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Para a senhora cujo nome desconheço, que

limpa as salas e os corredores da FCT


Aquela pequena escova de limpeza, com franjas brancas, deslizava
suavemente no chão vítreo por onde escorriam também imagens
várias dos reflexos de duas mulheres que se cruzaram
silenciosamente… podiam até ser da mesma idade… viviam no
mesmo espaço dilatado mas sonhavam noutros espaços, noutros
tempos, debaixo de outras lágrimas… presença semanal… encontro
semanal das circunstâncias de vidas várias… sempre uma presença
silenciosa deixando escorrer lentamente o cabo que empurra a
escova de limpeza de franjas brancas… ar fechado mas não rígido…
um pouco mais e seria capaz de sorrir… e talvez até falar…
Quer que saia daqui, perguntei suavemente – e ela rasgou o olhar,
ergueu-o do chão reluzente e perguntou se queria que me abrisse a
porta. Não valeria a pena, não iria entrar para já… eu abro,
retorquiu… e retirou do bolso um molho de chaves… escolheu a
apropriada e com um sorriso disse-me que ficaria aberta para o caso
de querer entrar… conversa puxa conversa e lá estávamos a falar da
empresa de limpezas a que orgulhosamente pertence… com
emblema bordado na bata… Atlântida… em letras bordadas que me
levam a outros mares… outros mistérios… mas fico também a saber o
nº de horas que esta senhora repete os mesmos gestos, quanto
ganha, há quantos anos aqui trabalha… tem um ar de trabalho
constante, de vida dura, de maus tratos vários… mas também de
resistente… de mulher que quase não dorme porque chega tarde e
sai cedo…. Depois de deixar roupas lavadas e passadas, comida
feita… e as mágoas permanentemente guardadas no bolso de um
qualquer casaco que comprou em nova mas que ainda guarda porque
o dinheiro não dá para mais…
Tal como se deu este cruzamento de imagens se deu o fecho, o
desfocar porque o meu olhar procurava o compromisso assumido
doutra vida que comigo se cruza… desci a escada disposta a comprar
uma garrafa de água… para tomar um qualquer minúsculo pedaço
químico que me retirasse todos os nós da garganta… esqueci pelo
meio a tarefa… quando voltei a subir a escada a escova de franjas
percorrera já cerca de 50 metros… não se repetiria este momento
íntimo de partilha de dois mundos… a circunstância mudara… e de
novo veio o fechamento do rosto, da postura do corpo… a porta
voltou a ficar fechada à chave, a sua abertura realizara uma função…
a do mundo aberto pela senhora que varre o chão, sempre à mesma
hora, sem conversa… para muitos é uma personagem invisível… no
entanto desliza quotidianamente pelo piso reluzente… e assim fui
cruzando mundos pelo resto da noite… agora, finalmente em casa,
sentada neste desassossego da minha vida partilho este momento
com o desabafo de um ecrã vazio apenas para reviver esse
momento…. Como se tudo isto pudesse dar força, ânimo e felicidade
a alguém que me fez sentir tão mal comigo própria e com os meus
desesperos de vida! Não sei como se chama esta incrível senhora que
assim limpa desesperadamente e maquinalmente… terei que lho
perguntar certamente… as pessoas quando se conhecem costumam
apresentar-se!

Luísa Lopes

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