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ARTIGO ARTICLE
transdisciplinaridade e intersetorialidade
Collective action for quality of life: autonomy,
transdisciplinarity and intersetoriality
Abstract In this study the social work lived by Resumo As práticas de trabalho intersetorial e
it’s authors have been taken as an object of analy- transdisciplinar vivenciadas pelos pesquisadores
sis by the human sciences. We have related our no Programa de Saúde da Família e no Programa
living experiences in the Family Health Program de Agentes Comunitários de Saúde (PSF/PACS)
and in the Program of Health Agents in order to são tomadas como objeto de análise a partir do
show our way of constructing local intersectorial referencial teórico das ciências humanas. A refle-
actions. This is a qualitative study having as main xão crítica das intervenções discute como as ações
objective the discussion of the representations and coletivas intersetoriais e transdisciplinares, quan-
values thru the social processes and thru the indi- do desenvolvidas com o objetivo de fortalecer a
vidual subjective processes. By doing the analysis autonomia dos sujeitos e o exercício da contra-he-
of our interventions we will discuss the potential- gemonia política, contribuem para a melhora da
ities of the intersectorial actions in the work of qualidade de vida da população.
promoting health. Palavras-chave Ação coletiva, Qualidade de vi-
Key words Collective action, Health quality, Au- da, Autonomia, Transdisciplinaridade, Interseto-
tonomy, Transdisciplinarity, Intersectoriality rialidade
identificar as necessidades mais urgentes da co- ocupação de proporcionar prazer para os di-
munidade e formar grupos de trabalho com o versos segmentos etários que formam a mesma
objetivo de desenvolver ações capazes de en- família, o que viabilizou a possibilidade da es-
contrar respostas para necessidades levantadas colha entre ficar em atividades diferentes ou
coletivamente. participar de uma mesma atividade. Seja qual
Ainda como atividade do encontro, for- tenha sido a opção, a família teve uma expe-
mou-se uma comissão para organizar a eleição riência comum, um momento de aprendizado
de um Conselho Popular de Saúde, que será e lazer que despertou a curiosidade e o interes-
um grupo de pessoas eleito pela própria comu- se de seus integrantes como um todo e, certa-
nidade e trabalhará em parceria direta com o mente, se tornou numa experiência de vida
PSF – Curicica e com o Conselho Local de Saú- forte naquele contexto, criando referências afe-
de para organizar ações que possam melhorar tivas, laborativas ou mesmo políticas.
a qualidade de vida da comunidade de Curici-
ca, o que está de acordo com Jha11, quando 2) Promover a integração das diferentes famí-
afirma que a verdadeira democracia participati- lias por meio de ações coletivas – educati-
va ainda tem de surgir, já que democracia não vas e culturais –, de forma a possibilitar o
deve ser reduzida a eventos eleitorais e ao direito questionamento da realidade concreta em
a voto. Uma das principais condições para o que se vive em Curicica
exercício pleno da democracia é a capacidade
de discutir abertamente e sem restrições os A integração entre as famílias ocorreu du-
principais insumos nacionais e problemas que rante as apresentações artísticas da abertura do
transcendem os limites nacionais, [...] no senti- evento, durante as oficinas, o almoço, as brin-
do de tomar-se decisões, que sejam uma reflexão cadeiras, o lanche e o show de encerramento.
dos desejos e sentimentos da população11. Foi possível observar desde crianças fazendo
Sem ações coletivas intersetoriais as práti- passos de balé, até um casal de idosos apren-
cas governamentais correm o risco de serem es- dendo a fazer pátina em madeira. Não pode-
truturalistas e orgânicas à hegemonia do Esta- mos deixar de citar os diversos casais adoles-
do, acabando dessa forma a imaginação que o centes, grávidos ou não, das crianças que pin-
homem faz de si (“de si”, neste caso, inclui to- tavam enquanto os pais bordavam. Não pode-
dos os homens) por dominar o próprio ho- mos esquecer da mãe que amamentava ao seio
mem (Marx12). Realizamos ainda neste dia um sua criança que conhecemos nas consultas de
campeonato entre as famílias, de forma a pro- puericultura ou até mesmo antes pela ultra-so-
porcionar um momento de integração intra e nografia do pré-natal. Ainda mais injusto seria
extrafamiliar capaz de fortalecer vínculos e deixar de sublinhar a presença vigorosa dos ho-
também criar um espaço de entretenimento. mens. Homens que o Programa de saúde da
Os esportes e outras atividades de lazer como Família raramente atende, porque ele está tra-
bingo e jogos de cartas serão estimulados, já balhando. Eles também estavam lá, discutindo
que estas atividades podem reconhecidamente a organização comunitária, aprendendo a fazer
potencializar a formação de grupos. caixas de presente, pintando ou jogando ca-
poeira.
Objetivos e avaliação das ações coletivas
desenvolvidas em Curicica 3) Criar um espaço que proporcione um mo-
mento de lazer onde as famílias possam co-
1) Trabalhar a totalidade do núcleo familiar, nhecer pessoas, fazer amizades e fortalecer
estimulando a participação de todos os vínculos, uma necessidade sentida pela co-
membros e proporcionando uma experiên- munidade e de fundamental relevância pa-
cia comum à família ra estimular a participação popular no PSF
Este objetivo foi alcançado na medida em Nestes momentos de lazer que compreen-
que presenciamos a freqüência de pessoas de deram bingo, gincana de atividades, pelada de
diversas idades de uma mesma família, inclusi- futebol ou ginga de capoeira, as diversas famí-
ve a figura paterna, sempre tão ausente da fa- lias puderam se conhecer (ou re-conhecer) e
mília porque tem de trabalhar e ser explorado afirmar sua identidade de vizinhos e de mora-
nas atividades do dia-a-dia. Ao oferecer diver- dores das comunidades expropriadas de Curi-
sas atividades simultaneamente, tivemos a pre- cica. Com estes encontros se formaram novos
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interagem, para uma abordagem mais comple- possíveis não fosse: 1) a valorização e incorpo-
xa dos problemas. ração da sabedoria local; 2) o esforço transdis-
Para a Rede Unida16, a construção e a via- ciplinar da equipe das unidades básicas de saú-
bilidade política de um projeto intersetorial de e 3) as parcerias com outros setores trans-
passa por um novo olhar e um novo agir sobre versais ao setor saúde.
a realidade, sob a lógica de problemas prioritá-
rios, definidos democraticamente, cuja redu-
ção ou controle necessita de conhecimentos, Construir é enfrentar problemas
habilidades e compromissos de vários setores, e propor
cujos sujeitos precisam encontrar novas formas
de relação com os outros. Um aspecto impor- Neste estudo analisamos ações coletivas desen-
tante da intersetorialidade é, como afirma volvidas pelas equipes do Programa de Saúde
Bourguignon17, a possibilidade de enfrenta- da Família de Curicica e do Posto de Saúde da
mento de problemas multidimensionais como Vila do João. Optamos por elaborar um relato
a exclusão social, que exige uma abordagem que valorizasse a idéia de que construir é en-
marcada pela complexidade e pelo pensamento frentar problemas e propor soluções, levando
transdisciplinar. em consideração a possibilidade de contra-he-
A transdisciplinaridade, segundo Piaget, não gemonia inerente a qualquer espaço político,
se limita às interações e à reciprocidade, mas in- estimulando a crítica social e a compreensão de
clui essas interações em um “sistema total” sem que a realidade de vida que se vivencia na po-
limites entre as disciplinas. Esta perspectiva está breza não é natural, mas reflexo da exploração
certamente mais próxima de atingir as necessi- social histórica gerada pelo lucro.
dades da comunidade de forma integral. Quan- A partir de nossa experiência, podemos
do se fala de transdisciplinaridade não está se fa- afirmar que nas lutas hegemônicas e contra-
lando de uma “geléia geral” de Campos8, mas hegemônicas, a produção e a regulamentação
sim, de uma abordagem, que seja “[...] comple- do desejo são tão importantes quanto a cons-
mentar à aproximação disciplinar”. trução do significado e que a idéia e a experiên-
Segundo a Carta da Transdisciplinarida- cia do prazer devem ser construídas politica-
de18, pensar transdisciplinarmente deve pro- mente, para que se possa analisar como o cor-
mover não só um diálogo das ciências exatas po se torna sujeito do prazer. Neste caso, de
com as humanas, como também levar em con- acordo com Botazzo21, o próprio prazer se tor-
ta fatores como as artes, mitos e religiões. O na o consentimento da vida no corpo e propor-
que está de acordo com a concepção de auto- ciona uma importante condição corpórea da
nomia proposta por Freire19 quando afirma vida, e talvez um importante instrumento/mo-
que educar é proporcionar autonomia de esco- mento revolucionário.
lhas, uma cultura de vida, associando à idéia de O profissional de saúde, o sanitarista, o edu-
autonomia a idéia de liberdade e de força pes- cador, etc. podem – e devem – apoiar a comu-
soal e coletiva para intervenção na realidade e nidade para que ela mesmo vença as suas difi-
escolha dos próprios caminhos. Para Carva- culdades, e estas não devem ser ditadas por um
lho20, os estudos em saúde pública proporcio- único setor, mas construídas numa discussão
nam o desenvolvimento de autonomia quando intersetorial que fortaleça um processo de to-
orientam os profissionais no sentido da reali- mada de consciência e de enfrentamento dos
zação de uma “reforma organizacional”, que problemas vividos na realidade cotidiana pela
permita a inclusão de novos sujeitos na cons- comunidade. Para tanto, faz-se necessário que,
trução de projetos para a saúde. além da capacidade científica, do domínio téc-
Acreditamos que pelas ações coletivas é pos- nico e da ação política, tenhamos ainda com-
sível intervir na realidade local por meio da promisso com o desenvolvimento de autono-
prática da intersetorialidade, da transdiscipli- mia da comunidade fundamentado em certas
naridade e da educação para autonomia. Assim atitudes como amor, escuta, afetividade, respei-
estamos mais próximos de pensar as necessida- to, tolerância, humildade, alegria, gosto pela vi-
des da comunidade de forma mais ampla e de da, abertura ao novo, disponibilidade à mu-
agir nos problemas de forma menos pontual e dança, esperança, abertura à justiça. É necessá-
considerando toda sua complexidade. As cons- rio, então, auxiliar na descolonização vivida
truções relatadas nas duas intervenções, tanto pelas pessoas da comunidade em seu corpo,
de Curicica quanto da Vila do João, seriam im- trabalhando com arte, cultura e subjetividade,
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Colaboradores Agradecimentos
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