que Mackintosh


vivia, mostra-se o mundo da segunda metade do século XIX
e a virada para o século XX. O Art Nouveau é
contextualizado de forma a mostrar a relevância não apenas
estética, mas social do movimento na Europa e em especial
o caráter de ter se tornado uma resposta à necessidade de
fuga da feroz modernidade que se estabelecia.

É abordada também a sua história com o intrigante grupo


“The Four” constituído, além de Mackintosh, pelo seu melhor
amigo Robert Macnair e pelas irmãs Frances e Margaret
Mcdonald, sua futura esposa, que com uma produção de
objetos de arte e de artes decorativas com ares soturnos e
sombrios ficaram conhecidos como a “Spook School” de
Glasgow.

Através de pesquisa bibliográfica e elaboração de hipóteses,


a obra apresenta seus principais trabalhos como, The
Glasgow School of Art, The Willow Tea Rooms, The Hill
House e 78 Derngate. Estes são minuciosamente analisados
com o objetivo de revelar preciosos detalhes muitas vezes
nem sequer cogitados. Revelando-se desta forma os motivos
pelos quais é considerado um dos pioneiros tanto do
Funcionalismo quanto do Art Déco e por isso reverenciado
como um dos maiores nomes na história da arquitetura.

10
Abstract

Wishing to bring light upon Charles Renie Mackintosh’s work,


one of the greatest, and maybe one of the most
uncomprehended, scottish artists and architects, one tries to
reveal specially the fin-de-siécle scenary in wich he lived,
and his importance to the history or art, architecture and
design.

In order to reveal the intriguing reality in wich Mackintosh


lived, the world of the second part of the 19th century and the
beggining of the 20th is shown. The Art Nouveau is
contextualized in order to reveal its relevance not only
aesthetically but also its social importance in Europe, and
specially its condition of representing an escape from the
frightening modernity that was beeing established.

Are also shown his relations with the intriguing group called
“The Four”, constituted by his best friend Herbert Macnair
and the two sisters Frances and Margaret Macdonald, his
future wife, that with a production of art objects and
decorative arts with gloomy feelings got known as “The
Spook School”.

Through bibliographical research and elaboration of theories


the text presents his main works as The Glasgow School fo
Art, The Willow Tea Rooms, The Hill House and 78
Derngate. These are closely analised looking foreward to
revealing precious details sometimes not even imagined.
Then revealing the porpouses of him beeing considered one
of the pioneers of Functionalism and Art Déco and worshiped
as one of the greatest names in the history of architecture.

11
Introdução

Entre os séculos XVI até meados do XIX, as elites da Europa ocidental


entraram num grande ciclo de crescimento tecnológico que lhes permitiu o
domínio de grandes forças da natureza, novas e mais potentes fontes de
energia, permitindo a criação de novos meios de transporte, comunicação
armamento e conhecimentos especializados. Tal situação lhes permitiu um
domínio hegemônico de boa parte do mundo, tendo se estabelecido sobre
bases ideológicas que defendiam uma vocação para o conhecimento inerente à
civilização européia. Desta forma vendiam a idéia de “ordem e progresso”, em
que a assimilação gradativa dos valores europeus conduziria o mundo a um
futuro racional, harmônico e abundante.1 Tal hegemonia levou ao crescente
número de colônias, em especial na África e na Ásia, de onde saiu boa parte
das inspirações formais e conceituais do Art Nouveau que serão abordados
mais à frente.

Por volta de 1870, quando ocorreu a Revolução Científico-Tecnológica,


deu-se um grande salto no conhecimento técnico humano, com o
desenvolvimento de aplicações da eletricidade, dos derivados do petróleo,
criação das primeiras usinas hidro e termoelétricas, indústrias químicas, usinas
siderúrgicas e dos primeiros materiais plásticos. Na mesma onda foram criados
novos meios de transporte como transatlânticos, carros, caminhões,
motocicletas, trens expressos e aviões, assim como novos meios de
comunicação como o telégrafo, rádios, gramofones a fotografia e o cinema.2

É bastante relevante citar o cinema porque este encontra uma série de


paralelos com o estilo em questão nesta obra. Segundo SEMBACH “É possível
relacionar os dois fenômenos, visto que as suas bases foram semelhantes, os
seus objetivos comparáveis e as suas ambições quase as mesmas. A imagem
e o estilo em movimento são, duma maneira ou de outra, produtos da era

1
SEVCENKO, Nicolau p.14, 15
2
SEVCENKO, Nicolau p.15
12
industrial [...]”.3 Desta forma torna-se visível que além da relação íntima que
ambos tinham com o movimento, o primeiro como inspiração estética e o outro
como qualidade inerente á sua natureza, eram muito íntimos pelo fato de terem
surgido quase simultaneamente: o cinema em 1985 e o Art Nouveau alguns
anos antes4, e desta forma tornavam-se congruentes, e muito similares na
forma como lidavam com as mentes de então. Guy Debord dizia que “essa
indústria [a do entretenimento, na qual se inclui o cinema] se esforça por
compensar o extremo empobrecimento da vida social, cultural e emocional,
arrebatando as pessoas para uma celebração permanente das mercadorias,
saudadas como imagens, como novidades, como objetos eróticos, como
espetáculo, enfim.”5

Toda essa alegria, que tornou famosa a Belle Époque, nome dado ao
período em que se deu o Art Nouveau que em francês quer dizer “bela época”,
foi fruto da ilusão de poder absoluto criado na Europa por esse
desenvolvimento desenfreado que acabou camuflando, por meio da euforia, os
graves problemas sociais presentes na sociedade.

Um complexo cenário de incongruências sociais permeava os


sustentáculos da civilização européia. A cultura burguesa, já altamente
estabelecida, criara uma intensa repressão sexual, formando gerações de
pessoas frustradas e reprimidas, disseminando a hipocrisia e o falso
moralismo.

É um tempo de institucionalização, não só da prostituição, mas também


da loucura e da marginalidade. Criam-se os hospícios, onde são isolados os
considerados “anormais” pela burguesia, evitando ter que conviver com os que
lhe são diferentes e que lhes causam desconforto e repulsa. São criados
também o sistema penitenciário e o código penal, onde são punidos de forma
normatizada aqueles que atentam contra a sociedade instituída, diferentemente
do que ocorria antes, quando se tinha quase que somente prisões políticas.

3
SEMBACH, Klaus-Jürgen p.8
4
SEMBACH, Klaus-Jürgen p.8
5
SEVCENKO, Nicolau p.81
13
Estes indícios revelam o estado de hipocrisia e repressão que se havia
estabelecido socialmente. Tais circunstâncias criaram seres humanos que
necessitavam sonhar e idealizar um mundo melhor, um mundo de uma
natureza fantástica. Assim, no Art Nouveau, se dá uma idéia de fuga em que,
para escapar dos absurdos do mundo real, faz-se a opção de deleitar-se em
uma estética fantástica, e em alguns momentos até alienante: o Art ouveau,
assim como todas essas formas de institucionalização de aspectos
desagradáveis á burguesia, era uma forma dela evitar enxergar a realidade que
a rodeava.

14
Capítulo 1

O princípio do Movimento Moderno: a sociedade e o imaginário


Art Nouveau

A virada do século XIX para XX foi caracterizada por um movimento


bastante peculiar carregado de símbolos, saudosismo e ornamentos, que, não
só literalmente, mas metaforicamente, dialogava diretamente com o imaginário
do homem moderno. Tratava-se do Art Nouveau. Tal estilo, muito mais do que
um movimento artístico, em verdade foi a manifestação física do que se
passava nas mentes de então e uma resposta direta aos anseios mais
intrínsecos e peculiares dos homens contemporâneos.

O Art Nouveau era naturalmente híbrido, nas suas formas, nas suas
manifestações, nos seus diálogos com as culturas regionais e na sua história.
Em cada país onde que se manifestou configurou-se de maneiras
absolutamente diferentes entre si, sendo às vezes até difícil obter uma
definição que abarcasse todas as diferentes formas do estilo encontradas por
todo o velho continente. Entretanto, existem cinco características universais do
movimento:
1) a temática naturalista (flores e animais); 2) a utilização
de motivos icônicos e estilísticos, e até tipológicos, derivados da
arte japonesa; 3) a morfologia: arabescos lineares e cromáticos;
preferência pelos ritmos baseados na curva e suas variantes
(espiral, voluta etc), e, na cor, pelos tons frios, pálidos,
transparentes, assonantes, formados por zonas planas ou
eivadas, irisadas, esfumadas; 4) a recusa da proporção e do
equilíbrio simétrico, e a busca de ritmos “musicais”, com
acentuados desenvolvimentos na altura ou largura e
andamentos geralmente ondulados e sinuosos; 5) o propósito

15
evidente e constante de comunicar por empatia um sentido de
agilidade, elasticidade, leveza, juventude e otimismo.”6

Entretanto, mais do que tudo isso, a verdadeira essência do Art Nouveau


está no fato de atender diretamente às expectativas e anseios dos homens de
então e ser fruto de seus sonhos.

Fruto de uma série de anseios e medos, criados pelos fatos já citados, o


Art Nouveau dialogava diretamente e apresentava o autêntico espírito da
modernidade e, desta maneira, provava-se absolutamente ambíguo: ao mesmo
tempo em que era um entusiasta dessa modernidade, se apresentava como
uma fuga dela. Segundo FAHR-BECKER “As violentas transformações do virar
do século[...] constituíram o embrião de toda uma série de idéias que ainda
hoje se mantêm atuais”7. Tendo surgido em um cenário extremamente
impetuoso de novidades tecnológicas, políticas e sociais o homem de então,
naturalmente assustado pelas novidades buscou refúgio nos lugares já
conhecidos, familiares e aconchegantes, encontra-se então com a natureza,
numa espécie de neo-romantismo, influência que será esclarecida mais
adiante. Segundo ARGAN “O ambiente visual que o Art Nouveau tece em torno
da sociedade não só favorece sua atividade, como também lhe oferece um
reconforto em sua labuta, fornecendo-lhe uma imagem idealizada e otimista: a
nascente civilização das máquinas não a condena a um mecanicismo obscuro
e opressor, pelo contrário, libertando-a da necessidade e do trabalho, permitirá
que ela plane nos céus da poesia” e era exatamente nisso que a sociedade
precisava acreditar para não perecer frente às aflições que tinham em relação
à modernidade.

A despeito de apresentar objetos dotados de formas extremamente


saudosistas, o estilo se mostrava inovador e experimental, provando-se desta
forma altamente dicotômico. Permeava toda a sociedade burguesa: de um lado
a alta burguesia consumia os arquétipos, produzidos por artistas e artesãos
qualificados em materiais nobres, enquanto de outro a pequena e média
6
ARGAN, Giulio Carlo Arte Moderna p.199 e 202
7
FAHR-BECKER, Gabrielle
16
burguesia consumia produtos do mesmo tipo, mas banalizados pelo processo
industrial.8

1.1 O Nascimento do Art Nouveau e suas origens no Arts & Crafts

Uma série de eventos contribuiu para a elaboração de idéias e formas


inovadoras que culminou no que viria a ser chamado de Art Nouveau. Para se
esboçar o cenário que levou ao surgimento do estilo é imprescindível falar do
movimento Arts and Crafts.

No século XIX, John Ruskin atacou violentamente o estilo histórico, suas


idéias foram adotadas por William Morris. Esses dois homens desenvolveram
teoria e conseqüentes práticas em que na criação artística não deveria haver
uma divisão de trabalho, separações entre as belas artes e as artes aplicadas,
nem uma hierarquia entre planejador e executor. Ao pensar a produção desses
itens de uma forma inteiramente artesanal, sem o auxílio de máquinas e com a
execução aliada ao planejamento, têm-se produtos de valor muito alto,
trazendo por terra o seu ideário socialista de prover a toda a sociedade
produtos de qualidade impecável e artesanal. A dupla rejeitou toda a
ornamentação renascentista presente até então e começou a desenvolver o
seu próprio repertório ornamental: retirando da natureza a inspiração para a
sinuosidade e curvas excêntricas que, mais tarde, seriam levadas às últimas
conseqüências pelos artistas Art Nouveau.

Apesar de o Arts and Crafts, inspiração primordial para o Art Nouveau,


ter surgido na Grã-Bretanha, a Arte Nova teve poucas manifestações em solo
britânico. Em verdade os seguidores de Morris rejeitavam em absoluto o
movimento que, segundo eles, tratava-se de um excesso de ornamentos
desnecessários e negavam que tivessem tido qualquer influência sobre tal,
acreditando ser algo tão discrepante em relação aos seus ensinamentos que
nada poderiam ter em comum.

8
ARGAN, Giulio Carlo p.199
17
A despeito de negarem sua influência sobre o Art Nouveau ela é
decisiva e muito clara no que diz respeito à forma e algumas idéias sociais. Os
praticantes da Arte Nova acreditavam que o dever do artista é criar a imagem
de um mundo de felicidades e levar a todos as belezas universais.9 Apesar
disto era altamente elitizado, sendo consumido, como dito antes, apenas pelas
estratificações burguesas da sociedade. A nova “primavera” invade os centros
de negócios e os bairros residenciais, mas interrompe-se ao se deparar com os
subúrbios repletos de fábricas e habitações operárias.

1.2 As Influências

O Art Nouveau, inovador e engajado na elaboração de uma nova estética


que falasse diretamente ao homem moderno, buscou deliberadamente, e ás
vezes recebeu involuntariamente, uma série de influências que o moldaram. A
principal veio do Japão, remontando a 1862 quando o país expôs pela primeira
vez na Exposição Mundial de Londres. O mobiliário exposto depois foi vendido
pela firma Farmer and Rogers administrada por Arthur Lasenby Liberty, que
mais tarde seria o proprietário da Liberty & Co em Londres, uma das principais
vendedoras e divulgadoras dos movimentos Arts and Crafts e Art Nouveau.
Desde então o interesse pelo extremo oriente só fez crescer, tornando-se um
celeiro de inspiração para artistas como Beardsley, Eckmann e Toulouse-
Lautrec que cultivaram uma japonaiserie enquanto que Bing, Tiffany e Liberty,
nomes poderosos nas artes, colecionavam artigos originais que se tornavam
modelos para as novas criações.10

As idéias formais do Japão foram altamente incorporadas e sua


identificação é bastante clara. Na pintura permitiu-se organizar as figuras mais
livremente no espaço tendo esta possibilidade a partir da eliminação da
perspectiva central, além de adotar uma linha do horizonte alta. Nos demais
campos fez-se uso de figuras alongadas e elegantemente distribuídas no
espaço. Neste momento havia um rompimento com o estilo tradicional europeu
9
BARRILLI, R
10
MADSEN, S. T. p.60
18
de separar texto e imagem, ambos agora se fundiam, associados à utilização
vertical de tipografias. Mas talvez o que mais tenha influenciado o movimento
tenha sido a elegância na utilização das linhas: força vital do movimento.11

O interesse pelo Japão, apesar de ser o maior, foi apenas um na onda do


exótico na Europa. O imaginário do europeu era seduzido pelo exotismo,
primitivismo, orientalismo e até pelo Egito.12 Foram praticadas principalmente
releituras de formas oriundas das colônias subjugadas a países europeus,
numa espécie de engrandecimento patriótico sobre culturas consideradas
“primitivas” e subjugadas pelas metrópoles européias. Sendo este um fruto
inconsciente das necessidades já citadas do assustado homem moderno de
refugiar-se no que lhe é confortável e conveniente, neste caso sobrepujar-se a
culturas que considera inferiores, exaltando sua autoproclamada
grandiosidade. Clay Lancaster dizia que os países europeus consideravam “o
orientalismo como um subproduto do novo orgulho imperialista pelas suas
possessões territoriais[...]”13.

1.3 As Denominações do estilo

Com sua rápida disseminação, o estilo gradualmente foi assumindo uma


série de denominações como: Paling stijl (paling, enguia em flamengo) e Style
Nouille (estilo espaguete) na Bélgica. Também foi conhecido por Mouvement
Belge e Ligne belge. Na Alemanha além da designação mais conhecida:
Jugendstil (estilo jovem) que substituía nomes como Neu Stil (novo estilo) e
Neudeutsche Kunst (nova arte alemã), surgiu uma série de nomes bastante
curiosos e até um tanto depreciativos como: Schnörkelstil (estilo enrolado),
Bandwurmstil (estilo bicha-solitária), Wellenstil (etsilo vaga), belgischer
Bandwurm (bicha solitária belga) gereizter Regenwurm (minhoca inesperada) e
moderne Strumfbandlinien (nova linha de suspensórios). Além disso o estilo foi
muito associado à artistas influentes do movimento: Stil Van de Velde na

11
MADSEN, S. T. Art Nouveau p.62
12
MADSEN, S. T. Art Nouveau p.62
13
MADSEN, S. T. Art Nouveau p.63
19
Alemanha (devido ao arquiteto belga Henry Van de Velde), e em outros países
Style Horta e Style Guimard (respectivamente citando os artistas Victor Horta e
Hector Guimard).14

Outro nome bastante curioso foi o dado por Edmond Goncourt: Yachting Style,
isso porque segundo ele o estilo era “copiado das vigias de um navio”15

É interessante como, apesar da pouca produção inglesa com o estilo, muitos


dos nomes do movimento são associados ao país, onde surgiram os primeiros
embriões por meio do movimento Arts & Crafts e dos pré-rafaelitas, que,
apesar de não admitirem, considerando o Art Nouveau uma completa
deturpação dos preceitos por eles estabelecidos, foram uma inspiração
fundamental para o florescimento do estilo. Nos primeiros anos os franceses
chamavam-no, além de Genre Anglais (Gênero Inglês), de “Modern Style” (com
pronúncia inglesa) “a fim de nos lembrar a sua origem inglesa” escrevia uma
especialista em 1901.16 Na Itália, além de Sitle floreale também era conhecido
por Stile Inglese (estilo inglês) ou Stile Liberty (por causa da loja inglesa
“Liberty & Co.”, como já dito, uma das maiores entusiastas do movimento).

Na Áustria foi conhecido como Sezessionstil (estilo Secessão) por causa da


Secessão Vienense ou Wiener Sezession, união de artistas radicais fundada
em 1897, um dos temas dessa obra, que mais adiante será abordado com
maior profundidade.

Outros dois nomes franceses, dignos de atenção, são: Style Metro citando as
icônicas entradas do metrô de Paris desenhadas por Hector Guimard e Style
rastaquouère (estilo aventureiro internacional).17

Apesar do repúdio de boa parte do público e da crítica que desprezava o estilo


e, como visto, criava inclusive nomes insultuosos, próximo ao Natal de 1895

14
MADSEN, S. T. Art Nouveau p.28, 29
15
MADSEN, S. T. Art Nouveau p.29
16
MADSEN, S. T. Art Nouveau p.29
17
MADSEN, S. T. Art Nouveau p.30
20
dava-se um passo em direção ao estabelecimento não só de um nome, mas do
estilo como um todo. O marchand Samuel Bing fundava em Paris uma loja
chamada “Art Nouveau” que vendia móveis, tapeçarias e outros objetos no
novo estilo avant-garde.18 À cerca dela ele dizia: “Quando nasceu, o Art
Nouveau não tinha pretensão de ser um termo genérico. Era, simplesmente, o
nome de um estabelecimento, aberto como lugar de encontro para a juventude
desejosa de mostrar o seu ponto de vista moderno.”19

1.4 O Cenário Arquitetônico de Glasgow

O Cenário arquitetônico em Glagow se estabelecia de forma bastante


uniforme nessa época, durante o século XIX até a virada para o XX. Era uma
cidade quase inteiramente construída em pedra e tradicionalmente clássica.
Apesar de em meados dos anos 1850 na maioria das cidades do Reino Unido
as novas tecnologias e as mudanças de gosto suscitarem o surgimento de
novas idéias que desbancariam o clássico, Glasgow se mantinha fiel à sua
tradição.20 Seu Classicismo se impunha com uma força monumental até chegar
ao ponto de se fragmentar mas ainda assim se manter presente na influência
sobre construções no estilo da renascença italiana respondendo às
necessidades locais de novas estéticas.

A questão do Clássico é bastante complexa e levanta uma série de


questões que não dizem respeito às pretensões deste texto. No entanto, para
se ter uma compreensão maior do tema deste é preciso algumas elucidações à
cerca dessa dialética arquitetônica.

Muitas vezes o clássico é confundido com a renascença italiana. O


primeiro, que vem sendo reeditado desde as suas origens, primeiro em Grécia
e, depois relido em Roma, tem formas praticamente idênticas à originais
dessas antigas civilizações: colunas, frontões triangulares, arcos romanos,
pouca ou nenhuma utilização de cor e mantendo sempre a austeridade e

18
MADSEN, S. T. Art Nouveau p.30 & BARILLI, R. Art Nouveau p.10
19
MADSEN, S. T. Art Nouveau p.30
20
CRAWFORD, Alan p.12
21
robustez. O segundo estilo, a renascença italiana, a olhos menos treinados
pode inclusive em alguns casos, dependendo do lugar e do momento histórico
em que se dá, confundir-se com uma espécie de ecletismo, tendo como
elementos muito característicos: ornamentação exagerada com muitos altos
relevos geralmente com temas mitológicos às vezes fazendo uma narrativa
com essas figuras, curvas e imagens dramáticas, repleto de vivacidade.

Essa simbiose ocorre por meio dos caminhos históricos que vem desde
a renascença. Neste período, pós-feudal, se descobria novamente, após um
milênio em trevas de ignorância, a grandiosidade humana. A sociedade
tornava-se antropocêntrica. Constitui-se aqui um problema estilístico, tinha-se
uma sociedade recém desperta de um longo sono evolutivo, despreparada mas
que havia feito muitas descobertas em todos os campos do conhecimento
humano entretanto não possuía uma forma estética para representar este
valioso instante histórico. A alternativa foi retornar à antiguidade clássica que,
assim como a nova sociedade ocidental, colocava a figura humana como
principal tema artístico e científico. Desta maneira assumem essas idéias muito
antigas e a elas dão nova leitura proporcionada pelas novas tecnologias e
teorias das ciências humanas.

Este episódio não poderia ter-se dado em outro lugar se não na Itália.
Primeiro pelo seu fator geográfico por ser um porto e assim como Glasgow no
século XVI em diante, receber muitas influências externas, tanto do ocidente
quanto oriente, que não teve idade média, portanto com quase um milênio à
frente em termos de tecnologia. Os países do norte, em especial a Alemanha,
tiveram pouca sequer alguma renascença pois enfrentava questões sociais
mais dramáticas como a revolta protestante. Além de esta ser uma reviravolta
social que roubava toda a atenção para si, ao se estabelecer como nova
religião oficial destes países não permitia o culto de imagens, podando pela
raiz a estética do renascimento.

Tardiamente esses países, com o passar dos anos e conseqüente


afrouxamento das idéias mais radicais, começaram a importar esses estilos

22
para suprirmir o vácuo desses anos do quase minimalismo protestante.
Primeiro instituíram o clássico original, com características que se adequavam
à essas culturas do norte, racional, frio e altivo. Esse estilo foi praticado ao
extremo até chegar a um ponto (momento histórico trabalhado nesta obra), na
segunda metade do século XIX em que se saturou tendo que dar lugar à
dramaticidade da renascença italiana, que apesar de ainda muito distante,
estava alguns centímetros mais próxima da modernidade que dava os
primeiros sinais de vida.

Um dos maiores nomes do classicismo de Glasgow, tão clássico que o


estilo foi anexado ao seu nome como um apelido Alexander “Greek” Thomson,
morreu em 1875 e diz-se que essa tradição da cidade quase morreu com ele.21

Fig.1: The Athenaeum por John James Burnet, 1886


Em 1880 a arquitetura local começava a se tornar um pouco mais plural.
Essa nova direção foi ilustrada por dois edifícios: o The Athenaeum (1886) de
J.J. Burnet e o The Central Hotel (1879-1884) de Rowand Anderson. O
primeiro, apesar de ter uma aparência absolutamente clássica, coerente com a
finalidade de biblioteca do edifício era precursor de idéias muito inovadoras.
Sendo o principal expoente britânico da abordagem racional e prática do
edifício, ele acreditava que estilo era apenas uma questão de “vestimenta”
21
CRAWFORD, Alan p.14
23
apropriada e a elevação era necessária para revelar a clara expressão do
plano geral,22 o que viria a ser defendido por arquitetos funcionalistas algumas
décadas depois no início do século XX.

O segundo trazia uma nova tendência na arquitetura de Glasgow, mas


que em essência permeava toda a Europa, que como já dito, retornava à
temática do familiar e principalmente de sua releitura, como fuga de tempos
obscuros e amedrontadores. Fala-se aqui do Free Style. Um estilo que na Grã
Bretanha como um todo buscava referências na arquitetura histórica local.

Fig. 2: Institute of Chartered Accountant’s por John Belcher, Londres, 1888-93

Nos anos 1870 e 1880 começavam a enfraquecer o clássico e o gótico,


apesar do segundo ainda ser muito utilizado na construção de igrejas em uma
variação refinada e muitas vezes inventiva. Começavam a surgir variações de
caráter mais eclético com um apelo de arquitetos progressistas inspirados no
Renascimento alemão e flamengo, arquitetura inglesa do tempo de Christopher
Wren, e ainda, mais tarde, o barroco.23

22
CRAWFORD, Alan p.14
23
CRAWFORD, Alan p.14
24
O The Central Hotel combinava o gosto escocês com uma certa liberdade e
variedade o que o enquadrava nessa nova tendência, ou estilo que chegou a
ser chamado de “Old English” e “Queen Anne” mas que ficou conhecido
mesmo por “Free Style”. Seu nome já revela o seu espírito: o de liberdade.
Todas as influências eram permitidas, aceitas e postas em prática. Inclusive,
segundo os líderes desta tendência - Richard Norman Shaw, John Belcher,
Philip Webb, J.D. Sedding - o ecletismo era um veículo de liberdade, uma
verdadeira e prática forma de modernidade.24

Na escócia o estilo Baronial, que retirava inspiração dos castelos e torres


escoceses do século XVI e XVII, tinha aspirações similares, mas com uma
carga nacionalista muito mais intensa.25

1.4 O Cenário Social de Glasgow

Desde a idade média Glasgow foi muito grande e poderosa e um importante


centro de conhecimento. A cidade então, herdeira deste passado glorioso,
enfrentava mudanças ainda maiores que as do resto do continente europeu no
século XIX. Havia uma atmosfera de intensos estímulos físicos e visuais que
muitas vezes, em certos casos até imperceptivelmente geravam, depressão,
medo ou até excitação.26

Em se tratando de uma cidade costeira, em uma localização privilegiada,


comandava boa parte das principais rotas comerciais da época, tornando-se
um centro de poder e de circulação de mercadorias, pessoas, e
conseqüentemente conhecimento, um lugar onde os horizontes mentais eram
constantemente expandidos.27

Essa situação era muito conveniente para todos. A burguesia local tinha suas
preciosas rotas sob controle, e a população como um todo era beneficiada do
24
CRAWFORD, Alan p.14
25
CRAWFORD, Alan p.16
26
KAPLAN, Wendy, p.32
27
KAPLAN, Wendy, p.36
25
conhecimento gerado lá. Era uma cidade sofisticada e cosmopolita. Para
vender esta idéia os detentores do capital de Glasgow investiam pesado na
realização de exposições internacionais. Na cidade, ao todo, ocorreram três,
em 1888, 1901 e 1911.A segunda foi a maior da Grã-Bretanha e chegou a
reunir 11 milhões de visitantes.

A despeito de ser tão cosmopolita, ou talvez exatamente por isso, as classes-


médias da cidade eram altamente estratificadas indo dos espetacularmente
ricos a uma massa de trabalhadores clericais, lojistas e suas respectivas
famílias. Dessa maneira, nenhum estilo arquitetônico ou de design poderia
agradar a todos, assim, a arquitetura local, altamente qualificada provia uma
grande variedade de estilos à população, lançando mão de um ou outro
conforme fosse necessário.28

A burguesia de Glasgow era precária, um grupo volátil que escasseava os


antigos indicadores de status como conexões familiares, posses de terra etc,
pois o controle econômico da cidade estava na propriedade do capital e do
trabalho, bens mais abstratos que não denotam os valores tão almejados e
materiais da burguesia de qualquer lugar. Além disso os membros dessa
estratificação eram muito diferentes entre si, não possuindo uma estética e um
gosto do qual compartilhassem. Desta maneira entregaram-se a uma dramática
objetivação no uso de artefatos de moda e possessões materiais altamente
perecíveis, que por isso mesmo denotavam o poder de compra dos portadores
desses símbolos. Segundo L. Smith em sua obra “Northern Sketches or
Characteristics of Glasgow”: “Saltaram para uma extravagância ilimitada, e
fizeram da moda seu modelo em tudo – suas casas, seus móveis, suas roupas,
seus gostos, suas opiniões.”29

28
KAPLAN, Wendy, p.42
29
KAPLAN, Wendy p.44 apud SMITH, L
26
Capítulo 2

Um Gênio em Formação

Neste cenário onde se instituiu esta típica expressão do espírito


modernista, o Art Nouveau30, surgiu uma grande mente chamada Charles
Rennie Mackintosh. Oriundo de Glasgow, cidade escocesa conhecida como
“The Second City” do Império Britânico31, Mackintosh será reconhecido
postumamente como uma das grandes personalidades da virada do século e
um dos maiores e mais influentes arquitetos de toda a história.

Filho de um policial, praticante amador de jardinagem, e de uma dona-


de-casa, cresceu cercado por 11 irmãos, em um ambiente acolhedor
especialmente para ele: único filho homem a sobreviver tendo em vista a morte
inesperada na América do Sul de seu irmão mais velho, que fora trabalhar
como marinheiro.

MacIntosh32 (sic) era dotado de características muito marcantes, não só


profissionalmente, mas também pessoalmente, um delas era o fato de ser
manco. Reza a lenda das Highlands escocesas, lugar de origem do clã dos
MacIntosh, que essa característica é uma maldição que aparece a cada sete
gerações e que vem acompanhada de uma dádiva amaldiçoada. Será essa
dádiva talvez o seu talento como arquiteto, que apesar de ter sido sua glória,
foi também sua derrocada?

30
ARGAN, G.C. p.199
31
JONES, Anthony p.8
32
MacIntosh é a grafia original do nome família, no entanto, em uma situação posterior, que
será ilustrada à frente, Charles mudaria a grafia de seu para a forma como ficou conhecido até
hoje: Mackintosh. A forma adotada por ele é a que será utilizada nessa obra.
27
Fig. 3 William MacIntosh ao centro na foto do time de cabo-de-guerra da polícia de
Glasgow

A genética não só lhe conferiu essa variante, mas também herdou de


sua mãe a fragilidade e a beleza morena.33 Sem dúvida o pequeno Charlie,
agora único filho homem, era seu queridinho.

Além de mancar tinha uma leve queda na pálpebra esquerda fruto de um


jogo de futebol sob forte chuva. O episódio evoluiu de um resfriado para uma
febre reumática que o fazia tremer muito. O produto de tudo isso foi um sutil
defeito nesta parte de seu frágil corpo, o que lhe conferia, conforme crescia, um
ar levemente malévolo e um incrível efeito atrativo sobre as mulheres.34

Nascido em 7 de Junho de 1868, sob o signo de Gêmeos tratava-se de


uma criança tímida que se recolhia em seu mundo particular, desde cedo já
demonstrando o quão ligado á sua época o era. Por indicações médicas de que
deveria praticar exercícios diariamente por causa de suas particularidades
físicas, acostumou-se a andar sem rumo pela cidade e seus arredores.
Passava seus dias desenhando tudo o que via, passatempo que mais tarde o
faria ser comparado a Rafael, por seu futuro chefe Andrew Black.35 Apesar de
não ter restrições quanto aos temas retratados, tinha um apreço especial pela
natureza: passava horas observando-a junto a seu pai no pequeno espaço de
33
CAIRNEY, John p.22
34
CAIRNEY, John p.23
35
CAIRNEY, John p.37
28
terra que tinha e que chamavam de “The Garden of Eden” (O Jardim do Éden).
Lá seu pai William MacIntosh criara uma pequena horta que o ajudava a
alimentar a grande família, como também a exercitar sua paixão: a jardinagem
e a manter sua casa sempre cheia de flores.

Charlie era o protegido das irmãs e principalmente de sua mãe: Mrs.


Margaret MacIntosh de quem herdara além das características já citadas, seu
nome de solteira: Rennie. Era um menino sozinho, sem grandes amigos até
entrar para a Glasgow School of Art. Pelas evidências não se incomodava com
esta solidão: seus blocos de desenho lhe bastavam e eram muito mais do que
bons amigos; eram o florescer de um artista que viria a torcer, de maneira
sublime, encantadora e absolutamente incompreendida, os valores de
arquitetura que o mundo conhecia até então.

Talvez por ser tão querido de sua mãe e irmãs e tendo um pai forte
unindo a todos, tenha se tornado mimado e freqüentemente petulante e
explosivo. Em dados momentos protagonizava sessões de histeria raivosa
muitas vezes por problemas simples que não conseguia resolver de forma
moderada. Em 1875 quando começou sua vida de estudante na John Reid’s
Public School fez poucos amigos e parecia sempre estar sozinho, mas ele
considerava isso irrelevante tendo essa forte estrutura familiar que o apoiava.

Esses surtos de cólera talvez ocorressem por que apesar de na maior


parte do tempo ser um menino quieto, em alguns momentos até soturno, antes
de tudo era uma criança com muita energia acumulada. Desta forma erigia-se
um monólito vertical e muito frágil, apesar de aparentemente estável, que em
dados momentos desabava transformando-se em ruínas de um homem
brilhante, para depois reconstruir-se novamente: característica que carregaria
até o fim de seus dias. Pesquisas póstumas revelam que ele inclusive poderia
ter sofrido, talvez em um grau menor, da síndrome de Asperger, uma variante
mais branda do autismo clássico.36 Se levarmos em conta como o Dr.
Asperger, primeiro sintetizador da síndrome, nos descreve a disfunção, talvez

36
CAIRNEY, John p.26
29
ela tenha ajudado Charlie na sua carreira de artista. Segundo o médico, uma
leve dose de autismo é necessária na formação artística ou científica de um ser
humano, pois dessa forma consegue desvencilhar-se do mundo comum,
concedendo-lhe uma visão mais ampla no campo das idéias.

Até 1877 estudou em escolas comuns, sempre carregando as


características de Asperger, quando foi transferido para a escola Allan Glen’s
High School: um estabelecimento particular para filhos de comerciantes e
artesãos onde, além das matérias comuns, possuía uma oficina técnica para
trabalhos em madeira e metal, o que viria a dar bom encaminhamento para o
seu talento natural para o desenho. Geralmente os alunos saíam desta escola
aos 14 anos, mas para as famílias que pudessem pagar, eram oferecidos mais
dois anos de treinamento específico. Charles fez bom uso dos seus anos nas
oficinas da escola, onde talvez, pela primeira vez tenha surgido a idéia de se
tornar um arquiteto.37

Nessa ocasião, ao ser informado pelo filho de 15 anos do desejo de se


tornar arquiteto, o policial Mr. William McIntosh, agora com um cargo mais
elevado na polícia, não deve ter demonstrado muito entusiasmo com a notícia.
O homem que sonhara com uma carreira igual à sua para seu filho deve ter se
desapontado e se questionado como encararia socialmente a idéia de ter um
filho artista. Apesar disso, aceitou a decisão do filho e, não se sabe como, mas
provavelmente por meio de suas influências e contatos, Charles conseguiu um
cargo de aprendiz no escritório de arquitetura de John Hutchinson, onde
trabalharia durante o dia.

O escritório não fazia parte do seleto grupo de grandes arquitetos de


Glasgow, como James Burnet, que mostrava toda a sua habilidade no uso de
ornamentos adquiridos a partir da sua educação francesa; Thomson, um
aficionado pela Grécia; Sellars, que flertava com o Egito, e Wilson que buscava
referências na Inglaterra. Já John Honeymann, futuro chefe de Mackintosh,
tinha toda a rigidez de um homem cristão no desenho de suas igrejas, apesar

37
CAIRNEY, John p.27
30
de não ser desprovido de um certo tipo de inovação à sua própria maneira,
prova disso é seu Ca’d’oro Building em ferro e vidro.38

Apesar de seu local de trabalho não esbanjar renome, isso não impediu
Mackintosh de executar um trabalho muito qualificado. Como conseqüência,
lhe foram dados mais trabalhos logo de início, aumentando sua experiência.
Além disso, Charles desfrutava de uma relativa segurança: por estar em um
escritório menor lhe era permitido o erro ocasional de um aprendiz.

Em 1883, seu primeiro ano de trabalho, suas noites às terças, quartas e


quintas-feiras e ocasionalmente aos sábados de manhã eram preenchidas com
aulas na Glasgow School of Art, onde começou com cursos de desenho e
ornamentação. Esse rígido cronograma de trabalho diurno e estudo noturno
cobrou muito do jovem artista de apenas 15 anos.

Apesar dos estáveis rumos que sua vida tomava, em 1885 a mãe de
Charlie, Margaret, morre aos 48 anos no dia 9 de Dezembro, com o filho à
beira de sua cama. Inconsolável, o menino havia rasgado metade da roupa que
tinha no corpo e passava parte dos dias encostado no batente das portas,
como se esperasse sua mãe passar.

No ano seguinte ao falecimento de sua mãe, como se a vida tentasse


lhe consolar dando-lhe uma nova companheira logo depois de ter-lhe tirado a
primeira e maior de todas, Mackintosh começa a estudar arquitetura elementar
na Glasgow School of Art com o professor Thomas Smith. E, por incrível que
pareça, é nesse período que esboça a Catedral de Glasgow, um dentre seus
inúmeros grandes projetos não executados.

Em 1889 Mackintosh deixou o escritório de Hutchinson e fui substituído


por outro aprendiz: W.J. Blane, que depois de 60 anos relatou o quão
fascinante eram os projetos de capitéis jônicos de Charles e o quão absurda
era a idéia de terem sido executados por um menino de apenas 16 anos no seu

38
CAIRNEY, John p. 36.
31
primeiro ano como aprendiz. Em suas próprias palavras eram trabalhos:
“surpreendentes em sua vivacidade, vigor e originalidade”. Infelizmente alguns
anos depois esses trabalhos sucumbiram a um incêndio, apagando os registros
de sua juventude na arquitetura.

Ao concluir o curso de arquitetura da Glasgow School of Art e deixar seu


primeiro escritório, onde trabalhou por 5 anos, conseguiu um emprego no
escritório de arquitetura Honeyman & Keppie onde conheceu seu primeiro
grande amigo, colega e futuro concunhado Herbert McNair. Os dois jovens
aprendizes, ambos com 21 anos, davam ao tradicional escritório o frescor do
qual este escasseava. John Keppie, sócio da firma, apesar de ser apenas seis
anos mais velho que Mackintosh era acometido pela rigidez dos estilos
vigentes então. No ano anterior Keppie juntara-se a Honeyman, pois este,
apesar de ser um arquiteto de grande nome na cidade, havia perdido muito
dinheiro nesta década e portanto considerou a possibilidade de aceitar um
sócio em sua firma. A entrada de Keppie, apesar de seus humildes 27 anos,
não deve ter sido das mais complicadas, tendo em vista que seu pai era um
rico comerciante na cidade, injetando assim capital e novos clientes no
escritório.

Além dos fatores econômicos Keppie tinha um currículo invejável para


sua idade e havia estudado com James Sellars, o último dos clacissistas de
Glasgow.39 Apesar da separação hierárquica entre Mackintosh e Keppie,
tinham apenas seis anos de diferença e seus trabalhos se complementavam de
forma que a maioria dos projetos da primeira metade da década de 1890 são
frutos dessa parceria como revelam indícios estilísticos.40

Esse começo da carreira de Mackintosh coincidiu com o afrouxamento


da rigidez clássica de Glasgow, como elucidado no capítulo anterior.

39
CRAWFORD, Alan p.12
40
CRAWFORD, Alan p.13

32
Em 1890, em homenagem ao falecido Alexander “Greek” Thomson, foi
organizado um concurso que daria ao vencedor uma bolsa de £60 para uma
viagem de 3 meses para se realizarem esboços e anotações. Mackintosh se
inscreveu com o projeto “A Public Hall”. Absolutamente grego, pesado e bem
acabado, fazia parte do hall de inúmeros desenhos especulativos de concursos
do qual participou. Eram desenhos rígidos e até impessoais, fugindo muito das
características do Mackintosh posterior. Em geral esses projetos ficavam muito
atrás dos promissores sketches que realizava em viagens pessoais no fim dos
anos 1880, sem o rigor e a formalidade que o aprisionavam na situação dos
concursos.41 Apesar dessas considerações, que só podem ser feitas após o
conhecimento da obra de Mackintosh como um todo, seu projeto estava dentro
do que os organizadores do concurso esperavam e venceu. Fica muito claro
que Charles tinha consciência dessas expectativas. Conhecia o trabalho de
Thomson e a importância de sua arquitetura, e por tal sabia que o que se
esperava dos participantes de um concurso em sua homenagem seriam
desenhos aos seus moldes: clássicos e rígidos. Provavelmente fugia das
ambições estéticas que Mackintosh tinha em mente, mas queria vencer o
concurso então teve de fazer concessões.

41
CRAWFORD, Alan p.12
33
Fig.4: Desenho de Mackintosh para o concurso em homenagem a Alexander Thomson

Em 10 de Fevereiro de 1891, 5 semanas antes de realizar sua viagem-


prêmio, deu uma palestra sobre Scotch Baronial Architecture na Glasgow
Architectural Association. Essa situação nos revela que sua simpatia realmente
jazia nessa que ele considerava a tradicional arquitetura de Glasgow que
posteriormente viria a praticar à sua maneira particular e não no classicismo,
ao qual teve que se render em algumas situações como a do concurso de
Thomson. Segundo ele pode-se aprender a amar os trabalhos da Grécia e
Roma, mas eles são estrangeiros em espírito e muito distantes. Uma de suas
anotações para a palestra dizia “ Como é diferente o estudo da Scottish
Baronial Architecture. Seus exemplos estão às nossas próprias portas... os
monumentos de nossos próprios antepassados, os trabalhos de homens
carregando nossos próprios nomes...”42

Em 21 de Março de 1891 Mackintosh partiu rumo à Itália. O jovem artista


que nunca havia saído da Grã-Bretanha agora estava indo rumo às obras dos
42
CRAWFORD, Alan p.16
34
grandes mestres. Ao chegar em Nápoles no dia 5 de Abril, visitou
principalmente igrejas e museus, sempre desenhando e à noite escrevendo em
seu diário. A pobreza no país o surpreendeu. Em dado momento escreveu em
seu diário: “italianos mendicantes”. Em uma palestra posterior chegou a dizer
que “Nápoles é melhor à distância” e que havia mais de Pompéia no museu de
Nápoles do que nas próprias escavações. Revelando-se assim uma certa
decepção em relação à Itália.

Depois visitou a Sicília. Durante a maior parte do tempo de sua viagem


foi atraído principalmente por obras do começo do cristianismo, medievais e do
começo da renascença e aos detalhes e à decoração mais do que
planejamento e estrutura dos edifícios.

Fig.5: Desenho de um poço em Veneza, 6 de junho de 1891

Seguiu por Roma, passando em seguida por Orvieto, Siena, Florença,


Pisa, Ravenna, Ferrara, Veneza, Pádua, Verona. Ao chegar em Cremona, em
junho, já estava cansado e forçava-se a desenhar. Seguiu por Brescia,
Bergamo, Como e Pavia retornando no princípio de julho.

35
Cruzar a fronteira da Itália e conhecer suas construções representava
para muitos artistas o início de novas fases em suas carreiras, fontes de
inspiração, recriação de conceitos etc. Para Charles, apesar de ganhar primeiro
lugar na exposição de estudantes da Glasgow School of Art com suas
aquarelas italianas e por alguns anos ainda revirar seus cadernos de desenhos
buscando inspirações e referências, a viagem não o mudou tanto quanto aos
demais e a Itália não teve tanta influência sobre seu trabalho. Talvez tivesse
ido cedo demais.43

Charles retornou a Glasgow no verão de 1891 ao apartamento em que


crescera em Firpark Terrace. Mas continuariam a residir lá por pouco tempo
pois a família estava para crescer. Mudaram-se no ano seguinte para uma
casa-terraço no número 2 de Regent Park Square, uma rua muito respeitável
ao sul de Clyde. O agora viúvo William MacIntosh, pai de Charles, fora
promovido a superintendente em 1889 contando assim com um salário um
pouco melhor. Essa situação veio a ser muito conveniente pois em 8 de julho
de 1892 casou-se com a viúva, e melhor amiga de Margareth MacIntosh,
Christina Forrest.

Christina tinha 37 anos e seu marido morrera havia 7. William tinha 56 e


sua esposa havia morrido há 9. Sendo a melhor amiga da Mrs. MacIntosh, a
nova madrasta já era bem conhecida da família, e os dois viúvos foram
lançados um ao outro pelas circunstâncias: William precisava de uma mãe para
suas filhas e ela de um marido para status.44

Na ocasião do casamento deu-se um fato interessante e bastante


relevante para a história de Charles. Quando MacIntosh pai foi assinar o livro
de casamento percebeu que a grafia de seu nome estava incorreta: lá constava
Mackintosh. Mesmo tendo visto deixou passar, assinando-a da mesma forma.
O chefe de polícia, John Boyd, a testemunha, não notou o erro e também
assinou, tornando o ato legal. Charles gostou da nova grafia e decidiu adota-la,
tornando-se assim Charles Rennie Mackintosh como é conhecido até hoje. O
43
CRAWFORD, Alan p.18
44
CAIRNEY, John p.70
36
episódio tornou-se uma piada na família e depois de algum tempo William
conseguiu retificá-lo, mas o episódio deixou como legado a nova grafia de um
dos nomes mais importantes da arquitetura moderna.45

No dia 6 de setembro daquele ano deu uma palestra aos arquitetos de


Glasgow sob o tema “A Tour in Italy” (“Uma Viagem pela Itália”). Para evitar a
monotonia de palestras desse tipo e sua convencional apresentação de fatos e
datas decidiu lançar mão do bom humor. Desta forma, em dado momento,
aconselhou seus ouvintes a nunca ficarem no Albergo Rubecchino se um dia
fossem a Palermo.46

Mackintosh, apesar de educadamente, fez questão de deixar bem clara


sua frustração em relação a algumas grandes obras italianas, o que levou a
comentários de alguns ouvintes de que os prédios principais foram criticados
de forma bastante incisiva.47

Contudo também revelou que sua primeira visão do Rialto o “deixou sem ar” e
em relação à Igreja de San Marco disse que: “uma composição mais nobre
jamais fora exibida pela arquitetura”.48

Algum tempo depois, no mesmo ano palestrou para um publico, hoje


desconhecido, sobre arquitetura elizabetana. Este tema tão inglês e por isso
bastante controverso para a palestra de um escocês, revela o gosto de
Mackintosh pelo passado, além de seu ecletismo e ânsia por aumentar suas
referências em arquitetura. Segundo ele nas construções elizabetanas havia
um cuidado com o efeito arquitetônico, eram em geral verdadeiras e
apropriadas, de forma que o desenho raramente desagradava. O estilo falava
da vida no lar e do conforto e certamente foi mais nacionalista do que todos os
estilos que o seguiram.

45
CAIRNEY, John p.71
46
CAIRNEY, John p.71
47
CAIRNEY, John p.72
48
CAIRNEY, John p.72
37
É fortuito, portanto, reparar como as palestras de Mackintosh, em geral,
remetem ao passado e a referências arquitetônicas mais tradicionais como o
Scotch Baronial Style e a arquitetura elizabetana. Revela-se assim uma busca
indiscriminada por referências, sem preconceitos, explorando inclusive, como já
se viu, uma arquitetura clássica e renascentista, às quais era contra no que diz
respeito à continuação de sua então prática contemporânea. Assim construiu
um repertório estético muito vasto o que permitiu a diversidade e consistência
de seu trabalho, culminando em críticas contemporâneas que o chamavam de
“clever” (sagaz, esperto), em ambos os sentidos: no de ser um jovem com boas
idéias e bom gosto capaz de propor mudanças consistentes e bem
conceituadas, mas também como um principiante que facilmente cairia em
contradição e em um estilo fugaz.

Como se viria a perceber suas obras em nada eram despreparadas e


inconsistentes. Seu discurso, e principalmente suas obras eram suaves, em
alguns momentos até decorativas (o que para muitos trata-se de uma heresia),
mas em momento algum desprovidas de reflexão. Não que se trate de uma
obra conceitual, mas sim de construções que foram pensadas e planejadas de
forma bastante responsável e não construídas ao léu, sobre as fracas bases de
um mero estilo. Isso revela muito do que Charles acreditava como nos mostra o
pensamento de J.D. Sedding que viria a se tornar um de seus pilares: “There is
hope in honest error, none in the icy perfections of mere stylist” (“Há esperança
no erro honesto, mas nenhuma nas gélidas perfeições de um mero estilismo”).

Em geral Mackintosh era mais atraído por prédios menos grandiosos


que os italianos da sua viagem. Sua fascinação residia realmente sobre
edifícios mais modestos. Nas viagens que realizou pela Escócia e Inglaterra
entre 1893 e 1898 encheu seus cadernos com desenhos e anotações de
estruturas mais simples tais como igrejinhas, tabernas, lojas pitorescas,
celeiros e muitos detalhes de portas, trabalhos em pedra, arcos, janelas, travas
etc. Seu interesse se encontrava mais no trabalhos de operários habilidosos

38
que no de grandes arquitetos, dos quais erguiam-se, por meio de suas mãos
sem conhecimento acadêmico, edifícios admiráveis.49

Em 1893, seu pai, provavelmente a pedido de sua nova esposa, mudou-


se com a família para uma grande casa chamada Holmwood em Langside
Avenue em Queen’s Park district.50 Em 1896 a família Mackintosh, novamente
se mudou por causa de sua mais nova integrante. Desta vez retornaram a
Regent Square, só que agora no número 27.51 Charles pediu que ficasse com o
porão, pouco provavelmente alguém se opôs. Transformou-o em seu pequeno
estúdio onde criou trabalhos gráficos e em metal.

Da casa antiga para a nova transferiu os seus frisos de estêncil de


gatos, símbolos do clã dos MacIntosh. Lá ocorreu um episódio bem relevante
que demonstra essa sua fascinação e busca pela compreensão do passado:
Charles demoliu a cobertura da lareira para revelar uma mais antiga, mais
simples, remanescente da arquitetura do homem comum que tanto permeava
seus pensamentos.52

49
JONES, A p.23-26
50
CAIRNEY, John p.81
51
JONES, A p.29
52
JONES, A p.30
39
Fig. 6: Quarto de Mackintosh no porão da casa de seu pai.

Esse estúdio sobrevive apenas em uma fotografia onde se notam os


estênceis na parede, um gabinete de design próprio, sobre a lareira, apesar de
difícil de decifrar mas há certamente exemplos dos Pré-Rafaelitas e duas
grandes figuras japonesas, revelando sua fascinação pelo país e sua
inquestionável influência sobre seu trabalho. Nessa foto também, quase no
centro, no gabinete, encontram-se uma série de livros dos quais, infelizmente,
não conseguimos ler os títulos.

Mackintosh confiava no passado e na sabedoria do seu povo e na


arquitetura que este construiu, mas nem por isso prendeu-se a ele: conheceu-o

40
e reinventou-o. Como seus contemporâneos na Escócia, na Grã-Bretanha e
principalmente no continente, em especial os praticantes do Art Nouveau, em
um movimento pós-romântico retornava às culturas locais e as reinventava.
Desta forma não se estabeleceu apenas como um artista brilhante, mas como
sendo uma das principais mentes então, e como modesto pensador, que não
fazia questão de publicar manifestos, nem gritar seus preceitos, mas que
inseria delicadamente tudo o que acreditava em seu trabalho e assim
influenciou muitos em seu tempo e continua a fazê-lo até hoje.

41
Capítulo 3
O Glasgow Style

Apesar de Mackintosh ter uma produção conceitualmente muito


semelhante à dos artistas, designers e arquitetos Art Nouveau do continente,
sua postura em relação ao estilo era bastante controversa. Mary Newbery
Sturrock, filha de “Fra” Newbery, dizia que: “Meu pai... e Mackintosh não
gostavam do Art Nouveau. Ele lutava contra ele com linhas retas, contra essas
coisas... que parecem margarina derretida”53.Se havia algum movimento
continental em que estivessem realmente interessados era o Simbolismo, tanto
em suas manifestações nas artes visuais como na literatura. Não só
Mackintosh e Newbery bebiam dessa fonte como também boa parte dos alunos
da Glasgow School of Art e pessoas ligadas a ela de alguma forma.54

Francis “Fra” Newbery (1853-1946), pintor, educador e administrador de


considerável habilidade assumiu a chefia da escola em 1889. Apesar da escola
estar sob controle do Departamento de Arte, Ciência e Educação do Governo
em South Kensington, em Londres, onde a dura estrutura curricular era
elaborada, “Fra” era conhecedor e mais do que um simpático promotor das
novas tendências em arte, design, artesanato e arquitetura, tendo observado
seus desenvolvimentos diretamente em Londres, onde vivia antes de mudar-se
para Glasgow.

A estrutura curricular era bastante rígida e repetitiva, entretanto Newbery


tornou a escola um ambiente razoavelmente liberal e que, pelo menos, tolerava
experimentação pessoal e desenvolvimento individual: um contraste em
relação à rígida e sufocante formalidade de boa parte da sociedade vitoriana.55

53
JONES, A p.21
54
JONES, A p.21
55
JONES, A p.15
42
A instituição era considerada de alta qualidade, cuja performance dos
estudantes em várias competições nacionais a colocavam como uma das
melhores na Grã-Bretanha.56

Francis tinha a habilidade de achar e encorajar talento criativo e


originalidade e, ao chegar a Glasgow encontrou uma abundância em alunos
habilidosos nascidos e criados na cidade, os quais ele viria a educar e
posteriormente promover.

Dois desses alunos foram identificados por ele como excepcionalmente


promissores: “Toshie” e “Bertie” respectivamente como eram conhecidos pelos
íntimos Charles Rennie Mackintosh e Herbert Macnair (1868-1955). Os dois
melhores amigos e colegas, tanto de escola como de escritório, foram
aproximados pelo diretor às irmãs Margaret (1865-1933) e Francês Macdonald
(1873-1921).

Fig.7: Charles Rennie Mackintosh fotografado por J. R. Annan em 1893

56
JONES, A p.15
43
Em torno de 1893 Charles e Jessie Keppie, irmã de John Keppie, seu
chefe, tinham um relacionamento amoroso. Provavelmente por meio dela os
dois amigos se aproximaram de um grupo de mulheres estudantes da escola
que se auto-intitulavam “The Immortals”, que incluía, além de Jessie, as irmãs
Macdonald. Entretanto o apoio para o estreitamento dos laços entre os quatro
provavelmente foi dado pelo diretor que identificava muitas semelhanças entre
seus estilos e interesses.

Fig.8: Mackintosh e “The Immortals”

44
Fig. 9: Charles rennie Mackintosh, Herbert Macnair, John Keppie e “The Immortals”

O trabalho das duas irmãs era diferente do restante. Elas pintavam


mulheres magras, andróginas, algumas vezes dolorosamente alongadas, em
meio a linhas estilizadas que se entrelaçam aos emaranhados de cabelos,
árvores ou botões de flores. As suas figuras foram influenciadas pela literatura
do poeta belga Maurice Maeterlinck, com sua melancolia atemporal, e pelo
movimento Simbolista. Seus trabalhos não são sempre fáceis de entender, pelo
contrário, em geral deixam o observador um tanto perplexo por não saber por
completo o que se passa na obra.57 Desta maneira quebrava-se toda uma
estrutura vitoriana e européia em geral de uma sensação de absoluto domínio
e controle sobre todas as situações, como visto na introdução desta obra. O
observador da época esperava essa compreensão absoluta também em sua
dialética com o objeto de arte, não tolerava a não compreensão de qualquer
coisa que fosse, mesmo que fosse uma compreensão errônea ou precipitada.
E assim, no movimento de fuga que as irmãs empreenderam, assim como
muitos de seus contemporâneos, como já visto anteriormente, talvez o tenham
57
CRAWFORD, Alan p.26
45
feito, consciente ou inconscientemente, também em relação ao seu
observador. Distanciaram-se dele para que este tomasse consciência de sua
eventual impotência, atributo inerente à condição humana. Talvez quisessem,
além de executar esta fuga em termos de temática, apelando à natureza e à
estilização da figura humana e seu conseqüente distanciamento de seus
atributos humanos, abrir os olhos dos observadores para a idéia de que não se
é possível ter controle e domínio sobre tudo. Desta maneira libertam-se da
necessidade de compreensão da obra pelo observador, estabelecendo-se
assim um forte movimento abolicionista nas artes, em que a narrativa oculta é
muito mais importante do que a explícita (se é que ela existe) tornando-se um
trabalho ainda mais importante do que ainda hoje é considerado. Assim, como
alguns contemporâneos, deram os primeiros passos no sentido de abrir, direta
ou indiretamente, o caminho para que artistas, nascidos muitas décadas
depois, pudessem executar trabalhos absolutamente herméticos e
incompreensíveis a observadores despreparados, o que torna o trabalho das
irmãs e das pessoas próximas a elas, que executaram obras de caráter
semelhante, ainda mais importantes do que são consideradas na atualidade
pelos pesquisadores do tema.

Críticos da época, mais incomodados do que com as formas alongadas


estavam com o erotismo intrínseco que enxergavam nas obras e nas
associações com a “Nova Mulher”. Historiadoras feministas inclusive vêem nas
obras um lampejo de protestos contra os efeitos do patriarcalismo.58

58
CRAWFORD, Alan p.26
46
Fig.10: Convite para o Clube da Glasgow School of Art por Margaret Macdonald, 1893

A despeito das leituras posteriores atribuídas a trabalhos tão herméticos


e dialéticos o trabalho que estes quatro amigos desenvolveram trouxe consigo
uma série de idéias e formas que inegavelmente conduziram muitos de seus
colegas por novos rumos artísticos. O grupo reunido por meio do diretor
Francis Newbery, veio a se chamar, “The Four”. Embora se diga que o nome
tenha sido criado imediatamente, é bem provável que só tenha surgido
postumamente.59

Apesar de Mackintosh e McNair já flertarem com essas influências


simbolistas que jorravam por todos os lados na Europa sua consolidação como
principais criadores de um estilo que reformaria mentes especialmente na
escola se deu com a união com as irmãs que, por sua vez, já possuíam um

59
CRAWFORD, Alan p.26
47
trabalho bem maduro nesse sentido. A colaboração desses quatro artistas
avant-garde se estabeleceu com bases muito sólidas que formalmente
perduraram por muitos anos. Em verdade, direta ou indiretamente, essa união
os acompanharia até os últimos instantes de suas vidas com os
desdobramentos pessoais, psicológicos e artísticos surgiram.

Fig.2: Pôster para o “The Glasgow Institute of the Fine Arts” por Francês e Margaret
Macdonald e Herbert Macnair
As duas irmãs quase que arquetipicamente assumiram os papéis das
mulheres idealizadas de suas obras que espalhavam pela terra fertilidade e

48
inspiração. Os dois amigos aproximaram-se delas, estabelecendo-se em torno
do que elas haviam experimentado até então, assim beberam da sua
abordagem tão bem resolvida do simbolismo. Desta relação surgiram trabalhos
e pensamentos que não só inundaram as mentes dos colegas contemporâneos
da escola e da cidade como também cruzaram as fronteiras do império e
chegaram ao continente. Mas este episódio ocorreria alguns anos depois com
o desdobrar dos acontecimentos gerados pela produção do “The Four”.

Fig.12: “Summer” por Margaret Macdonald, 1893


Newberry certa vez disse que seu objetivo era “prover Glasgow com
uma raça de designers que ela mesma tivesse criado”60 e nada mais que isso
ele fez ao unir os quatro estudantes que viriam a alimentar uns o trabalho dos
outros gerando uma produção de incrível porte. Não por acaso eram os mais
brilhantes alunos da escola, seus trabalhos eram repletos de congruências
entre si e Newberry não poderia ter feito algo mais significativo para essa

60
CAIRNEY, John p.83
49
geração de Glaswegians designers que queria criar do que lançar a semente
para que este grupo nascesse e posteriormente pudesse dar tantos frutos á
cidade e ás artes.

Fig.13: Jessie Newberry, 1900

A produção do “The Four” não era absolutamente diferente do que


acontecia com seus colegas de escola. Em sua maioria eram tomados pelas
influências simbolistas e criavam trabalhos de teor bastante similar. Entretanto
foi o grupo que centralizou as atenções desses jovens artistas traçando
inconscientemente um eixo criativo para suas criações. É inegável que o centro
do que acontecia na produção dos alunos era o “The Four”, e ainda mais no
núcleo, apesar de suas modestas aspirações, estava Charles Rennie
Mackintosh. É como se a Glasgow School of Art contivesse o Glasgow Style,
que contivesse o “The Immortals”, que contivesse o “The Four” e no centro de
tudo estivesse Mackintosh.

O estilo era um aglomerado de influências e temas aos quais muitos


eram atraídos. Apesar de não ser um movimento plenamente estabelecido e
coeso é facilmente identificável na utilização de sua característica iconografia
como rosas, temas da natureza, referências literárias, nuances místicas e
figuras alongadas. Os materiais e técnicas utilizados para a confecção dos
50
trabalhos, assim como as referências, eram muito vastos, iam do têxtil à
metalurgia passando pelos bordados, vidros, cobre batido, mobiliário,
encadernação de livros, cerâmica, ilustração etc.

Fig.14: Marion Wilson, 1905


O estilo, além de promover uma abordagem do retorno à natureza
diferente da do continente, tornou-se notável pelo elevado número de bem
sucedidos membros do sexo feminino. Esse fenômeno não se deu por acaso.
O fato do estilo ter ocorrido principalmente no seio da Glasgow School of Art
lhe foi conferido uma série de atributos que em outro lugar ou momento
histórico seria impossível como a expressão individual e o destaque dessas
moças. Esse flanco de mulheres talentosas e, ás suas maneiras
revolucionárias, encontrou na escola um relativo distanciamento das rígidas leis
da sociedade vitoriana. O ambiente era tão emancipado que alguns anos
depois uma dessas celebradas mulheres do estilo, Dorothy Carleton (1880-
1933), foi nomeada diretora, mas infelizmente não pode assumir por causa de
sua morte prematura.

A presença dessas mulheres é essencial ao estilo, como se sua força,


sua energia, antes praticamente inexistente na história da arte, tivesse
alavancado naquela cidade, naquele momento histórico todo um ciclo de
renovação sem precedentes. A manifestação da criatividade feminina dessa
51
forma, pouco provavelmente teve precedentes na história, pelo menos não tão
abertamente. Seu frescor, imaculado das durezas das academias de arte e
sem as correntes que as aprisionavam às formas masculinizadas da prática
artística, permitiram uma nova abordagem ao objeto estético.

Para mackintosh essa influência também foi muito relevante. Durante


toda sua vida foi cercado por mulheres que o adoravam e protegiam, e assim
seria até o fim de sua vida. Charles, com a série de problemas físicos e sociais
que possuía cresceu não simplesmente cercado pelas suas muitas irmãs, mas
também protegido e venerado por elas. Além delas ainda tinha sua tão amada
mãe que provavelmente o mimava por ter sido o único filho homem a
sobreviver e, ironicamente, ao que tudo indica, o mais frágil. Provavelmente
tenha sido por isso que “Toshie” desenvolveu essa afinidade e charme para
com as mulheres e esse estilo tão suavemente feminino que marcou todos os
seus trabalhos.

Suas relações sem dúvida eram mais fáceis com as mulheres do que
com os homens, conclusão óbvia feita a partir da análise de sua história. Em
verdade poucos são os homens com que Charles criou laços mais fortes de
amizade e afeto como Herbert McNair, seu melhor amigo, e Hermann
Muthesius, seu compadre que aparece mais adiante em sua história. Para ele
essa afinidade deve lhe ter sido muito difícil de praticar em tempos vitorianos
em que as moças raramente misturavam-se aos rapazes. Mais uma vez a
escola vinha para ajudar nesse sentido e provar que somente neste ambiente
que tal estilo poderia ter florescido.

Antes dos dois amigos serem encorajados a trabalharem com as irmãs


Macdonald pelo diretor, eles uniram-se às já citadas “The Immortals”. Em 1893
os dois, as imortais e John Keppie fizeram uma viagem à Prestwick, que
chamavam de “Roaring Camps”. Talvez lá tivessem tido o primeiro contato com
as irmãs, mas tudo, até onde se sabe, manteve a mais perfeita ordem e pudor
sob os rígidos olhos de Keppie, irmão mais velho de Jessie, então namorada
de Toshie.

52
Sabe-se que Herbert encantou-se à primeira vista com Francês, Toshie,
por sua vez, continuava atrelado à sua namorada. Independentemente disso a
relação com as “Immortals” libertou Charles social e pessoalmente, abrindo-lhe
as portas para o relacionamento com as mulheres para o qual tinha tanta
facilidade, mas que talvez não tivesse tido a oportunidade de usufruir até então.
Por outro lado ao tornar-se um dos “The Four” o efeito foi ainda maior: libertou
sua imaginação.61

Desta forma a mesma força feminina que criou Charles, o libertou e o


inspirou, provendo-lhe o que necessitava para ser a grande mente que
informalmente tornara-se centro do “Glasgow Style”. A partir disso ele
alimentava o restante dos praticantes, que em sua maioria eram mulheres.
Assim criou-se um ciclo: as mulheres alimentavam a mente de Mackintosh e
Mackintosh alimentava indiretamente as mentes das mulheres do estilo. Sua
imaginação era sensível à feminilidade e ela florescia na companhia das
mulheres.62

Os principais nomes do estilo, depois do “The Four” foram: Janet Aitken,


Emily Arthur, Muriel Boyd, Helen Paxton Brown, Ailsa Craig, Peter Wylie
Davidson, Margaret de courcey Lewthwaite Dewar, John Ednie, Annie French,
Margaret and Mary Gilmour, Alex David Hislop, Jessie King, George Logan,
Ann Macbeth, Talwin Morris, Jessie Newbery, James Salmon, Dorothy and
Oliver Carleton Smythe, E.E. Taylor, George Walton, Marion Wilson, Jane
Younger. Esses e outros contribuíram substancialmente para o crescimento e
estabelecimento do estilo e, curiosamente, obtiveram maior aceitação pública
que os trabalhos mais “extremos” de Mackintosh.63 Charles, como já dito,
centralizava as atenções do estilo, talvez isso tenha ocorrido por ter sido o mais
revolucionário e à frente de seu tempo e, pelos mesmos motivos, tenha sido
menos aceito pela crítica e pela sociedade de então.

61
CRAWFORD, Alan p.26
62
CRAWFORD, Alan p.27
63
JONES, A p.17
53
Entretanto, colocar Mackintosh no centro absoluto de toda a produção
do estilo não só é precipitado como pode provar-se errôneo, apesar de este ser
um ponto de partida muito recorrente em análises à cerca do tema. Ao fazê-lo
dissocia-se a produção do estilo de todo um cenário que está intimamente
atrelado a ele: uma cidade efervescente e uma escola repleta de atividades e
aberta à novas idéias e possibilidades diferente de tudo que já se vira antes. E,
infelizmente, as análises sobre o tema cada vez mais se dão a partir dessas
colocações. Desta forma cada vez mais a produção do estilo é analisada em
relação a Charles Rennie Mackintosh: quanto mais próximo do seu trabalho,
mais autenticidade lhe é atribuída. É como negar toda a produção desses
infindáveis artistas e concluir que a única realmente relevante é a de
Mackintosh. Encontra-se aqui um entrave ético de deslealdade com relação à
veracidade dos fatos. A genialidade de Mackintosh é inegável, tanto que inspira
reflexões como esta até hoje, mas isso não impede que outros tenham sido tão
brilhantes ou talvez até mais. Nesta obra optei por abordar essas duas análises
diferentes, passando ao leitor a responsabilidade de escolher em qual lado
acreditar e proporcionando-lhe a oportunidade de dialogar com os dois.64

Com o estabelecimento deste ponto de vista centralizador de


Mackintosh, tem-se a nítida impressão de que nenhum artista ou designer
tenha saído da Glasgow School of Art sem sua influência direta ou indireta, o
que é muito inverossímil por uma série de fatores além de se ter a inocente
idéia de que todos praticavam o estilo de alguma forma. Primeiro pois apesar
de o estilo permear boa parte da escola, nas competições de arte de que
participava, os nomes dos praticantes do estilo raramente eram citados entre
os quase 600 prêmios que a escola recebeu na década de 1890. Talvez pela
incompreensão dos críticos e jurados então? Difícil dizer. Segundo pois toda a
influência que supostamente Charles exerceu sozinho sobre a criação intensa
e original do estilo só se deu de fato com sua associação ao “The Four” o que
só vem a sustentar a idéia de que o grupo era talvez a verdadeira centralização
do estilo e que a obra de Mackintosh seria mudada definitivamente após essa
união e que grande parte de sua grandiosidade e genialidade se deve à ela.

64
ROBBINS, Daniel p.65
54
Esse pequeno destaque do estilo nas competições também nos revela
que ele foi mais limitado e efêmero do que a relação com Charles nos leva a
crer. E, inclusive, as poucas ilustrações dos vencedores dessa época revelam
que para a maioria dos estudantes o estilo era de relevância limitada e
periférica no que lhes dizia respeito. Tais traços demonstram que, em verdade,
o estilo, apesar de ter muitos desdobramentos posteriores, foi menor do que à
primeira vista as principais correntes históricas do tema podem sugerir. É
inegável que ele alimentou a mente de Charles e que Charles o tenha
alimentado, talvez tenha sido essa relação que tenha tornado o estilo tão
relevante: por ter sido a base criativa para o trabalho de um gênio. Talvez, sem
Mackintosh, o estilo não teria passando de um mero movimento de estudantes
sem grande relevância. É bem provável que por isso tão freqüentemente a
figura de Charles seja colocada como o centro do movimento, pois em verdade
a grandiosidade e importância do estilo só se deu por meio de sua figura e
pelos demais integrantes do “The Four”, sendo os seus trabalhos, até onde se
sabe, os mais relevantes para a história da arte, do design e, posteriormente,
da arquitetura.65 E é bem provável que esta tenha sido a diferença do trabalho
do grupo para os demais: foi um dos poucos, se não o único, a realmente
ganhar força no continente e a ter desdobramentos posteriores.

É bem relevante citar a importância vital que “Fra” Newbery teve para o
surgimento, depois consolidação e perpetuação, do Glasgow Style. Sua
energia, ambição, e determinação; seu comprometimento com o ensino do
design, e acima de tudo seu entusiástico encorajamento da individualidade
foram a chave para a criação de um ambiente simpático e estimulante,
características essenciais para o surgimento de um estilo repleto de
particularidades.66 Após uma exposição da escola em Liége na Bélgica em
1895 o secretário do “l’Oeuvre Artistique” escreveu para Newbery elogiando-o:
“Nossas escolas de arte estão longe, bem longe mesmo, de serem tão
avançadas quanto a sua e o que nos impressionou acima de tudo em seu
trabalho é a grande liberdade conferida aos alunos de seguirem suas próprias
65
ROBBINS, Daniel p.66
66
ROBBINS, Daniel p.66
55
individualidades, o que é tão diferente... das nossas escolas... é tão difícil para
nós compreendermos esta liberdade...que nós tanto admiramos67”.

Fig.3: Francis Newberry,1885

Além dos adjetivos pessoais Newbery possuía um talento para


administrar e provou-se um excelente gestor para a escola. Em 1901 o jornal
local “Glasgow Herald” comentou os avanços da Glasgow School of Art nos
últimos 16 anos sob o comando de Francis: a verba do governo e os gastos
com salários quase dobraram. O número de professores havia passado de 8
em tempo integral em 1885 para 47 de meio-período e período integral em
1900, sendo que desses, 16 ensinavam artes decorativas. 68

Em 1889 o diretor criou o Glasgow School of Arts Club do qual podiam


se tornar membros alunos e egressos. Eram organizadas competições mensais

67
JONES, A p.33
68
ROBBINS, Daniel p.66
56
com prêmios entregues pelo próprio “Fra”. Entretanto a exposição anual, no
outono, tornou-se o foco principal do clube.69

Em 1900 essas exposições estavam recebendo atenção da imprensa


escocesa e gerando artigos na revista “The Studio”, uma das principais
publicações sobre artes decorativas na época. De 1889 a 1893 passou-se sem
grandes comentários sobre essas exposições, até que no ano seguinte deu-se
a primeira apresentação de trabalhos do “The Four” como um grupo auto-
colaborador.

Não se sabe exatamente quais trabalhos foram exibidos na exposição


de 1894 mas a reação da imprensa e do público está muito bem documentada.
Os jornais locais foram atingidos pela extraordinária qualidade de “pesadelo”
contida nas obras de peculiar distorção da figura humana. As figuras
levantaram violentos protestos e debates. Os críticos chamaram-nas de
“fantasmagóricas” e condenaram-na: “formas impossíveis, cor lúrida e
simbolismo que requer muitas notas de rodapé de explicação” é provável que
seja dessa época o apelido de “The Spook School” (Escola do susto, do
terror).70 Nesse ano os prêmios foram concedidos pelo pintor, nativo da cidade,
Alexander Roche que divagava sobre a procedência desses trabalhos de
“cemitério”. Seus comentários geraram uma assertiva resposta de Newberry
que dizia que havia encorajado o que o sr.Roche tão vigorosamente condenava
e, quanto ao estilo do design condenado, poderia até levar ao cemitério, mas
acreditava que antes levaria à um outro lugar. E em verdade levou: inspirou
uma série de alunos da escola que encontraram nos primeiros trabalhos do
grupo uma iconografia que levaria ao desenvolvimento de um vocabulário
autêntico e reconhecível do Glasgow Style.71

Tal vocabulário, tão característico, surgia principalmente da natureza,


inspiração maior do grupo e do estilo. Assim como no Art Nouveau continental
os trabalhos eram permeados por pássaros em vôo, insetos, borboletas, flores;

69
ROBBINS, Daniel p.67
70
CRAWFORD, Alan p.29
71
ROBBINS, Daniel p.68
57
mas a imagem mais recorrente e importante é sem dúvida a das rosas e seus
botões. Suas aparições eram muito variáveis: mulheres as segurando,
transformando-se nelas, confundindo-se com seus cabelos, envolvendo suas
figuras e tantas outras infindáveis abordagens que se poderiam dar a figuras
tão misteriosas e ambíguas nesses trabalhos tão obscuros. As manifestações
desses temas se davam geralmente em uma paleta composta principalmente
de roxos, verdes e rosas. Ao contrário do continente, excessivamente curvo e
rebuscado, os praticantes do estilo lançavam mão de uma linearidade mais
firme, esparsa e controlada como que em uma resposta às manifestações
continentais. Não se sabe se faziam essa contraposição consciente ou
inconscientemente. Entretanto, principalmente em um estilo como estes, tão
limitado geograficamente e em número de membros, é possível, como
enriquecedor não só observá-lo como uma massa uniforme, mas também as
mentes individuais. Jessie Newberry, ex-aluna da escola, que depois veio a se
casar com o diretor, adquirindo seu sobrenome, declarava seu entusiasmo
pela:”oposição da linha reta em relação à curva; do horizontal ao vertical”. Essa
análise mais microscópica da situação nos revela algumas surpresas como o
pensamento de Jessie que se contrapõe ao que se concluiria se o movimento
fosse observado apenas como uma única consciência coletiva. Pode-se dizer,
como já visto nesse capítulo que, Charles e “Fra” estavam mais do que
conscientes no combate às excentricidades do Art Nouveau do restante da
Europa e, talvez, por Charles ser o catalisador de grande parte das ações do
estilo, o restante o tenha seguido, em alguns casos inconscientemente e, em
outros, como o de Jessie, conscientemente.

A figura da rosa era um dos grandes ícones do Glasgow Style, mas uma
outra rosa estava eriçando toda a Europa naqueles tempos: a ordem Rosacruz.
Em 1891, em Bruxelas, se deu a Exposição Internacional Rosacruz e, apenas
três anos depois, os sussurros dessa misteriosa ordem, que se dizia ser
detentora de segredos guardados por século, passados de membro para
membro, aproximavam-se de Mackintosh por uma série de pessoas próximas a
ele. Sabe-se que “Fra” Newberry era membro dessa ordem, assim como seu
chefe do departamento de pintura M. Paul Delville e o amigo de Charles, Talwin

58
Morris. Era quase impossível evitar as influências.72 Pouco se sabe sobre a
influência direta da ordem na obra de Mackintosh e, conseqüentemente do
estilo. Mas não se precisa saber muito sobre a simbologia da ordem e seus
segredos para vislumbrar que seu símbolo seja uma cruz e uma rosa e que,
por pessoas tão próximas e por ser o assunto da vez na Europa, essa
influência tenha atingido-o diretamente. A explicação para a repetição desta
imagem no trabalho de Charles pode, inclusive, não ter absolutamente nada a
ver com a ordem, entretanto as “coincidências” e fatos mais do que nos levam
a acreditar no forte poder que essa temática surtiu sobre ele.

A estilização descompromissada da forma humana, pivô de tantas


discussões, foi mais uma preocupação do “The Four” que mantinha-se como a
manifestação mais radical do estilo. Em verdade, no início do movimento, a
figura humana pouco aparece no trabalho dos demais, depois elas passam a
ser mais recorrentes, mas nunca tão excêntricas e combinadas a florais
produzindo efeitos ambíguos como as do grupo de Charles, Herbert e das
irmãs. Em 1901, um crítico anônimo disse que: “ A peculiar combinação” de
formas orgânicas e humanas era característica do “The Four” e “esta utilização
da figura humana é o principal motivo das críticas para muitas pessoas”73. É
inclusive curioso que quando seus trabalhos não carregavam essas imagens
eles eram, em geral, bem recebidos pela imprensa. Isso levanta uma discussão
bem pertinente do porquê isso ocorria. Bem provavelmente pelos mesmos
motivos elucidados no 8º parágrafo desse capítulo. A deformação de formas
naturais, que tornam-se, em alguns casos, quase abstratas é perfeitamente
aceitável, pois não trata, pelo menos não tão diretamente da condição humana.
E, em um tempo em que o homem cada vez se afastava mais da natureza em
termos literais, menos se identificava com ela, logo sua estilização não o
“ofendia”. Entretanto a figura humana é diretamente associada à condição do
homem e sua deformação denota diretamente uma desconstrução social e
humana que cada dia que se passava tornava-se mais evidente e
inconvenientemente real. Além disso tudo, é claro, atingia-se em cheio o centro

72
CAIRNEY, John p.83
73
ROBBRINS, Daniel p.68
59
dos pudores vitorianos com formas sedutoras e, em alguns momentos, até
eróticas.

Em 1900 o Evening Times, revendo a breve história do clube até aquele


momento, comenta que:
“os trabalhos exibidos, revelam um progresso marcado,
particularmente no departamento de artes e ofícios, em que
Newberry, acreditando que os artigos mais comuns do uso
diário deveriam ser feitos artisticamente, sempre encorajou
estudantes a se interessarem.”74

Essas palavras nos revelam um Newberry extremamente engajado e


seguidor das palavras de William Morris, John Ruskin e seu movimento “Arts &
Crafts” que defendia produtos de qualidade, feitos artística e artesanalmente, à
todas as pessoas. Ele cultivava conexões ativamente com os líderes desse
movimento durante os anos imediatamente após sua indicação ao cargo de
diretor. Uma série de palestras levou a Glasgow no final dos anos 1880
algumas das mais inspiradoras dessas figuras como Walter Crane e o próprio
William Morris, a quem Newberry se referia como amigo. Na palestra de Morris
este disse que “o prazer de criar algo que se não possuísse sua individualidade
nunca teria existido é o maior prazer que o mundo oferece”.75Tais encontros
devem não só ter inspirado e permeado o imaginário de muitos dos alunos,
mas definido os seus rumos e, conseqüentemente os do Glasgow Style, seu
surgimento e estabelecimento.

Esse trecho do Evening Times também nos sugere algo que


encantaria Mackintosh, um conceito de viver a arte, de ambientes que
fossem inteiramente concebidos com esse pensamento: o
Gesamtkunstwerk – um trabalho de arte completo, tema a ser
elucidado mais á frente nesta obra.

74
ROBBINS, Daniel p.69
75
ROBBINS, Daniel p.71
60
O período de euforia de crescimento da escola até 1901 culminou no fim
da construção da primeira fase do novo edifício, projeto de Mackintosh. Ou
seja: Francis criou o ambiente para o Glasgow Style que formou e foi formado
por Charles, que por sua vez transformou em arquitetura o que havia
experimentado em termos de artes visuais e decorativas com o movimento e o
“The Four”, construindo aquele que seria considerado o primeiro edifício
modernista da Europa. Newbery mais do que proveu a cidade com designers
nativos, mas abriu caminho para o surgimento de um gênio, alianças artísticas,
novos pensamentos e uma infinidade de revoluções que, a longo prazo,
mudariam o mundo para sempre.

Em 1911, quando já se haviam passado quase duas décadas da


aparição dos primeiros trabalhos do “The Four” o estilo começou a encontrar
uma série de barreiras, principalmente conceituais que diziam respeito aos
rumos que iria tomar e a sua existência em si. A excepcional expressão
individual que haviam conseguido estabelecer não podia ser sustentada por um
grupo maior. Inclusive é até incongruente uma idéia dessas, pois se está se
tratando de uma expressão individual, ela não pode permanecer da mesma
forma em um grande grupo, perde-se a principal característica do estilo, tão
encorajada por Newberry: a individualidade em si e o poder de expressão.
Vinte anos depois o estilo nada mais fazia do que se repetir: depois que a
linguagem fora desenvolvida e aplicada a diversos meios, surge a questão de
“qual é o próximo passo?”. Nenhum dos ex-alunos que lecionavam na escola
na virada do século conseguiu responder essa questão, surgindo na produção
da escola indícios de estagnação criativa e os trabalhos produzidos nas
oficinas tornavam-se cada vez mais metódicos e estéreis.76

O estilo se estabeleceu, mas não soube lidar com isso. Mackintosh


continuou desenvolvendo seu trabalho de forma bastante pessoal com um
evidente progresso, completamente dissociado da escola. Inclusive entre o final
dos anos 1890 e começo dos 1900 seu trabalho ficou tão diferente do
desenvolvido na escola que se questiona se ele tinha algum comprometimento

76
ROBBINS, Daniel p.77
61
com o que se passava com ela.77 Talvez ele tenha sido o único que realmente
tenha compreendido a mensagem de praticar um trabalho individual: não basta
encontrar uma formula e praticá-la metodicamente, principalmente quando não
foi um desenvolvimento seu, deve-se descobrir os seus limites, ultrapassa-los e
seguir adiante, criando e inovando.

Não há indícios de que tenha almejado um cargo de professor na escola


ou sequer encorajado o surgimento do Glasgow Style. Inclusive, a idéia de ter
uma escola operando sob seu comando não aprazia seu apaixonado
comprometimento com sua individualidade. Tanto a escola, quanto o estilo
eram menos importantes para ele que seu próprio trabalho e o mundo da
arquitetura no qual estava tentando se estabelecer.78

Sua influência sobre os alunos era limitada, nunca lecionara na escola e


nunca contribuiu com a elaboração de uma filosofia em design por meio de
qualquer publicação.79 Talvez tenha sido exatamente isso que ocasionou a
estagnação do Glasgow Style. O Coração pulsante, centro do estilo, se
desligou dele e parou de bombear inspiração aos demais, mas em verdade não
tinha obrigação nenhuma de fazê-lo. Foram os demais alunos da escola e
integrantes do estilo que não aprenderam com ele a seguir seus próprios
rumos e elaborar suas próprias idéias.

Independente de ter perecido frente ao seu estabelecimento, se


entregado ao método e estagnado com formas estáveis, Robert Anning Bell em
seu relatório de 1903 sobre o estilo descreve com requinte a sua importância:

“É agradável encontrar um desenvolvimento tão local e tão


definido como o que se tem expressado nos últimos anos em
Glasgow. É bem provável que artistas importantes
desgostem; é bem verdade que possui alguns maneirismos
deploráveis, não obstante há aqui um distinto estilo local

77
ROBBINS, Daniel p.78
78
ROBBINS, Daniel p.78
79
ROBBINS, Daniel p.78
62
construído ao redor da personalidade de alguns poucos
homens e mulheres distintos.”80

80
ROBBINS, Daniel p.76
63
Capítulo 4
Os primeiros anos do arquiteto

De 1890 a 1896-97 a individualidade de Mackintosh se deu principalmente nos


seus trabalhos fora do escritório Honeyman & Keppie. Sem as pressões de
clientes e a rigidez arquitetônica muitas vezes exigidas por tais, experimentou
diversos meios de expressão artística como a pintura, pôsteres, metal e
mobiliário.81

Apesar disso se envolvia cada vez mais com os trabalhos desenvolvidos na


firma e, desta maneira, é notável o crescimento no número de insurgências de
detalhes absolutamente seus nos projetos de lá. Suas habilidades no desenho
eram muito reconhecidas em seu ambiente de trabalho e seus superiores
fizeram bom uso delas. As perspectivas desenhadas por ele entre 1893-96 são
notáveis pela clareza e força da linha e a monumentalidade que conferia até
aos edifícios mais irrisórios.82

4.1 The Glasgow Herald

A insurgência dessas manifestações tão particulares de seu trabalho individual


são bem claras no projeto de expansão do edifício do jornal mais lido pela
classe média de Glasgow, o “Glasgow Herald”. O projeto é assinado por John
Keppie, entretanto é claramente uma produção de Mackintosh pela série de
detalhes nele contidos que aparecem aqui pela primeira vez e que
posteriormente se estabeleceriam na obra de Charles, além do histórico desses
aspectos, que são tão ligados a ele.83

81
JONES, A p.84
82
JONES, A p.84
83
JONES, A p.84
64
Fig. 16: Prédio do The Glasgow Herald

Construído entre 1893 e 1895, foi o primeiro grande trabalho arquitetônico de


Mackintosh. O prédio, uma extensão do já existente em Buchanan Street, se
estenderia pelas Mitchell Street e Mitchell Lane ao custo de aproximadamente
£ 30.000.

O ponto mais importante do prédio é, sem dúvida, a torre, uma das principais
exigências dos clientes, que a queriam para proteger-lhes na eventualidade de
um incêndio, o pavor das gráficas da época. Charles a colocou no canto do
edifício a mais de 46m de altura, bem alta em relação às existentes então por
65
um motivo bem específico: Mitchell Street é bem estreita e, se fosse feita de
forma convencional, teria 2/3 de sua extensão escondida.84

Sua forma octogonal é bastante característica e já havia aparecido em


trabalhos anteriores da Honeymann & Keppie como o Manchester Technical
Schools e o Royal Insurance Company. O primeiro, fruto de uma competição,
gerou um questionamento em 1892 da publicação British Architect em relação
aos organizadores do concurso do por que o projeto não estava entre os três
primeiros colocados. O segundo possui uma série de atributos, que
provavelmente surgiram por meio de Mackintosh ou o influenciaram muito, de
modo que viriam a ressurgir diversas vezes em suas obras posteriores, como
por exemplo: o ornamento sobre a porta e as janelas do primeiro andar, que
viriam ambos a reaparecer na face leste da Glasgow School of Art.85

Fig. 17: Royal Insurance building por Charles Rennie Mackintosh, 1894

84
WALKER, David p.129
85
WALKER, David p.129
66
A relação dessa grandiosa estrutura é muito próxima aos desenhos que
Charles havia feito da torre do Campanário em Siena, na Itália, dois anos
antes.86

Outro aspecto interessante da torre é que no topo ela é mais larga. Seus
ângulos verticais são mascarados por longos escudos que se assemelham a
trombas de elefantes.87 Seu topo ecoa James MacLaren em sua torre na
Stirling High School (1887-90) e à de John D. Sedding na igreja Holy Trinity em
Sloane Street, Londres.88

Os três primeiros andares são idênticos na planta, entretanto as janelas de


cada um deles são diferentes entre si e recuadas para revelar a espessura das
paredes. Os dois últimos andares se estendem sobre uma larga sacada de
parapeito simples e parecem refletir o interesse de Mackintosh no estilo
barroco de Burnet e seu colega John Archibald Campbell no final dos anos
1880 com detalhes escoceses dos séculos XVI e XVII. No entanto não havia
exemplos de nenhum dos dois em Glasgow nesses moldes em 1893 e é
possível que Charles tenha desenvolvido o tratamento independentemente.
Talvez tenha sido até o seu trabalho que tenha encorajado Burnet a
desenvolver suas próprias idéias no futuro.89

A ornamentação da parte superior em Mitchel Street, que tinha um tratamento


mais rebuscado que a de Mitchell Lane, assim como a da torre, revelam a
admiração de Mackintosh pelo Scotsch Baronial Style. Provavelmente por esse
e outros motivos, em 1900 esse edifício foi incluído no texto de Hermann
Muthesius sobre arquitetura Free Style na Grã-Bretanha, o Die Englische
Baukunst der Gegnwart, onde, a despeito dos detalhes sagazes de Charles, a
simplicidade e a força escocesas se sobrepuseram às construções inglesas.90

86
JONES, A p.84
87
CRAWFORD, Alan p.21
88
CRAWFORD, Alan p.21
89
WALKER, David p.129
90
CRAWFORD, Alan p.22
67
4.2 Queen Margaret’s College

Entre 1894-95 a sofisticação da mão do jovem Mackintosh se revela na


construção da Queen Margaret’s College, apesar de o projeto mais uma vez
ser de John Keppie. Entretanto esse edifício, que não chegou a ser construído,
é claramente atribuível a Mackintosh também pelo aparecimento de detalhes e
de características de seus estilo. Exemplos bem claros desses elementos que
reaparecessem sucessivamente de maneira amplificada são: a limpeza das
paredes, a aparente aleatoriedade da disposição das janelas, que, em verdade,
seguem as funções internas, a união dos planos verticais que lembram as
formas das tower houses escocesas, e uma planta que ditava tudo. Essa última
característica revela uma crença muito forte de Mackintosh na realidade lógica
de que a função encaminha a forma de maneira contínua e racional, revelando
toda a modernidade de seu pensamento.91 Mackintosh planejava as funções e
motivações de cada espaço do interior da construção e permitia que ditassem o
rumo de seu trabalho, tendo em mente o “de dentro para fora”, lógica que
aplicaria ao longo de sua carreira, principalmente na Glasgow School of Art e
na Hill House.92Desse projeto também se repetiria na Hill House, sete anos
depois, a composição geral, que é bem parecida.93

91
JONES, A p.84
92
JONES, A p.86
93
WALKER, David p.129
68
Fig. 18: Anatomical School Queen Margaret’s College por Charles Rennie Mackintosh,
1895

O edifício pertence á mesma família estética dos andares superiores do


Galsgow Herald. A torre da escadaria tem uma terminação bem escocesa, com
a forma de uma cúpula do século XVII, que foi um motivo recorrente de Sellars
e que aqui foi provavelmente sugerida por Keppie.94 Também é interessante
notar como os ornamentos superiores das janelas são quase idênticos aos do
último andar do edifício do jornal.

Neste trabalho, talvez por não ter sido construído, muita da atenção é dirigida
ao desenho em si. Nele é interessante notar a figura de uma mulher, não só
por ser rara a presença de figuras humanas em suas perspectivas, mas pela
forma como ela é colocada. Em primeiro plano e, encaminhando-se pro centro,
possui uma posição privilegiada na composição, revelando, talvez uma
possível “importância” dela. Entretanto o que mais chama a atenção nessa
mulher que lê de forma contemplativa é que, apesar de parecer somente uma
mulher, existem duas sombras. O que Charles estaria nos dizendo? Qual seria
o simbolismo disso em um trabalho tão notavelmente seu e com características
94
WALKER, David p.129
69
tão marcantes do Galsgow Style, principalmente no corpo da mulher e na
natureza que a cerca? Essa imagem, publicada em 1896 no British Architect
provaria-se apenas uma dentre tantas outras perspectivas em que seriam
inseridas sutilmente imagens que falariam muito sobre ele e o que ele
acreditava.

4.3 Martyr’s Public School

Fig. 19: Martyr’s Public School por Charles Rennie Mackintosh,1896

Em 1895 a firma Honeyman & Keppie desenvolveu mais um projeto cujo


responsável oficial seria o segundo sócio, mas que as evidências nos levam
fortemente a crer, e hoje é tido como certo, de que se trata de um projeto
quase inteiramente de autoria de Charles: Martyr’s Public School. Fica evidente
que o envolvimento de Mackintosh no desenvolvimento e execução são
consideravelmente mais aparentes95

Assim como outros trabalhos dessa fase inicial de sua carreira inauguraria
muitas características que se tornariam recorrentes em toda a sua obra. As

95
JONES, A p.86
70
finas e altas janelas e a decoração escultural da entrada principal criam uma
dramaticidade que viria a se tornar recorrente no futuro. Seu interior é um
presságio do senso espacial do museu da ainda não concebida Glasgow
School of Art.96

Apesar de o edifício ser o tema central do desenho, assim como no de Queen


Margaret’s College ele salpica elementos adversos que não contribuem
diretamente à compreensão do edifício, mas muito para compreender o próprio
Mackintosh. Nesse caso, um pouco mais bem humorado, coloca três meninas
pulando corda em frente à escola, usando um assessório bem incomum para o
clima de Glasgow, que, em tal contexto, coloca-se quase como um item de alta
costura: um lenço árabe sobre suas cabeças. Nota-se também uma luminária à
frente da escola, absolutamente fantasiosa e com o evidente estilo de Charles,
alem de um prédio de apartamentos atrás, com fortes características
escocesas e baronial. Essas inserções, que também ocorreriam por exemplo
nos desenhos da futura Queen’s Cross Church, denotam uma abertura maior
de Toshie a demonstrar as origens e inspirações que norteavam seu
trabalho.97. A construção do edifício iniciou-se em 1895 e foi completada em
1898.
Em 1896 o “The Four” expôs seus trabalhos no London Arts & Crafts Exhibition,
em Londres, provavelmente por influência de Newberry. Expuseram painéis de
metal batido, pôsteres, e uma grande peça de mobiliário desenhada por
Charles, aquarelas e um porta-relógio de prata. Como já era de se esperar,
foram recebidos com um grandioso coro de desaprovação tanto dos críticos
quanto do público. Foram condenados por estarem sob a influência “não
saudável” de Beardsley e seus trabalhos foram considerados, desta maneira,
como um insulto aos ideais de Ruskin e Morris e à dignidade da natureza.98

Os trabalhos foram descritos como “entusiasmo juvenil... revela uma absoluta


feiúra...uma paixão por originalidade a qualquer custo”. Apesar das
interpretações precipitadas um homem, o editor da revista “The Studio”

96
JONES, A p.86
97
JONES, A p.87
98
JONES, A p.33
71
Gleeson White, foi quase profético em sua defesa ao grupo: “Provavelmente
nada na galeria (da exposição do movimento Arts & Crafts) tenha provocado
mais incisiva censura que esses trabalhos, e esse fato somente já deveria
provocar em um pensativo observador de arte uma pausa antes de se juntar
aos oponentes. (...) A probabilidade parece ser de que aqueles que riem deles
hoje estejam ansiosos por elogia-los alguns anos depois”.99 O editor ficou tão
intrigado com o grupo que foi a Glasgow visitá-los. Apenas um ano depois, nas
edições de Julho e Setembro de 1897 da revista, foram publicados artigos que
imediatamente conferiram respaldo ao grupo e lhes colocaram no centro das
atenções tanto na Grã-Bretanha como no continente.

4.4 Buchanan Street Tea Rooms

Ainda em 1896 Mackintosh trabalhou ao lado se seu ex-colega da Glasgow


School of Art, George Walton, na decoração do interior do “Tea Room” de
Buchanan Street, o primeiro de uma série de projetos similares que faria para
Miss Cranston, dona desse estabelecimento e de outros similares.

O convite de Miss Cranston provavelmente tenha ocorrido pelo escândalo que


o trabalho do “The Four” criou em Londres, esperando, provavelmente, o
mesmo efeito em Glasgow, trazendo atenção para sua casa de chá.

Walton, mais experiente, ficou responsável pela decoração e mobília de quatro


ambientes. Charles ficou incumbido de decorações nas paredes do poço da
escadaria, uma sala de almoço no primeiro andar e, acima dele, uma sobre a
outra, uma galeria de almoço e galeria de fumantes. Do poço aceso se poderia
ver os três andares de uma só vez. Então Mackintosh usou um verde escuro no
primeiro nível, amarelo esverdeado acinzentado no meio e azul no superior,
passando respectivamente a idéia de terra profunda, terra média e céu. No
primeiro nível os desenhos tratavam de árvores estilizadas por entre pavões;
no segundo altas mulheres envolvidas em roseiras repletas de botões, com
formas orgânicas entrelaçadas que no topo culminavam em algo como a

99
JONES, A p.33
72
secção de um fruto ou uma vulva; no topo linhas onduladas assemelhando-se a
nuvens que passam em frente a um sol ou lua. Mackintosh lançou mão da
forma e do imaginário do Glasgow Style e o adaptou à decoração das salas. E
era exatamente esse tipo de arte, tão estranho para os padrões de então, que
Miss Cranston queria em seu estabelecimento e, junto com ele, o furor dos
comentários dos freqüentadores.100 Apesar da coesão entre eles e o profundo
simbolismo oculto, seus murais descompromissados dificilmente contribuíam
para a unidade do ambiente como um todo, fazendo pouco esforço para se
adequarem à mobília mais convencional de seu colega.101 Talvez um capricho
do menino mimado da Sra. Mackintosh, ou um artista genial que sabia o que
queria, que mantinha-se fiel aos seus ideais, que colocava sua individualidade
artística em primeiro plano e não se submeteria ao trabalho de um colega que
não comungava de suas idéias naquele momento.

100
CRAWFORD, Allan p.44
101
ROBBINS, Daniel p.80
73
Fig. 20: Buchanan Street Tea Rooms
No entanto foi outro fato neste mesmo ano que marcaria definitivamente a vida
e a carreira de Mackintosh e a dividiria em antes e depois: o anúncio da
competição para o novo edifício para a Glasgow School of Art.

74
Capítulo 5.

The Glasgow School fo Art

5.1 A Natureza do edifício e sua construção

Em março de 1896 a Glasgow School of Art anunciou a realização de


um concurso, com inscrições até outubro do mesmo ano, para a elaboração de
seu novo edifício. O regulamento previa uma verba restrita e até pequena para
os padrões da época: £14000 e uma série de exigências que, de certa forma,
aprisionavam os competidores.102 Além disso o terreno escolhido era
particularmente difícil. Estreito e inclinado, localizava-se sobre uma colina
conhecida como Garnethill, próximo ao coração da cidade.103

A firma Honeyman & Keppie entrou na competição com um projeto de


Charles. O jovem arquiteto tinha apenas 29 anos e havia saído dessa mesma
escola há apenas dois quando sua inscrição foi nomeada a vencedora.104 A
construção se iniciou em 1897 e foi inaugurada em dezembro de 1899 às
vésperas do alvorecer do novo século. Apesar de não ter sido reconhecida
como tal em sua época, ela mesma representava o alvorecer de um novo
tempo na história da arte: a pedra fundamental do modernismo na arquitetura,
um forte demarcador que apontava para o futuro, uma afirmação espiritual,
física e estética de esperança e idealismo. Uma estrutura como essas não
tinha precedentes e nem similares, tornou-se, segundo Aldo van Eyck “uma
enciclopédia de possibilidades”.105

Por motivações financeiras a construção foi executada em duas etapas.


A primeira, de 1897 a 1899, elevou o lado oriental e o centro do edifício. A
segunda, que ergueria o lado ocidental, seria executada assim que o capital
necessário estivesse disponível.

102
WALKER, David p.134
103
JONES, A p.88
104
JONES, A p.88
105
JONES, A p.40
75
A imprensa local deu importância limitada aos desenhos para a nova
escola com comentários que giravam em torno do mero suprimento de
necessidades e determinações do regulamento como: “Os requerimentos
práticos da escola dominaram o estilo do prédio”, “(...) apresenta a aparência
de um simples edifício de escritórios”, “(...)uma das escolas mais bem
equipadas do reino”.106

Fig.21: Primeira fase da Glasgow School of Art.

Na época da construção o prédio que começava a tomar forma


provocava a ira e o desprezo dos moradores da cidade. As pessoas se
perguntavam o que era aquele “estranho edifício”? Seria uma fábrica, uma
prisão, uma casa de correção, um templo de adoração estranha? 107Certa vez
escreveu-se sobre a reação das pessoas em relação a um edifício de
construção contemporânea e tão revolucionária quanto a escola, o Secession-
Haus de Josef Maria Olbrich em Vienna (1898). Tais exclamações

106
GIROUARD, Mark p.153
107
JONES, A p.95
76
provavelmente ocorreram de forma bem semelhante em Glasgow: “Esses dias
você pode ver multidões de pé em volta desse novo prédio. São trabalhadores
de escritórios, operários, mulheres a caminho do trabalho, mas ao invés disso
eles estão parados perplexos... eles observam, eles discutem essa “coisa” que
eles vêem sendo construída... eles a acham estranha, eles nunca viram nada
desse tipo, eles não gostam, lhes repele... e isso continua acontecendo por
todo o dia”.108

O prédio possui uma forma retangular que preenche todo o terreno.


109
Quase sem decoração, é puritano, fundamentalista, racional e aritmético.
Para uma população acostumada com prédios pomposos, incrustados de
esculturas, relevos e joalheria arquitetônica o prédio era exatamente o que não
gostavam, mas exatamente o que os dirigentes da escola pediram no
regulamento: “um prédio simples”.110

No entanto essa “simplicidade”, no caso de Mackintosh é bastante


ambígua. Apesar de ser um edifício que responde á essa expectativa, há uma
complexidade muito grande na elaboração e colocação de detalhes e uma
fundamentação conceitual muito profunda.

Muitos escritores, críticos e observadores contemporâneos a seu


trabalho o acusam de uma obsessão quase patológica pela perfeição e
detalhe, e de ser um tirano de suas utopias. A forma escultural dramática da
maioria de sua mobília, por exemplo, é acusada de ser desconfortável. Charles
foi descrito como sendo um arquiteto com um grande ego que impunha suas
idéias ao custo de seus clientes. No entanto um estudo das premissas
filosóficas elementares de seu projeto para a Glasgow School of Art revela que
não há nada tão falso quanto essas afirmações.111

Apesar de prezar a sua individualidade e vontade artística, a lógica de


seus projetos respeitava profundamente as necessidades de seus usuários. De
108
JONES, A p.94
109
JONES, A p.91
110
JONES, A p.92
111
JONES, A p.42
77
forma absolutamente altruísta o prédio é dedicado a servir seu propósito de
instituição de educação artística e, se há algo de egoísta e obsessivo, é na
fanática determinação de fazer a estrutura funcionar perfeitamente. Ele tinha
plena consciência do quão difícil seria projetar espaços que fossem eficientes e
apropriados, entretanto fez todo o prédio servir aos requerimentos dos
ocupantes.112

Sua premissa, como observado nos projetos anteriores, era a de um


interior funcional que ditava a forma do exterior: a idéia de que a “pele” exterior
é a articulação de um design estético interior. Não se trata apenas de mera
cosmética arquitetônica, mas sim a expressão de crenças e ideais muito
profundos e bem estruturados.113

O edifício é “direto”, há nele uma honestidade que desarma o


observador. É facilmente observável que muitos dos temas e detalhes são
derivados de outras fontes, as quais ele adota e adapta, o que torna a grande
massa holística do prédio infinitamente superior à soma dessas pequenas
partes.114 Desta maneira coloca-se em cheque essa aparente simplicidade do
prédio. Trata-se aqui de mais uma das sagacidades de Mackintosh que,
mesmo seguindo à risca o regulamento tanto em termos técnicos quanto
conceituais, deu aos dirigentes da escola a simplicidade que queriam e,
simultaneamente, deu ao mundo a complexidade de idéias e formas deste
brilhante edifício.

Na inauguração da primeira fase em dezembro de 1899 escreveu-se


mais sobre o sucesso da escola como instituição e os vestidos das moças
presentes do que sobre a arquitetura que estava sendo apresentada em si. Do
pouco que se escreveu, nada era crítico. Ao contrário do que se imaginava e
dos comentários feitos durante a construção, a reação do público foi irrisória. 115

112
JONES, A p.42
113
JONES, A p.41
114
JONES, A p.41
115
GIROUARD, Mark p.154
78
Nesta primeira etapa o nome de Mackintosh, mais uma vez, não foi
atribuído ao desenho do prédio, e sim o de John Keppie. Certa vez Charles
disse a seu amigo Hermann Muthesius que nessa época estava “sob uma
nuvem”. Com isso não quis dizer que seu trabalho não era aprovado na firma,
mas sim que era oficialmente “invisível” por não ser um dos sócios.

Na ocasião da inauguração, em que o próprio Mackintosh não estava


presente, o Evening Times de 21 de Dezembro de 1899 transcreveu a fala de
um dos discursos: “Tanto no edifício quanto na mobília a escola é
primariamente utilitária”116. Esse mesmo jornal foi um dos poucos que se
aventurou a falar um pouco além de utilidade, conveniência e baixo orçamento
como os demais: “Externamente é, como todo mundo com apreço por
simplicidade artística e bom design têm de confessar, uma estrutura que irá
permanecer por muito tempo um monumento à forte originalidade e concepção
artística de designers de Glasgow.”117

Para qualquer um que tenha sido doutrinado na idéia de que a escola foi
um prédio revolucionário, que chocou os contemporâneos e que Mackintosh foi
virtualmente retirado de Glasgow por estar muito à frente de seu tempo, a
silenciosa recepção pode parecer estranha. Mas em verdade, apesar de terem
sido limitados, os jornais disseram exatamente o que a escola é:
“primariamente utilitária”, “simples”, “com aparência de escritórios” e “adequada
em todos os sentidos aos requerimentos da educação artística”. Charles, pelo
menos até a execução da primeira parte do edifício havia feito exatamente o
que lhe havia sido pedido.118

A escola, já instalada na primeira parte do prédio, sob o comando de


Newberry, cresceu tanto que o prédio não só foi concluído entre 1907 a 1909
como recebeu um design levemente diferente do original, um andar adicional e
outras adições menores.

116
GIROUARD, Mark p.154
117
GIROUARD, Mark p.154
118
GIROUARD, Mark p.155
79
Na época da segunda inauguração, dez anos depois, Charles já havia se
tornado sócio da agora Honeymann, Keppie & Mackintosh e teve seu nome
atribuído a obra. Nessa ocasião ainda menos foi dito sobre arquitetura do que
em 1899.119

A escola tem uma relação muito próxima com o arquiteto. Ela dialoga
muito com sua personalidade no sentido de revelar seu idealismo e o
120
pragmatismo do seu caráter em busca da perfeição. Além disso ela
representa dois pontos decisivos em sua carreira: entre a concepção em 1896
e a conclusão em 1909 Mackintosh completou praticamente todos os seus
grandes projetos em Glasgow. De certa forma é como se a Glasgow School of
Art fosse seu primeiro e último grande projeto na cidade.121 Nesse mesmo
tempo ela foi mudando por causa das necessidades práticas da escola que
naquele momento já eram outras, porque era um hábito de Charles detalhar e
alterar os projetos ao longo de suas construções e porque ele mesmo havia
mudado muito naqueles anos e, sendo um trabalho cujo processo é tão
facilmente confundível com sua vida, ele passava por metamorfoses assim
como seu criador.122

Apesar de ter demonstrado extremo cuidado e brilhantismo incomum em


outras obras como a “The Hill House” e o “Willow Tea Room”, por exemplo,
nada se iguala ao pensamento, criatividade, diligência intelectual e amor que
Mackintosh dedicou à Glasgow School of Art.123

119
GIROUARD, Mark p.154
120
JONES, A p.41
121
JONES, A p.95
122
GIROUARD, Mark p.157
123
JONES, A p.41
80
Fig.22: Edwards Settlement, 1895-98

O edifício é extremamente severo principalmente pelas exigências


contidas no regulamento do concurso, como estritas restrições financeiras, que
não permitiriam detalhes como os de Martyr’s Public School, e outras
especificações como as janelas da elevação norte que “engessavam” os
participantes.124 A aceitação dessa severidade talvez tenha vindo, além de ser
algo quase que inerente às restrições impostas, da grande publicidade dada ao
design vencedor para o Passmore Edwards Settlement em Londres, por A.
Dunbar Smith e Cecil Brewer. O anúncio do vencedor foi publicado em 1895 e
com ele veio à tona um projeto que eliminou todo o detalhe em favor de
paredes lisas de tijolos aparentes e um maciço pórtico de pedra. Talvez
querendo uma publicidade similar os diretores do Departamento de Arte e
Ciência de South Kensington optaram por aprovar um projeto não
acadêmico.125

124
WALKER, David p.134
125
WALKER, David p.135
81
5.2 As características do edifício

5.2.1 A Face Norte

Fig.23: The Glasgow School of Art

A face Norte ou a frente do edifício desde os primeiros desenhos


desenvolvia-se de forma a manter presente a filosofia de Mackintosh do interior
revelar o exterior: uma parte externa que expressava diretamente o que se
passava na planta.126

As grandes janelas faziam parte do regulamento, que previa que elas


deveriam estar presentes nos estúdios da frente para que os estudantes
fossem beneficiados pela luz do dia. Seria, talvez, um reflexo de uma das
vanguardas européias mais influentes e importantes desse início do século XX,
o Impressionismo, que praticava uma pintura de imagens efêmeras feitas sob a
luz passageira do sol? Divagações à parte essas janelas tem um papel
essencial no ensino de arte pois provê aos alunos a luz do sol, muito mais rica
do que a luz artificial, principalmente no caso fontes de luz elementares que
surgiam naqueles tempos de aurora da energia elétrica. É cativante a forma
126
GIROUARD, Mark p.157
82
com que Charles compõe brilhantemente a frente do prédio: a simplicidade do
trabalho em ferro das janelas com o muro frontal contrastando diretamente com
as diversas linhas retas e curvas que surgem nessa elevação.127

A face Norte é dotada de uma forte, porém elegante assimetria que,


muitas vezes, passa despercebida frente aos observadores. Ela é tão bem
elaborada e harmoniosa à composição que o olhar mais desatento a toma por
certa e nem cogita a possibilidade do prédio ser portador de tal atributo. Uma
observação mais cautelosa revela que ela é até bem evidente: há diferença
entre o número de janelas de cada lado, seus tamanhos e intervalos entre uma
e outra.128 Trata-se de apenas um dos encantadores jogos que Mackintosh
espalhou por toda sua carreira, mas principalmente pela escola, em que faz
com que aquele que observa sua obra participe dela.

Essa assimetria harmônica é permitida graças a um artifício compositivo


do qual Charles lançou mão: trouxe a atenção do observador para o centro
desta face, produzindo um estável equilíbrio visual.129 Esse centro contém a
entrada do edifício sobre uma escadaria cercada por muros curvados em forma
de “s”. Ao lado dela fica a janela da sala do zelador em uma elevação na
parede que sobe e termina com a janela do lavatório do diretor. Ao lado dela
fica a saída da sala deste para sua sacada que corta a pequena elevação.
Acima da sala do diretor fica seu estúdio com uma torre de escadaria ao lado.

Essa parte central pode ser vista de duas maneiras diferentes, mas bem
familiares entre si: como o foco da composição, trazendo força ao centro como
um pórtico clássico ou como uma honesta expressão da planta. Há verdade em
ambas as afirmações, mas há mais aqui do que simplesmente os
requerimentos do edifício. O diretor, por exemplo, nunca usou sua sacada, pois
não há nada de encantador na paisagem deste lado, e a torre ao lado de sua
sala é muito mais alta do que a escada que ela guarda. 130 Todos esse são, em

127
GIROUARD, Mark p.159
128
CRAWFORD, Alan p.35
129
CRAWFORD, Alan p.35
130
CRAWFORD, Alan p.34
83
verdade, atributos da composição, seguindo aqui o que acontece muito no Free
Style, onde a inventividade é a mãe da necessidade.131

5.2.2 A Face Sul

A face sul, segundo o regulamento, devia ser feita sem janelas para
impedir a entrada de luz do dia, exceto pelo último andar. Não se sabe o motivo
dessa determinação, nunca foi feita uma investigação nesse sentido. É curioso
pois aparentemente não há nenhum caráter prático nisso.132

Sua análise é bem relevante pois apesar de ser a parte de trás do


edifício é a maior das quatro pelo fato do terreno ser inclinado. Este fato torna-a
bastante chamativa à distância. Ela é muito importante pois apesar de ser
pouco vista é muito bem trabalhada, como não poderia ser diferente no
trabalho de um homem tão dedicado e obsessivo com o detalhe, e também
porque foi a face que mais mudou nos desenhos ao longo dos anos, desta
maneira é como se ela contasse a história da criação do edifício e fosse uma
catalisadora de muitas adições.133

Fig. 24: Elevação da face sul apresentada no concurso

Mackintosh encontrou uma saída sagaz para a questão do regulamento


sobre a ausência das janelas: recuou a face em dois segmentos, desta forma
131
CRAWFORD, Alan p.35
132
GIROUARD, Mark p.159
133
GIROUARD, Mark p.159
84
não seria mais a face sul literalmente falando, o que permitiria a adição das
entradas de luz.134 À primeira vista essa face é desconcertante pois constitui-se
basicamente de três grandes massas de paredes completamente lisas e
pouquíssimas janelas, mesmo nos recuos.

Os desenhos que foram submetidos à aprovação do departamento da


prefeitura responsável pela aprovação de projetos da cidade já continham
algumas poucas janelas nas paredes antes lisas, uma torre de escadaria no
ângulo com a projeção oeste. As três faixas continuaram fortes e pesadas,
entretanto um pouco menos tirânicas.135 Nesse conjunto de desenhos a face
Norte é datada de março de 1897, o que sugere que algumas concessões
foram feitas nos seis meses que se passaram desde o anúncio do vencedor.

A combinação de telhado inclinado, a torre de escadaria no ângulo, e as


grandes paredes com janelas ocasionais revelam que Mackintosh agora tinha
arquitetura de castelos escoceses em mente ao projetar esta face.136

Hoje a escola é diferente dos projetos de 1897 pois viria a sofrer novas
mudanças na segunda fase de construção. Conforme modificava essa seção
do prédio, fazia outras adições ligadas a ela como um novo andar que cobria
toda a escola com um corredor que ia de uma ponta à outra no sul, além de
duas escadarias uma ao oeste e a outra ao leste. A primeira em substituição à
uma pequena, previamente existente, e a segunda inteiramente nova. O
resultado de todas as variações é um formidável contraste à severidade e
simetria do desenho da competição.137

134
GIROUARD, Mark p.159
135
GIROUARD, Mark p.159
136
GIROUARD, Mark p.161
137
GIROUARD, Mark p.161
85
Fig.25: Elevação final da face Sul

Conforme a escola era erigida a face sul era particularmente mais


repelente aos observadores. As pessoas a viam como um monólito cinza, um
assombroso castelo de concreto sobre um precipício que, ironicamente, se
encontrava próximo aos adornados edifícios de Sauchiehall Street. Era uma
138
verdadeira afronta. Hoje em dia não é mais possível apreciar esse gigante
que antes poderia ser visto à distância pois edifícios foram erguidos à sua
frente nessa mesma rua.139

5.2.3 O Oriente e o Ocidente da Escola

Mackintosh era um nacionalista eclético e, como já se sabe, a escola


pode, em muitos casos, ser lida como um arquétipo de sua personalidade.
Assim ele coloca em extremos opostos duas de suas grandes inspirações: a
seção oriental do prédio é repleta de temas medievais escoceses e baroniais
que ele dizia serem “tão queridos ao meu coração”. E a parte ocidental,
contraditoriamente, possui diversas manifestações de seu japonismo.140

138
JONES, A p.93
139
GIROUARD, Mark p.159
140
JONES, A p.42
86
Fig.26: Face Leste

A Face Leste do prédio é dividida bruscamente em duas por um cano.


Ao contrário da face norte, esse lado possui uma composição bem solta,
podendo-se tranqüilamente aderir elementos a ela.141 Talvez uma preparação
de Mackintosh exatamente para receber novos elementos, tendo em mente
que a escola seria feita em duas etapas, permitindo-se assim algumas
mudanças como de fato ele o fez. Para tal criou uma composição que permitiria
essas adições.

A escolha dos itens é bem arbitrária. O arco, que na face norte fica sobre
a janela da sala do diretor, aqui está sobre a da sala dos funcionários homens,
em nenhum momento estava especificada a necessidade desse ornamento
nesse espaço. Também a rebuscada e bem trabalhada janela sob a torre não
passa de um mero quarto para as trocas das modelos. Por outro lado a parte à
direita do cano é absolutamente vazia. Na época do fim das construções era
141
CRAWFORD, Alan p.36
87
ainda mais, pois as duas janelas ao lado da porta foram adicionadas em
1915.142 Trata-se de uma autêntica expressão do que se passa dentro do
edifício: ele nos revela a profundidade dos estúdios do outro lado da parede,
insinua um corredor visto de frente que corta toda a escola e que à esquerda
se encontram uma série de salas menores com diversas funções. É tudo tão
claro que é quase como se as paredes fossem transparentes de forma a
revelar a autenticidade do edifício e os movimentos humanos que lhe atribuem
suas funções. Um prelúdio da arquitetura funcionalista que criou prédios com
paredes de vidro que levaram ao extremo essas idéias profetizadas por
Charles.

Em relação aos estúdios essa limpeza da parede é uma questão de


funcionalidade pois não havia motivos para que o arquiteto salpicasse janelas
nesse espaço, entretanto, em relação ao lado leste como um todo, em relação
à ala leste e em relação à face norte é uma questão compositiva. Se
considerarmos o lado leste como um livro aberto teremos uma página repleta
de informações e a outra inteiramente em branco. Se considerarmos a face
norte e a leste e a pausa que existe na segunda é como se fossem os capítulos
de um livro com uma página em branco que os separa ou o respiro entre os
versos de um poema. Aqui, pela primeira vez encontramos uma sagacidade
ainda mais profunda no trabalho de Mackintosh, um manejo das faces que vai
além da composição, transforma-se num teatro em que o espectador-
observador é convidado a participar143

A face oeste é particularmente interessante pois revela a completude da


obra de um arquiteto maduro. Essa face é especialmente diferente pois não
havia sido inteiramente erguida como a face leste ou parcialmente como as sul
e norte na primeira construção.Assim poderia criar livremente com o passar do
tempo, sem os obstáculos de idéias anteriores, além de expressar-se e coloca-
la em confronto com as demais faces, revelando o crescimento do arquiteto e
artista Charles Rennie Mackintosh. Por esse motivo é a face que mais olha
para o futuro e demonstra toda a inventividade e pioneirismo deste gênio.
142
CRAWFORD, Alan p.36
143
CRAWFORD, Alan p.36,38
88
Quando o capital para a construção da segunda fase foi levantado a ala
ocidental foi inteiramente redesenhada. O primeiro desenho da face oeste foi
completamente transformado. Aqui surge em um estado inicial do processo de
abstração que seria continuado pelo movimento modernista.144

É principalmente nessa face que se revela uma das características mais


relevantes desse arquiteto: o de ser um precursor do movimento Art Déco. O
portal é cercado por linhas escalonadas antecipando características desse
estilo. Em torno da porta ocorre um movimento bastante singular: a região mais
próxima ao batente é elevada enquanto o seu entorno é rebaixado e, sobre a
porta, ao invés de uma pedra encerrando o seu perímetro, há na verdade um
rebaixamento, algo como a ausência deste que seria a pedra principal desta
peça. 145

A face é extremamente bem composta. Logo acima das janelas do


térreo há uma linha que divide as pedras rústicas da parede da seção dos
estúdios e as lisas pedras do restante da face. Essa diferenciação se dá por
um breve recuo de toda a elevação, melhor visto do canto noroeste do
edifício.146 A impressão que se tem é de que os estúdios foram encaixados
manualmente, com um pequeno desvio, ao restante da escola.

144
MACMILLAN, Andrew p.90
145
MACMILLAN, Andrew p.90
146
MACMILLAN, Andrew p.90
89
Fig.27: Face Oeste

Sem cogitação, a parte mais imponente desta parte do prédio são as


longas e imponentes janelas da biblioteca. A três encontram-se sobre
elevações na parede que se estendem nas duas direções: para cima e para
baixo. Elas sobem segurando três janelas horizontais e descem para as janelas
dos antigos estúdios de arquitetura. Essas elevações, na altura da biblioteca,
são contidas em nichos de pedra que também abrigam seis tambores rústicos
do mesmo material, dois para cada janela, um em cada lado. Acima disse tudo
há um encerramento triangular com um canal recortado que coroa o ápice da
escola.

5.2.4 O Interior

Por ser o principal eixo criativo para o exterior, o interior é o centro da


elaboração intelectual do edifício tornando a sua compreensão muito relevante
para a assimilação do todo.
90
Como insinuado pela face leste, o prédio é cortado por largos corredores
que vão do ocidente ao oriente. Em todos os andares os estúdios ficam ao
norte e as funções de serviço ao sul. As oficinas técnicas foram colocadas no
porão, entretanto continuam recebendo a luz do sol através dos telhados
inclinados de vidro na face norte.

Logo após passar pela porta principal o visitante encontra-se em uma


câmara construída para proteger o interior do frio da cidade. Passa-se a
segunda porta e se é deparado com uma escadaria que leva até o museu. Há
nela um detalhamento sutil que remete a uma viva floresta de feixes verticais
de madeira, sendo que os mais largos possuem delicados desenhos de folhas.
Tudo culmina em quatro árvores estilizadas que crescem para cima e, no final,
seguram o telhado como se fossem suas copas.147

Na escadaria há também um ornamento muito relevante para a


compreensão do detalhamento da escola: uma releitura do brasão de Glasgow.
Um dos muitos espalhados pelo edifício há nele, aos moldes de Mackintosh,
todos os elementos das armas da cidade: uma árvore, um pássaro, um peixe
com um anel na boca e um sino.

O museu é iluminado pelo sol cujos raios atravessam seu telhado de


vidro. A sua escala remete aos grandes corredores de castelos medievais ou
mansões baroniais.148 O regulamento do concurso sugeria que o museu fosse
um item ligado à escadaria, o que Charles não só acatou como os criou de uma
forma que abraçassem um ao outro. Esta característica foi conseguida através
dos pilares (as árvores da escadaria) que surgem de um, passam por outro e
culminam no teto com uma “lâmina” quadrada sobre cada um. Tal atributo foi
provavelmente inspirado na Century Guild Furniture Stand de Arthur
Mackmurdo de 1886.149

147
JONES, A p.110,111
148
JONES, A p.111
149
MACMILLAN, Andrew p.99
91
Fig.28: o museu da Glasgow School of Arts

Em desenhos preliminares as vigas que sustentam o telhado eram de


ferro, mas Charles não só optou por madeira como também lançou mão de
desenhos de corações nelas aos moldes de Voysey, assim como ornamentos
em formas de folha em seu próprio estilo logo abaixo. Mackintosh tinha uma
solução específica para cada lugar e deliberadamente virava as costas aos
componentes convencionais de ferro da engenharia.150

5.2.5 A Biblioteca

A biblioteca, assim como a face oeste, é a culminação da linguagem


geométrica que Mackintosh estava desenvolvendo ao longo dos anos e que,
até agora, a havia inserido muito sutilmente ou de forma quase imperceptível,
combinando-a a curvas. Seu desenho é extremamente complexo mas deriva
das suas necessidades práticas ou do bom senso estrutural.151

O espaço central é flanqueado por duas fileiras de quatro colunas de


madeira que se estendem até o teto mas que, ao contrário do que podem
parecer, não são estruturais.152 Este mesmo teto é constituído de um padrão

150
MACMILLAN, Andrew p.99
151
GIROUARD, Mark p.167
152
CRAWFORD, Alan p.153
92
quadriculado semelhante ao das janelas, como se os tivesse retirado da
vertical, rotacionado e colocado na horizontal.153

Fig.29: A biblioteca

Fig.30: Lustres da biblioteca

153
GIROUARD, Mark p.167
93
Este ambiente é constituído inteiramente de elementos simples mas que
foram ordenados de forma muito complexa por motivos mais estéticos do que
funcionais. A iluminação, por exemplo, se dá por meio de lustres que são feitos
à esses moldes. Forjados em metal possuem uma série de quadrados e
retângulos escalonados com muitos outros quadrados positivos e negativos em
suas superfícies. Desta maneira, apesar de ser constituído de formas muito
simples, produz-se um efeito de rebuscamento e complexidade. 154

No centro das três faixas de janelas que iluminam o ambiente o arquiteto


lança uma interrupção à luz natural, uma faixa escura, criando mais um de
seus jogos, desta vez manipulando a luz e a escuridão. A biblioteca não é a
última, contudo é, sem dúvida, o maior dos devaneios de Mackintosh com as
vigas de madeira e é, certamente, seu maior tributo ao Japão.

Fig.31: Viga da estrutura da biblioteca parcialmente bloqueando a entrada de luz.

154
CRAWFORD, Alan p.154
94
Mackintosh tinha uma fixação, provavelmente consciente, de levar os
usuários de suas construções quase que a outros mundos, por outras
experiências e sensações. Apesar de sua notável devoção à sua cidade tinha
plena consciência de seus problemas, um deles a poluição. Para contorná-lo
ele criou um engenhoso desenho para o aquecimento do prédio em que o ar
frio era retirado de fora, aquecido e filtrado para, somente depois desse
processo, ser distribuído pelo edifício. Criara um oásis de ar puro na nebulosa
Glasgow.155 Assim não só realizava um “fugere urben” aos moldes dos seus
colegas Art Nouveau do continente de maneira formalista como também de
forma tecnológica: aliviando os usuários e proporcionando-lhes mais uma
experiência de viver suas obras.

É exatamente por esses detalhes tão sutis como conferir especiais


tratamentos a uma face quase nunca vista como a sul, pensar na forma com
que o ar adentra as instalações de sua obra, criar releituras do brasão de sua
amada cidade por toda a criação e tantos outros que fazem de Charles Rennie
Mackintosh um gênio. A Escola representa sua obra-prima, o ápice de sua
carreira e da sua inventividade, a síntese de seu pensamento. Sem a escola
Mackintosh seria “apenas” um arquiteto-designer de extraordinário poder de
sedução, mas por tê-la criado lhe é corretamente atribuído o adjetivo de
“gênio”.156

155
JONES, A p.110
156
JONES, A p.42
95
Capítulo 6
Mackintosh: Artista, Arquiteto e Designer

6.1 Primeiras manifestações como designer

Entre 1893 e 1919 Mackintosh desenhou mais de 400 peças de


mobiliário e é neles e na sua estreita relação com seus respectivos interiores
que jaz a reputação de Charles como designer. Em apenas uma ocasião
desenhou móveis para uma firma, dissociados de projetos de interiores. 157

Apesar de não possuir formação acadêmica como designer iniciou uma


estreita relação com as artes decorativas a partir de sua associação ao “The
Four” em 1893. Sem dúvida a principal influência foi de sua esposa, Margaret.
Mesmo quando não trabalhavam juntos diretamente suas idéias já haviam sido
absorvidas e tomavam forma nos trabalhos de Toshie.158

Era muito comum, na sociedade vitoriana, haver uma separação entre


ambientes “femininos” e “masculinos” e, claro, em suas respectivas mobílias. A
assimilação dessa idéia ou sua subversão é bastante relevante na criação de
157
Kirkham, Pat p.227
158
Kirkham, Pat p.227
96
objetos de Mackintosh. É difícil identificar essas diferenças, apesar de, em
geral, terem sido comissionados com essas intenções. Charles constantemente
“brincava” e “testava” esses limites, por isso é positivo analisá-los como sendo
híbridos pois, de outra forma, alguns detalhes e interpretações passariam
despercebidos.159

Seus designs são altamente estetizados e ligados ao movimento estético


(Aesthetic Movement) e ao Arts & Crafts. Os clientes dos Mackintoshes (é bem
conveniente enxergar os dois trabalhando juntos nesse âmbito, pois as
referências de um sobre o outro são muito evidentes, sendo que em alguns
momentos é inclusive difícil dissociar o trabalho de um do outro) eram
geralmente progressistas o que torna os muito mais ligados à esse tipo de
produção do que com uma “democratização” do design. Por esse motivo,
muitas vezes, dispunham-se a sacrificarem a qualidade do material e da
construção em função de um efeito estético.160

Uma de suas ambições era desenvolver uma ornamentação apropriada,


livre da restrição da mera reprodução de detalhes e rebuscamentos antigos e
antiquados. Com esse norte desenvolveu seus trabalhos com elementos
decorativos que se davam de formal sensual, relaxantes, desconcertantes e
uma infinidade de outras formas que geram respostas muito fortes nos seus
usuários e observadores. Uma de suas mais célebres citações é muito
conveniente para ilustrar essa idéia e conseqüentes efeitos: “devemos vestir
idéias modernas com trajes modernos – adornar nossos designs com uma
elegância viva”.161

159
Kirkham, Pat p.228
160
Kirkham, Pat p.229
161
Kirkham, Pat p.229
97
Fig 32: Armário para pia, 1893

A sua produção mobiliária de 1893 a 1896 é comumente rejeitada e


merecem ser elevados a um patamar mais elevado junto aos cânones do
design Mackintoshiano.162

Segundo Roger Billcliffe seu primeiro móvel “não é particularmente bem


sucedido”. Apesar da crítica o armário para pia pode ser visto como
testemunha de um trabalho ligado a um movimento progressista estabelecido e
demonstra uma preferência por peças proporcionais e elegantes nesse
primeiro momento.163

Em 1895 desenhou um armário para copos aos moldes do Arts & Crafts
com dois painéis de metal com figuras humanas com o estilo das irmãs
Macdonald. No mesmo ano desenhou um banco que foi exposto em 1896 na
Arts & Crafts Exhibition Society em Londres. É repleto de detalhes capciosos e
que contribuem de alguma forma à composição geral. As pernas frontais
tornam-se colunas que suportam a parte superior. Por causa desse
encerramento ele recorta as laterais para suavizar o desenho. O encosto é
adornado com estênceis florais que contribuem para a natureza estética desta
peça de mobiliário artístico, além dos pavões em metal logo acima.164
162
Kirkham, Pat p.230
163
Kirkham, Pat p.230
164
Kirkham, Pat p.230
98
Fig.33: Banco, 1895

Para o Miss Cranston’s Tea Rooms em Argyle Street em 1898 desenhou


um mobiliário também bem próximo às idéias do Arts & Crafts. Os móveis em
geral simples e robustos eram feitos de carvalho conferindo uma dignidade
muito característica a esse conjunto, de assumir sua madeira, seu peso, suas
cores e texturas, todos contribuindo para a composição das peças tanto
individual quanto coletivamente.

A célebre cadeira com uma elipse em seu topo, um dos designs mais
famosos de Mackintosh, foi desenhada nessa ocasião e reflete muito bem a
natureza digna desses objetos. Seu desenho é audacioso por esticar
verticalmente as linhas do espaldar, pela elipse que o coroa e pelo seu
simbolismo. Apesar de uma simplicidade muito aparente que a aproxima do
observador, essas suas características formais são muito exóticas gerando um
interesse muita grande sobre a peça. Ao mesmo tempo em que se sente muito
próximo dela o observador é intrigado com seu mistério que se torna absurdo e
conflitante frente a tamanha honestidade material.

99
Fig.34: Cadeira para Argyle Street Tea Rooms

Trata-se da primeira cadeira de espaldar alto de Charles. As pernas de


trás são retangulares na vista superior, tornam-se ovais e, por fim, redondas. A
elipse tem recortada a figura de um pássaro estilizado em vôo. Há em sua
construção uma similaridade muito próxima à sua arquitetura por apresentar
peças que parecem ser simples e levemente encaixadas umas à outras.

Como em geral ocorre com os trabalhos de Mackintosh muitas leituras


são associadas à ela, principalmente à sua elipse. Alguns vêem-na como uma
sinalização do artista, outros como um remanescente do “olho que tudo vê” ou
uma cabeça humana alongada sobre um corpo andrógino como nos dos
desenhos do “The Four”. Um efeito tão simbólico e potente quanto o associado
à suas formas é quando são dispostas em torno de uma mesa: mesmo que
vazias, parecem ocupadas.165 Elevando-se assim o simbolismo de Charles a
um outro patamar, além de mera cogitação simbólica, onde se é criado um
efeito sinestésico com interpretações metafísicas. É difícil dizer se tal efeito
surge de uma direta associação de suas formas ao “mito Mackintosh” e suas

165
Kirkham, Pat p.230
100
conhecidas brincadeiras compositivas misteriosas e seu simbolismo ou se de
fato trata-se de um natural vislumbramento subliminar. Independentemente da
origem simbólica desses padrões trata-se de uma experiência no mínimo
excêntrica que surge das mãos de um mestre designer.

Além da cadeira há outras peças que, apesar de mais simples,


apresentam muitas sutilezas e sagacidades. O porta-chapéus consiste de uma
base, quatro planos verticais e uma coroa. Diz-se que essa peça fora
desenhada para as áreas masculinas de Argyle Street, o que explicaria sua
dureza. Entretanto todos os móveis parecem rígidos nesse Tea Room, no
entanto nem todos eram “masculinos”, o que nos faz retornar à questão de até
onde isso era relevante para Mackintosh.166 Essa ambigüidade se repete na
cadeira para a sala de leitura das mulheres que é a mais pesada do
estabelecimento. Nesse caso gosto contava tanto quanto gênero.167

Esses objetos, entretanto, apresentam alguns problemas em seus


designs, às vezes no projeto, em outras na execução e às vezes em ambos.
Um problema comum está no uso de encaixes que não permitem movimentos.
Isso ocorre pois às vezes são mais rígidos que a madeira da peça a qual estão
atrelados além não são sulcados. Há também pés que não são chanfrados
que, após algum tempo de uso, passam a soltar farpas.168

166
CRAWFORD, Alan p.54
167
CRAWFORD, Alan p.54
168
CRAWFORD, Alan p.54
101
Fig.35: encaixes se soltando de cadeira

6.2 Mains Street

No ano de 1900 Charles e Margaret se casaram tornando-se


oficialmente o casal Mackintosh. Como presente de casamento ofereceram à
história do design uma de suas composições mais ricas em termos de
interiores e mobiliário: o seu flat no número 120 em Mains Street, Glasgow. Em
uma série de contraposições fazem do seu quarto um refúgio branco, conferem
à sala de jantar uma sobriedade e honestidade escuras e à sala de desenhos a
harmonia da bem sucedida associação de brancos e cinzas com pontos de
roxo e rosa salpicados por entre móveis que alternavam entre claros e escuros.

Contemporâneos que visitavam o apartamento eram tomados pela sua


intensa atmosfera. Hermann Muthesius certa vez o chamou de “mundo dos
contos de fadas” em que “um livro com uma encadernação inadequada
perturbaria a atmosfera simplesmente por estar sobre a mesa”.169

O quarto era branco, com detalhes coloridos, pequeno e repleto de


mobília. Desde 1895 Charles estava vivendo no porão da casa de seu pai, com
papel de parede escuro e com friso de gatos no topo e uma grande cama
pintada de verde. Agora, sob a influência e a constante e etérea alimentação

169
MUTHESIUS, Hermann apud CRAWFORD, Alan p.72
102
de sua imaginação por Margaret desenhou a cama de casal branca: um
santuário de intimidade, celebração e, talvez, inocência.170

No quarto também havia um espelho com dois botões de rosa em vidro


rosa próximos ao topo. Para o historiador de design David Brett a curva do
espelho é aquela da cintura de uma mulher; tornando-o algo privado e erótico
para Margaret. O apartamento era repleto desses detalhes: pássaros, caudas
de pavão na escrivaninha, galhos na estante de livros.171 Para Muthesius cada
um desses motivos lineares tinha um significado. Alguns representam objetos
particulares como uma rosa e possuem significados particulares associados à
sexualidade, outros parecem muitas coisas ao mesmo tempo, e podem ser
compreendidos como as linhas da natureza. São orgânicas linhas de vida que
às vezes conferem à mobília qualidades quase humanas. Para Mackintosh a
mobília, assim como todo o conjunto do apartamento tinha uma significância
intensamente sensual e pessoal. Entretanto nem sempre eram tão
convincentes quando usados por outras pessoas.172

170
CRAWFORD, Alan p.70
171
CRAWFORD, Alan p.70
172
CRAWFORD, Alan p.70
103
Fig.36: Quarto do casal em Mainsstreet (reconstrução no Hunterian Art Galleries,
Glasgow)

6.3 Windyhill

Fig.37: cadeira de Windyhill

No mesmo ano do casamento, 1900, Charles desenhou a casa Windyhill para


William Davidson. O projeto, firmemente estabelecidos sobre os moldes do Arts
& Crafts, possuía uma mobília simples, robusta e honesta: respondia

104
claramente aos gostos de Davidson que, além de amar arte, era um apreciador
da simplicidade, ao que parece, beirando a austeridade.173

William não precisava de mobília nova, portanto lhe foram desenhadas


apenas alguma poucas peças. No corredor ficava uma das cadeiras mais
celebradas de Charles. Assemelhando-se a tradicionais cadeiras escocesas
“caqueteuse” ou “gossip’s chair” possui um assento em forma de trapézio com
o maior lado para a frente. As suas costas, entretanto, são das menos
tradicionais: côncavas e altas inclinam-se levemente para trás. A despeito de
suas formas bastante autênticas possui alguns problemas no design: a base
das costas prende-se ao chão ao ser arrastada, entretanto sua execução é
impecável. Tanto designer quanto artesão foram muito minuciosos, tendo
inclusive uma tradicional proteção de madeira em torno do frágil assento de
palha.174

Para a sala de desenho da casa Mackintosh criou um excêntrico e


maciço armário para livros. Sua parte superior consiste de dois gabinetes
separados por um espaço central. Nos lados do armário foram colocados
espaços para livros que não podem ser vistos da frente da peça criando um
efeito similar ao que ocorreu muitas vezes na Glasgow School of Art: um
interior que revela o exterior e a impressão de um espaço que está lá, mas que
ao mesmo tempo não está. Charles ao invés de decorar esse espaço vazio ou
“abri-lo”, revelando os livros, ele assume a madeira como uma pausa no design
que confere peso e robustez à mobília.175

173
CRAWFORD, Alan p.84
174
KIRKHAM, Pat p.239 e CRAWFORD, Alan p.84
175
CRAWFORD, Alan p.86
105
Fig.38: Armário para livros de Windyhill Fig.39: Mesinha branca de Windyhill

Outro desenho sagaz da mobília de Windyhill é uma mesinha branca do


quarto principal. Seus pés são feitos de tábuas com as maiores faces voltadas
à frente que sobem e fundem-se ao restante do objeto. Quando vista de lado a
mesinha possui pés muito mais estreitos por se estar vendo o menor lado da
tábua fazendo parecer um outro móvel, muito mais leve, absolutamente
diferente da vista frontal. Um design simples que esconde a sagacidade de
Mackintosh. Charles sabe que o observador desatento tomará a simplicidade
da peça por certa e é exatamente nela que ele escondem seus jogos visuais,
como se reservasse esse presente apenas aos verdadeiros exploradores,
dignos de receberem esse singelo “agrado” estético. Crawford o chama de
“jogo de direções”.176

176
CRAWFORD, Alan p.86
106
6.4 The Rose Budoir

No verão de 1902 o governo italiano promoveu uma Exposição


Internacional de Artes Decorativas Modernas em Turim. O casal criou uma sala
muito feminina chamada “The Rose Budoir”. Foi apresentado um mobiliário
novo que incluía duas cadeiras leves com braços pintadas de branco, uma
mesa oval e uma cadeira de espaldar alto. Esses itens, assim como o restante
do interior, revelam o design de Mackintosh tornando-se cada vez mais leve,
luxuoso, simbólico e talvez até feminino, apresentando uma delicadeza muitas
vezes inexistente no mobiliário de Argyle Street e Wnidyhill.177

Fig.40: Cadeira do The Rose Budoir

O relevo do topo desta cadeira é tanto seu ponto fraco em termos de unidade
visual quanto a coroação de sua glória. É difícil definir uma representação para
estas formas abstratas que já foram lidas como uma face humana, um
fantasma de Halloween, um ovário e um testículo. Interpretações em absoluto
ambíguas, revelando mais uma vez a sexualidade no trabalho de Charles e
suas ambivalências simultaneamente masculinas e femininas.178

Essa cadeira possui um desenho de rosas colocado à altura da cabeça


do usuário quando sentado, coroando-o, o que nos ajuda a compreender o
177
CRAWFORD, Alan p.95, 96
178
KIRKHAM, Pat p.239
107
porque esta, assim como a de Argyle Street e tantas outras de suas cadeiras
são vistas como fantasmas ou criaturas nos observando. Elas agem como uma
espécie de berço para quem nela está sentado. É como se estivessem sempre
preparadas para receber alguém, enquanto não são utilizadas ficam à espera,
como fantasmas.179

Este estêncil também nos permite compreender outro aspecto muito


importante de seu trabalho: Mackintosh seguia a ênfase dada pela Glasgow
School of Art de usar materiais e técnicas do dia-a-dia para estetizar a casa da
classe média. Através da aplicação de decoração bidimensional em uma forma
tridimensional Charles encontrou uma forma barata e eficiente de traduzir as
formas do Art Nouveau ao design mobiliário.180

6.5 The Willow Tea Rooms

No dia 29 de outubro de 1903 foram inauguradas as mais novas e


refinadas salas de chá de Glagow não por acaso chamadas de “The Willow
Tea Rooms” no número 217 de Sauchiehall Street. O nome da rua, traduzido
para o português seria algo como “aléia dos salgueiros” que, neste caso
abrigava o mais belo e simbólico dos salgueiros: as salas de chá chamadas
pelo nome desta árvore em inglês: “willow”.

Neste projeto Mackintosh, associado à sua esposa, conseguiu algo


inédito em casos anteriores como seu flat em Mains Street. Haviam criado,
segundo Alan Crawford “um ambiente chique,(...) fácil de ser apreciado e
aberto ao público” como grande diferencial. Continua Crawford: “Não poderiam
ter se divulgado, e a Miss Cranston, dona do estabelecimento, melhor.”181
Entretanto, como não poderia ser diferente, as características altamente
simbólicas e estetizadas desses ambientes, como se irá ver, tornam
questionáveis a afirmação de Crawford de ser um ambiente “fácil de ser

179
CRAWFORD, Alan p.96
180
KIRKHAM, Pat p.241
181
CRAWFORD, Alan p.114
108
apreciado”182. Talvez apreciado sim, o que não quer dizer compreendido.
Levantam-se algumas questões muito relevantes: há uma necessidade de
compreensão para que o trabalho possa ser apreciado? E pode um trabalho,
tão profundo e simbólico, como este ser apreciado sem compreensão? Alguém,
ou até mesmo, seu criador compreendem na totalidade o que fora feito em
Sauchiehall? E tantas outras. Entretanto, apesar de serem questões muito
relevantes, fogem às modestas aspirações deste texto e têm por finalidade, ao
serem lançadas, promoverem alguns momentos de reflexão ao digníssimo
leitor, se este se dignificar a tal.

Arte e domesticidade eram os temas destas novas salas de chá e era


exatamente essa domesticidade, com a qual Charles lidava tão bem, que
diferenciava o estabelecimento dos demais lugares de refresco.183 Seria talvez
uma das primeiras vezes em que se veria essa característica aliada a
excitamento, antes grandes oponentes agora, sob o jugo de Mackintosh,
trabalhavam juntos para concretizar a sua imaginação do artista.

A estrutura do empreendimento, em Sauchiehall, já estava lá, o que


Charles tinha a fazer era definir os espaços e jogar com eles.184 Foram criadas
duas “white rooms”, espaços permeados por paredes, mobiliário e decorações
predominantemente na cor branca, característica de alguns de seus projetos de
interiores mais memoráveis. No Willow eram os “ladie’s tea room” e o “Salon de
Luxe”, ambos concebidos principalmente para mulheres.

182
CRAWFORD, Alan p.114
183
KIRKHAM, Pat p.274
184
CRAWFORD, Alan p.108
109
Fig.41: Estrutura de madeira no centro da primeira sala do The Willow Tea Rooms

A sala da frente, utilizada diariamente, era clara e espaçosa com móveis


simples e escuros. Na mesa de atendimento ao cliente, onde ficava o gerente,
havia uma das cadeiras mais celebradas de Mackintosh a “The Willow Tea
Room Chair”. Sua forma pouco convencional, que brinca com o horizontal e o
vertical formando uma árvore estilizada, tinha uma finalidade muito específica:
funcionava também como biombo.185 Era a forma mais feminina do térreo,
característica talvez ampliada pela sua função de esconder algo, de produzir
185
KIRKHAM, Pat p.243
110
mistério, função tão inegavelmente atribuída ao feminino. Apesar de estilizada
trata-se de uma leitura bem literal de um salgueiro. As barras verticais do
centro formam o “tronco”, surge a “copa” como um triângulo invertido e depois
seus “galhos” descem ao longo do perímetro da cadeira para cair na “água”: o
assento.186

Fig.42: Cadeira-biombo

No centro dessa mesma sala havia uma estranha e inclassificável estrutura que
emoldurava duas mesas: a mais pura e menos estrutural das fantasias em
madeira com que Charles tanto gostava de definir espaços.187 Nesse núcleo as
cadeiras eram mais baixas e sólidas e nos lados mais altas e com costas em
forma de escada, elegantes e abertas em que tensões entre horizontalidade e
verticalidade eram tão bem resolvidas.188

186
JONES, A p.167
187
CRAWFORD, Alan p.111
188
KIRKHAM, Pat p.243
111
Ao contrário das alongadas mulheres de Ingram Street, a decoração das
paredes desta primeira sala do Willow é um padrão quase abstrato chamado
“The Willow Tree”. Suas linhas sugerem mais o desenho de um homem que um
próprio salgueiro. A característica abstrato-orgânica da decoração deriva mais
de fortes linhas angulares do que da natureza de fato. É como se as curvas
estivessem lutando com os quadrados e estes estivessem começando a
ganhar.189

Subindo as escadas, decoradas com uma trama na frente de cada um


dos degraus, chega-se ao mezanino pintado de rosa, branco e cinza.
Permeado por uma série de colunas, como uma pequena floresta de árvores
simbólicas, estabelecem-se sobre vigas e seguram um teto que parece quase
não ter peso.190

Fig. 43: Mezanino do The Willow Tea Rooms

Após passar-se por esta pequena floresta simbólica chega-se à menina


dos olhos do “The Willow Tea Rooms”: o “Salon de Luxe”. Nada aqui é escuro
para que não interrompa a clara feminilidade da sala. A cor mais escura aqui é
o roxo vibrante da seda na parte inferior das paredes. Os móveis, pintados de
prata, incomuns para os padrões da época, inclusive os Art Nouveau, e as
inserções de vidro colorido, assim como os vitrais, os painéis de gesso de

189
CRAWFORD, Alan p.110,111
190
CRAWFORD, Alan p.111
112
Margaret Macdonald, as portas de janelas coloridas e o exótico lustre que
parecia uma cascata de bolas de vidro colorido, tudo contribuía para a criação
da fantasia do ambiente.191 Assim como mobília cenográfica não há
dúvida de que a tinta da mobília é uma imitação de prata, mas é a sua audácia
e leve vulgaridade que inebriam e encantam.192

Fig. 44: Salon de Luxe

O “The Room de looks” como o jornalista Neil Munro193 a chamou certa


vez, possuía dois tipos de cadeiras. As mais altas se desenham a partir das
influências da geometria, linearidade e estilização da Secessão Vienense. Suas
associações são ora humanas ora robóticas. Quando vistas de um ângulo em
que seja possível enxergar a curva das costas é impossível não fazer
associações antropomórficas e, quando vistas de longe, em grupo,
particularmente em frente aos vitrais, evocam árvores.194 As menores possuem
uma terminação em V na parte inferior e complementam as maiores, em
verdade são virtualmente o núcleo interno das maiores.195

191
CRAWFORD, Alan p.114 e KIRKHAM, Pat p.243
192
KIRKHAM, Pat p.243
193
CRAWFORD, Alan p.114
194
KIRKHAM, Pat p.243
195
KIRKHAM, Pat p.244
113
Trata-se aqui da estética do excesso, da sobreposição de camadas, tudo
é muito difícil de ser compreendido à primeira vista. Este não é o Mackintosh
minimalista que algumas vezes se manifestava.196

Esta era versão comercial do conceito de sala como obra de arte, de


“completa obra de arte”, que havia se tornado a vida do casal. 197 E, como em
tal, tudo deveria ser pensado de forma artística: até as garçonetes usavam
vestidos e aventais desenhados por Mackintosh, assim como cortinas,
carpetes, iluminação, menu e os talheres, além, é claro, do já mencionado
mobiliário.198 Mackintosh também desenhou os vasos de flores e, reza a lenda,
que era comum ele ir até o estabelecimento antes deste abrir para que
pudesse pessoalmente arrumar as flores como queria para garantir que a
ambientação estivesse exatamente como desejava.199

6.6 The Hill House

Em 1902 Walter Blackie, um editor de Glasgow, queria uma nova casa para
sua família no terreno que havia adquirido em Helensburg, a oeste de Glasgow.
Blackie e Mackintosh foram apresentados por um de seus empregados Talwin
Morris, amigo de Charles. Segundo as lendas que giram em torno de
Mackintosh, Charles teria vivido com os Blackie para observar seu estilo de
vida. O contratante certa vez disse que: “Ele submeteu os primeiros desenhos
para a nossa casa, o interior apenas. Não até que tivéssemos decidido a
disposição do interior ele tinha nos submetido desenhos das elevações”, sendo
muito coerente com sua filosofia do interior ditar o exterior.200

Custando pouco menos de £6000 a casa é uma das construções


domésticas mais bem concebidas do período no reino, o que só faz aumentar a
frustração de saber que muitos arquitetos contemporâneos da Grã-bretanha

196
KIRKHAM, Pat p.244
197
CRAWFORD, Alan p.114 e KIRKHAM, Pat p.274
198
CRAWFORD, Alan p.114 e JONES, A p.164
199
JONES, A p.168
200
JONES, A p.150
114
fizeram suas reputações em grandes casas e que Charles tem tão poucos
projetos desse tipo concluídos.201

Como muitos arquitetos sérios do Free Style, Mackintosh apresentava


suas casas como não tendo estilo. Quando a entregou ao proprietário disse:
“Aqui está a casa. Não é uma villa italiana, uma mansão inglesa, um chalé
suíço, nem um castelo escocês. É uma moradia202.”203.

A planta tem forma de L e é propositalmente divida em três seções. Do


sudeste as três podem ser vistas simultaneamente: a oeste, de dois andares,
contém grande parte dos quartos da família. A do centro, de três andares,
contem a sala de jantar, quarto de hóspedes e um quarto no sótão. A terceira,
também de três andares, contém o quarto das crianças e a ala de serviço com
depósito, quarto do servente etc. As partes são ligadas pela torre da escadaria
que fica bem ao centro. Mackintosh faz uma brincadeira compositiva com a
torre e lança uma miniatura sua no jardim para ser o depósito do jardineiro.204

Tudo é muito robusto e diretamente escocês. Ao mesmo tempo em que


é muito simples possui uma certa complexidade contida, escondida, que só se
revela a quem se dispuser a ir a além de sua simplicidade aparente e
proposital, assim como na Glasgow School of Art. Com o pouco detalhe das
paredes, logo se começa a reparar nas janelas: são 58 no total, com 40
designs diferentes entre si que variam em tamanho, orientação, tipo etc.205As
paredes de harling206conferem-lhe a simplicidade em questão e unificam o
desenho, mas trata-se apenas de uma pele que reveste as muitas massas
diferentes e complexas do interior.207

201
JONES, A p.151
202
Em inglês seria Dwelling House que pode ser traduzido como moradia, apesar de não
abarcar todos os sentidos que competem ao termo.
203
JONES, A p.150
204
JONES, A p.151,152 e CRAWFORD, Alan p.103
205
CRAWFORD, Alan p.104,106
206
Uma técnica de revestimento de castelos escoceses, semelhante a um chapisco.
207
CRAWFORD, Alan p.106
115
Fig. 45: Vista sudoeste de The Hill House

A entrada da casa é uma questão particularmente complexa. É difícil


dizer o que Mackintosh queria dizer com ela, talvez estivesse querendo
expressar uma estranha relação entre interior e exterior, além de sugerir a
espessura e rigidez da parede. É curioso como ela não oferece uma recepção
hospitaleira a quem entra como também não é um lugar de transição: é uma
208
fronteira que deve ser ultrapassada para se ir de um mundo para outro. E de
fato o interior da The Hill House é outro mundo.

Apesar de o teto ter sido colocado em 1903, a construção só terminou


cerca de um ano depois e o interior é do fim de 1903 e começo de 1904. É
considerado o interior doméstico mais elaborado do casal.209

208
CRAWFORD, Alan p.103
209
CRAWFORD, Alan p.107-109
116
Fig. 46: Entrada de The Hill House

Passada a misteriosa porta chega-se ao vestíbulo onde todos os traços


emprestados do tradicionalismo escocês no exterior desaparecem para dar
lugar à uma linguagem única do interior. À direita desta primeira sala ficava a
biblioteca. Revestida de madeira escura e decorada com quadrados de vidro
colorido é masculina e sóbria. Seria absolutamente retilínea se não fossem
algumas sutis e discretas curvas que surgem como que a contradizer as retas e
os quadrados, movimento cada vez mais freqüente na carreira de
Mackintosh.210 A Hill House pode inclusive ser lida como um ponto de transição
entre as expressões mais orgânicas de Mackintosh dos anos 1890 e as
geométricas que começam a surgir a partir de 1900.211

210
CRAWFORD, Alan p.120
211
CRAWFORD, Alan p.103
117
Fig.47: Biblioteca da Hill House

Fig.48: Vestíbulo e Hall da Hill House

Do vestíbulo sobem-se quatro degraus e chega-se ao hall. Escuro e


retilíneo, assemelha-se muito ao de Windyhill, mas essa é a sua versão de
luxo. As colunas de madeira escura na parede têm finos detalhes em vidro

118
colorido próximo ao topo e, entre uma e outra, Charles aplica um estêncil com
motivos orgânico-abstratos tão angulosos quantos os do The Willow Tea Room
em azul, rosa e verde.212 Ambas as salas de recepção possuem fortes
influências do Japão, principalmente no uso de madeiras escuras aparentes.213

Subindo-se as escadas chega-se à sala de desenho. Branca, revestida


por estênceis com motivos de rosas envolvendo treliças em verde, cinza e rosa
possui três funções: música ao piano, banhos-de-sol no banco em frente à
janela e aquecimento próximo à lareira no inverno.214 O teto era pintado de
preto dando a impressão da sala se tratar de uma grande e espaçosa caixa
sem tampa, unificando todo o ambiente. Em plena conexão com seu amor pela
natureza, a janela da sala posta-se em frente ao jardim, unindo os dois
visualmente como se fossem um. Ou seja: ao mesmo tempo que traz a
natureza verdadeira “para dentro” da sala, a traz em representação com os
motivos inseridos nas paredes.215

Fig. 49: Drawing room, The Hill House

O quarto principal lembra muito alguns momentos de Mains Street. Hill


House pode ser lida inclusive como sua sucessora; menos intensa, mas maior
212
CRAWFORD, Alan p.120
213
JONES, A p.152
214
CRAWFORD, Alan p.120,121
215
JONES, A p.153, 154
119
e mais luxuosa.216 Por toda a extensão de paredes creme do quarto corre uma
delicada trama de rosas em verde-oliva e rosa que se dissolvem em cinza. Os
móveis são desenhados para encaixarem-se á arquitetura tanto física quanto
visualmente.217

Fig. 49: Quarto principal, The Hill House

No quarto, também conhecido como “The White Bedroom”, a cama fica


em um recesso com teto abobadado. A cabeceira possuía painéis bordados
com sonhadoras figuras femininas.218 Na composição geral do ambiente há um
interessante contraste entre a rica e pálida atmosfera e as duras linhas pretas
das cadeiras criando um belo diálogo entre linha e forma.219 Essas célebradas
cadeiras de Mackintosh conhecidas como “The Hill Chair” jamais poderiam ter

216
CRAWFORD, Alan p.122
217
CRAWFORD, Alan p.122
218
CRAWFORD, Alan p.122
219
JONES, A p.154
120
ocorrido em Mains Street pelo simples fato de serem pretas. Mackintosh já
havia criado móveis pretos antes, mas nunca no coração de um desses
domínios de feminilidade. Esses embates entre orgânico e geométrico, o
feminino que começa a ser invadido pelo preto masculino, em verdade vem
ilustrar que algo estava mudando em Charles.

Fig. 50: Armários do quarto principal da Hill House

Essas cadeiras são comumente criticadas por serem consideradas


pouco sólidas e inconsistentes, mas foram, provavelmente, projetadas apenas
para se apoiar roupas sobre elas, trazendo por terra, mais uma vez qualquer
interpretação óbvia que se possa dar a um trabalho de Mackintosh. 220

A casa, como não poderia ser diferente, é repleta de jogos de luz que
reforçam os aspectos masculinos e femininos da casa e a subversão de um
pelo outro. Entrando-se nela, refugia-se da luz em um escuro e denso
vestíbulo, ao lado de uma biblioteca com as mesmas características, sobem-se
alguns degraus e chaga-se ao hall que tem meia-luz, sobem-se as escadas e
atinge-se uma luz intensa na sala de desenho e no quarto principal. Pode-se

220
CRAWFORD, Alan p.123
121
claramente fazer uma leitura muito simbólica desses jogos.221 É somo se ao
entrar na casa se abandonasse o claro e fugaz mundo material. Se é recebido
por uma densa porém etérea escuridão que vai gradativamente clareando,
tornando-se mais leve, como se um corpo impuro estivesse sendo purgado
para finalmente poder adentrar um mundo sublime de rosas e brancos
banhados por muita luz que nos passam claramente uma idéia de pacífica
eternidade. Uma tentativa de alcançar qualquer tipo de perenidade em tempos
tão velozes de mudança de século; como uma catedral que tenta escrever em
pedra a que veio para fixar-se em meio à mudança de qualquer temporalidade
física ou meta-física ao longo dos séculos.

Os jogos de luz surgem também dos inúmeros vidros coloridos que se


espalham em detalhes pela casa: roxo e azul nos ambientes masculinos e rosa
e branco nos femininos; Quando o sol sai, toda a construção responde.222

Todas essas minúcias estão em pleno acordo com o imperativo moral do


arquiteto em crer que a harmonia entre arquitetura e design são de inteira
responsabilidade de seu criador. Segundo Blackie: “todo detalhe, no interior,
assim como no exterior, recebeu sua cuidadosa - diria até amável –
atenção”.223

Apesar de todo o brilhantismo Mackintosh era um arquiteto cada vez


mais sozinho. Em 1910, enquanto explorava as relações entre curvas e
quadrados, a arquitetura britânica estava abandonando as expressões
individuais, além do decorativo e do doméstico que foram tão fortes nos anos
1890. O classicismo, ironicamente, se tornava a forma do modernismo para
arquitetos progressistas, inclusive admiradores de Mackintosh, que viram no
Clássico a linguagem mais apropriada para a disciplina mais forte e impessoal
que estavam adotando.224

221
CRAWFORD, Alan p.123
222
CRAWFORD, Alan p.123
223
JONES, Alan p.154
224
CRAWFORD, Alan p.159,160
122
Olbrich, um desses admiradores, morreu em 1908 e seus trabalhos
finais tinham um forte espírito clássico. Hoffmann por sua vez, tinha muito
interesse pelo estilo Biedermeier e prédios vernaculares do mediterrâneo o que
fazia dele um indivíduo com fortes propensões naturais ao classicismo. Certa
vez Marry Sturrock ficou desapontada ao ver seu trabalho tão, como ela
mesma teria dito, “Biedermeierish”. Ele respondeu que: “É claro que fui
influenciado por Mackintosh quando eu era mais novo, mas isso foi muitos
anos atrás”.225

Tudo isso, é claro, doeu muito em Charles. Sobre esse período Walter
Blackie relata que: “Eu o encontrei sentado em sua escrivaninha,
evidentemente em um profundo estado de depressão. À minha pergunta de
como estava se sustentando e o que estava fazendo ele não deu resposta.
Mas logo começou a falar de forma vagarosa e angustiada. Ele contou quão
difícil estava sendo não receber nenhum reconhecimento geral; apenas alguns
poucos viam mérito em seu trabalho e muitos nem sequer o notavam”.226

6.7 Walberswick

No meio de Julho de 1914 o casal decidiu passar férias em Walberswick,


uma vila de pesca em Suffolk, para que Charles, principalmente, pudesse
descansar. Francis Newberry tinha uma casa na vila que era muito popular
entre artistas. O casal se instalou nela e, apenas três semanas depois de sua
chegada, a 1ª Guerra Mundial estourou. Teriam voltado para Glasgow mas,
segundo Margaret Macdonald relata a Anna Geddes: “Eu induzi Toshie a parar
e ter o descanso curativo do qual estava precisando tanto já por quase dois
anos”.227

Segundo os mitos que rondam Mackintosh, desolado pela falta de


reconhecimento e falta de trabalho decide abandonar Glasgow de vez, se

225
CRAWFORD, Alan p.160,161
226
CRAWFORD, Alan p.161
227
CRAWFORD, Alan p.162
123
desliga de sua casa em Florentine Terrace (que era bem similar à Mains Street)
e dá as costas à sua cidade Natal. Entretanto essa não é bem a verdade dos
fatos, apesar de serem bem similares, o fato e o relato, a diferença entre os
dois bem é importante.228

As coisas começaram a dar errado no final dos anos 1900 e início dos
1910. As novas direções da arquitetura moderna acabaram por isolar
Mackintosh e faze-lo parecer obsoleto, além de estar sofrendo de depressão.
Apesar de tudo, em momento algum decidiram deixar Glasgow. Por acaso
estavam fora da cidade quando a guerra estourou e, por algum motivo, nunca
mais voltaram.229

Em Walberswick Jessie Newberry, esposa de Francis, conseguiu-lhes


um atelier na cabana de um pescador da vila. Charles ajudava Margaret em um
painel que estava pintando e ele desenhava flores e cogitava a idéia de
publicá-las todas juntas. Esses desenhos assemelhavam-se a desenhos de
estudos botânicos com amostras do vegetal estudado sobre um fundo neutro.
Foram, no total, 40 desenhos, e essa foi toda a sua produção em
Walberswick.230

As pessoas na vila, pela grande circulação de artistas, estavam


acostumadas com suas excentricidades em tempos normais. Entretanto se
tratava de um momento de guerra em que o estranho sotaque de Charles e
suas misteriosas caminhadas à noite pela praia criavam muitas suspeitas nas
pessoas. Espalhou-se pelo lugarejo que havia trabalhado na Áustria e na
Alemanha: só poderia ser um espião. Em Maio de 1915 autoridades militares
apreenderam alguns de seus papéis e cartas desses dois países, as reteve por
cinco semanas, e ordenaram que ele saísse da área. Margaret ficou doente de
preocupação.231

228
CRAWFORD, Alan p.162
229
CRAWFORD, Alan p.162
230
CRAWFORD, Alan p.162
231
CRAWFORD, Alan p.164
124
Como patriota que era, resolveu partir para Londres para limpar seu
nome. Lá encontrou trabalho temporário com Patrick Geddes. Em agosto de
1915 o casal encontrou dois estúdios, um ao lado do outro em Geble Place,
Chelsea, que se tornaria o foco de suas vidas nos próximos oito anos.232

Fig. 51: Fritillaria, Walberswick,1915

6.8 Derngate, 78

Alguns meses depois Wenman J. Bassett-Lowke lhe convidou a alterar a


sua casa recém comprada em Northampton para seu casamento que ocorreria
em Março de 1917.233 Um verdadeiro modernista inglês, admirador de George
Bernard Shaw, manufatureiro de modelos de engenharia e de ferrovias,
procurava um arquiteto com idéias modernas.234

232
CRAWFORD, Alan p.164
233
CRAWFORD, Alan p.170
234
CRAWFORD, Alan p.167
125
Localizada no nº 78 de Derngate, a casa do início do século XIX era
pequena com dois quartos em cada um dos três andares e uma cozinha no
porão. O trabalho incumbido a Charles foi o de adicionar um banheiro, criar
mais espaço, decorar e mobiliar. Este veio a se tornar, apesar de pequeno, um
dos trabalhos mais incríveis de sua carreira.235

Na parte de trás da casa, com quatro andares, Mackintosh adicionou


uma pequena ampliação que alcançava três andares. A forma branca, retilínea,
simples e desenhada para o ar fresco e o sol, foi o mais perto que ele, ou
qualquer outro arquiteto britânico do período, chegou do racionalismo do
movimento moderno europeu.236

Fig.52: Fundos da 78, Derngate

O interior, no entanto, diferia muito do claro e simples exterior. O hall era


inteiro preto: paredes, móveis, teto e chão. Estênceis que se assemelhavam a
árvores retilíneas em dourado, branco, verde, azul, vermelho e cinza
235
CRAWFORD, Alan p.167
236
CRAWFORD, Alan p.167
126
adornavam as paredes. Uma grade de quadrados abertos e fechados, com
alguns de vidros coloridos corriam ao fundo da sala em frente às escadas.
Sobre o chão, um tapete quadriculado branco e preto.237 É muito conveniente
prestar particular atenção à lareira que se assemelha em muito à entrada da
face oeste da Glasgow School of Art que era a mais avant-garde daquela
construção. Assim como essa lareira, pelas suas linhas escalonadas, ambas
podem ser consideradas como proto Art Déco.

O Hall tinha muito a ver com seus últimos designs de interiores, cinco
anos antes em Glasgow: o “The Chinese Room” e o “Cloister Room” ambos no
“Ingram Street Tea Rooms”, com paredes escuras e frisos de cores vivas, mas
os motivos de triângulos eram novos e agora começavam a desafiar os
quadrados como sendo seus preferidos, e geram, como efeito ótico, um curioso
movimento repetitivo. É claro que nos trabalhos anteriores de Mackintosh havia
movimento, mas eram orgânicos, nunca mecânicos, como agora passavam a
se manifestar.238

No restante da casa prevalecia uma atmosfera bem diferente. Na sala de


jantar enquanto Mackintosh desenhara a lareira, Bassett-Lowke desenhara a
mesa circular e suas cadeiras. O quarto principal tinha papel de parede cinza
com mobília severa e retilínea. O quarto de hóspedes possuía uma mobília tão
severa quanto, de mogno, decorada com quadrados. Não tinham como ser
mais diferentes que os “White Rooms” de Mains Street e Hill House.239

237
CRAWFORD, Alan p.168
238
CRAWFORD, Alan p.174
239
CRAWFORD, Alan p.170
127
Fig. 53: Quarto de hóspedes de 78 Derngate

Mackintosh nunca trabalhara antes com alguém que soubesse tanto de


design. Dessa forma Derngate se revela de fato como o trabalho de duas
mentes masculinas criativas: no hall escuridão e no restante da casa silencioso
bom senso, qualidade de materiais e modernismo tecnológico, nenhum dos
dois jamais haviam despertado interesse em Charles.

128
Fig. 54: Sala 78 Derngate

Ao final da construção de Derngate desenhou o “Dug-Out”, muito


similares entre si, para o “The Willow Tea Rooms”. Era escuro, listrado com
cores fortes, mobília preta ou de coloridos intensos e lareira ornada com zigue-
zagues e losangos em vermelho, azul, amarelo e verde. Esses dois trabalhos
foram praticamente tudo que Mackintosh fizera nos quatro anos de guerra. Por
isso teve muito tempo para se dedicar à pintura. Diferentemente da produção
de Walberswick, que surgira como uma terapia, agora cria imagens intensas,
ricas e luxuriantes, apresentadas de forma tradicional de naturezas-mortas com
o vaso em frente ao observador e a composição floral se dando sobre ele. Há
cerca de uma dúzia delas, todas desenhadas com precisão e com fortes
sugestões de influências pós-impressionistas e fauvistas, provavelmente pela
convivência com os artistas de Chelsea. Agora, na cidade, estava plenamente
conectado ao avant-garde nas artes.240

Cartas de 1919 mostram Charles correndo atrás de trabalho, mas a


guerra e os poucos contatos em Londres tornaram a tarefa impossível. Então,

240
CRAWFORD, Alan p.175
129
em 1923, apesar de Mackintosh não ter chegado ao ponto de desistir da
arquitetura e do design, a conselho de amigos, o casal tirou grandes férias.241

6.9 Port Vendres

As longas férias, por fim, tornaram-se quatro anos vividos em diversos


hotéis baratos, que, na época eram mais baratos no sul da França do que
alugar um apartamento em Londres. Foram o mais ao sul o quão puderam e,
ao que parece, foram se mudando de um lugar para outro. Curiosamente tudo
que havia dado errado no Chelsea e, anteriormente, no final dos anos de
Glasgow, parecia começar a funcionar nesses novos ares.242

Em janeiro de 1924 estavam em Amelie-les-Bains, em abril talvez no


porto de Collioure, que havia sido o local de veraneio preferido dos fauvistas:
Matisse freqüentava desde 1905, e essa foi, provavelmente, a primeira base do
casal. Em fevereiro de 1925 estavam em Ille-sur-Têt, em julho, talvez para fugir
do calor, estavam a cinco mil pés de altura na cidadezinha de Mont Louis. O
Hôtel du Commerce em Port Vendres, onde chegaram em dezembro de 1925,
foi o que o casal teve mais perto de um lar nos anos em que viveram na
França. Não era o lugar mais apropriado pra eles pois se tratava de um porto
movimentado, não dos mais bonitos. E é curioso como Collioure, refúgio dos
artistas, estava tão próximo, a apenas 3kms de distância, e mesmo assim
optaram por esse pequeno porto. Talvez fosse exatamente o que Mackintosh
precisasse: um retiro, distante do meio das artes e, há a possibilidade também,
de que esse lugar por algum motivo lhe trouxesse lembranças de Glasgow.243

Em dezembro de 1925 escreveu para Francis Newberry dizendo: “estou


me esforçando para pintar em aquarela – logo devo começar com óleos”.
Desse período sobrevivem 41 aquarelas, mas nenhum óleo. Em geral a
temática era a de paisagens marítimas, povoados, barcos descarregando. Ele,

241
CRAWFORD, Alan p.184 -185
242
CRAWFORD, Alan p.187
243
CRAWFORD, Alan p.187-188
130
como sempre fez em toda a sua obra, do que quer que fosse, pintava como
imaginava, e não simplesmente como via. Não hesitava, por exemplo, em
mover um farol ou uma montanha de lugar para beneficiar sua composição. As
pinturas são todas vazias de pessoas, a geometria das habitações tem a
mesma rigidez das pedras, como que se revelassem o isolamento do casal de
quaisquer pessoas. Por outro lado também revelam uma austera paz que
permeia as aquarelas assim como a que parecem ter conquistado nesses anos
vivendo na França, percebendo a simplicidade da vida, desligados da
metrópole. Tinham 55 e 59 anos quando chegaram à França e antes haviam
sofrido muito, mas talvez tivessem chegado a um momento em suas vidas em
que o vazio e a completude são extremos muito próximos.244

No começo de maio de 1927 Margaret foi a Londres para tratamentos


médicos por quase dois meses. Esse tempo de distanciamento do casal tem
um valor histórico muito grande para nos revelar todo o amor que os unia.
Mackintosh lhe escrevia todos os dias o máximo de folhas que o selo mais
barato lhe permitisse postar. Tratava das coisas mais efêmeras e fugazes
como o tempo, o que estava pintando, o que estava pensando. E é exatamente
nessa simplicidade de temática que se torna visível a força dos laços que os
uniam, pois não era preciso fazer grandes declarações de amor, tudo já havia
sido vivido e o que lhes restava era aproveitar o tempo de vida que lhes restava
e viver a efemeridade e beleza dessas coisas às quais agora, mais que nunca,
Charles dava valor. É nesse momento também em que se pode ver o
Mackintosh “Toshie”, o homem comum: ás vezes com raiva, outras engraçado,
deprimido.245

Margaret guardou as cartas e, após a morte dos dois, foram parar nas
mãos da família de William Davidson que as doou à Universidade de Glasgow
com a condição de que nunca fossem publicadas e que fossem utilizadas
apenas para fins de pesquisa.

244
CRAWFORD, Alan p.189-190
245
CRAWFORD, Alan p.189-192
131
Em 1924 Mackintosh estava voltando a ficar famoso e Charles Marriott,
crítico de arquitetura do The Times afirmou que: “Dificilmente é muito dizer que
todo o movimento moderno na arquitetura européia deriva dele”.246

No outono de 1927 Toshie ficou seriamente doente com um câncer na


língua, não por acaso, pois havia fumado por toda a sua vida. O amigo Rudolph
Ihe o levou a Londres para se tratar. Ficou internado no Westminster Hospital
onde passou por sessões de radioterapia. Alguns meses depois saiu do
hospital sem poder falar.247

Um de seus pedidos a Margaret foi o de poder se sentar sob uma


árvore. Ela então alugou alguns quartos em Willow Road em Hampstead, com
uma árvore no jardim. Depois mudaram-se para a casa de um amigo em
Porchester Square em Paddington. Em 1928 Toshie foi para uma casa de
cuidados. Lá morreu no dia 10 de dezembro de 1928. O funeral se deu no dia
seguinte em Golders Green Crematorium.248

Margaret, sozinha, retomou a vida de nômade e, de hotel em hotel, via


sua vida passar. Em dezembro estava de volta ao Hotel du Commerce. Em
1929 tentou, em vão, organizar uma exposição com os trabalhos do marido.
Em dezembro de 1932 ela voltou ao Chelsea, onde os amigos haviam mantido
o estúdio de Geble Place; móveis, aquarelas e centenas de desenhos de
Glasgow. A companheira de Mackintosh viveu apenas mais algumas semanas
e morreu no dia 7 de janeiro de 1933, poucos anos após seu amado marido.249
Não havia como as partes se sustentarem independentes uma da outra, sem
os laços que os uniam... Se é que deixaram de unir.

246
CRAWFORD, Alan p.192
247
CRAWFORD, Alan p.193
248
CRAWFORD, Alan p.193
249
CRAWFORD, Alan p.193
132
EPÍLOGO: O Fim dos Erros Honestos

Em 1893 quando Charles Rennie Mackintosh entrou no estúdio de J. R.


Annan para ser fotografado como artista, ele assumiu essa postura frente à si
mesmo e frente à história, onde pertencia. Desta maneira toda a força,
fraqueza e originalidade de seu trabalho provavelmente se devem em parte á
condição de artista que assumiu.250 Entrou na vida como artista e saiu dela da
mesma forma que entrou: como herdeiro da tradição das Higlands escocesas
e, depois, como guardião amável dessa tradição. Não com rígidas grades de
metal e soldados animalizados pela brutalidade, mas com curvas sutis em
pedaços de carvalho e alongadas e sonhadoras mulheres envoltas por rosas,
curvas e quadrados brancos, rosas, verdes e às vezes por etéreas escuridões
que se guardavam em castelos vestidos de arquitetura fin-de-siécle.

O casal Mackintosh viveu até o último momento de suas vidas


fidelíssimo à filosofia de J.D. Sedding, em que Charles tanto acreditava:
erraram de forma honesta e nunca se renderam às gélidas perfeições do mero
estilismo.

Fig.55: Desenho de Charles Rennie Mackintosh com uma de suas máximas.

250
CRAWFORD, Alan p.189
133
Bibliografia

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Leopoldo : Editora Unisinos, 2006

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Editora Luath Press, 2004.

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moderna. Tradução de Regina Thompson 2.ed. São Paulo : Editora Cosac
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MADSEN, S. Tschudi Art Nouveau. Paris : Editora Inova, 1967.

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Editora Taschen, 2000.

SEVCENKO, Nicolau A Corrida para o Século XXI: no loop da


montanha-russa. São Paulo : Editora Companhia das Letras,
2001.

135

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