Você está na página 1de 88

UNIVERSIDADE FEDERAL DE ALAGOAS

INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS COMUNICAÇÃO E ARTES

CURSO DE PSICOLOGIA

POTENCIALIDADES TERAPÊUTICAS DO USO RITUALÍSTICO DA


AYAHUASCA

MIRNA COSTA BRAZ SOARES

TRABALHO DE CONCLUSÃO DO CURSO DE PSICOLOGIA

Orientador(a): Prof. Silvia A. C. Martins Ph.D

Maceió, junho de 2009.

1
MIRNA COSTA BRAZ SOARES

POTENCIALIDADES TERAPÊUTICAS DO USO


RITUALISTICO DA AYAHUASCA

Trabalho de conclusão de curso


apresentado como parte das atividades
para formação de psicólogo através do
curso de Psicologia da Universidade
Federal de Alagoas sob orientação de.
Silvia A. C. Martins, Ph.D, profa. Adjunta
do Instituto de Ciências Sociais da UFAL.

Maceió, 2009

2
Os componentes da banca de avaliação, abaixo listados,
consideram este trabalho aprovado.

________________________________________________________________

Prof. Silvia A. C Martins Ph. D. (Orientadora) - UFAL

________________________________________________________________________

Prof. Ms. José Geraldo Ribeiro da Cruz - UFAL

________________________________________________________________________

Prof. Clarice Novaes da Mota Ph. D. - UFAL

3
“Dedico este trabalho a todos os
meus amigos em especial aqueles que me
ajudam em meu processo de
transformação interior.

A Kaanda pelo apoio no


EMFLORES, a Anita, ao Marcio, a Lara, a
Carla, a Vóluzi Câmara com todo seu
amor e boa vontade, que foi fundamental
para que esse trabalho se realizasse. A
minha família, meu pai e minha mãe pela
base sólida que me proporcionaram.

Ao Mestre Irineu por ter me


acolhido nessa Doutrina Verdadeira, a
Virgem Maria e ao Patriarca São José

4
Tudo passa e tudo fica
porém o nosso é passar,
passar fazendo caminhos
caminhos sobre o mar

Nunca persegui a glória


nem deixar na memória
dos homens minha canção
eu amo os mundos sutis
leves e gentis,
como bolhas de sabão

Gosto de ver-los pintar-se


de sol e graná voar
abaixo o céu azul, tremer
subitamente e quebrar-se...

Caminhante, são tuas pegadas


o caminho e nada mais;
caminhante, não há caminho,
se faz caminho ao andar

Ao andar se faz caminho


e ao voltar a vista atrás
se vê a senda que nunca
se há de voltar a pisar

Caminhante não há caminho


somente há marcas no mar...

5
.

SUMÁRIO

Apresentação
............................................................................................................7
Introdução ................................................................................................................ 9
1 A AYAHUASCA COMO PLANTA MESTRA- A NOÇÃO DE ENTEÓGENO ........... 20
2 A UTILIZAÇÃO DA AYAHUASCA EM CONTEXTO URBANO E RITUAL ............ 24
2.1 A IMPORTÂNCIA DO RITUAL PARA CONSAGRAÇAO DA AYAHUASCA ..................... 28
2.1.1 RITUAL DO SANTO DAIME ........................................................................................................ 31
2.1.2 RITUAL DO ESSÊNCIA DIVINA .................................................................................................. 40
3 EXPERIÊNCIAS TRANSPESSOAIS ATRAVÉS DO USO RITUALÍSTICO DA AYA-
HUASCA.................................................................................................................. 46
3.1 AS EXPERIÊNCIAS COM AYAHUASCA E O RETORNO AO SAGRADO NA CONTEMPORANEI-
DADE ................................................................................................................................................... 52
4 POTENCIALIDADES TERAPEUTICAS DO USO RITUALÍSTICO DA AYAHUASCA
................................................................................................................................. 59
4.1 AYAHUASCA E XAMANISMO: A DESCOBERTA DOS POTENCIAIS TERAPÊUTICOS DA BEBIDA
SAGRADA..................................................................................................................................60
4.1.1 FUNÇÃO TERAPÊUTICA DA AYAHUASCA.............................................................................62
4.1.1.1 AYAHUASCA A CAMINHO DO SELF.................................................................................... 76
Considerações finais ............................................................................................. 80

6
APRESENTAÇÃO

Os estados transcendentes e os aspectos transpessoais da vida sempre fizeram


parte do meu interesse. Intuitivamente fui levada a conhecer a Ayahuasca, podendo
vivenciar essa realidade e assim perceber como é grande o potencial transformador
e curador da bebida sagrada. Através da minha própria experiência e vivência com a
Ayahuasca, pude entrar em contato com a realidade transpessoal, que só conhecia
intuitivamente e teoricamente, principalmente através da leitura de Jung, Grof e Weil.

O processo de pesquisa foi impulsionado pela minha própria experiência, per-


cepções, curiosidades e, principalmente, reverência ao caminho que tanto modificou
a minha forma de viver e compreender a vida.

Estou sempre experienciando transformações, acordos internos e me conhecen-


do. É um grande estudo sobre a vida e sobre nós mesmos, onde passei a tomar
consciência dos conteúdos advindos do meu ego, como as minhas projeções, meus
mecanismos de defesa, padrões de comportamento, carências.

Passei também a vivenciar aqueles conteúdos advindos do Inconsciente Coleti-


vo, indo em direção ao Self, compreendendo e entrando em contato com as minhas
raízes espirituais, penetrando na realidade dos mitos, dos arquétipos e do Sagrado.

Os estados transpessoais levam a uma forma mais ampliada de entendi-


mento e integração psicoemocional, potencializa nosso encontro com o Sa-
grado e a vivencia de conteúdos profundos capazes de modificar, transfor-
mar e curar (BERTOLUCCI, 1991, p.20).

O que mais me motivou a pesquisar esse tema foram às mudanças que acon-
teceram em mim mesma. Como fardada do Santo Daime, onde faço parte do Núcleo

7
Céu das Águas em Maceió- AL pude compreender como atua a bebida sagrada em
mim mesma. E através da lições que me foram passadas em cada trabalho espiritual,
passei a prestar mais atenção a mim mesma, compreendendo o meu lugar no mun-
do, sentindo fluxo da vida em direção à plenitude do Ser.

Devido ao fato de eu mesma estar vivenciando aquilo que estudo, a pesquisa


teve caráter heurístico e experiencial. Busquei compreender as potencialidades tera-
pêuticas da Ayahuasca a partir das minhas próprias experiências e vivências, não
esquecendo, entretanto, a experiência do outro e o conhecimento já produzido sobre
o assunto.

8
INTRODUÇÃO

Em meio ao vazio subjetivo evidente na sociedade contemporânea está existindo


uma maior movimentação na busca pelo autoconhecimento, através de “um movi-
mento ascendente no nível de consciência, levando a que muitas pessoas se inte-
ressem por práticas espirituais e por outras buscas que denotam uma insatisfação
com o „lado oficial‟ do saber, devido a uma necessidade de encontrar outras fontes
de realização pessoal” (BERTOLUCCI, 1991, p.116).

É exatamente numa época de insignificação, de exasperado consumismo,


que surge, como objeto de interesse dos grandes centros urbanos, o uso ri-
tual da ayahuasca, introduzido, entretanto, no interior do Brasil, desde o iní-
cio deste século O uso da ayahuasca tem sido considerado legítimo até a-
gora: um grande número de pessoas investiram suas vidas nesses cultos,
tornando-os centrais para as suas identidades sociais, individuais e espiri-
tuais (SILVA SÁ, 1996, p. 8, 12).

Muitas pessoas estão insatisfeitas com o conhecimento que possuem sobre si


mesmas e muito dos paradigmas que utilizavam passam a não fazer mais sentido.
Nesse contexto, a Ayahuasca, uma bebida enteógena utilizada inicialmente por di-
versas tribos indígenas da América do Sul, vem sendo cada vez mais utilizada em
contexto urbano no Brasil e se expandindo por diversos paises do mundo.

As substancias enteógenas vêm sendo utilizadas por diversas culturas do Pla-


neta há tempos imemoráveis. São conhecidas como plantas Mestras ou plantas pro-
fessoras, pelo referencial que possuem na solução dos problemas de uma coletivida-
de e por serem consideradas “plantas de uma profunda e misteriosa sabedoria, ins-
trumentos do divino, fontes de beleza e inspiração, assim como meios para manter a
integridade cultural” (LERRER, 2009).
9
A utilização das plantas denominadas Enteógenas está ligada fundamental-
mente ao contexto espiritual sagrado, sendo essa nomenclatura o que difere dos ou-
tros termos, como alucinógenos e psicodélicos, que estão desvinculados desse con-
texto.

Entre as plantas enteógenas podemos citar a Ayahuasca, Jurema, lsa, Salvia


Divinorum, Cannabis Sativa, Peyote, que funcionam como facilitadoras do acesso
entre a realidade comum e uma realidade extraordinária onde ocorrem as experiên-
cias transpessoais, revelações e aprendizados.

A Ayahuasca, conhecida como daime e vegetal, é utilizada nos contextos ritualís-


ticos do Santo Daime, União do Vegetal, Barquinha e outros grupos. A bebida sagra-
da é o elo principal dos grupo religiosos e é através dela que esses grupos se estru-
turaram.

Tavares (2002) nos fala que o campo de pesquisa com Enteógenos vai além
dos limites da experiência racional, a partir de uma revalorização do não-cotidiano e
das experiências não-conceituais. Pretendendo-se com isso, reestruturar o lugar da
produção do conhecimento, habilitando o seu acesso a outros reinos da experiência
humana, como por exemplo, o do indizível, da natureza intrínseca da experiência re-
ligiosa e do sagrado.

O uso da Ayahuasca está tradicionalmente vinculado a um ritual, onde o obje-


tivo é entrar em contato com o divino e com o sagrado, proporcionado experiências
de autoconhecimento e de transcendência. Essas experiências são fluidas, subjeti-
vas e transpessoais, pois levam ao contato com uma realidade que transcende o co-
tidiano.

Experienciamos assim, níveis de consciência que vão além do pensamento lógi-


co formal com o qual estamos acostumados a lidar cotidianamente; aprofundamos
nosso conhecimento sobre nós mesmos e podemos alcançar níveis profundos que
estão no nosso inconsciente. Experiências como essas transcendem a pessoa, por
isso são chamadas de transpessoais, indo além do individuo, da racionalidade e do
sistema de crenças acumuladas ao longo da vida.

10
O termo “transpessoal” foi utilizado pela primeira vez na área da psicologia por
Carl Gustav Jung em 1917, quando se referia ao Inconsciente Coletivo. Para Jung,
além do inconsciente individual existe também aquele que seria transpessoal ou co-
letivo por manifestar expressões e reações comuns ao espírito humano. A hipótese
desse inconsciente o leva a estudar a dimensão psíquica do acesso ao simbólico,
incluindo os arquétipos e mitos presentes em toda a humanidade e em nossa psique
(GAILLARD 2003, p. 57).

Experiências ditas transpessoais acompanham o homem há milênios. No


Ocidente, na maioria das vezes, estas vivências são associadas à religião,
caracterizando-se como um encontro com um estado místico indescritível e
não vivido pela maioria dos indivíduos. Ao contrário, porém, no Oriente es-
tas experiências obtiveram atenção e estudo que desenvolveram métodos e
técnicas para vivenciá-las. O Zen-Budismo, a Ioga e o Sufismo, por exem-
plo, são três doutrinas orientais que, além de uma preocupação com o fun-
cionamento da mente, sua relação com o Cosmos e o desenvolvimento da
personalidade, têm implicitamente em seu pensamento a evolução interior
do indivíduo visando atingir experiências transcendentais (TRIPICHIO,
2007)

A Psicologia Transpessoal é considerada a quarta força da Psicologia, buscando


uma visão integradora e complementar do conhecimento das escolas antecessoras
(behaviorismo, Psicanálise, Psicologia Humanista), com o objetivo de dar um corpo
único à psicologia, de acordo com uma visão holística do homem, onde as divergên-
cias de opinião não sejam mais vistas como antagonismos, mas como visões com-
plementares e não-excludentes sobre o mesmo objeto de estudo: o ser humano.

A abordagem Transpessoal ganhou força a partir do lançamento da Revista de


Psicologia Transpessoal (Journal of Transpersonal Psychology), que foi lançada
1969, tendo como principais responsáveis Viktor Frankl, Stanislav Grof, Maslow, An-
tony Sutich. De acordo com Pedrassoli (2008), os principais objetos de estudo são:

Psicologia e Psicoterapia

Meditação, caminhos e práticas espirituais

Mudança e transformação pessoal

Pesquisa da consciência

Vício e recuperação

11
Pesquisa de psicodélicos e estados alterados de consciência

Morte e Experiências de Quase-Morte (EQM)

Auto-realização e valores superiores

A conexão mente-corpo

Mitologia e Xamanismo

Experiências culminantes

Os precursores da Psicologia Transpessoal, como Jung, Maslow e Weill desde o


inicio do século passado já consideravam a importância de se explorar a dimensão
mais profunda do ser humano, contidas nas experiências transpessoais, consideran-
do que é através do autoconhecimento e do contato com as questões espirituais que
ocorre a manifestação dos valores positivos necessários para o desenvolvimento
saudável.

O desenvolvimento espiritual conduz ao Self, que de acordo com Jung (1987),


corresponde ao centro do nosso Ser, responsável pelo nosso alinhamento com os
propósitos superiores da nossa alma. A experiência do Self é considerada intrinse-
camente terapêutica e integradora pela a psicologia transpessoal justamente porque
leva progressivamente para além do ego.

Considerando legitima a experiência humana como um todo, a Psicologia Trans-


pessoal não despreza a dimensão espiritual do ser humano, inclusive considerando-a
como fator primordial para o bem estar psicológico (MASLOW, 1998) e relacionando-
a a Saúde Mental.

As experiências de transcendência, espontâneas ou induzidas, transporta-


riam o homem aos níveis mais profundos do seu inconsciente -o inconscien-
te coletivo- onde poderia encontrar o sentido da sua existência, sua identifi-
cação com a humanidade e uma profunda união com todo o universo. A
emergência destes valores do inconsciente - através das experiências de
transcendência- possibilitaria a cura de muitos transtornos mentais, sobre-
tudo os de origem neurótica ou psicossomática (PELAEZ, 2006).

Em nossa pesquisa buscaremos compreender os conteúdos mobilizados na


experiência com Ayahuasca, que são fundamentalmente transpessoais, o seu poten-
cial terapêutico e as transformações ocorridas nos indivíduos, que estão relaciona-

12
das a uma série de fatores como a bebida enteógena, a subjetividade, o contexto ri-
tualístico, o contato com o sagrado e o autoconhecimento implicado na experiência.

A abordagem metodológica utilizada foi a qualitativa referenciada pelo método


fenomenológico, pelo método heurístico e pela etnografia. De acordo com Holanda
(2008), por fenomenológico, entendemos o reconhecimento da alteridade do sujeito
pesquisado, o que foi evidenciado na importância dada aos depoimentos colhidos e a
compreensão que cada pessoa possui da sua própria experiência.

O método fenomenológico constitui-se numa abordagem descritiva,


partindo da idéia de que se pode deixar o fenômeno falar por si, com o obje-
tivo de alcançar o sentido da experiência, ou seja, o que a experiência signi-
fica para as pessoas que tiveram a experiência em questão e que estão,
portanto, aptas a dar uma descrição compreensiva desta [...] A coleta pode
ser feita através de entrevistas, depoimentos, estudos de caso, acrescidas
de auto-reflexão, etc. (HOLANDA, 2006).

A pesquisa fenomenológica está interessada em descrever o vivido pelo outro


de acordo total com sua linguagem, estando o pesquisador implicado nesse proces-
so, pois ele não é neutro, pela dicotomia sujeito-objeto. A pesquisa fenomenológica
está relacionada à psicologia transpessoal no sentido de estar interessada na totali-
dade experiência subjetiva do outro. Uma das premissas da psicologia transpessoal
é estudar e compreender o ser humano de forma mais completa, evitando fragmen-
tações.

Foram colhidos depoimentos de participantes da Igreja Céu das Águas - Santo


Daime- e do Centro de Harmonização Interior Essência Divina, ambos localizados em
Maceió- AL. Buscou-se sempre uma maneira livre, aberta e espontânea na aborda-
gem de cada pessoa, para que cada uma pudesse se expressar da melhor maneira,
de uma forma natural. Os relatos nos ajudaram a traçar um panorama mais amplo
sobre a questão uso ritualístico da Ayahuasca e sua função terapêutica.

As pessoas entrevistadas, em sua maioria, possuíam nível superior, profissio-


nais ligados a psicologia, Jornalismo, Ciências Sociais e também alguns estudantes
universitários. Tais pessoas forma escolhidas ao acaso, aleatoriamente, sem prévia
escolha. Os dados levantados foram surpreendentes, mostrando a riqueza da expe-
riência de cada pessoa e o entendimento da sua própria experiência.
13
Além dos dados etnográficos colhidos em pesquisa de campo participante, uti-
lizamos também fontes primárias de entrevistas já realizadas sobre uso do enteóge-
no ayahuasca, em pesquisa desenvolvida no AVAL, grupo de pesquisa Antropologia
Visual em Alagoas, do Instituto de Ciências Sociais da UFAL, onde há uma pesquisa
em andamento desde 2007 que registra e reúne dados etnográficos, imagísticos e
documentação das religiões Ayahuasqueiras em Alagoas.

De acordo com BOUMARD (1999) no método etnográfico, o pesquisador é


participante e registra também suas percepções, observações e reflexões em campo.
Isso se dá ao mesmo tempo em que observa, registra as experiências que os pes-
quisados descrevem, procurando revelar o significado que as pessoas investigadas
dão às suas ações e vivências subjetivas.

A pesquisa também teve caráter heurístico devido à inclusão da subjetividade


do pesquisador no processo de pesquisa, que conflui com as suas vivências e expe-
riências com a bebida com a bebida sagrada e com as compreensões e transforma-
ções que surgiram a partir daí.

A palavra “Heurística” decorre do verbo grego heuriskein, que significa “en-


contrar”, “descobrir”. Corresponde a “encontro”, “busca” ou “arte da busca”.
Refere-se a um processo de pesquisa interna através do qual se descobre a
natureza e o significado da experiência [...] Neste modelo o self do pesqui-
sador está presente ao longo de todo o processo, ou seja, o pesquisador
experiência self-awareness (autoconsciência) e autoconhecimento. O pro-
cesso heurístico engloba processos “autocriativos” e “auto-descobertas”,
principiando por uma questão ou problema que o pesquisador pretende
responder. Trata-se, pois, de um processo “autobiográfico. A grande contri-
buição do modelo heurístico está na intrínseca participação do sujeito do
pesquisador no próprio ato da pesquisa, isto é, na efetiva colocação da sub-
jetividade do pesquisador no ato de pesquisar. No contexto da pesquisa
heurística em psicologia, Maciel (2004, p. 184) assinala: “É vital para a pes-
quisa heurística o engajamento, ou seja, a postura humana básica que de-
pende da estrutura da afirmação volitiva, e que se manifesta como o “estar-
com” o dado, conviver com a experiência (HOLANDA, 2006).

Não pôde haver um distanciamento do pesquisador com seu objeto de estudo,


pois com Ayahuasca a compreensão se dá a partir da própria experiência. Nesse
caminho é necessário experienciar para compreender, não entender a partir de pres-
14
suposições ou apenas do conhecimento teórico. O fundamental é sentir e vivenciar,
pois como na maioria das situações da vida é da experiência que vem a compreen-
são.

No primeiro capitulo, A Ayahuasca como Planta Mestra - a noção de Enteóge-


no reúno informações sobre esse chá e explico a noção de enteógeno;

No segundo capitulo, “A utilização da Ayahuasca no Ritual Religioso em Con-


texto Urbano”, busco explicitar como a Ayahuasca, uma bebida indígena, utilizada
primeiramente por tribos no interior da Floresta Amazônica, pôde se disseminar em
populações urbanas das grandes cidades do Brasil e do mundo. Além disso, faremos
um breve relato de como se deu o surgimento do Santo Daime, uma das religiões
ayahuasqueiras contempladas nesse estudo e a sua importância para expansão e
legalização da bebida no Brasil e internacionalmente. Nesse capitulo, abordo também
sobre o ritual, que é um elemento de fundamental importância para a segurança da
experiência com Ayahuasca, definindo e dando os contornos da mesma. “Os rituais
com Ayahuasca sempre foram utilizados, desde os primórdios, com propósitos cla-
ramente definidos e principalmente voltados para cura, expansão da consciência e
autoconhecimento (DROUOT, 1999, p. 29)”.

No terceiro capitulo, “Experiências Transpessoais através do uso Ritual da


Ayahuasca”, descrevo experiências ocorridas com a Ayahuasca do ponto de vista da
psicologia transpessoal, buscando compreender como a psicologia lida com o fenô-
meno, quais os conceitos que ela utiliza, quais são as características e os pontos de
ligação entre experiências transpessoais e uso da Ayahuasca.
No quarto capitulo, “Potencialidades Terapêuticas do Uso Ritual da Ayahuas-
ca”, verifica-se que existe um potencial transformador e curativo inerente ao uso ritu-
al da Ayahuasca, pois uma de suas funções é amplificar o nível de compreensão de
nós mesmos, promovendo resoluções internas, conflitos e autoconhecimento.
O potencial terapêutico da ayahuasca advém das experiências ocorridas que
podem conduzir a diversos processos psíquicos e a transformação interior. Essas
experiências são percebidas como re-elaboradoras da vida psíquica, capazes de in-
tegrar o desenvolvimento emocional, psicossocial e espiritual dos indivíduos (MA-
LUF, 2003; CREMASCO, 2007).

15
A Ayahuasca também demonstra ser fundamental na resolução e tratamento
de problemas, digamos mais objetivos, como a recuperação de pessoas drogadictas
(SANTOS, 2006; LABATE, 2006), de pessoas com depressão e, inclusive, como foi
relatado num dos depoimentos, na reversão de um quadro de síndrome de West de
uma criança.

O numero de pessoas que encontram na Ayahuasca um caminho para a auto-


transformação e para a cura pessoal vem aumentado e seus benefícios vem sendo
cada vez mais divulgados. Nota-se, entretanto, que ainda ecoam muitos preconceitos
com relação ao tema, tanto no meio acadêmico quanto no senso comum.

Naturalmente, falar de psicoativos provocará em alguns imediato pre-


conceito e medo. Sim, é um problema mesmo, mas nada comparado com
algo chamado ignorância, pois do que, da qual estamos falando? No Brasil
aproximadamente 25.000 pessoas usam Ayahuasca para fins religiosos per-
feitamente integrados na sociedade, nas suas famílias e seus trabalhos e,
plenamente legais juridicamente. Legalização essa que ocorreu com pes-
quisas científicas do mais alto nível que confirmaram as características inó-
cuas da bebida em questão (levada a cabo com cientistas como Charles
Grob, Jace Callaway, Dennis Mckenna e Rick Strassman. Há muita informa-
ção em autores como Beatriz Labate, Ralph Metzner, Benny Shanon, Luis
Eduardo Luna, etc). Descartar o tema por preconceito, em discussões sobre
ciência da consciência é um preconceito, uma segregação ideológica, ten-
denciosa, movida por segundas intenções, jamais limpa ou honesta e, muito
menos, científica (Mikosz 2008).

Assim, o objetivo central desse trabalho é contribuir para desmistificação do


preconceito sobre o uso da Ayahuasca, mostrando o potencial de transformação que
o seu uso pode acarretar. Beber a Ayahuasca pode refletir uma necessidade que al-
gumas pessoas possuem de se autoconhecer, se autocompreender e evoluir espiri-
tualmente, alem da cura que é vivenciada em vários níveis (seja físico e/ou espiritu-
al). Segundo Stolaroff,

Com integridade, compromisso e coragem, vastos aspectos da mente po-


dem ser explorados. É importante compreender: aquilo que alguém vivencia
depende bastante de seu sistema de crenças, motivação, condicionamento
e do conteúdo inconsciente acumulado – isso inclui a rigidez com que a
mente funciona. Ocidentais, por diversos séculos, têm focado primeiramen-

16
te no mundo exterior, resultando na negligência do desenvolvimento de ha-
bilidades interiores. Essa negligência, casada com uma forte ênfase no ma-
terialismo e reducionismo, tem criado uma dolorosa cisão entre valores
adotados conscientemente e os interesses profundos do ser. (STOLAROFF
1999: 60-80)

17
18
1. A AYAHUASCA COMO PLANTA MESTRA- A NOÇÃO
DE ENTEÓGENO

De acordo com Oliveira (2008), as plantas mestras ou plantas professoras, como


são chamadas algumas plantas psicoativas, são agentes sociais reconhecidamente
eficazes no processo de transmissão do conhecimento, pois a elas alguns grupos re-
correm desde tempos imemoriais para responder, afirmar ou negar determinadas si-
tuações extremas da vida cotidiana seja um caso de doença ou uma decisão coleti-
va.

O conceito de Planta Mestra advém do conhecimento xamânico, onde a caracte-


rística principal é o uso ritual de plantas sagradas, que são identificadas como plan-
tas mestras por sua capacidade de ensinar, de mostrar o caminho e dar compreen-
são (LUNA, 2002)

O conhecimento xamânico refere-se a um conjunto de ensinamentos e técni-


cas milenares para conduzir a experiências de êxtase e a curas espirituais e físicas.
Utilizado em todas as partes do mundo desde os primórdios da humanidade esse co-
nhecimento está presente nas religiões ayahuasqueiras. A práxis xamânica pode ser
caracterizada como o conhecimento cosmológico entre os quais está o uso de plan-
tas, de natureza considerada sagrada, que muitas vezes são identificadas como
plantas Mestras (GROISMAN, 1999).

A Ayahuasca, como Enteógeno, é empregada desde os primórdios com fins


religiosos e terapêuticos, quando se pretendia não apenas uma melhoria nos sinto-
mas, mas “buscava-se atingir experiências de transcendência que restaurariam o e-
quilíbrio entre o homem doente e seu cosmos, onde a cura é vista como uma trans-

19
formação espiritual e a busca de conexão e unidade (PELAEZ, 2006).

Assim como a Jurema, utilizada pela tribo brasileira Cariri Xocó, ou o Peyo-
te para os grupos das pradarias norte americanas, também a Ayahuasca
está inserida num contexto em que as plantas ocupam um importante papel
simbólico. A utilização dessas substancias com finalidades curativas são
conhecidos desde há mais remota antiguidade, como exemplo temo a So-
ma, utilizada há 3500 anos na Índia; o Peyote tradicionalmente utilizados
por Índios da Meso-América há mais de 2000 anos e atualmente utilizado
em varias parte do México e América do Norte (GROISMAN, 1999).

Enteógeno é uma palavra que tem origem do grego “Entheos” e “Genesthe”, que
significam respectivamente “Deus interior” e “que gera”. O significado literal é algo
como: “Que gera Deus interior”. A palavra “entheos” também é a raiz da palavra “en-
tusiasmo”, cujo sentido original dizia respeito à “inspiração divina”. Assim, enteógeno
também pode ser definido como o “que gera inspiração divina” (Wasson apud Pela-
ez, 2006).

Enteógeno é uma denominação dada as substancias psicoativas que são utili-


zadas dentro de um contexto ritual considerado Sagrado e que leva a experiências
de transcendência e autoconhecimento.

O uso de enteógenos, denominados pelo vegetalismo peruano de plantas


professoras, por acreditarem serem elas possuidoras de um espírito ensi-
nador e curador, foi adotado ritualmente nos cultos religiosos de povos de
diferentes culturas e épocas, permitindo-lhes acessos a estados alterados
da consciência. Segundo estudos antropológicos apenas os esquimós não
fizeram uso de tais plantas, em decorrência da vegetação ser inexistente no
meio ambiente habitado por eles (ARAUJO, 2005)

De acordo com Groisman (1999), os ensinamentos obtidos através da Ayahu-


asca são encarados como revelação, que nasce da dialética entre a experiência indi-
vidual e a cosmologia grupal. Essa descoberta reconstrói a concepção pessoal em
relação ao status quo até então vivido, a partir de uma ruptura na existência do sujei-
to que ao entrar em contato com o “Eu Superior”, pode transpor os limites da consci-
ência favorecendo o contato com o mundo espiritual.

Durante o uso de enteógenos amplia-se o nível de consciência, saindo de um

20
estado comum e passando os perceber de outra forma a mesma realidade, inclusive
podendo vivenciar aspectos do inconsciente transpessoal ou coletivo. Na medida em
que se toma consciência do material inconsciente, aumenta-se o nível de consciência
através de insights que funcionam como chaves para penetrar nos reinos do incons-
ciente (LERRER, 2009).

Sobre o contato coma realidade do Sagrado e a vivência do Divino em si mesmo,


proporcionada pelos enteógenos podemos citar o depoimento de um fardado do San-
to Daime, que fala sobre umas de suas experiências mais marcantes com Ayahuas-
ca:

O daime é uma dádiva divina, para que os homens aqui da terra se encon-
trem com o corpo do próprio Deus em si mesmos. Isso ai é uma coisa evi-
dentemente espiritual. Uma das minhas experiências mais marcantes foi o
fato de me lembrar de Deus e de me encontrar com Deus. A experiência foi
essa... Essa sensação de sentir que sou filho de Deus, que sou um ser divi-
no... Eterno... Simplesmente tomando consciência de que Deus e que domi-
na e quem tem o poder e que ao mesmo tempo me ama e me dá todas as
possibilidades para a vida, me dá tudo para que eu aprenda a ser seu filho
com o ser divino. [...] A partir do momento que eu estava tomando o daime,
muito obscuramente eu estava sentindo o chamado e sabia que ali tinha al-
go importante e precisei me entregar mesmo para o daime, me entregar pa-
ra Deus. As coisas não são tão rápidas como a gente pretende. Temos que
ter paciência e fazer os trabalhos porque num chegado momento nós vamos
receber o chamado, o nosso coração vai se abrir mesmo completamente
para isso.

A noção de Enteógeno se afasta do conceito de alucinógeno, que não é adequa-


do para se referir a Ayahuasca, pois além dessa ser uma palavra carregada de este-
reótipos, etimologicamente significa divagar mentalmente, delirar, falar sem sentido,
carregando um senso de fuga da realidade, traços que definitivamente não são re-
presentativos da experiência com a bebida sagrada.

A alucinação é uma distorção patológica da capacidade de senso-percepção.


Alucinar de olho fechado, não é alucinação. A alucinação esta fora e não dentro de
nós, como nas mirações (espécie de visão interna experienciada nos estados trans-

21
pessoais através da Ayahuasca). Geralmente as pessoas com sintomas psicopatoló-
gicos de alucinação, possuem muito medo e sofrem com aquilo que vêem.

Mariano, fardado do Santo Daime explica,

O alucinógeno faz com que a pessoa fuja do problema, se aliene, saia da


realidade. Já o enteógeno não é alienante, ao contrario liberta de nossas
cascas, entraves e barreiras, levando ao contato com o centro de nosso ser,
onde encontramos as verdades superiores, que vêm de cima, do plano espi-
ritual e do centro da nossa psique.

Dessa perspectiva, ALVERGA (1996), ressalta que tal gama de fenômenos


importantes vivenciados em contextos ritualísticos, com tantas repercussões psicoló-
gicas, éticas e sociais relevantes, não podem ser interpretados como mera alucina-
ção ou como sintomas psicóticos.

De acordo com STORALOFF (1999), o uso de enteógenos é importante por


facilitar o nosso acesso a essas dimensões e “acordar para a realidade”. Não é o ú-
nico meio para isso, muitos vão escolher o caminho da meditação e da psicoterapia.
Mas, para muitos outros, o uso apropriado de enteógenos pode apressar bastante
esse processo, pode revelar as travas interiores que bloqueiam e até mesmo tempo-
rariamente dissolvê-las, para que a pessoa desenvolva uma visão clara sobre si
mesmo.

A sociedade prega uma coisa e faz outra. A Ayahuasca mostra o individuo


tal como ele é, sem as mascaras que está acostumado a usar socialmente e
o impulsiona a procurar em si mesmo a natureza das coisas. “Perceber o
problema, enxergar e entrar em contato com a realidade que negamos nor-
malmente, como mecanismo de defesa, já é um grande passo para trans-
formação (depoimento de Mariano)”.

A percepção habitualmente embotada que temos da realidade permite reconhe-


cer uma fração pequena de uma realidade revestida de projeções. A propriedade
central dos enteógenos é levantar o véu da ilusão, do ego e expandir a percepção da
realidade e de si mesmo.

22
De acordo com Malheiro (s/d), existe atualmente uma cultura do enteógeno,
com um saber voltado para ampliação da consciência e para a viagem interior apre-
sentando-se como uma forma se expansão das possibilidades para a construção do
auto-conhecimento.

A autora usa o termo psiconauta para se referir àqueles que mergulham no u-


niverso da experimentação com enteógenos. Psiconauta, de acordo com Malheiro
(s/d) significa viajante da psique, tendo como a principal premissa a exploração de
técnicas para obtenção de estados transpessoais de consciência através do uso de
substâncias psicoativas e também da exploração de técnicas, como meditação, res-
piração etc.

Através de estados transpessoais conduzidos pelo enteógeno, seria possivel


encontrar respostas para questões espirituais, através de experiências diretas, pois
“A verdadeira ampliação da personalidade é a conscientização de um alargamento
que emana de fontes internas e o drama dos mistérios da vida também pode ocorrer
sob a forma de experiência espontânea, extática ou visionaria (JUNG, 2000, p, 133)”.

23
1 A UTILIZAÇÃO DA AYAHUASCA EM CONTEXTO UR-
BANO E RITUAL

A expansão ritualística da Ayahuasca em populações urbanas é um fenômeno


relativamente recente. Há poucas décadas, a bebida era utilizada em culturas xamâ-
nicas localizadas em regiões remotas da floresta amazônica e em outras regiões da
América Latina (LABATE, 2002).

Atualmente calcula-se que o número de pessoas que fazem uso regular da


bebida na América do Sul, excluindo-se as populações indígenas, pode chegar a
mais de 30 mil pessoas (LUNA,1997). “As religiões ayahuasqueiras vivem seu me-
lhor momento. Assimiladas por outras fés e reconhecidas pelas autoridades, vêem
seu número de adeptos subir 10% ao ano (REVISTA GALILEU, 2008).

A religião do Santo Daime possui aproximadamente cem anos de fundação.


Através do Sr. Raimundo Irineu Serra foi organizado no Brasil a primeira religião a-
yahuasqueira, fundamentalmente brasileira, que se caracteriza, de acordo com Gro-
siman (2004), por ser “um sistema ritual tendo como contexto, a Ayahuasca e o con-
junto de ensinamentos provenientes do que se chama “Ecletismo Evolutivo”, que fo-
ram concepções reunidas a partir do Espiritualismo, do Cristianismo Místico ou Eso-
térico e do xamanismo”.

Após o surgimento do Santo Daime, outros grupos adotaram o uso da Ayahu-


asca em rituais sincréticos especialmente no Brasil, onde os efeitos transpessoais da
bebida são unidos aos conceitos do Cristianismo, das religiões Afro-Brasileiras, do
esoterismo europeu, do espiritismo e das tradições indígenas. As principais religiões
deste módulo incluem o Santo Daime (segmentos do Alto Santo e CEFLURIS), a U-

24
nião do Vegetal, a Barquinha e o Centro de Cultura Cósmica, além de núcleos e
igrejas dissidentes e outros grupos independentes.

De acordo com Goulart (2003), os vários cultos ayahuasqueiros que existem


no Brasil constituem diferentes linhas de uma mesma tradição religiosa, se inserindo
num mesmo campo religioso, o campo das religiões ayahuasqueiras brasileiras.

Conforme estas três linhas vão crescendo, crescem também as dissidên-


cias no interior das mesmas. A partir do falecimento de seus fundadores ini-
cia-se, em cada uma delas, um intenso processo de fragmentação e cisões.
Em 1971, com a morte do fundador da linha do Santo Daime, tem início um
movimento de rupturas que levaram ao aparecimento de dois segmentos
desta linha: O Alto Santo e o CEFLURIS, cada um destes contendo, tam-
bém, sub divisões internas, com uma variedade de centros, igrejas etc.

As religioes Ayahuasqueiras tradicionais sao o Santo Daime e a Uniao do


Vegetal, que possuem um corpo hierárquico, com principios doutrinários e
ritualísticos definidos e bem organizados. Essas duas religiões principais sao
responsáveis pela legitimação do uso ritual da Ayahuasca em contexto urbano no
Brasil e em outros países.

Entre as religiões Ayahuasqueiras, a bebida é considerada o veículo da ação


religiosa. “Adaptando-se a novas condições sociais, culturais e ecológicas, voltando-
se mais ao desenvolvimento do autoconhecimento e ao enfrentamento das grandes
questões existenciais da vida, da morte e do sofrimento! (MACRAE, 2004)

O uso da Ayahuasca dentro do contexto urbano, ou semi-urbano foi oficial-


mente reconhecido e protegido pela lei em junho de l992 pelo Conselho Nacional An-
ti-drogas (CONAD), que decidiu liberar definitivamente a utilização do chá para fins
religiosos em todo o território nacional, baseado em investigações interdisciplinares,
desenvolvidas desde l985, levando em conta o lado antropológico, sociológico, cultu-
ral e psicológico dos rituais, além de análises fotoquímicas da ayahuasca (SILVA SÁ,
Parecer técnico-científico sobre o uso da Ayahuasca, 2001).

O numero de pessoas que encontram na Ayahuasca um caminho para a auto-


transformação e para a cura pessoal vem aumentado e seus benefícios cada vez

25
mais divulgados. Nota-se, entretanto, que ainda ecoam muitos preconceitos com re-
lação ao tema, tanto no meio acadêmico quanto no senso comum.

Os preconceitos com relação ao uso ritual da Ayahuasca foram e ainda são


muitos. A Ayahuasca e o seu uso ritual foi combatido. Em alguns paises, como a Ar-
gentina, a luta pela legalização ainda continua. Em outros, como México, Canadá,
Holanda, Alemanha, Itália, Japão etc, o uso ritualístico da Ayahuasca, foi liberado pa-
ra realização dos trabalhos do Santo Daime.

O Santo Daime tendo se espalhado por diversas partes do mundo, mantém


a base sobre o qual foi erguido ao mesmo tempo em que assimila e incorpo-
ra elementos de culturas tão diversas como a Japonesa ou a Holandesa. Na
terra do sol nascente existem varias igrejas do Daime que já possuem hinos
próprios, recebidos no idioma nativo e refletindo sobre questões particula-
res, mas ligadas da mesma forma a fonte que emana da floresta Amazônica
[...] O Santo Daime, religião cabocla de nascimento ensina em português e
cada vez mais se espalha pelo mundo e conquista adeptos nos mais distan-
tes países, replantando a santa doutrina Cristã através de uma musica e um
ritual simples, aliados ao sacramento herdados dos povos da floresta, pro-
vando que este é um conhecimento universal, capaz de tocar a todos sem
distinção (OLIVEIRA 2008, p. 216)

A legalização da Ayahuasca é uma demonstração da seriedade dos estudos e


do uso da bebida em contexto ritual, que não traz riscos à saúde psíquica, nem à so-
ciedade. Isso demonstra tratar-se claramente de um trabalho serio e benéfico. Se-
gundo Silva Sá,

Não é um modismo ou uma novidade passageira que excita, tantas vezes,


as intervenções pessoais e, frequentemente, irresponsáveis dos que detêm
transitoriamente o poder. O uso religioso do chá psicoativo ensejou a cria-
ção de instituições que provêem muitas pessoas com os arcabouços éticos,
sociais e culturais, em torno dos quais construíram suas vida (SILVA SÁ,
1999).

Além disso, a Ayahuasca também foi considerada como Patrimônio Imaterial


da Humanidade pelo IPHAN (Instituto do Patrimônio Artístico e Histórico Nacional),
considerando que existe legitimidade social no pedido de reconhecimento do chá
como patrimônio da cultura imaterial do Brasil. A afirmação foi feita em Brasília, pelo

26
presidente do, Luis Fernando de Almeida, aos representantes de entidades ayahuas-
queiras que utilizam o chá com fins religiosos no Acre. O processo de reconhecimen-
to foi aberto com aval da Gerência de Registros do Iphan, no final de maio de 2008,
durante a visita do então ministro da Cultura, Gilberto Gil, a sede do Alto Santo no
Acre.

Em Alagoas, o Santo Daime está presente há aproximadamente 10 anos. O


seu núcleo chama-se Céu das Águas e está localizado no Alto do Cruzeiro, na praia
em Riacho Doce, Maceió - AL. Existe há aproximadamente cinco anos. Faz parte do
CEFLURIS e realiza os trabalhos regulares de concentração, Missa e os Hinários ofi-
ciais do Mestre Irineu, Padrinho Sebastião e Padrinho Alfredo. O corpo de fardados é
de aproximadamente 15 pessoas e recebe os diversos freqüentadores regulares e
visitantes. Pela quantidade de membros em seu corpo de fardados se insere, de a-
cordo com o CEFLURIS, na categoria Núcleo de Instrução.

Alem dos trabalhos espirituais, o Núcleo Céu das Águas, através da Associa-
ção Comunitária e Ambientalista, fundada no ano de 2007, vem desenvolvendo tra-
balhos educativos, artísticos e recreativos com as crianças da comunidade, com o
objetivo de aliar as práticas espirituais aos cuidados ambientais e comunitários. Pos-
suindo bastante receptividade da comunidade.

Outros centros do Santo Daime também possuem organizações que se voltam


para os trabalhos comunitários e ambientais. Como exemplo podemos citar a ONG
Apoitcha (Associação de apoio ao trabalho cultural, histórico e ambiental), localizada
em Lucena na Paraíba, que trabalha com crianças e adolescentes, inclusive com cri-
anças vitimas do vírus HIV. EM 2005, A ONG recebeu um premio da UNICEF pelos
trabalhos realizados. Atualmente, entre outros serviços, a ONG oferece para crian-
ças e adolescentes de 7 a 16 anos oficinas de arte-educação diárias com o objetivo
de despertar o gosto pela leitura e escrita.

Em Alagoas, além do Santo Daime, existem outros grupos que consagram Aya-
huasca em rituais religiosos, como o CHIED Essência Divina (grupo pesquisado), lo-
calizado também na região do Alto do Cruzeiro em Riacho Doce; a UDV (o maior
grupo do estado), localizada no município de Marechal Deodoro e na praia de Ipioca.

27
1.1 A IMPORTÂNCIA DO RITUAL PARA CONSAGRAÇAO DA AYA-
HUASCA

O ambiente e o ritual são de fundamental importância para proporcionar segu-


rança na experiência com Ayahuasca.Os ritos para Jung (2000, 32) são muros cons-
truídos contra os perigos do inconsciente, pois as experiências com a Ayahuasca
podem ser de tal maneira arrebatadoras psiquicamente, que o ritual é um meio de
dar segurança à força que é gerada, protegendo do risco de uma desestruturação
produzida pelo inconsciente sobre o consciente.

Como meios de defesa face a esses poderes, a essas existências mais for-
tes, o homem criou os rituais. Poucos são aqueles capazes de agüentar im-
punemente a experiência do numinoso. As cerimônias religiosas coletivas
originam-se de necessidades de proteção, funcionam como anteparos entre
o divino e o humano, isto é, entre o arquétipo e a imagem de Deus, presen-
te no inconsciente coletivo e o ego (NISE DA SILVEIRA apud DALGAR-
RONDO, 2008: 66,67).

Os rituais religiosos pretendem ser veículos, meios de comunicação da pes-


soa humana com o Absoluto, com o Astral, com Deus ou outro nome que tenha essa
realidade transcendente que o ser humano, ordinariamente, não percebe, especial-
mente em nossa civilização contemporânea e ocidental. O ritual serve de preparação
para o que vai acontecer na experiência, para o contexto da relação espiritual e do
processo interno. “Os rituais tradicionais são tão indispensáveis à experiência com
Ayahuasca quanto um bom guia” (DOUOT, 1999, p. 64).

O rito é meio, é instrumento. A bebida vai sempre interagir com o conjunto psi-
cológico de cada indivíduo e a estrutura do local escolhido. Os rituais criam um am-
biente propício para que cada participante tenha a oportunidade de abstrair-se do co-
tidiano, do mundo ordinário no qual vivem, possibilitando a sua entrada em estados
especiais de consciência.

O conteúdo da experiência com Ayahuasca é uma resultante da interação


de três fatores básicos. Os fatores essenciais são: o “set”, que traduzo co-
mo sendo o “fator pessoal”, isto é aquele que o individuo traz consigo, os
seus conteúdos (intenção, atitudes, personalidade, humor, etc.); o “setting”

28
ou “fator ambiental” corresponde a todos os elementos externos ativos e
capazes de influir a experiência (BARBIER, 2005, s/p).

Uma pessoa que bebe ayahuasca sozinha, por exemplo, terá uma experiência
totalmente diferente daquela que se tomar com alguém ou com um grupo. Na experi-
ência com ayahuasca, não são apenas as propriedade farmacológicas que influenci-
am a experiência, mas todo o contexto ambiental que inclui a forma de direcionamen-
to do ritual, os hinos1 (no caso do Santo Daime), as chamadas2 (No caso da Essên-
cia Divina), o grupo, a liderança.

Embora os agentes químicos da Ayahuasca atuem nos mesmo receptores


cerebrais, podendo causar similares mudanças somáticas, psíquicas e pe-
receptivo-sensoriais, porém não determinam as características per se das
experiências. Esses agentes somente abririam as portas para outras formas
de percepção da realidade; mas nesses espaços mentais abertos, cada
homem imerso numa cultura, colocaria os conteúdos e o significado das ex-
periências. A experiência seria uma combinação entre os efeitos da subs-
tancia, a disposição psicológica do individuo e as características do ambien-
te onde a experiência acontece (PELAEZ, 2006)

A estrutura do ambiente que compreende a parte física, ambiental, a parte so-


cial, a parte musical, os instrumentos, as musicas, as imagens simbólicas utilizadas
todos esses fatores são importantes de serem considerados no ritual, pois facilitam o
acesso ao material emocional (sentimentos e pensamentos) e ao material simbólico
contido no inconsciente.

Vânia. (membro do Essência Divina), colaborou para a compreensão da im-


portância do ritual, a partir das suas vivências. Para ela:

Não é só vegetal que possibilita as transformações. Se falarmos dessa for-


ma estamos pecando por reducionismo, porque ai você anula a parte espiri-
tual , a condução da sessão e também o ritual. Você não pode deixar de la-
do as chamadas, porque elas contém sons universais, que podem fazer vo-

1
Hinos- Cânticos recebidos por inspiração divina; canalizações de versos musicados que contem ensinamentos doutrinários,
mensagens de sabedoria e os fundamentos espirituais da Doutrina. Inicialmente os hinos eram recebidos pelo fundador do
Santo Daime, Raimundo Irineu Serra, para logo serem recebidos também por outros membros, o que acontece até os dias
atuais.
2
Cânticos de inspiração divina herdados da tradição da União do Vegetal .

29
cê mergulhar no inconsciente e tornar seu material inconsciente, conscien-
te. Não se pode desprezar a harmonização do ambiente que existe para
que se possa se comunicar com o seu ser espiritual, com seu Deus interno
ou seu Deus exterior, com O deus que ta dentro ou com o Deus que está fo-
ra. Do ponto de vista espiritual seria isso também. Também existe uma par-
te social. Não é a mesma coisa tomar o chá em outro contexto ou comun-
gar, entre irmãos.

O ritual inclui a idéia de ordenamento do aquém para viabilizar o ir além. Daí a


sua importância como disciplina e, ao mesmo tempo, como gerador de força. Assim
como as águas do rio, que só produzem energia quando represadas. É o preço pago
para gerar a luz (SILVA SÁ, 1996)”.

As regras que integram um ritual devem servir para alcançar o objetivo de en-
trar em contato com o Sagrado, mantendo a atenção dos presentes para um objetivo
comum, para que assim possam vivenciar as transformações possíveis. Importando
a atitude com que se conduz a atenção dos participantes. Portanto cada pessoa en-
tra num universo comum a todos.

Os “perigo” dos rituais é que eles possam se tornar mais importantes do que o
evento que acontece em nossa consciência, ou seja, que nos apeguemos demasia-
damente às formas, ao externo, deixando de captar os ensinamentos que se origi-
nam e são processados em nosso interior.

As imagens os símbolos religiosos presentes nos rituais servem para que a


pessoa se concentre no Divino. O símbolo está carregado de energia numinosa e por
sua força e conteúdos energéticos envolvidos transporta e reporta a lembranças do
passado e ao contato com a realidade divina.

No Santo Daime os principais símbolos sagrados são o Santo Cruzeiro e as


imagens de Jesus Cristo, da Virgem Maria, de São José e São João e outros santos
importantes, seres míticos, presentes na historia da religião Cristã, que são reveren-
ciados nessa doutrina, fundamentalmente brasileira, fazendo parte da sua cosmolo-
gia.

De acordo com Jung (2000, p. 132) podemos alcançar a transformação atra-


vés de um rito usado para esse fim. Os rituais aos quais Jung se refere são os mági-

30
cos tribais, utilizados intencionalmente para produzir algum tipo de transformação
psíquica, onde além da graça, a transformação advém do esforço do iniciado para
alcançar a meta.

Em todo caso, trata-se de um processo demorado de transformação interna


e do renascimento em outro ser. Este outro ser é o outro em nós, a perso-
nalidade futura mais ampla, com a qual já travamos conhecimento como um
amigo interno da alma. Por isso é algo reconfortante quando encontramos o
amigo e companheiro reproduzido no ritual sagrado. Existem aquelas viven-
cias mediadas pelo rito sagrado, que transcendem a vida. Através da parti-
cipação do neófito no rito lhe é revelado a perpetuidade da vida através de
transformações e renovações. O decisivo nesse caso é, a existência de um
processo que transcorre por si mesmo, se transforma ritualmente, sendo
que o neófito recebe a graça, é influenciado, ou consagrado por sua partici-
pação (JUNG, 2000, p. 133- 135)

O ritual é a forma necessária para entrar em contato com o conteúdo interno,


numinoso (OTTO, 1985), saindo do mundo das formas, das aparências, onde mais
importante que a exploração do espaço exterior é a exploração do espaço interior.
Nesse espaço as transformações podem acontecer.

1.1.1 RITUAL DO SANTO DAIME

O Santo Daime é uma das mais importantes religiões ayahuasqueiras contempo-


râneas em expansão.Os rituais desenvolvidos consistem em comungar, nas datas
estabelecidas, a Ayahuasca, rebatizada como daime, em sessões religiosas compos-
tas de orações e cânticos de celebração a seres divinos.

Os rituais do Santo Daime são denominados “trabalho”, pois aqueles que lá


estão, além de estarem em serviço devocional, também estão “criando uma energia
extática” (ALVERGA apud DROUT, 1999, p. 84). Isso significa que os indivíduos vi-
venciam experiências de estado de êxtase, podendo ter visões e experiências xama-
nísticas, inclusive o contato com entidades espirituais, que são uma das característi-
cas dessas experiências.

De acordo com Maluf (2003), a noção de trabalho é uma das categorias em-
pregadas para descrever e sintetizar o conjunto das atividades rituais realizadas em

31
um dado contexto. Essa noção é largamente utilizada no circuito das espiritualidades
e terapias alternativas ("trabalho de crescimento", "trabalho do Daime", "trabalhar um
padrão emocional") e descreve os diversos processos da experiência espiritual. É a
noção que descreve a situação em si e os seus procedimentos, rituais. Este sentido
pode ser observado também no universo religioso e espiritual do Santo Daime. Se-
gundo MacRae,

Todo ritual ou "trabalho" de Daime é concebido como uma oportunidade de


aprendizagem e de cura e todos almejam a doutrinação dos espíritos pre-
sentes. Há, porém, uma variedade de diferentes rituais considerados mais
apropriados para diversas situações. São os "hinários", "trabalhos de cura",
"concentração", "missas" e "feitios". Todos se centram em torno do consu-
mo da bebida e da provocação de estados alterados de consciência dentro
de um contexto físico e social destinado a conter e guiar as "viagens" dos
adeptos. Segundo Couto são "rituais de ordem", promovendo a coesão hie-
rárquica do grupo e a busca da harmonia tanto interna quanto externa dos
adeptos (MACRAE, 2004, p. 25).

Oliveira (2008, p. 50), nos fala que os trabalhos são momentos de preparação
para que o desenvolvimento individual e coletivo do daimista seja mais bem aprovei-
tado. O trabalho seria o veiculo para se atingir uma perfeição material e espiritual,
3
pois é nele que se recebe instruções, correções, “pêias” que servirão para esse
mesmo adiantamento.

De acordo com o segmento do CEFLURIS, os rituais do Santo Daime, obede-


cem a um calendário oficial de concentrações, nos dias 15 e 30 de cada mês, da
Santa Missa na primeira segunda feira do mês, de trabalhos oficiais nos festivais de

3
O medo, a culpa, a desconfiança, a ansiedade, podem ser potencializados durante a sessão,
gerando desconforto físico e psicológico. É a chamada “Pêia” [...] “Pêia” é quando a borracheira vêm
acompanhada de sentimentos desagradáveis como mal estar físico, náuseas e vômitos, dor e des-
conforto psicológico. Essas sensações são atribuídas a alguma desarmonia no corpo e na mente. A
desarmonia do corpo pode ser devido a alguma doença, alguma coisa na alimentação que não se
digeriu, etc. (RICCIARDI, 2008, p. 77-78).

32
junho e dezembro etc, além da realização de trabalhos de cura e, dependendo da
Igreja, trabalhos de Mesa Branca, Trabalho de Cruzes e de São Miguel.

Os trabalhos regulares são chamados de “Concentração” acontecem nos dias


15 e 30 de cada mês. Nesses trabalhos, o objetivo é concentrar a mente num foco
comum, domar os pensamentos e se entregar aos ensinos que o daime mostra. No-
ta-se que um estado meditativo conduz o ritual. As pessoas são orientadas a ficarem
em silêncio em seus respectivos lugares, buscando se interiorizar, entrar em contato
com suas questões e com o que o daime pode mostrar. Segundo os adeptos, muito
do que a pessoa está precisando perceber, realizar e aprender são obtidos no mo-
mento da concentração.

O Trabalho de Concentração é iniciado com as orações do Pai Nosso e Ave


Maria intercalados, advindos da tradição cristã da religião. Após é lido a chave de
harmonia e a consagração do aposento, advindas da tradição do Circulo Esotérico
da Comunhão do Pensamento, grupo esotérico o qual o Mestre Irineu fazia parte an-
tes de fundar o Santo Daime. Com essas preces, o trabalho é aberto, as pessoas
comungam o daime, individualmente e voltam para os seus lugares.

Os trabalhos oficiais são chamados de hinários onde as experiências trans-


pessoais são vivenciadas através do canto e do bailados, uma espécie de biodança
circular, com passos compassados. Os hinários “duram geralmente uma noite inteira,
festejando principalmente o dia de um santo (ALVERGA apud DROUT 1999, p. 84).
Nos trabalhos oficiais do Santo Daime, celebrados nas datas consideradas de grande
importância do calendário religioso, são cantados apenas os hinos dos líderes funda-
dores (Mestre Irineu, Padrinho Sebastião e outros padrinhos e madrinhas) (REHEN,
2007, p. 6).

Esses trabalhos acontecem geralmente em festivais no meio do ano, os feste-


jos Juninos. E no final do ano, os festejos natalinos, o ano novo e a comemoração do
dia da Virgem da Conceição.

Em muitas culturas, os festivais são realizados como comemoração de mi-


tos que lhes estão associados e como a recordação de um acontecimento
que se pensa ter ocorrido numa data histórica determinada, ou num qual-
quer passado mítico: Nesses trabalhos rememoram-se não só a historia e o

33
sentido da data (São José, São João, Finados etc) extraindo-se a relação
de cada adepto com isso, revivendo-se todos os mitos ligados a origem e a
constituição da Doutrina, como se recapitulam a historia e o sentido trazido
a tona pelo hinário que é cantado (OLIVEIRA, 2008, p. 61).

Outro dos trabalhos importantes e representativos na doutrina são os feitios


de preparação da bebida sagrada. Nesses rituais, uma alquimia é realizada através
da união das duas plantas, juntamente com a água e o fogo (cozimento utilizando fo-
go de lenha). Assim, o daime é preparado rememorando os ritos dos antigos povos
indígenas em suas cerimônias xamânicas. Segundo Oliveira,

Trabalhar em um feitio é a oportunidade de participar de um processo arte-


sanal que remonta à ancestralidade da doutrina, dos seus arquétipos, de
seus fundadores, da comunhão mesmo com a divindade no momento em
que esta se encarna na bebida (idem, p. 66).

O trabalho do Santo Daime é considerado um “xamanismo coletivo” (COUTO


1989), herança das raízes culturais e espirituais do uso da Ayahuasca em culturas
indígenas da Amazônia. Porém difere-se do xamanismo tradicional, pois em seus ri-
tuais todos os adeptos, e não apenas o xamã, podem interagir com o mundo simbóli-
co. Nos rituais do Santo Daime, todos se tornam potencialmente xamãs e estão ap-
tos a ver e ouvir através de experiências extáticas, pois todos comungam a bebida
sagrada Segundo Araújo, trata-se de.

Um novo xamanismo que é fruto de um homem diferente que vem aí, e de


uma Nova Era. [...] estamos em contato com um fenômeno de xamanismo
para iluminarmos nossa passagem por esse mundo, que é algo tão superi-
or, mas tão superior, que só resta o silêncio e a admiração (ARAUJO, 2005,
s/p)

Nos trabalhos, encontramos uma linguagem que são como lições permanen-
tes para um aluno que busca conhecimentos sagrados (ARAÚJO 2005). Os adeptos
que se comprometem com o serviço e a missão espiritual do Santo Daime, são cha-
mados de “fardados”, pois aos rituais do seu calendário mensal e anual se apresen-
tam com uma indumentária própria, uniformizada. “Ser fardado significa ser um com-
ponente do rito. É uma representação iniciática, que distingue os membros do grupo
(irmandade) dos demais (BOMFIM, 2006).

34
O Santo Daime, entendido como um "sacramento religioso", passou então a
ser distribuído para todos os participantes dos rituais. "Mestre Irineu" - como
ficou conhecido - reuniu os neófitos em "igrejas" e os iniciados deveriam
portar uniformes ("fardas") durante as cerimônias: para as mulheres, uma
saia branca e uma blusa branca de mangas compridas, o saiote verde pre-
gueado e sobreposto à saia, uma fita verde larga cruzando o peito e fitas fi-
nas e coloridas pendendo da parte superior esquerda. Do lado direito do
peito, uma estrela de seis pontas com o símbolo de uma águia pousando na
lua crescente e no lado oposto o emblema de uma rosa para as mulheres
casadas e uma palma para meninas e moças. Além disso, uma coroa de
lantejoulas brancas e prateadas compôs o restante da farda feminina. Para
os homens, terno branco com gravatas azuis 7 e a estrela colocada no lado
esquerdo do peito dos rapazes e direito dos homens casados - havendo um
outro tipo de vestimenta, dependendo do ritual (REHEN, 2007, p. 12).

As fardas possuem duas conotações, uma é a vestimenta própria para o tra-


balho, uma roupa sagrada, utilizada apenas nos momentos rituais, considerada pelos
daimistas como uma armadura, como uma roupa que protege. A farda também tem a
conotação parecida com a do fardamento escolar, pois Santo Daime é considerado
uma escola espiritual e os fardados são os alunos dessa escola. Os trabalhos são
também um momento para servir, para exercitar a caridade. A farda é o identificador
daqueles que trabalham espiritualmente e materialmente nessa linha. Ana, fardada
do Santo Daime, compartilhou conosco as suas compreensões sobre o farda:

A farda é uma preparação, um uniforme que usamos em nossos trabalhos


espirituais e tem o sentido simbólico de armadura. Se somos um batalhão,
estamos na batalha, na batalha do bem e do mal, o bem interior, nossas vir-
tudes e o mal interior , nossas falhas a serem trabalhadas e superadas. A-
lém disso, dentro do trabalho espiritual a ação é a caridade, então é como
se usássemos o uniforme de trabalho, de serviço para a caridade. Mas a
farda pode se tornar apenas uma roupa, porque se eu não estiver com esse
compromisso no meu coração, na minha alma, na minha essência e no meu
espírito nada adiantará a vestimenta exterior se ela não estiver plasmada
verdadeiramente no interior.

De acordo com ARAUJO (2005), o traje de serviço característico do Santo


Daime faz parte do imaginário social e histórico, espiritual, que o Mestre Irineu dei-
xou. Os trajes não são folclóricos, não são alegorias, mas sim a representação de

35
uma determinada linguagem simbólica que remonta a um tempo sagrado, porque re-
mete ao imaginário profundo, quando atingimos um outro plano de mentalidade. O
ritual do Santo Daime é do tempo sagrado.

Outras das características centrais dos trabalhos é a musicalidade. A música


ocupa lugar central, já que a maior parte dos seus trabalhos são cantados e tocados.
A musica tem função de construir símbolos sagrados e transmiti-los. Através do can-
to, violão e toque dos maracás, gera-se uma determinada freqüência impulsionando
e conduzindo os estados transpessoais.

A música cantada e tocada quase constantemente serve para harmonizar o


grupo, impondo um ritmo marcado e uma afinação às vozes. A utilização de
música durante as cerimônias remete às antigas práticas xamanísticas de
onde se originou a prática de tomar ayahuasca. O canto e a percussão, de
natureza fortemente ritmada e repetitiva são poderosos auxiliares na provo-
cação de estados alterados de consciência e são considerados como capa-
zes de invocar a atuação de espíritos auxiliadores. As letras dos hinos gui-
am as "viagens" dos adeptos na direção desejada e ajudam a evitar a an-
gústia e o mal-estar. Esses "hinos" servem também para orientar as inter-
pretações das experiências que os adeptos têm durante as sessões. Aju-
dam a criar unidade entre as vivências dos indivíduos e dos símbolos mági-
cos ou míticos em que se projetam tais vivências, o que é de grande impor-
tância para evitar a desagregação do grupo. (MACRAE, 2004)

Os hinos da doutrina são sagrados e contém os ensinamentos e instruções a se-


rem seguidas, que além de possuir harmonia e beleza inigualáveis, facilitam o conta-
to com o divino guiando a experiência transpessoal. Através dos hinos, que são a
base da Doutrina do Santo Daime, o conhecimento é transmitido a todos.

Na Doutrina não existe pregação, não existe hermenêutica, o único material


possível de entendimento são os hinos. Todo o ensinamento da Doutrina
daimista está contido nos hinos. A ingestão da bebida acarretará uma ex-
pansão da consciência, atuando diretamente, individualmente, sobre cada
adepto no seu trabalho espiritual, permitindo que os ensinamentos dos hi-
nos sejam trabalhados em cada pessoa. Assim, cada indivíduo terá seu
próprio entendimento dos hinos. Esses dois mecanismos, a bebida e os hi-
nos, permitirão um profundo mergulho dentro de si, na qual os adeptos es-
tarão “se trabalhando”, isto é, revendo seus feitos e se aperfeiçoando de

36
acordo com os ensinamentos baseados no amor, na verdade, na justiça, no
perdão, na humildade, caridade, entre outras qualidades divinas (MENE-
SES, 2005)

Não é raro que os adeptos “recebam” hinos, que são versos musicados captados
espiritualmente do Astral (como é chamada a dimensão espiritual e transpessoal pe-
los adeptos). Rehen (2007) nos fala sobre o que diferencia os hinos de uma musica
comum:

O que distinguem os hinos de outras manifestações musicais é o fato dos


primeiros serem descritos como "recebidos" espiritualmente. De acordo
com o discurso nativo, receber um hino é absolutamente diferente de com-
por uma música, isso porque em uma composição, ainda que possa existir
o fator da "inspiração" ou até mesmo da "intuição", o compositor é sujeito
do processo de autoria, estando apto a experimentar, alterar e influenciar
a música em todas as suas dimensões: rítmica, harmônica, melódica e po-
ética; sentindo-se de alguma forma o seu proprietário, aquele que "faz",
"cria" e/ou "inventa". Já para os seguidores do Santo Daime, os hinos seri-
am dádivas de seres sobrenaturais que as oferecem para os adeptos -
neste caso chamados de "aparelhos" - que apenas "recebem" para então
cantar em conjunto com outros membros do grupo. Gustavo Pacheco
(1999) chamou o processo do "recebimento" dos hinos do Santo Daime de
clariaudiência ou psico-musico-grafia propondo uma variação terminológica
para os fenômenos espíritas da clarividência e da psicografia (REHEN,
2007, p. 6)

No Núcleo de Instruções Céu das Águas, por exemplo, um dos hinos recebi-
dos por um dos membros do grupo, legitima a existência do Núcleo como um ponto
de luz, que cresceria conforme o desenvolvimento espiritual e a integração dos
membros no trabalho coletivo material e espiritual.

O núcleo mostra sinais de crescimento. Iniciou seus trabalhos espirituais com


uma média de cinco pessoas, há seis anos. Atualmente recebe uma média de trinta
pessoas em seus trabalhos regulares de concentração. Abaixo o Hino recebido pelo
antigo dirigente do grupo, Agnus Bahia, que legitima a existência do Núcleo:

“Eu vi um ponto de luz

Guiado por Jesus

37
O ponto ia crescendo

Conforme o que ia acontecendo

Se cumprindo as palavras

Do profeta das matas

No expandir da Doutrina

Dou viva ao Céu das Águas”

Através dos hinos, o sistema de valores é transmitido ao grupo. O Santo Dai-


me, de acordo com Oliveira (2008), não possui um livro fundador, visto que apresen-
ta através dos diversos hinários, algumas categorias similares encontradas em textos
sagrados de diversas religiões como a Bíblia, os Vedas, o Alcorão, funcionando co-
mo suporte e guia para o adepto e refletindo a historia do grupo.

Os praticantes da religião encontram nos hinos um tipo de explicação nativa


e afirmam sentir amor e alegria ou mesmo mal-estar físico relacionando-os a
causas espirituais, que segundo eles teriam profunda ligação com os argu-
mentos apresentados nas letras das canções religiosas e que ao longo das
cerimônias despertariam determinadas emoções. Os efeitos no campo físico
e psíquico se relacionam com uma ordem detalhada e ritualmente consolida-
da coletivamente, sendo suscitados e interpretados por meio dos cânticos
(REHEN, 2007).

A tradição da musica no Santo Daime é uma re-elaboração do antigo do canto


dos ícaros xamânicos em rituais de cura, onde acreditava-se que através de alguns
cânticos específicos e de determinada freqüência, recebidos espiritualmente, entrar-
se-ia em contato com entidades espirituais que viriam em auxilio do xamã.

De um modo geral, todo hino teria o poder de curar, característica her-


dada da matriz xamânica ancestral dos ícaros vegetalistas (GOULART,
2004), chamadas destinadas a evocação de poderes mágicos. Mas se os
hinos servem como evocadores das forças de cura, como formadores de
“corrente” e como “mapas”, a própria bebida, sozinha, teria propriedades
curadoras. Assim, por extensão, qualquer ritual daimista tem a cura como
fim. Segundo De Rose (2006), o próprio chá é considerado um ser divino,

38
capaz de curar e de transmitir conhecimento. Assim, infere-se que os hiná-
rios constroem uma cosmologia acessível independentemente de evocação,
inscrevendo-se no inconsciente coletivo dos participantes. Entre mythos e
logos, o que se inscreve na cultura e transparece como identidade é o sen-
tido vivido, forjado em sistemas pelas categorias da razão e da sensibilida-
de (ACCIOLY, 2007, p. 4).

Os hinos desempenham um importante papel de cura, assim como os


ícaros, cantos xamânicos, desempenham um papel terapêutico importante
nas cerimônias peruanas. Eles tem uma importância fundamental porque
estimulam e desencadeiam visões. Em outros termos, os cantos e rituais
trabalham em harmonia para criar um campo morfogenético que sustenta e
amplifica a experiência extática (DROUOT, 1999, p. 84)

O depoimento de (A, visitante do Santo Daime), nos mostra a evidência do a-


prendizado obtido através dos hinos, em uma sessão de cura, na Igreja Céu das Á-
guas:

Eu aprendi muita coisa. Sei que eu tava com várias aflições e as respostas
foram aparecendo com os hinos. Eu acho que me impressionei mais porque
isso me veio sem uma borracheira forte e uma peia. Mas pelo que eu en-
tendi, o daime vai mostrando aos poucos individualmente, um a um, os hi-
nos ajudam a compreender.

Outras das características do Santo Daime é que há regras para a participa-


ção nos rituais que servem como preparação e como instrumento de coesão e ordem
no momento do trabalho. Por exemplo,

- prescrições dietéticas e comportamentais que devem ser observadas


durante três dias antes e depois da tomada da bebida e que preparam a ati-
tude do adepto para um acontecimento importante que foge da rotina cotidi-
ana;

- uma organização social hierárquica em que um "comandante" ou "pa-


drinho" é reconhecido como o dirigente da sessão, auxiliado por um corpo
de "fiscais" responsáveis pela ordem do trabalho;

39
- organização do espaço e do comportamento ritual. Assim há uma me-
sa/altar central onde uma cruz de Caravaca, o Santo Cruzeiro, e outros
símbolos religiosos realçam a sacralidade da ocasião;

-Todos os participantes são alocados a um determinado lugar no salão,


muitas vezes um retângulo desenhado no chão, separados em grupos por
sexo e idade ou experiência sexual (mulheres, moças, homens e rapazes)
(MACRAE, 2004).

De acordo com Morris (2006), todas as religiões incluem práticas rituais, códi-
gos de ética, corpo de doutrinas, crenças, escrituras ou tradições orais; Assim como
padrões de relações sociais focadas em torno de uma congregação ritual, igreja ou
comunidade moral. Esses direcionamentos e regras de conduta conduzem a um e-
thos que dá vazão à experiência emocional e mística do grupo religioso envolvido.

1.1.1.1 RITUAL DO ESSÊNCIA DIVINA

O Centro de Harmonização Interior Essência Divina existe em Maceió desde


2005, A sede do CHIED é localizada nas mesmas imediações do Núcleo Céu das
Águas no bairro de Riacho Doce em Maceió. Nesse centro é desenvolvido um traba-
lho com a bebida sagrada de acordo com outra abordagem, chamada pelo dirigente
de „unificação‟, que pretende abarcar em seu interior elementos do Santo Daime e da
União do Vegetal, concepções filosófico-religiosas orientais, práticas xamanisticas
indígenas etc.

A característica que marcadamente diferencia rituais praticados no Essência


Divina dos realizados no Santo Daime é que o contexto ritualístico é concebido como
“livre” onde consiste num espaço de introdução de variados elementos e de diversas
orientações e experimentações.

Ensinamentos em áudio são colocados, principalmente voltados para o auto-


conhecimento, geralmente extraídos da filosofia oriental. Na força da Ayahuasca ou
borracheira, como é chamada o estado de consciência expandida viabilizada através
do chá, o nível da compreensão e aprofundamento da experiência é ampliado.

40
Os hinos do Santo Daime, do próprio CHIED e de membros, bem como as
“chamadas” utilizadas nos rituais da UDV, estão presentes nos rituais do Essência
Divina. Entre os hinários do Santo Daime estudados pelo grupo, pudemos acompa-
nhar o do Mestre Irineu, Germano Guilherme e Maria Damião.

As “chamadas” são cânticos, tais como os hinos, recebidos da dimensão espi-


ritual, advindos da tradição da União do Vegetal que também impulsionam uma serie
de desdobramentos. Essa religião tem como líder espiritual o Mestre Gabriel. Se-
gundo Araújo,

Mestre Gabriel traz sabedorias da fonte espiritual; mesma expressão e con-


teúdo, dirigido para sujeitos enunciatários diferentes, no entanto suas cha-
madas vêm da mesma fonte; tal qual o Santo Daime é xamânico, sendo es-
se último com linguagem e roupagem religiosas porque dirigido à salvação
dos cristãos e de outros religiosos que buscam um equilíbrio assim, maior,
místico, transformador. Não é sem motivo que essa força surge depois de
um processo de enraizamento cultural dos seus discípulos (ARAÚJO, 2005,
s/p).

Além dos hinos e chamadas, há espaço para experimentações musicais diver-


sas como utilização de estilos variados de músicas como new age, popular brasileira,
etc. Aparentemente alguns tipos de musica não caberia num trabalho espiritual, no
entanto nota-se que efeito é positivo, surgindo reflexão, dando uma sensação de le-
veza e descontração ao ambiente, uma pratica que é utilizada também na União do
Vegetal.

Para John Blacking (1973), citado por Rehen (2007), a música não seria sim-
plesmente o reflexo ou "produto" de uma dada realidade social, mas um "sistema cul-
tural" capaz de informar os corpos e modelar os pensamentos. Uma das qualidades
essenciais da música seria a capacidade de criar um "outro mundo" de "tempo virtu-
al".

Em qualquer ritual com Ayahuasca, a figura de um dirigente é de fundamental


importância na condução. O dirigente precisa demonstrar experiência, conhecimento
da bebida e dos processos advindos e principalmente responsabilidade e seriedade
nos trabalhos. Tanto no Santo Daime, quanto no Essência Divina existe a presença
de um líder, um dirigente responsável. É a pessoa responsável por conduzir o ritual.

41
A pessoa de um dirigente em trabalhos com Ayahuasca funciona como um facili-
tador, pois o tipo de liderança e dinâmica dos trabalhos são fatores essenciais capa-
zes de influenciar em grande parte a harmonia e a tranqüilidade da experiência.

Barbier aponta que um dirigente,

Precisa ser paciente, empático, familiarizado com os processos da ex-


periência; Uma liderança não muito interventiva e tranqüila favorece o a-
cesso e estudo dos conteúdos pessoais, o exame e integração da sua pró-
pria trajetória, o encontro de caminhos e conceitos próprios. (BARBIER,
2005)

Pudemos observar que o Mestre dirigente do CHIED desempenha uma impor-


tante função no grupo, sendo bastante respeitado por todos. O grupo é perceptivel-
mente harmonizado.

Laura, fardada do Essência Divina, em seu depoimento nos dá uma importante


compreensão sobre o papel de um dirigente na sessão.

Deve existir uma pessoa que dirija, que coordene, que tenha conhecimento
do que é a Ayahuasca para poder ministrar. Ai não pode desprezar o co-
nhecimento, não pode ser qualquer pessoa, tem que ser uma pessoa espe-
cifica responsável. Inclusive responsável, pra responder pela Ayahuasca
em relação ao Estado, ao conselho de entorpecentes, conselho nacional
anti-drogas. Essa pessoa que está à frente respondendo por esse trabalho,
por isso deve conhecer profundamente o que é esse trabalho. O fato de
chamar Mestre é porque é um professor, porque ministra um determinado
ensino.

As sessões do Essência Divina são realizadas a cada 15 dias, no primeiro e


no terceiro sábado de cada mês. Ao contrário do Santo Daime onde as orações são
a base de abertura e fechamento dos trabalhos, no Essência Divina, o trabalho é a-
berto sem nenhuma oração formal. Notamos, entretanto, que a reverência a Jesus
Cristo está presente quando na hora de beber o chá todas as pessoas repetem ao

42
mesmo tempo: “Deus que nos guie no caminho da luz, para sempre sempre amém
Jesus”.

Após essa afirmação, todos bebem o chá e se sentam para a parte do traba-
lho que é denominada “concentração”. Nesse momento variadas musicas são colo-
cadas, sons da natureza, sons xamânicos, mantras, hinos, ensinamentos. A concen-
tração não é no silêncio como no Santo Daime. Essas músicas possuem o fator de
serem agente potencializadoras da borracheira. Esteticamente, todas as musicas são
de bastante qualidade.

É freqüente os participantes escutarem gravações em áudio feitas pelo mestre


dirigente ou por membros do CHIED baseadas em trechos filosóficos, religiosos, etc.
É largamente utilizado equipamento tecnológico durante os rituais, através de trans-
missão de músicas com uso de laptop e amplificadores.

Notamos a presença de quadros com as imagens do Mestres que fazem parte


da linha ayahuasqueira: Mestre Irineu do Santo Daime, Mestre Gabriel da UDV, Mes-
tre Francisco do Centro de Cultura Cósmica. Apenas a imagem do Padrinho Sebasti-
ão não está presente.

O centro é em formato de uma oca, construído pelos próprios membros do


CHIED juntamente com os índios de uma tribo Indígena Kariri Xocó do Estado de A-
lagoas. O formato da construção é um costume, uma arquitetura tradicional da tribo,
herdada dos seus antepassados, que foi utilizada para construção do ambiente ritual
do Essência Divina.

Como fardada do Santo Daime, pude compartilhar bons momentos nesse


Centro. Acredito que todos os grupos façam parte da mesma família, da mesma linha
da Ayahuasca. O que diferencia um lugar do outro é abordagem utilizada. Cada
pessoa possui afinidades próprias e se sentem melhor desempenhando um determi-
nado serviço.

O xamanismo sempre fez parte de meus interesses. Na primeira visita que fiz
ao Essência Divina em 2007, vivenciei uma experiência muito forte. Num momento
da sessão, que aconteceu um dia depois de meu fardamento no Santo Daime, o
Mestre estava fazendo algo que eu compreendi como um trabalho xamânico, na fo-

43
gueira com os maracás. Nesse momento a força estava muito grande, eu estava co-
mo que me desprendendo de mim mesma, e tudo tremia. Ao mesmo que eu estava
naquele lugar físico tridimensional, estava em outro, e era como se eu relembrasse a
memória de um passado, como uma sensação de dejavu. Senti como se já conhe-
cesse aquele lugar, aquelas pessoas. No momento em que o Mestre estava fazendo
o ritual com os maracás senti algo como um zumbido muito forte, muito alto, tudo
tremia, e era aterrorizante de tão forte. Nessa hora me entreguei a mãe terra, me dei-
tei no chão como que pra buscar um suporte, um conforto. Ao olhar para o Céu, lá
estava lua... Senti que quem governava, era Deus. Aprendi que precisava ter fé em
Deus e tive. Precisei acreditar verdadeiramente em quem poderia me segurar naque-
le momento. Nessas horas, por mais forte, desconfortável e amedrontadora que seja
a situação, só nos resta ter calma e fé no Poder Superior que nos segura. Com a fé
veio a cura. Nesse momento me senti como me desprendendo do meu corpo, eu via
meu corpo lá em baixo e via meu corpo em cima. Eu era uma observadora e via o
que se passava nos dois planos. E doía muito, meu corpo doía muito. E eu me en-
xerguei no plano astral, com varias índias, velhas xamãs, com seus maracás sobre
mim, chacoalhavam os maracás e me mandavam segurar a dor, pois eu estava re-
cebendo a minha cura: “segura fia, segura que essa é a tua cura” foi o que ouvi niti-
damente. E varias cobras saiam de dentro de mim, do meu corpo etérico. A medida
que o Mestre terminava o ritual com os maracás no plano físico, aquela força foi se
acalmando e eu fui retornado a um estado mais comum e me acalmando, as dores
passaram e eu voltei novamente a terra. Recebi uma importante cura, aprendi a ter
fé em Deus, a acreditar no Poder Superior e a agradecer a essas entidades curado-
ras. Acredito que elas fazem parte de minhas raízes ancestrais. A experiência foi for-
tíssima e posso considerar como uma das mais fortes que já tive, no pouco tempo
que estou no caminho da Ayahuasca.

Há apenas seis anos comungo a bebida, apenas há dois anos me fardei no San-
to Daime, ou seja, ainda tenho muito caminho a percorrer, muito a compreender num
caminho que se faz com muita calma, amor, paciência e tranqüilidade.

44
45
2 EXPERIÊNCIAS TRANSPESSOAIS ATRAVÉS DO USO
RITUALÍSTICO DA AYAHUASCA

As experiências transpessoais são consideradas como um estado superior de


consciência, onde se dissolve a aparente fronteira entre o “eu” e o mundo exterior,
em que desaparece o que chamamos de pessoa e surge uma vivencia que está além
(WEIL, 1995, p. 14)”. Essas capacidades potenciais estão relacionadas à existência
de estados superiores de consciência, ainda desconhecidas para a maior parte da
humanidade. O caminho para atingir esses estados é o caminho da autotranscen-
dência, ou superação do ego individual.

De acordo com Bertolucci (1991), é um pressuposto da psicologia transpessoal


que todo ser humano possui impulsos em direção à realização dos estados superio-
res de consciência, única possibilidade real de libertação. As experiências transpes-
soais, de acordo com a autora, constituem “estados superiores de consciência”, ex-
periências humanas mais evoluídas, realizadoras, complexas ou cósmicas.

Em um mundo quase que totalmente prensado por fenômenos como reifica-


ção, estandartização, desenraizamento simbólico, ausência de cidadania e
exclusão moral, sem falar na ausência de políticas públicas de bem-estar
social. É ai onde se insere o movimento ayahuasqueiro, que busca trans-
formações através do conhecimento sagrado (ARAÚJO, 2005).

Os processos subjetivos decorrentes do uso ritual da Ayahuasca são por nature-


za transpessoais porque alargam a experiência e visão da realidade, diminuem o im-
pério do ego sobre a personalidade, facilitam uma mudança de valores e conduzem o

46
individuo a uma experiência sagrada da existência. O psicólogo Tripichio observa
que:

Experiências ditas transpessoais acompanham o homem há milênios. No


Ocidente, na maioria das vezes, estas vivências são associadas à religião,
caracterizando-se como um encontro com um estado místico indescritível e
não vivido pela maioria dos indivíduos. Ao contrário, porém, no Oriente es-
tas experiências obtiveram atenção e estudo que desenvolveram métodos e
técnicas para vivenciá-las. O Zen-Budismo, a Ioga e o Sufismo, por exem-
plo, são três doutrinas orientais que, além de uma preocupação com o fun-
cionamento da mente, sua relação com o Cosmos e o desenvolvimento da
personalidade, têm implicitamente em seu pensamento a evolução interior
do indivíduo visando atingir experiências transcendentais (TRIPICHIO,
2007, s/p)

A dimensão transpessoal das experiências vivenciadas por indivíduos não se


restringe apenas a questões relacionadas à identidade, à personalidade e à historia
de vida. Essa dimensão, como já foi ressaltado, ultrapassa o ego, indo em direção a
uma totalidade e a integração das variadas camadas da psique, saindo-se do mundo
da forma, indo em direção ao conteúdo organizativo que reside no centro da psique
(BERTOLUCCI, 1991, p. 55).

Stanislav Grof, psiquiatra pioneiro da Psicologia Transpessoal, referência no


estudo das experiências de consciência expandida, explica que:

Nos estados transpessoais ocorre uma mudança qualitativa de consciência,


de forma profunda, onde nosso campo de consciência é invadido por con-
teúdos de outras dimensões da existência, que podem ser muito intensos e
modificadores da nossa visão de mundo (GROF, 2000, p. 78).

Essas experiências são geradas a partir do inconsciente transpessoal ou cole-


tivo, que despertado pelo o uso da Ayahuasca, manifesta conteúdos universais que
não correspondem apenas à historia individual. Com a Ayahuasca, há possibilidade
de interação tanto com conteúdos do inconsciente pessoal, quanto do inconsciente
coletivo.A Ayahuasca dissolve os limites da mente inconsciente, permitindo o acesso
a um leque mais abrangente de conhecimentos e também a conteúdos reprimidos e
esquecidos, possibilitando que eles sejam re-elaborados.

47
Brandão (1994), citado por Tavares (2004) destaca que através da Ayahuas-
ca,

O alvo do sujeito é conhecer-se até onde for possível, dissolver-se na or-


dem mística de um cosmos vivo, mas à condição de fazê-lo trabalhando a
plenitude de sua própria pessoa, e as várias dimensões espirituais de si
mesmo, em nome de um mesmo trabalho individual sobre a fidelidade à sua
própria pessoa.

No estado de expansão da consciência é possível o alcance de outros níveis


de emancipação. Os estados expandidos de consciência não conduzem à desorgani-
zação, mas à organização e re-elaboração psíquica em busca de uma melhor quali-
dade de consciência.

De acordo com Bertolucci (1991), a psicologia da personalidade, da persona,


do ego, ou qualquer outro nome que se queira dar é uma psicologia parcial, pois leva
em conta somente a linha horizontal da vida. Ela nos fala de uma nova forma de psi-
cologia que estudaria a linha vertical, ou seja, a essência do homem que consideraria
não só a existência de questões emocionais da personalidade, mas algo que vai a-
lém do que representa a essência do homem.

Só podemos recuperar a perspectiva de totalidade sobre o fenômeno psíquico


retornando à experiência humana em todas as suas manifestações e verdadeiramen-
te ao sujeito das experiências. Para Bertolucci (1991), a Psicologia Transpessoal,
dentro de uma metodologia fenomenológica procura trabalhar incentivando o desen-
volvimento da consciência em suas formas superiores.

Há registro de técnicas para conduzir a experiências transpessoais desde os


primórdios da humanidade (BARBIER, 2003). As grandes tradições espirituais da
humanidade elaboraram seus termos específicos para as experiências transpesso-
ais, que equivalem simbolicamente, por exemplo: o Zen-budismo chama de satori, o
Taoísmo de hsù ("estado de vazio"), o Sufismo de fana ("extinção do ego"), o Budis-
mo de nirvana, a Kriya Yoga de samadhi, o Cristianismo de "reino dos céus" e o San-
to Daime de “miração” (BOMFIM, 2002).

Maslow (1998), chama essas experiências de peak experiences ou experiên-


cias culminantes. Para ele uma experiência culminante é um momento em que você

48
é tirado de si mesmo, que faz você sentir-se um com a vida, ou com a natureza, ou
com Deus. Dá a sensação de ser parte do infinito e do eterno. Essas experiências
tendem a deixar marcas profundas na vida da pessoa, mudá-la para melhor, e muitas
pessoas procuram essa experiência ativamente. São também chamadas de experi-
ências místicas, e são conhecidas em muitas tradições religiosas e filosóficas.

Todas essas características se encontram combinadas em maior ou menor


grau nos estados transpessoais de consciência e se constituem em estados de con-
templação interna, sejam eles alcançados naturalmente, espontaneamente ou con-
duzidos através de ritmos musicais de instrumentos musicais (como tambores, mara-
cás, etc.), de mantras ou através do uso de enteógenos.

De acordo com Alverga (1996), as experiências transpessoais, através da Aya-


huasca, possuem características próprias que as permitem reconhecer, como por
exemplo:

...inefabilidade, incapacidade de narrar em palavras os primores alcança-


dos com toda sua riqueza de visões e sensações; caráter irretorquível das
verdades vivenciadas, o que pressupõe uma grande potencialização do
dom da intuição; sensação de unicidade; experiência subjetiva de fusão do
Eu no universo; transcendência do tempo e do espaço, sensação de emer-
gir beatificamente no Eterno Agora; sensação de profunda positividade fren-
te à vida; reconhecimento da sacralidade do caráter divino da experiência
obtida; aumento do poder de concentração e cognição; sensação de confor-
to e estímulo moral para desempenhar as instruções recebidas; insights re-
veladores e valiosos para o solucionamento de conflitos internos; reverên-
cia e humildade frente ao desconhecido, serenidade frente a aceitação da
morte e a compreensão desta como uma transição para uma vida desmate-
rializada e de pura consciência; predisposições de altruísmo e abnegação;
visualização da linguagem”. (ALVERGA, 1996)

Penetrar nos mistérios proporcionados pela Ayahuasca permite ao homem a


participação no mundo das realidades iluminadas, ou seja, pelo mundo do sagrado.
Esse encontro se da com muita intensidade, de uma forma mais profunda e arreba-
tadora.

49
Vânia, fardada do Essência Divina nos fala sobre a questão da religiosidade
com Ayahuasca e os conteúdos que podem ser vivenciados:

Outra coisa a ser trabalhada com a Ayahuasca é questão da religiosidade e


não da religião. Então você fica muito livre e desperta em você, em vez das
normas e regras de fé da religião, possibilita o encontrando com Deus, com
a sua sabedoria interior e entendendo também que esse Deus pode ser
uma Deusa. O Deus tem características maternais e a Mãe tem característi-
cas paternais. Essas coisas vão chegando na gente.

Shannon (2003), pesquisador Israelita da área das Ciências Cognitivas, com-


partilhou em seu trabalho as experiências que vivenciou com a Ayahuasca. Ele nos
fala que a substância abriu para ele uma dimensão do sagrado que nunca tinha vi-
venciado antes, quando teve visões muito fortes. A experiência foi tão forte que o le-
vou a querer integrar o uso ritual da Ayahuasca no estudo da fenomenologia da
consciência humana e investigar as dimensões psicológico-cognitiva da experiência
e suas implicações mais amplas para o estudo da consciência humana.

A Ayahuasca demonstra o forte impulso na psique dos indivíduos que a be-


bida pode provocar. A ayahuasca provoca poderosas visões que se associ-
am a insights pessoais, ideações intelectivas, reações afetivas e experiên-
cias espirituais e místicas profundas. Também se observam alterações dos
parâmetros básicos da experiência – identidade pessoal, conexão com o
mundo exterior, temporalidade e os sentimentos de significação e de noese,
além disso, provoca uma abertura psico-cognitiva que conduz ao contato
com o sagrado (SHANNON, 2003).

Essas experiências podem ser descritas por outras pessoas, inclusive falando
do encontro com seres arquetípicos, como divindades, deuses, anjos, santos, budas,
orixás. Os arquétipos são manifestações de uma energia Universal, personificada,
transformada em imagem e símbolo nas diversas culturas. O símbolo é uma imagem
carregada de energia, despertado nas diversas praticas religiosas. “O psiquismo hu-
mano produz, de forma espontânea, os conteúdos religiosos, pois dessa natureza é o
ser humano, um ser intrinsecamente religioso (DALGARRONDO, 2008, p. 65)”.

Sob o efeito da bebida sagrada, entramos naturalmente em contato com essa


dimensão mística e metafísica da existência. Essa se trata de uma dimensão inteira-

50
mente diferente da qual estamos acostumados a lidar, o que não retira seu status de
verdadeira.

Esses estados de consciência constituem experiências humanas mais evo-


luídas, realizadoras, complexas ou cósmicas. A experiência transpessoal,
de fato representa uma modalidade superior de estado de consciência, pois
trata-se da experiência de centro de si mesmo (Self), ao mesmo tempo em
que é Centro e fonte de toda a Vida. Nessa dimensão, todas as divisões
são abolidas, não há mais separação entre sujeito e objeto, eu e outro. A vi-
vencia dessa posição superior de consciência, mesmo por breves momen-
tos, é altamente curativa e amplia a capacidade de realização do sujeito em
todos os sentidos (BERTOLUCCI, 1991, p. 20).

No Santo Daime, o estado transpessoal provocado pela Ayahuasca é chama-


da de miração. A pessoa ao mesmo tempo em que observa, atua no universo espiri-
tual, do inconsciente. Para o escritor, físico e xamã, Drouot, a miração significa ao
mesmo tempo visão interna e êxtase, é o modelo de uma forma de consciência na
qual o eu se concentra na realidade interna. Ela favorece a consciência espiritual e é
notavelmente similar às visões e aos estados extáticos descritos pelos santos e os
místicos de tantas religiões (DROUOT, 1999, p. 74, 83)”.

Ou seja, o individuo experiência a si mesmo como um observador uma teste-


munha daquilo que acontece, ao mesmo tempo em que atua no cenário de infinitas
possibilidades que aparecem no contexto da visão interna. Para Bertolucci nesse
momento, a pessoas se tornam testemunhas desse poder de direcionamento ou in-
tencionalidade que faz parte das experiências transpessoais, quando então, o sujeito
pode experienciar-se ao mesmo tempo como consciência transcendental, observador
ou testemunha transpessoal. (BERTOLUCCI, 1991, p. 21).

Na miração, o individuo é conduzido a mudanças perceptivas, vivenciando


uma experiência qualitativamente diferenciada em relação aos padrões perceptivos
do cotidiano, englobam não raro entidades divindades, Mestres, Santos e outros ar-
quétipos. Para aqueles que a vivenciam tais experiências são tão convincentes e re-
ais quanto as experiências da própria vida cotidiana (idem, 140). É no inconsciente
coletivo, ou transpessoal, que a realidade das figuras arquetípicas estão armazena-
das.

51
Esse sentimento profundo e tocante, revelado pela bebida e pelo contexto re-
ligioso foi expresso em um dos depoimentos:

Conheci o Daime, eu tinha 24 anos de idade e foi ai que eu senti meu coração fer-
ver, minha alma vibrar, compreendi que eu era o veiculo para encontrar Deus e foi o
Daime que me mostrou. Assim percebi que era me conhecendo, me lapidando e me
descobrindo, que eu seria capaz de ser que Eu Sou (depoimento de Ana fardada do
Santo Daime).

Utilizada num contexto ritualístico responsável e sério, a Ayahuasca pode le-


var o individuo a potencializar seu processo de encontro com a dimensão transcen-
dente de si mesmo e da vida. Conduzindo assim, a um novo projeto existencial pau-
tado na auto-transformação e no retorno ao sagrado. A busca pelo transcendente e
pelo sagrado é uma maneira de re-significar a vida, podendo ser considerada o con-
traponto a toda situação de esvaziamento das subjetividades que observamos atu-
almente.

2.1 AS EXPERIÊNCIAS COM AYAHUASCA E O RETORNO AO SA-


GRADO NA CONTEMPORANEIDADE.

O surgimento Mítico da primeira religião Ayahuasqueira contemporânea

Os mitos e os símbolos sagrados estão presentes desde a criação da primeira


religião ayahuasqueira do Brasil, o Santo Daime. “Mito é uma forma comunicativa de
conservar e de significar um valor através de um símbolo que esclarece e expressa o
valor de um significado de uma verdade profunda (TAVOLA, 1985 apud RAMOS,
2005)”.

O mito, ou o que se tornará um mito, com o passar do tempo, é aquele relato


do Encontro do Mestre Irineu, fundador da Doutrina, com um ser divino, através do
estado visionário da miração. O Encontro do Mestre com um ser mítico representan-
do a energia feminina primordial da Grande Mãe, da Rainha da Floresta, que é identi-
ficada como a Virgem Maria, traçou os fundamentos do que seria a religião do Santo
Daime.

Sob o efeito da Ayahuasca, Mestre Irineu visualizava, ouvia e recebia ensi-


namentos divinos em estado de "miração" e assim foi inspirado para fundar

52
a religião, obedecendo à sua "professora", a "Rainha da Floresta" (ou "Vir-
gem da Conceição"), com quem afirmava manter contatos espirituais . Foi
assim que ele "recebeu" os hinos, apresentando os principais elementos do
ethos religioso daimista na orientação dos adeptos em suas "viagens as-
trais" e no cotidiano. Para os seguidores, esses cânticos são mensagens
dos "seres" da floresta e do "astral" (região celestial), apresentando também
os valores e normas de conduta idealizadas pelo grupo. O próprio "mito de
origem" da doutrina do Santo Daime, com o Mestre Irineu recebendo ensi-
namentos da lua, já apresenta a noção de sacralidade daquilo que vem do
alto. (REHEN 2007, p. 5)

O principio arquetípico do Sagrado Feminino Universal foi manifestado desde


o inicio do surgimento do Santo Daime. Atualmente mais de trinta e seis paises falam
da Rainha da Floresta, através dos hinos, reverenciando a Floresta e a Mãe Nature-
za e Virgem Maria que manifestou os primores e a beleza da natureza e do Divino
através dessa bebida sagrada.

Como indicação do retorno ao Sagrado Feminino, um grupo de mulheres dai-


mistas das diversas partes do Nordeste se reuniram em março de 2009, na Praia de
Japaratinga em Alagoas, num Encontro de Mulheres na Floresta (EMFLORES-NE).
Foram quatro dias de vivências, grupos de discussões, exercícios de yoga, biodança,
alimentação natural e trabalhos do Santo Daime em celebração ao Sagrado Femini-
no. As mulheres buscaram Reverenciar o principio sagrado em si mesma e na natu-
reza, na Virgem Mãe que é mulher e foi quem entregou a Doutrina do Santo Daime
ao Mestre Irineu.

A principal facilitadora desse Encontro de Mulheres foi uma das madrinhas,


moradora do Céu do Mapiá, que há muito tempo se dedica à Doutrina, sendo con-
temporânea do Padrinho Sebastião; Maria Alice Campos Freire, desenvolve um tra-
balho terapêutico muito importante na Floresta Amazônica, Fundadora do Centro
Medicina do Floresta onde, desde 1989 desenvolve pesquisas e curas com as plan-
tas da Amazônia, bem como a educação de crianças e jovens para a preservação da
Natureza e do desenvolvimento sustentável. Ela é uma ativista na defesa das suas
tradições e patrimônio, sendo uma das responsáveis pela sistematização dos Florais
da Amazônia.

53
Maria Alice é também uma das membros do Conselho Internacional das 13
avós Xamãs, representantes femininas das diversas tradições espirituais do Planeta
Terra. Criado em outubro de 2004 reúne 13 Avós Indígenas de todo o mundo: do A-
lasca, América do Norte, América do Sul e América Central, África e Ásia.

Abaixo a declaração de Aliança elaborada pelo Conselho das 13 avós, que le-
gitima o papel das mulheres na preservação da natureza, através da tradições sa-
gradas de seus povos.

Nós somos o Conselho Internacional das Treze Avós Indígenas. A nossa


é uma aliança de oração, de educação e cura para a nossa Mãe Terra, to-
dos os seus habitantes, todas as crianças e para as próximos sete gerações
vindouras. Estamos profundamente preocupados com a destruição sem
precedentes da nossa Mãe Terra, a contaminação do nosso ar, águas e do
solo, as atrocidades da guerra, o flagelo da pobreza mundial, a ameaça das
armas nucleares e de resíduos, que prevalece na cultura do materialismo,
as epidemias que ameaçam a saúde dos povos da Terra, a exploração dos
indígenas medicamentos, e com a destruição de formas de vida indígenas.
Nós, o Conselho Internacional das Treze Avós Indígenas, acreditamos que
a herança de nossos ancestrais, formas de oração, a paz e a cura são vi-
talmente necessários hoje. Vivemos juntos para cuidar, educar e formar os
nossos filhos. Vivemos juntos para defender a prática das nossas cerimô-
nias e afirmar o direito de utilizar a nossa planta medicamentos isentos de
restrição legal. Viemos juntos para proteger as terras onde os nossos po-
vos vivem e sobre a qual dependem as nossas culturas, a fim de salvaguar-
dar o patrimônio coletivo de medicamentos tradicionais, e para defender a
própria terra. Acreditamos que os ensinamentos de nossos antepassados
vão luz nosso caminho através de um futuro incerto. Nós unir com todos
aqueles que honram o Criador, e para todos aqueles que trabalham e rezar
para os nossos filhos, para a paz mundial, e para a cura de nossa Mãe Ter-
ra (Conselho Internacional das Vovós Indígenas, 2004)

As avós são mulheres de oração e mulheres de ação. As suas formas tradi-


cionais de rito e conexão com Deus, sua ligação com as forças da mãe terra, sua so-
lidariedade para com o outro cria uma teia que ajudarão a humanidade a reequilibrar
as injustiças de um mundo em desequilíbrio, desconectado da leis fundamentais da
natureza e do original ensinamentos baseados em uma relação para toda a vida.

54
Alguns estudiosos do xamanismo como (CHAMALU, 1999), falam que esta-
mos numa era onde o Matriarcado está retornando, onde as características femininas
estão sendo mais solicitadas em diversas áreas da vida. Estamos saindo de uma era
onde predominou o princípio masculino, onde imperou as guerras, a dominação, a
competitividade, a racionalidade. E estamos entrando em uma nova fase, onde pre-
valecerá as características femininas, do amor, da receptividade, do acolhimento, do
cuidado, da intuição. Os cuidados com a natureza, com a mãe terra podem ser sinais
dessa mudança.

Retornando a historia do surgimento mítico do Santo Daime, Oliveira (2008, p.


85) também nos fala sobre o encontro do Mestre Irineu com a Rainha da Floresta:

Nesse momento se dá o encontro mítico entre o Mestre Irineu e a Rainha


da Floresta, representação de Nossa Senhora da Conceição que de cima
da lua nova começa a lhe entregar o conhecimento dos segredos sagrados
contidos na bebida que ele próprio designará como Daime (num ato rogati-
vo: daí-me amor, daí-me fé, daí-me luz). Em outras aparições, essa deusa
Universal, como identificou Irineu, lhe ordenará a criação da Doutrina e lhe
instruirá no recebimento dos cantos para que através deles se estabeleça o
contato entre o mundo material e o mundo espiritual (OLIVEIRA 2008, p.
85).

A partir desse encontro mítico e místico, o sistema simbólico que permeia os


valores do grupo daimista é criado. Esse sistema simbólico pode ser compreendido e
vivenciado pelos adeptos, pois através da bebida abre-se a possibilidade desses
conteúdos também serem revelados a cada um.

O daime abre as portas para que esse contato aconteça e que cada um possa
comprovar ou pelo menos intuir a veracidade do mito. O tempo do Santo Daime é o
tempo do Sagrado, vivenciado pelo fundador no momento do Encontro com a Divin-
dade e vivenciado também pelos seus seguidores.

Os símbolos do Santo Daime são construídos através da arte (a musica e


os cânticos); dos mitos que se apresentam através das visões induzidas pe-
la bebida (compreendidos aqui não como alucinações, mas como imagem
refletidas pela consciência e que compõe a realidade do adepto na medida
em que são elas que instruem e erigem as bases do conhecimento sobre o
real (OLIVEIRA, 2008, p. 12).

55
.

Para as sociedades arcaicas o sagrado é o real por excelência. Nelas são os


mitos que conferem ao mundo essa categoria. Segundo Eliade (1992),

É na experiência do sagrado, no reencontro com uma realidade transhuma-


na, que nasce a idéia de que alguma existe realmente, que há valores abso-
lutos, suscetíveis de guiar o homem e conferir uma significação à existência
humana (ELIADE, 1992, p. 45)

Nos grupos religiosos, citados a Ayahuasca é o Sacramento compartilhado. É


o elo que une os adeptos. A palavra sacramento (sacramentun) é de origem latina,
formada por duas palavras: Sacra, que quer dizer sagrado e Mentun que significa
lembrar, memorar. Ou seja, lembrar de coisas sagradas. Portanto, através dessa be-
bida sacramental, o individuo re-encontra, rememora, em seu intimo a noção do sa-
grado (CRIPPA, 1975).

De acordo com Goulart (2003, p. 03) Para os seguidores dos cultos religiosos
aqui considerados a ayahuasca é uma bebida sagrada, cujos significados se relacio-
nam à constituição de todo um conjunto simbólico, ritualístico, cosmológico, associ-
ando-se, de certa forma, à noção de sacramento.

O sagrado, segundo Dalagarrondo (2008) é definido como a percepção soci-


almente influenciada de um ser divino ou de um senso de verdade e realidade ultima,
manifestando-se através da Espiritualidade que dá capacidade de estar em conexão
intrapessoal, interpessoal e transpessoal.

Para Crippa (1975, p.104), “A realidade de tudo o que existe está ontologica-
mente fundada na manifestação do sagrado. O real, o profundamente real é o sagra-
do. O sagrado tem consistência em si mesmo e garante a realidade de tudo o que
vem a ser no mundo natural e no mundo histórico.

O sagrado é um elemento inerente a estrutura da consciência - não é um es-


tado de consciência nem uma parte da consciência humana. Um desafio maior da
época atual consiste em descobrir novas vias para reativar este elemento em nossa
cultura, que amplamente ocultou tudo o que concerne ao espírito, ao sagrado e ao
místico (DROUT, 1999, p. 155).

56
As religiões ayahuasqueiras encontram-se inseridas no fenômeno da “nova
consciência religiosa que se caracteriza como um movimento de reencontro com o
sagrado, que se aproxima e dialoga com o movimento filosófico-psicológico do auto-
conhecimento, um caminho para o conhecimento espiritual e seu desenvolvimento
(BOMFIM, 2002). O homem contemporâneo conserva em si traços arcaicos oriundos
do inconsciente coletivo, e com isso sentimentos de uma valorização sagrada do
mundo. Por isso, hoje esses movimentos da nova consciência religiosa estão em al-
ta.

O Sagrado se manifesta principalmente na natureza e através dela. Nas soci-


edades arcaicas os homens têm maiores possibilidades de viver o sagrado, princi-
palmente porque nessas sociedades o contato com natureza se dá em praticamente
em todas as áreas da vida.

Através do reencontro com o sagrado, está ocorrendo uma revalorização de


uma vida natural e do respeito à natureza, como resgate ao principio do sagrado fe-
minino, da mãe terra, da Rainha da Floresta, de Gana.

Mudanças nas relações com a natureza. A idéia de natureza, como sendo


uma força protetora para o homem é central na cosmologia daimista. Em
qualquer das suas manifestações -astros, animais, vegetais, minerais- a na-
tureza seria uma fonte de mistérios nos quais o homem, estando em “sinto-
nia com ela” poderia aceder. Os daimistas iriam descobrindo as benções da
natureza e teriam permanentemente uma atitude de preservação em rela-
ção a ela (PELAEZ, 2006).

Inclusive muitos hinos do Santo Daime falam sobre a importância do contato


com a natureza, que é a fonte sabedoria. Com a Ayahuasca o sagrado se manifesta
na natureza e através da natureza. Está ocorrendo um resgate da relação homem-
natureza, que é também um resgate do homem consigo próprio.

Esse resgate é conseqüência do longo processo histórico de devastação da


natureza, desmatamentos, violência contra animais, poluição, extrativismo predatório,
gerando a necessidade de um resgate cármico, com a natureza

Como exemplo do retorno ao sagrado e a vida natural, temos o Céu do Mapiá,


que é uma comunidade no coração da Floresta Amazônica, ponto de convergência

57
do Santo Daime (CEFLURIS). Lugar onde tem-se oportunidade de viver o sagrado
com muito mais intensidade do que nas cidades. “En el centro del culto, o Céu do
Mapiá, se vive en un estado numinoso que tiende a ser constante (LAVAZZA,
2007)”.

Essa comunidade “tenta recriar um modo de vida em comunhão com a natu-


reza e com os ensinamentos da floresta, criando uma existência em que os
cuidados cotidianos e a conexão com o divino passam pelo uso de uma
planta sagrada. A ingestão de ervas na floresta amazônica parece-nos um
costume normal, bem adaptado à maneira de viver dos habitantes da selva.
A preocupação dos residentes do Mapiá é grande porque a destruição da
floresta tropical ameaça não apenas um numero incalculável de espécies
vegetais, mas ainda a cultura dos homens que conhecem as sua proprieda-
des e as utilizam em sua vida cotidiana (DROUOT 1999, p. 95, 98).

No Céu do Mapiá a vida gira em torno do propósito da Doutrina, e os cuidados


com a vida cotidiana, se mesclam com os trabalhos espirituais. A vida em comunhão
com a natureza é a constante e os moradores buscam estratégias para a preserva-
ção ambiental e para uma vida comunitária digna e organizada, ao mesmo tempo em
que se dedicam aos trabalhos espirituais, que acontecem praticamente todos os dias.

58
3 POTENCIALIDADES TERAPEUTICAS DO USO RITUA-
LÍSTICO DA AYAHUASCA

Desde os primórdios, a utilização da Ayahuasca possuiu função terapêutica.


Estando relacionada a práticas xamanísticas, a bebida foi desvendada através da
sabedoria dos indígenas que se utilizam, dentre outras coisas, da arte de reconhecer
e selecionar as plantas, preparando-as e fazendo as combinações necessárias para
o tratamento físico e espiritual. Isso inclui também conhecimentos fitoterápicos que
conduzem a estados transpessoais e a uma maior integração entre o individuo e o
cosmos. A médica, mestra em Antropologia, Pelaez aponta que:

As propriedades curativas atribuídas ao Santo Daime não constituem um fa-


to isolado, pelo contrário, estas representações doutrinárias construídas em
torno da bebida ritual parecem reforçar os dados históricos sobre as propri-
edades dos enteógenos. Como é sabido, estas substâncias foram empre-
gadas por muitas culturas xamânicas como instrumentos de acesso a domí-
nios invisíveis vistos como sagrados, despertando sentimentos de trans-
cendência considerados terapêuticos. Mais tarde e com outras bases teóri-
cas, na Psicoterapia Psicodélica buscavam-se os mesmos resultados: pro-
curar a emergência de valores espirituais para atingir a cura de transtornos
neuróticos ou psicossomáticos. Consideramos que o traço transcultural da
“cura espiritual”, ou seja, o desenvolvimento de um sentimento de trans-
cendência, também está presente entre os daimistas. Mas em torno deste
sentimento “universal”, eles -do mesmo modo que os outros grupos- têm e-
laborado um peculiar sistema de significados que é essencial no processo
de cura (PELAEZ, 2006, p )

59
3.1 AYAHUASCA E XAMANISMO: A DESCOBERTA DOS POTENCI-
AIS TERAPÊUTICOS DA BEBIDA SAGRADA

O xamanismo existe há mais de trinta ou quarenta mil anos. É um tipo de conhe-


cimento que reflete numa das mais antigas formas de cura utilizadas pela humanida-
de. Suas raízes podem ser rastreadas até a era paleolítica, fazendo parte das cultu-
ras da América do Norte e do Sul, da Europa, da África, da Ásia, da Austrália, da Mi-
cronésia e da Polinésia, constituindo uma ciência universal (GROF, 2000).

O fato de, através da história humana, tantas culturas distintas terem achado
as técnicas xamânicas úteis e relevantes sugere que a prática da indução de estados
holotrópicos envolve, o que os antropólogos chamam de mente primal, um aspecto
básico e primordial da psique humana que transcende a raça, sexo, cultura e tempo
histórico. As técnicas e procedimentos xamânicos sobreviveram até hoje (op. cit.),

A mente primal, pode ser considerada como o Inconsciente coletivo, na visão


Junguiana. Dimensão que pode ser explorada pelas plantas de poder e pelas técni-
cas xamânicas. Drouot observa que

Hoje, um numero cada vez maior de indivíduos conscientes das realidades


ecológicas, sociológicas, religiosas e espirituais percebe que o xamanismo
foi a primeira chave que permitiu ao ser humano compreender seu meio
ambiente e viver em harmonia com ele (DROUOT, 1999, p. 149)”

Ainda sobre características de práticas de cura em sociedades arcaicas Pela-


ez destaca que:

Quando nas culturas tradicionais estes agentes eram empregados com fins
terapêuticos, não se pretendia meramente uma melhoria dos sintomas,
mas, e talvez com uma visão mais holística do homem, se buscava atingir
experiências de transcendência que restaurariam o equilíbrio entre o ho-
mem doente e seu cosmos simbólico. Como o transtorno orgânico coloca-
va-se num segundo plano, a remissão sintomática não era necessariamente
um indicador da cura, nem a morte do paciente marcava o fracasso do tra-
tamento (PELAEZ, 2006, s/p).

60
O tratamento xamânico engloba o ser humano de uma forma holística. Por e-
xemplo, entre os xamãs Quichua, índios sul-americanos, conhecidos como ayahuas-
queros, não se faz uma distinção clara entre a cura do físico, do psicológico ou do
espiritual, pois tudo engloba o mesmo ser em contato e todas essas categorias são
interdependentes (WALKER, s/d)

A psicologia e o xamanismo possuem relação, ambos trabalham com a cura


psíquica. Cada qual com seu nível de representação e sua forma de olhar para o fe-
nômeno, que é o mesmo, o inconsciente e suas infinitas possibilidades. O que dife-
rencia uma abordagem da outra são os referenciais conceituais para interagir com o
individuo.

O Xamã é o sábio, o curandeiro, que sabe conectar vários níveis de consciên-


cia, vários mundos da psique e do espírito. Utiliza-se dos estados transpessoais do
êxtase para percorrer os mundos interiores e exteriores - em busca da cura do corpo
e da alma.

Chaves (2000) nos fala que o terapeuta ao reconhecer, vivenciar e compreen-


der a dimensão transpessoal, no sentido de trabalhar e lidar com estados alterados
de consciência, utiliza-se tanto de técnicas e abordagens desenvolvidas pela ciência
oficial, como pode utilizar-se de música, respiração, exercícios, meditação, hipnose,
visualizações, como recursos amplificadores do estado original de consciência, a fim
de promover a cura do indivíduo como um todo, nos seus aspectos psíquicos, espiri-
tuais e físicos.

Assim, o psicoterapeuta assemelha-se a um xamã, podendo-se utilizar da mani-


pulação dos mais variados elementos para produzir transformação, resgatando a u-
nidade fundamental, trabalhando os vários níveis de consciência e a mudança de
padrão e paradigma individual, promovendo o processo de Individuação, mudança
nos níveis relacionais.

Coaduna-se com essas reflexões, Zacharias (2009), quando ressalta que o


psicoterapeuta não é, no exercício de sua profissão, um xamã – embora possa traba-
lhar com os com os mesmos conteúdos psíquicos- o inconsciente. O mundo dos es-

61
píritos e o inconsciente possuem fenomenologia semelhante. No entanto, o psicólogo
abordará o trabalho com o inconsciente de um ponto de vista diferente do xamã, mas
ambos os conhecimentos são complementares.

3.1.1 FUNÇÃO TERAPÊUTICA DA AYAHUASCA

Conforme pareceres oficiais (Parecer técnico-científico sobre o uso da Ayahuas-


ca ou “Chá Santo Daime”), a utilização da Ayahuasca, dentro de um contexto bem
direcionado e responsável, não traz nenhum tipo de malefício à saúde, não gera de-
pendência. Ao contrário, de acordo com Silva Sá (1996, s/p): Podemos constatar os
efeitos integradores e re-estruturantes do Daime com indivíduos que antes de parti-
ciparem dos rituais apresentavam desajustes sociais ou psicológicos.

Os estados transpessoais através da Ayahuasca conduzem a organização e


re-elaboração psíquica em busca de uma melhor qualidade de consciência. O conta-
to com níveis transpessoais de consciência auxilia o processo de cura psíquica e de
mudança da personalidade.

De acordo com MALUF (2003), a dupla implicação entre o terapêutico e o es-


piritual é uma característica recorrente nas religiões ayahuasqueiras. Uma dimensão
religiosa está presente no trabalho terapêutico, assim como um sentido terapêutico é
dado aos rituais (expressões como "o Daime é a cura" são exemplos disso).

As pessoas que se utilizam da bebida continuam lúcidas, e não relatam expe-


riências sem sentido, ou de puro divertimento. De acordo com os relatos, elas come-
çam a vivenciar uma compreensão mais aprofundada da vida e de si mesmo. A Aya-
huasca só não é recomendada a pessoas com personalidades esquizóides e pré-
psicóticas; neuróticos com instabilidade de identidade e níveis altos de ansiedade,
como a síndrome do pânico (PELAEZ, 2006).

As experiências advindas do uso ritual da ayahuasca são profundamente


transformadoras, pois permitem uma re-visitação intensiva e absorta dos conteúdos
mentais, recordações, idéias, fantasias, pensamentos, emoções, medos, esperan-
ças, sensações em gerais.

62
Os condicionamentos, os sentimentos reprimidos e traumas podem natural-
mente emergir no trabalho espiritual para se tornarem conscientes. Entrar em contato
com esses conteúdos pode produzir sentimentos desconfortáveis. Porém, ao focar
diretamente nos sentimentos negados, mantendo-se sem apego ou aversão, abre-se
uma possibilidade de eles irem aos poucos se dissipando (STORALOFF, 1999).

Essas experiências são percebidas como re-elaboradoras da vida psíquica,


pois permite que os indivíduos façam releituras do seu conteúdo interno, que de a-
cordo com o nível de consciência são capazes de integrar o desenvolvimento emo-
cional, psicossocial e espiritual dos indivíduos, por isso possui valor terapêutico.

Em experiências transpessoais com Ayahuasca, outros dos conteúdos que


podem ser trabalhados é a diluição de padrões egóicos limitantes. Processo que po-
de ser bastante doloroso, tratando-se de uma espécie de morte iniciática. “A “morte
iniciática” tem a ver com o fim do homem natural, rotineiro e preso as tarefas de con-
formação social, para que por meio do “processo místico”, se converta em um outro,
em um ser espiritual (DALGARRONDO 2008, p. 26)”.

Assim, o homem renasce com uma nova vida e uma nova forma de perceber a
si próprio e a vida, adequando o ego para ficar apto de atuar cada vez mais integrado
com níveis mais elevados de consciência; - a diluição dos padrões egóicos é funda-
mental para a evolução do Indivíduo rumo a uma consciência maior de si e de sua
natureza (CHAVES, 2000). Maluf destaca também que:

É através dessas experiências que o indivíduo pode "aprender e se trans-


formar". O sofrimento é percebido como um instrumento e uma possibilida-
de de aprendizado e de transformação pessoal [...] De modo geral, o traba-
lho com Ayahuasca descreve todo o esforço terapêutico e espiritual, indivi-
dual ou coletivo, para superar o mal-estar e as suas causas: as dificulda-
des, os medos, os "padrões de comportamento". O resultado desse esforço
seria um processo de transformação, de mudança, no qual, o "velho Eu", na
linguagem nativa, dará lugar a um "novo ser" (MALUF, 2003 s/p)

As experiências profundas com a Ayahuasca são capazes de nos levar a


transcender os condicionamentos e padrões de comportamento que possuímos. A-
través dos processos envolvidos, cria-se um estilo de vida voltado para o autoconhe-
cimento, sendo este considerado como fator fundamental para a cura:

63
Quem cura para mim é a fé da pessoa e o auto-conhecimento. Então claro
que já me curei de muita coisa tomando daime. Para mim o Santo Daime é
um trabalho espiritual de auto-conhecimento, de a pessoa poder curar ela
de suas coisas. (Depoimento de M. B fardado do Santo Daime, AVAL);

A capacidade de me auto-conhecer e uma certa maturidade adquirida atra-


vés do uso da ayahuasca é por mim considerado como cura. Sei que tenho
muito que melhorar, mas já me sinto feliz e satisfeito com os ensinos que
essa bebida e a doutrina do Santo Daime tem me dado (depoimento de J.
P fardado do Santo Daime).

As pessoas ao entrarem em contato consigo mesmas e ao se conscientizaram


do que é melhor vão realizando as transformações naturalmente, se modificando e
se melhorando e fazendo escolhas que contribuam para o seu desenvolvimento ple-
no. Pelaez observa que:

Cada história de cura é única nas suas características, com situações pecu-
liares e tempos diferentes para cada um. Porém, nos diversos relatos dos
daimistas descreveram-se mudanças similares reconhecidas por eles como
indicadores concretos e visíveis das suas curas espirituais. A principal
transformação na vida dos daimistas, e da qual decorreriam todas as ou-
tras, seria o sentimento de ter acordado, que lhes possibilitaria reconhecer
a existência de um mundo invisível que daria um “verdadeiro” sentido à rea-
lidade aparente. A partir desta convicção, expressam ter maior “consciên-
cia” nos seus atos de vida, sentem também aumentada a capacidade de au-
tocrítica e a disposição para modificar pensamentos e condutas vistos como
errados (PELAEZ, 2006).

O depoimento de Lourdes, fardada do Essência Divina, nos deu uma boa con-
tribuição do processo de mudança de valores:

O estilo de vida também muda, mas não porque estão dizendo o que você
vai fazer, nem o grupo está forçando. Mas você vai ter a compreensão do
que é melhor. Você começa a despertar. Pois como vai transformando o
que inconsciente em consciente, vai se conscientizando. A sua autoconsci-
ência vai aumentando cada vez mais. Na medida em que aumenta você vai
e percebendo o que é melhor pra você. Por exemplo, se é melhor pra você
não comer carne, você não come. Mas não tem ninguém que diga: você não

64
vai comer carne! Todas as culturas e estilos de vida são respeitados. Por
exemplo, você é protestante e chega lá “seja bem vinda”.

Ao acessar com mais facilidade os nossos conteúdos internos, podemos nos


reavaliar, nos compreender nos conhecer. A compreensão é interior, os ensinos vêm
de dentro pra fora. Não é preciso que alguém, uma figura externa diga o que fazer
como normalmente estamos acostumados, pois as resoluções são “ditadas” por uma
voz interior, que orienta.

Helena, um visitante do Santo Daime, nos fala:

Com o daime eu aprendi coisas muito interessantes. Passei a prestar mais


atenção nas coisas que estavam acontecendo comigo, no que eu podia me-
lhorar”. Sobre a experiência de cura ela fala que “não é bem curar, mas a-
cho que o daime acelerou coisas que eu queria entender, que aconteciam
comigo, até os comportamentos mesmo, que fica mais claro durante a ses-
são. É como se você passasse a prestar mais atenção em você mesmo, o
que acontece com você...”

A Ayahuasca desperta para essa voz que existe em cada um de nós e tam-
bém nos serve de espelho que nos faz reconhecer nossos mecanismos de defesa,
nossas máscaras, além de nos proporcionar insights transformadores.

As transformações interiores acontecem somente com a compreensão e o es-


forço de cada pessoa. O desenvolvimento interior não depende somente do uso de
uma planta ou substância, embora elas possam ser úteis para descobrir o caminho.

Elas podem revelar os erros de nossos comportamentos e percepções, que estão


gerando sentimentos desconfortáveis e reações inadequadas, e tem a capacidade
de mostrar como tais erros podem ser corrigidos. Quando voltamos a errar, ao pon-
to de perder energia e motivação, eles podem nos dar novo fôlego e renovar nossa
inspiração e determinação (STORALOFF, 1999).

As pessoas, após o uso da Ayahuasca, reconhecem ter tido mudanças nas


suas personalidades, nas suas relações com o corpo, nas suas relações com a soci-
edade, nas suas relações com a natureza e nas suas concepções de trabalho.

A Ayahuasca permite o reconhecimento e a resolução de conteúdos inconscientes,


e a dissolução da compartimentagem interna, a revelar mecanismos de defesas di-
versos como “projeção”, “negação” ou “deslocamento”. O gerenciamento emocional

65
produtivo dessa reavaliação, a reorganização psíquica, implica um grau suficiente
de equilíbrio e bom senso e a e dissolução dos conflitos internos (BARBIER, 2003 p.
3).

A motivação necessária para a mudança é dada, devendo cada um com seu


próprio esforço colocar em pratica o aprendizado obtido nos trabalhos. O potencial
terapêutico da Ayahuasca, não significa em si mesmo a transformação. O resultado
do trabalho é uma composição em via-de-ser, cuja realização depende das relações
e interações implicadas entre o individuo, o ambiente, a substância e as mudanças
exercitadas na vida cotidiana.

A Ayahuasca como “tecnologia de sagrado” (GROF, 2000) não é o único cami-


nho e não realiza sozinha os benefícios. Ela mostra, desperta, proporciona compre-
ensão. O resultado, entretanto, depende da integração entre a experiência e os es-
forços de mudança de cada um. Tais substâncias são apontadores do caminho; en-
tão devemos trabalhar com uma intenção séria de alcançar os estados que são mos-
trados como possíveis.

Receber uma luz não é igual a aplicar essa luz no dia a dia. Não há cone-
xão inerente entre uma experiência mística de unidade e a expressão ou
manifestação daquela unidade na vida cotidiana. Este ponto é talvez óbvio,
contudo freqüentemente esquecido por aqueles que debatem se, em princí-
pio, um agente psicoativo pode ou não ter valor no âmbito da busca espiri-
tual. Qualquer que seja a fonte ou a origem da iluminação, as revelações só
poderão ter efeitos práticos com a permissão e dedicação do individuo
(BARBIER, 2003).

Vivências com Ayahuasca abrem possibilidades e revelam uma amplitude iné-


dita, outras faces, prismas da realidade, e valoriza diretamente as vivências cotidia-
nas. O que as permite caracterizar são os depoimentos das pessoas acerca de suas
experiências, que situam-se além de toda e qualquer experiência vivida até então.

A partir dessas vivências, as pessoas passam por importantes modificações


em suas formas de viver a vida. O depoimento de Ana Aparecida, fardada do Santo
Daime, vem ao encontro de nossas reflexões:

Depois do daime, posso me considerar um ser em busca do aperfeiçoa-


mento e do meu despertar pleno e claro. Quanto mais se aprende mais res-

66
ponsáveis nos tornamos por todos os nossos atos e pensamentos, então a
cada trabalho temos uma lição e com isso uma aprendizagem e a vida é a
prova. Essa mundão é muito cheio de coisas e temos que saber bem direi-
tinho o que vamos escolher para dar a prova. Hoje eu sei que sou uma pes-
soa melhor, uma mãe melhor, uma filha melhor, uma neta melhor, uma ami-
ga melhor, essa melhora é a cada dia, não estou aqui dizendo que me tor-
nei santa não, nem que o daime me fez santa, me faz melhor a cada dia,
todo dia um pouquinho conforme eu vou merecendo, conforme minhas no-
tas. Além de ter na minha vida um ser em forma de liquido que cura a maté-
ria e a alma. Eu digo que o daime vem curando minha alma e minha mente.
Como maestro que rege uma orquestra, Ele vem me mostrando em cada
nota de cada hino, em cada miração, que é pra ver se eu chego lá um dia,
na condição de ser humano, uma pessoa saudável, feliz, vencedora, cari-
dosa, humana, enfim, um ser virtuoso e de bem com a vida e com a morte
da matéria.

Mais uma vez, ressaltamos que não é a Ayahuasca por si mesma que propor-
ciona as diversas transformações. É necessário um trabalho árduo de mudança de
atitudes, valores e comportamento, um processo que é facilitado efetivamente pela
intenção aprofundada e o comportamento retrabalhado na vida cotidiana. Demons-
trando assim que o resultado positivo advém do esforço para fazer as mudanças de
comportamento que foram indicadas, uma vez que é preciso se reavaliar para se
transformar, e conhecer-se para resgatar a si mesmo. Segundo Pelaez,

A cura, então, é mais uma transformação espiritual do que a desaparição


dos sintomas da doença. Achterberg descreveu deste modo o processo de
cura: é entrar num momento no qual se sente a verdade extática de estar
absoluta e totalmente unido a todos os aspectos da criação. (PELAEZ,
2006)

Cris, fardada do Santo Daime, nos relata uma importante vivencia de cura físi-
ca, inclusive narrando o seu encontro com uma entidade espiritual, bastante conhe-
cida no cenário do Espiritismo Kardecista:

Eu fui pro trabalho com muita dor de cabeça, onde só eu estava cantando o
hinário. Tinha varias pessoas, mas o único violeiro era o meu companheiro
e a única que cantava era eu. Era trabalho de concentração. Minha cabeça
doía muito. Em um momento do trabalho vi por traz de mim Dr. Fritz mexen-
do na minha cabeça. Meus cabelos arrepiava todinho, fechei o olho conti-

67
nuei cantando e deixei acontecer. [e como você sabia que era o Dr. Fritz?]
Ele falou pra mim: eu sou Dr. Fritz e vim te curar. Ele tava todo de branco
com aquele negocio que os médicos usavam na testa, tipo uma lanterna. [e
como era a sensação e o que você via?]. Só via ele atrás de mim, a mão na
minha cabeça. Não senti medo, nem dor. [Você sabe do que ele te curou?]
Não exatamente , mas a minha dor de cabeça, que estava me incomodando
há muitos dias passou. .

Abaixo, o depoimento de Amélia, membro do Essência Divina, revela a rever-


são do quadro grave de síndrome de West do seu filho. Ela não conhecia a Ayahu-
asca até então, nem acreditava em Deus e nem nas coisas espirituais. Para ela, tudo
se resolvia na matéria. Através da Ayahuasca, a mulher que, de acordo com suas
próprias palavras, era cética e racionalista, mudou seu paradigma de visão de mun-
do, ao mesmo tempo em que seu filho pôde recuperar a saúde.

Meu filho nasceu bem a priori, mas aos 10 meses, começou a manifestar
umas crises convulsivas muito fortes. E mais tarde depois de muita agonia,
busca por médicos, foi diagnosticado como síndrome de West que ataca
principalmente nos meninos e a principal característica são as convulsões e
também retardo mental. Ele passou por esses estágios todos inclusive ten-
do 23 convulsões diárias. Esse processo durou nove anos e era controlado
à custa de fortes medicamentos. Aos nove anos de idade tava tendo crises
neurológicas tão grandes que quando atacava ele chegava a pular 1 metro
e meio de distancia. Estávamos cogitando a possibilidade de começar a
usar capacete nele. Ele tinha dificuldade de relacionamento e também na
educação. Tinha necessidade de uma educação especial, mas os professo-
res não estavam capacitados para atendê-lo... enfim... Já tínhamos percor-
ridos muitos neurologistas sem sucesso.

Com a grave doença do seu filho, ela decide encarar a possibilidade de usar A-
yahuasca,

[...] Nessa época eu já tinha ouvido a falar da ayahuasca, pois tinha um


membro da família que já tomava. Mas eu tinha minhas resistências, acha-
va que era coisa de maluco tomar um chá não sei aonde... E outra coisa, eu
sempre fui muito da razão. Para mim as coisas se resolviam no plano mate-
rial mesmo e se tinha uma solução para o meus filho era nos médicos e não
na religião, Mas ai eu fui num trabalho com ayahuasca e só depois de um
ano eu comecei na borracheira a me concentrar no caso especifico do meu

68
filho. E me apareceu muito consciente no trabalho a vontade de tirar a me-
dicação dele. Eu me lembro de estar querendo saber se eu deveria fazer
isso. Mas essa resposta não me veio claramente do tipo tire ou não tire. A
minha resposta veio na forma de outra pergunta:” você confia? Se confiar...”

Amélia então descreve como decidiu suspender tratamento alopata:

Daí eu fiz uma opção arriscada na época. E resolvi tirar a medicação dele.
O meu filho também já tomava uma quantidade muito pequena do chá nes-
ses trabalhos e eu já havia percebido melhoras e mudanças no quadro da
doença... as melhoras foram imensas, não no sentido das crise, mas princi-
palmente no aprendizado e nos relacionamentos com outras pessoas. Ele
tinha muita dificuldade de aprendizado na época, melhorou muito. Foi nes-
sa época que ele começou a se alfabetizar. Eu tirei a medicação contra to-
da orientação medica. Em outra época tiramos a medicação para ver se ele
sustentava sem crises e ele não sustentou. Precisando passar uma época
pra controlar as crises ele teve que passar por um estagio de coma induzi-
do. A fase que eu fui para a Ayahuasca foi justamente no período pós esse
coma. E quando tirei a medicação para surpresa dos outros e não a minha,
ele não teve mais nada. Esperei três meses e fiz outros exames novamente,
depois de um ano que meu filho estava na ayahuasca, foi o único exame
que deu normal. Novamente fiz outros exames que também deram normal.
A eletricidade do cérebro dele está estabilizada. Inclusive a medica comen-
tou que a fase que o meu filho está é a pior e ficou muito surpresa quando
viu que ele.

O entendimento proporcionado pela Ayahuasca da doença do seu filho e da


sua relação com ele também aumentou, possibilitando uma melhor elaboração do
problema e consequentemente, um melhor enfrentamento da situação. Ao passo que
nesse momento ela passou a aceitar a presença de um Ser Superior que poderia lhe
ajudar nesse momento :

Espiritualmente compreendi que era um processo meu de resgate com ele.


Entendi que eu estava passando por um grande teste como mãe, esse vin-
culo sagrado mãe e filho estava passando por uma provação, um resgate.
Eu tive duas alternativas quando recebi o resultado do exame quando meu
filho tinha 10 meses: uma era deprimir e desistir de lutar ou cair em campo.
Até eu me surpreendi com minha própria força. A minha família muitas ve-
zes sofria até mais que eu, pois era uma situação tão agressiva de lidar. Eu

69
pensava: “se tiver cura pro meu filho, eu vou achar” eu e meu filho sempre
tivemos uma ligação muito forte. Devido ao seu retardo mental, ele possuía
uma dificuldade muito grande de comunicação com todos, menos comigo.
Ele possuía um comportamento autista e eu pensava “se ele não vem pra o
meu mundo, eu vou para o dele. Então tudo o que ele fazia, eu imitava para
ver se eu estabelecia uma linguagem e funcionou. E começamos nos falar,
interpretava os gestos e o nosso vinculo aumentou.

Eu mandei diversas cartas para médicos do mundo inteiro narrando o


caso do meu filho e pedindo ajuda e a resposta era: seu filho é doente men-
tal e a sua vida vai ser essa. A idéia era controlar as crise, porque com me-
nos crises, menos doente mental. Mas não conseguíamos controlar a crise.
Então tínhamos a certeza que ele ia ficar doente mental. Quando eu estava
na UTI com meu filho recebi uma carta da mãe de um paciente que dizia:
“sabe por que seu filho ainda não está curado? Porque você nunca pedia a
quem pode fazer por você. Você acredita demais nas coisas da terra. Ai eu
fiquei pensando... como aquela mulher que não me conhecia podia estar
dizendo aquilo de mim (que realmente fazia todo sentido)? Ela falou exata-
mente a verdade, eu nunca pedia a Deus. E comecei a pensar na possibili-
dade de haver um Deus e pedir a Ele” (A. fardada do Essência da Divina)

Esse é um caso ilustrativo do potencial terapêutico da bebida nua situação de


reversão da doença de uma criança e da mudança na visão de mundo da mãe. Atra-
vés da bebida e do suporte psicológico e espiritual que foi proporcionado pelo grupo
do Essência Divina, o uso terapêutico da ayahuasca foi eficaz. Esse fato interferiu na
estrutura familiar. Atualmente toda a família, inclusive a criança, comunga essa bebi-
da.

O fato de pertencer a um grupo espiritual de apoio também é importante, pois


a cura não advém somente da Ayahuasca, mas do contexto e do propósito a que se
recorre ao utilizá-la. Nesse sentido, tivemos o depoimento de Vânia, fardada do Es-
sência Divina, que relatou a melhora do quadro de esclerose múltipla que possuía
há dezessete anos, quando durante um ano dão uso regular da Ayahuasca nos ritu-
ais, melhorou consideravelmente, diminuindo os sintomas.

De acordo com pesquisas atuais, a ayahuasca também pode ser eficaz no tra-
tamento de dependência química e outros sintomas psicopatológicos, como a de-
pressão. Ricciardi nos fala sobre esse contexto:

70
Não só os grupos terapêuticos, mas também as religiões que fazem uso de
enteógenos apresentam considerável sucesso com adeptos em dificuldades
com dependência de álcool e drogas. Muitos adeptos da UDV, Santo Dai-
me e Barquinha, dizem que melhoraram seus problemas com álcool e dro-
gas fazendo o uso da Ayahuasca em rituais religiosos. Em uma investiga-
ção sobre usuários da Ayahuasca no Brasil, o psiquiatra C. Grob (1996),
concluiu que 73% dos participantes haviam sofrido de toxicomanias no pas-
sado, e que em todos os casos haviam sido completamente curados ao par-
ticipar regularmente de cerimônias com a Ayahuasca. A partir daí se torna
evidente que existe uma relação entre o uso de enteógenos, (no caso estu-
dado a Ayahuasca) e a sua eficiência como facilitadora para o tratamento e
cura de dependência de drogas em diferentes contextos: rituais e terapêuti-
cos (RICCIARDI, 2008, p.113).

Para Labate (2008), devido as potencialidades terapêuticas da Ayahuasca no


que se refere ao tratamento de pessoas drogadictas, abriu-se um campo de estudo
voltado para o tratamento e re-integração dessa pessoas.

A aparente melhora de muitos casos de abuso e dependência de substân-


cias psicoativas, segundo o relato de vários grupos terapêuticos e religiosos
voltados para o uso ritual da ayahuasca, bem como de antropólogos, psicó-
logos e psiquiatras que estudam o tema, representa um fenômeno de saúde
promissor. Esse pode ser melhor compreendido a partir de estudos interdis-
ciplinares sistemáticos que combinem a abordagem quantitativa com uma
sutileza qualitativa e etnográfica. Tal esforço interdisciplinar deve ser a-
companhado também de uma tentativa de diálogo com os saberes nativos,
colaborando para que o conhecimento adquirido durante décadas pelos di-
ferentes grupos que utilizam a ayahuasca no tratamento da dependência
auxilie futuros estudos clínicos de terapias psicodélicas voltadas para abor-
dar o problema (LABATE, 2008, p. 29)

Labate é uma das pioneiras pesquisadoras do fenômeno do uso da Ayahuas-


ca nos centros urbanos. De acordo com suas pesquisas, existem atualmente dois
principais centros de tratamento para a dependência que utilizam a ayahuasca: o Ta-
kiwasi no Peru, e o Instituto de Etnopsicologia Amazônica Aplicada (Ideaa), localiza-
do próximo a comunidade do Céu do Mapiá na Amazônia.

O Takiwasi, é a principal referência até o momento no tratamento da depen-


dência química através do uso da ayahuasca. A ênfase principal é no tratamento do

71
abuso da pasta-base de cocaína, conhecida como mescla, consumida em larga es-
cala na região. O modelo do Takiwasi segue mais o de uma clínica de tratamento de
dependentes, com forte isolamento, disciplina rígida e espírito contrito

De acordo com Labate, nesse centro, curandeiros locais, médicos, psicólogos


e terapeutas exploram os potenciais curativos das terapias ocidentais juntamente
com técnicas oriundas das terapias tradicionais amazônicas, utilizando a ayahuasca
e outras técnicas xamânicas além da vida comunitária, atividades manuais e artísti-
cas, e psicoterapia. O seu programa é bastante extenso, durando necessariamente
nove meses tendo as suas atividades exclusivamente voltadas para o atendimento
de dependentes se apoiando sobretudo, no estilo de sessão de ayahuasca do vege-
talismo ayahuasqueiro peruano. Jacques Mabit, o seu fundador, possui um discurso
ortodoxista de manutenção da tradição xamânica amazônica no tratamento dos de-
pendentes.

O Instituto de Etnopsicología Amazónica Aplicada (Ideaa), criado pelo médico


psiquiatra barcelonês Josep María Fábregas, combina técnicas terapêuticas deriva-
das das tradições xamânicas ameríndias, da religião do Santo Daime, das escolas
das terapias gestáltica e da psicologia humanista e transpessoal. O programa tera-
pêutico inclui trabalho manual, sessões de ayahuasca e sessões de integração da
experiência em grupo, bem como interações como a comunidade vizinha daimista do
Céu do Mapiá. O programa contempla também sessões individuais com a ayahuas-
ca, bem como práticas contemplativas orientais, tais como Meditação Zen e a Yoga.
O Ideaa trata, sobretudo, de problemas ligados a dependência, mas também são re-
cebidos pacientes com outros distúrbios de ordem psicológica e física. São aceitos,
ainda, pacientes saudáveis que vêm em busca de “autoconhecimento” ou “desenvol-
vimento pessoal” (LABATE, 2008, p. 23).

No Santo Daime, um de seus principais lideres o Padrinho Sebastião, e o Sr


Wilson Carneiro (contemporâneos do Mestre Irineu), segundo relatos, também rece-
beram as sua curas através do Santo Daime:

É interessante notar que ambos foram desenganados pela medicina oficial


e não sabemos exatamente que doença tinham, mas apenas que os dois
sofriam de enfermidade no estomago. Segundo os dois, depois de terem
tentado tudo que conheciam (leia-se além da medicina oficial, centros espí-

72
ritas, curandeiros, rezadores) foram operados espiritualmente e alcançaram
a cura depois de beberem o Santo Daime com o Mestre Irineu (OLIVEIRA
2008, p. 24)

Há relatos de outros grupos, centros e personagens que contam casos de cu-


ra por meio da Ayahuasca, embora este não seja o seu foco central. Há uma espé-
cie de senso comum de que o “Daime cura”.

Cris, fardada do Santo Daime, nos relata uma importante experiência de cura
num ritual do Santo Daime. Ela era fumante compulsiva e tinha enfisema pulmonar.
Após um trabalho em que vivenciou uma cirurgia espiritual, pôde se livrar do vicio, e
se curar da doença:

Essa experiência foi muito forte, até hoje está na minha mente. Aconteceu
num trabalho de cura, onde tomamos um daime bem apurado. Nessa época
eu fumava igual uma “caipora”, duas carteiras de cigarro por dia. No traba-
lho, o dirigente me deu meio copinho de café (aqueles copinhos de plástico
pequeno). Quando chegou naquele hino: "Os espíritos estão chegando pela
linha devagar..." [ela faz referência a um dos hinos cantado no trabalho de
cura do Santo Daime]...Ai eu fui pro chão... [Caiu mesmo? Tombou? ]...Me
deitei normal. Quer dizer nem tanto normal. Assim que me deitei eu senti o
cheiro do daime empreguinando no salão e uma nevoa. Quando fechei os
olhos vi vários seres operando meu pulmão, escutei ate o barulho de ins-
trumentos cirúrgicos. Eu vi uma panela de ferro queimando toda preta e sa-
indo muita fumaça e o fogo em baixo dessa panela. Ai eles tiravam uma coi-
sa preta do meu pulmão. Eu sentir muita falta de ar e vomitava. No vomito
eu via varia baganas de cigarro. Parecia que eu ia morrer, fiquei um pouco
assustada, mas estava consciente que era uma cura. Eu ainda fiquei uns
três meses em trabalho, sentindo as conseqüências daquela experiência.
Eu tomava daime e não ficava nem em pé de tanta fraqueza. Eu tinha enfi-
sema pulmonar e o daime me curou.[Foi curada de enfisema no daime?]
Sim esta cirurgia foi isso. Nem precisei ir pra medico. [depois você fez al-
gum exame para comprovar?] Os médicos do astral me garantiram... Tu já vi
pobre ir pra medico?[risos] Pobre tem que ter fé mana. Eu acredito muito no
poder do daime como remédio. Ate hoje eu não suporto cigarro.

Outras das importantes pesquisas realizadas atualmente foi uma sobre o tra-
tamento da depressão com Ayahuasca, da USP de Ribeirão Preto-SP. O contexto

73
da pesquisa é totalmente desvinculado do contexto ritual, da sacralidade, realizado
num contexto biomédico de laboratório.

O "chá do Santo Daime", originário da Amazônia e empregado em rituais


religiosos, tornou-se a base de uma pesquisa inédita bem-sucedida da USP
(Universidade de São Paulo) de Ribeirão Preto para tratar pacientes com
depressão.O projeto-piloto foi feito com duas mulheres com problemas crô-
nicos de depressão, que tomaram uma dose do chá e relataram melhora
imediata. A idéia agora é estender o estudo para 60 pacientes, com dosa-
gens repetidas. Depois da Universidade Federal de Santa Catarina fazer
pesquisas com camundongos, a USP testou o chá nas duas mulheres na
faixa dos 50 anos que têm sintomas como perda de apetite, desânimo e
choro.Elas tomaram 200 ml (um copo) da bebida e ficaram em observação
por três dias. "No mesmo dia as pacientes já estava melhores, e no segun-
do dia diziam que não estavam mais depressivas, que as cores da vida ti-
nham voltado", disse Jaime Eduardo Hallak, professor do Departamento de
Neurociência e Ciências do Comportamento da Faculdade de Medicina da
USP. Após três dias, foi ministrado às pacientes antidepressivo comum,
"porque ainda não há evidências do efeito permanente da ayahuasca".
"Mas elas acharam a experiência positiva e disseram que gostariam de to-
mar mais." O médico agora aguarda nova autorização do Comitê de Ética
do HC de Ribeirão para ministrar o chá a 60 pacientes em doses repetidas
e em intervalos pequenos. A ayahuasca contém duas substâncias - harmina
e dimetiltriptamina. A harmina é uma espécie de antidepressivo, mas o que
causa o efeito imediato é a dimetiltriptanima, que gera o equivalente a um
banho de serotonina no cérebro.O segredo do Santo Daime, diz Hallak, es-
tá na rapidez: o efeito é mais imediato, por exemplo, do que tomar um com-
primido de antidepressivo (COISSI, 2008)

Será que a bebida é apenas uma substância com propriedade químicas, que
serviria como mais um medicamento? Será que vale a pena descartar a sacralidade
inerente a bebida e desvincula-la de seu contexto espiritual e divino?

Uma abordagem desse tipo é no mínimo simplista visto que, como já foi dito,
os processos a que a Ayahuasca conduz são principalmente espirituais, ao invés de
materiais e orgânicos e conduzem principalmente a experiências transpessoais, de
onde se origina as curas.

74
A importância desses estudos não pode ser descartada, pois eles contribuem
para legitimidade cientifica do potencial terapêutico da ayahuasca, nos moldes da ci-
ência ocidental. O que não se pode é reduzir a ayahuasca as suas propriedades psi-
cofarmacológicas e neuroquímicas apenas.

Devido as potencialidades terapêuticas que são inerentes a Ayahuasca, seu


uso conduz a Saúde Mental. ”A Organização Mundial de Saúde afirma que não existe
definição "oficial" de saúde mental. Diferenças culturais, julgamentos subjetivos, e
teorias relacionadas concorrentes afectam o modo como a saúde mental é definida
Admite-se, entretanto, que o conceito de Saúde Mental é mais amplo que a ausência
de transtornos mentais (MEDIONDO, 2004, p. 158)”.

Saúde Mental pode ser definida como o equilíbrio emocional entre o


patrimônio interno e as exigências ou vivências externas. É a capacidade de
administrar a própria vida e as suas emoções dentro de um amplo espectro de
variações sem contudo perder o valor do real e do precioso. É ser capaz de ser
sujeito de suas próprias ações. É buscar viver a vida na sua plenitude máxima

Os seguintes itens foram identificados como critérios de saúde mental:

- Atitudes positivas em relação a si próprio

- Crescimento, desenvolvimento e auto-realização

- Integração e resposta emocional

- Autonomia e autodeterminação

- Percepção apurada da realidade

- Domínio ambiental e competência social;

O conceito de Saúde Mental abrange a forma social de viver, que inclui as


concepções sobre a existência, Deus, morte, amor e felicidade, relacionamentos,
pactos sociais e está intimamente relacionado a capacidade de realização em todos
sentidos.

É sempre evidente uma mudança nos valores individuais entre os adeptos da


Ayahuasca, a revalorização de uma vida voltada para natureza, a mudança de hábi-

75
tos alimentares, o desprezo aos vícios, ou seja, a elaboração de uma nova forma de
ser e estar no mundo, que consequentemente acarretam a uma mudança na relação
com o outro.

3.1.1.1.1 AYAHUASCA A CAMINHO DO SELF

A Vida tem um sentido, sendo assim, a busca pelo desenvolvimento interior é


fundamental. Jung (1987) mostrou que o desenvolvimento espiritual e o desenvolvi-
mento psicológico fazem parte do mesmo processo. Não existe desenvolvimento psi-
cológico sem o correspondente desenvolvimento espiritual. E os dois caminhos le-
vam ao desenvolvimento do sentido ético da vida.

A Ayahuasca conduz ao sentimento do Espiritual, da percepção de que a vida vai


além da matéria, nos levando ao contato da nossa essência. Para Jung (1987), o
sentimento do espiritual é essencial ao ser humano, constituiria uma função natural e
sua ausência deixaria a psique incompleta, comprometendo o seu equilíbrio. A difi-
culdade de o homem lidar com a sua dimensão espiritual é uma negação que o im-
pede de entrar em contato com suas dimensões mais profundas.

No caminho espiritual, temos que estar preparados para entrar em contato co-
nosco, nos conhecer verdadeiramente, com nossos defeitos e virtudes, temos que
resgatar os nossos erros e buscar uma forma mais correta de viver, buscar a perfei-
ção, a ética.

Esta é a primeira prova de coragem no caminho interior. O encontro consi-


go mesmo pertence às coisas desagradáveis que evitamos, enquanto pu-
dermos projetar o negativo a nossa volta. Se formos capazes de ver nossa
própria sombra e suporta-la, teríamos resolvido uma parte do problema. [...]
O encontro consigo mesmo significa, antes de mais nada, o encontro com a
própria sombra. A sombra é, no entanto, um desfiladeiro, um portal estreito
cuja dolorosa exigüidade não poupa quem quer que desça ao poço profun-
do. Mas pra sabermos quem somos, temos de conhecer-nos a nós mesmos
(JUNG, 2000, p. 44).

76
No geral, o homem foge do encontro consigo mesmo. Muitos têm medo de se
descobrir em suas facetas, tem medo do espelho que mostra a si mesmo e também
do desconhecido.

Verdadeiramente, aquele que olha o espelho vê em primeiro lugar sua pró-


pria imagem. Quem caminha em direção a si mesmo corre o risco do encon-
tro consigo mesmo. O espelho não lisonjeia, mostrando fielmente o que
quer que nele se olhe; ou seja, aquela face que nunca mostramos ao mun-
do porque a encobrimos com a persona. Mas o espelho está por de traz da
mascara e mostra a face verdadeira (idem, p.30)

O ego é o centro do campo de consciência, aquela instancia da personalidade


mediadora entre nós e a realidade externa, não se confunde com a totalidade da psi-
que; ele é apenas um complexo dentre outros. “É oportuno, portanto, distinguir o ego
do Self, sendo o ego apenas o sujeito da consciência, ao passo que o Self é o sujeito
da totalidade da psique, que compreende o inconsciente (JUNG apud GAILLARD,
2003, p. 45)”.

O self é entendido como o centro maior da personalidade, a representação da


divindade interior que guia todo o desenvolvimento. De acordo com a visão Junguia-
na é a dissolução da falsa visão do ego, de suas identificações e de seus falsos obje-
tivos que é substituída pela consciência de que o ser humano vai além.

Compreende a totalidade da psique, no sentindo de um vir a ser, em fluxo conti-


nuo, em direção a plenitude e a integração das variadas dimensões de si mesmo. O
movimento produzido, quando o individuo vivencia a função transcendente da psi-
que, em direção ao Self, é o processo de Individuação.

Esse movimento, de acordo com Jung (1997, p. 35),

conduz à revelação do essencial no homem, onde o sentido e a meta desse


processo é a realização da personalidade originária. É o estabelecimento e
do potencial do homem, onde é capaz de atingir sua totalidade, isto é, a
capacidade de poder curar-se”.

Sobre isso, Bertolucci observa que:

77
As experiências do Self tem uma função prospectiva, transcendente, criati-
va, transformadora por isso pode trazer profundas revelações e ampliar a
capacidade de perceber e sentir a si mesmo e a vida, aumentando a capa-
cidade de auto-realização Os estados de consciência superiores” constitu-
em experiências humanas mais evoluídas, realizadoras, complexas ou cós-
micas. A experiência transpessoal, de fato representa uma modalidade su-
perior de estado de consciência, pois trata-se da experiência de centro de si
mesmo (Self), ao mesmo tempo em que Centro e fonte de toda a Vida. Nes-
sa dimensão, todas as divisões são abolidas, não há mais separação entre
sujeito e objeto, eu e outro. A vivencia dessa posição superior de consciên-
cia, mesmo por breves momentos, é altamente curativa e amplia a capaci-
dade de realização do sujeito em todos os sentidos (Bertolucci, 1991, p.
20,21).

A dimensão aberta pela Ayahuasca surpreende. É para aqueles que têm cora-
gem de penetrar numa realidade diferente e não tem medo da autotransformação
que isso implica, onde a pessoa naturalmente é levada a experienciar a si mesmo,
com seus defeitos e virtudes.

Empreender este caminho não é para muitos, é para aqueles que tiverem a co-
ragem de olhar para si mesmos em todas as suas dimensões, olhando do todo para
a pequena parte que se é e, através de uma identificação cósmica, poder limpar as
identificações limitantes, entrando num novo eixo de pensamento e possibilidades
(CHAVES, 2000).

Isso não significa que as mudanças sejam alcançadas rapidamente e com facili-
dade, o caminho é árduo. Mas sem duvida a Ayahuasca catalisa o processo, sendo
um bom atalho no caminho da renovação.

78
79
CONSIDERAÇÕES FINAIS

De acordo com o que foi demonstrado, a Ayahuasca atua na prevenção da saú-


de mental, devido aos processos psíquicos, espirituais e sociais capazes de conduzir
ao equilíbrio em indivíduos. A partir de dados empíricos, foi também demonstrado
que existem potencialidades terapêuticas em seu uso ritual e uma conseqüente mu-
dança na qualidade de vida dos seus adeptos.

Ao entrarem em contato consigo mesmas e ao se conscientizarem sobre o


que é melhor, as pessoas vão realizando as mudanças e naturalmente se transfor-
mando. Por envolver mudanças interiores de valores, os indivíduos podem se re-
inserir no mundo social com outra perspectiva e uma outra forma de atuação.

Beber Ayahuasca não é um mito, mas uma necessidade que determinadas


pessoas possuem de se auto-conhecer, se auto-compreender, de crescer e evoluir
espiritualmente

Através dos estados transpessoais alcançados a partir do uso da ayahuasca,


aliados ao contexto ritual, atinge-se um outro nível de consciência que permite o re-
conhecimento de outras dimensões da realidade, possibilitando uma reflexão apro-
fundada sobre si mesmo e sobre a vida, de acordo com princípios éticos bem defini-
dos.

Atuando, consequentemente, na transformação dos indivíduos, possibilitando


que o maior numero de pessoas façam contato e tenham experiências transpessoais
como fonte de si mesmo e do mundo, ampliando seu potencial transformador e cria-
dor da realidade

80
O ambiente, o ritual e a cultura no qual estão inseridas as pessoas adeptas
dos grupos ayahuasqueiros são responsáveis por desencadear, ou ao contrário, limi-
tar o potencial terapêutico da bebida. A vivencia da dimensão transpessoal da exis-
tência, proporcionada pela Ayahuasca, é altamente curativa e amplia a capacidade
de realização do sujeito em todos os sentidos.

É ai onde a Saúde Mental está implicada, visto que a Ayahuasca e os proces-


sos decorrentes proporcionam uma melhor qualidade de consciência dos adeptos e
consequentemente a uma melhor qualidade das relações, favorecendo assim, a uma
tomada de consciência capaz de modificar positivamente as suas vidas.

O individuo é o primeiro lugar onde devem ser realizadas as transformações.


Somente após isso, as transformações podem ser espelhadas no exterior, através de
atitudes mais conscientes e respeitosas perante a vida, ao próximo, a natureza. O
individuo é levado então, a se re-inserir na sociedade com uma nova forma de viver,
de se perceber e de tratar o próximo, em busca de uma melhoria nos diversos aspec-
tos, individuais, sociais, cósmicos.

81
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ACCIOLY, Sheila Mendes. Escatologia e Cura na Construção da Identidade


Daimista. SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE CIÊNCIAS DAS RELIGIÕES, Progra-
ma de Pós-Graduação em Ciências das Religiões – PPGCR UFPB-CCHLA, 2007.

ALVERGA, Alex Polari. Seriam os Deuses Alcalóides? Texto apresentado para


o congresso de Psicologia Transpessoal. Manaus: 1996.

ARAÚJO, Jussara Rezende. História e Histórias na Comunicação Social


dos Oasqueiros. Revista virtual arca da união, Ano 1- Número 2- setembro de
2005. Disponível em <http://arcadauniao.org/ > Acesso em: fev. 2009

BARBOSA, Paulo Carvalho. Psiquiatria cultural do uso ritualizado de um a-


lucinógeno no contexto urbano: uma investigação dos estados de consciência
induzidos pela ingestão da ayahuasca no Santo Daime e União do Vegetal no
estado de São Paulo. Dissertação de Mestrado. Núcleo de Estudos Interdiciplinares
sobre Psicoativos. Disponível em: <http:// www.neip.info> Acesso em: jan. 2008.

BARBIER Regis. Ayahuasca como opção espiritual. Disponível em


<www.aguiadourada.com/pdf/ayahuasca_opcao_espiritual.pdf.> Acesso dez. 2008

BECKER, Howard. Métodos de Pesquisa em Ciências Sociais. São Paulo:


HICITEC, 1993.

BERTOLUCCI, Eliane. Psicologia do Sagrado. São Paulo: Agora, 1991.

82
BLANC, M. F. Estudos sobre o Ser. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian,
2001.

CHAVES, Leonor. Psicologia Transpessoal, 2000. Disponível em


<http://orbita.starmedia.com/~oxigenio/out00/xamanismo.htm> Acesso em: jun 2009.

CHAMALÚ. O Clã da Lua. Curitiba: Corpo Mente, 1999.

COISSI, Juliana. USP testa chá do Santo Daime contra depressão. Jornal Folha
On line Disponível em <http://www1.folha.uol.com.br/folha/ciencia/ > Acesso em: jun
2009.

COUTO, Fernando La Roque. Santos e Xamãs. Dissertação de Mestrado em


Antropologia, Universidade de Brasília, 1989.

CRIPPA, A. Mito e Cultura. São Paulo: Convívio, 1975.

CREMASCO, M.V.F; RIBEIRO, C. S.; ELER, J. F. T. A Experiência com Aya-


huasca sob a perspectiva da Psicopatologia Fundamental. 2007. Disponível em:
< http//www.fundamentalpsychopathology.org/8_cong.anais> Acesso em: out. 2008

ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano: a essência das religiões. São Paulo:


Martins Fontes, 1992.

GAILLARD, Christian. Jung e a Vida simbólica. São Paulo: Edições Loyola,


2003.

GOULART, Sandra Lucia. A construção de fronteiras religiosas através do


consumo de um psicoativo: as religiões da ayahuasca e o tema das drogas
Comunicação apresentada em Congresso: V Reunião de Antropologia do Mercosul
(RAM), Florianópolis, Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre Psicoativos, 2003.
Disponível em <www.neip.info> Acesso em: mai 2009

GROF, Stanislav. Psicologia do futuro. São Paulo: Heresis, 2000.

83
GROISMAN, A. Eu venho da floresta. Um estudo sobre o contexto simbóli-
co do uso do Santo Daime. Florianópolis: Editora da UFSC, 1999.

GROISMAN, A. Missão e Projeto: motivos e contingências nas trajetórias


dos agrupamentos do Santo Daime na Holanda. Revista REVER, V. 4, 2004.
Disponível em: <http:// br/rever/rv1_2004/t_groisman.htm> Acesso em: jan. 2008.

HOLANDA, Adriano. Questões sobre pesquisa qualitativa e pesquisa feno-


menológica. São Paulo: Análise Psicológica, 2006.

JUNG, Carl G. Psicologia e Religião. Petrópolis: Vozes, 1987.

___________. O Eu e o Inconsciente. Petrópolis: Vozes, 1997.

___________. Arquétipos e o Inconsciente Coletivo. Petrópolis: Vozes, 2000.

LABATE, B. C.; ARAÚJO, W.S. O uso ritual da Ayahuasca. Campinas: Merca-


do das Letras; São Paulo: FAPESP, 2002.

LABATE, B. C. ; SANTOS, R. G.; ANDERSON B, . ; MERCANTE, M. ; BAR-


BOSA, P. C. R. Considerações sobre o tratamento da dependência por meio
da ayahuasca. Núcleo de estudos Interdisciplinares sobre Psicoativos, 2009. Dis-
ponível em <http: www.neip.info> Acesso em: mai. 2009

LERRER, Débora. Os enteógenos e os psiconautas: a expansão da consci-


ência través de plantas chega ao século XXI. Planeta Web, 2009. Disponível em:
http://www.terra.com.br/planetanaweb/flash/transcendendo/mente/ Acesso em: jun.
2009.

LAVAZZA, Victor Hugo. Ideologia Mito Y Utopía En Un Culto Milenarista.


La Experiencia Del Culto Del Santo Daime En La Argentina. Facultad de Filosofia
y Letras, Buenos Aíres, 2007. Disponível em: <www.neip.info> Acesso em: mai
2009
LUNA, Luis Eduardo, in Labate e Araújo (org.) O uso ritual da ayahuasca,
Campinas, Mercado de Letras, 2002.
.
MACRAE , Edward. Uso Ritual de Substancias Psicoativas na Religião do
Santo Daime como um exemplo de Redução de Danos. Texto apresentado para

84
a Câmara de Assessoramento Técnico-Científico do Conselho Nacional Antidrogas
(CONAD), Brasília, 2004.

MACRAE, E. Abordagens qualitativas na compreensão do uso de psicoati-


vos, 2004 Disponível em <http:// www.neip.info> Acesso em mar. 2008.

MALUF, Sônia Weidner. Mitos coletivos, narrativas pessoais: cura ritual,


trabalho terapêutico e emergência do sujeito nas culturas da "Nova Era", 2003.
Disponível em <http://www.scielo.br/> Acesso em: mar 2009.

MASLOW, A. H. Introdução à Psicologia do Ser. 2.ed. Rio de Janeiro: Eldora-


do,1998.

MIKOKS, José Eliézer. A Farsa da Consciência. Revista virtual arca da união,


Ano 4- Número12 – Junho de 2008. Disponível em <http://arcadauniao.org/ > Acesso
em: fev. 2009

MULLER, Marisa Campio. Espiritualidade e Psicologia. Disponível em


<http://www.pucrs.br/cocama/artigos/artigo006.pdf.> Acesso em: Dez. 2008

MORRIS, Brian. Religion and Anthropology ─ A Critical Introduction. Cam-


bridge: Cambridge University Press, 2006.Introduction (pp.1-13). Tradução: Sílvia
Aguiar Carneiro MARTINS e Jamesson Vieira da ROCHA (manuscrito).

OLIVEIRA, José Erivan Bezerra de. Santo Daime o Professor dos Professo-
res [manuscrito]: a transmissão do conhecimento através dos hinos. Tese de
doutorado, Universidade Federal do Ceará, Centro de humanidades, programa de
pós graduação em sociologia Fortaleza, Ceará (2008)

OTTO, Rudolf. O Sagrado: um estudo do elemento não-racional na idéia do


divino e a sua relação com o racional. Tradução de Prócoro Velasques Filho. São
Paulo: Imprensa Metodista, 1985.

PELAEZ, Maria Cristina. Santo Daime, Transcendência e Cura: Interpreta-


ções Sobre as Possibilidades Terapêuticas da Bebida Ritual. Revista Virtual Ar-

85
ca da União, Ano 2 - Número 6 - Setembro de 2006. Disponível em <
www.arcadauniao.org> Acesso em: nov. 2008.

PINEL, H. Método Fenomenológico em Psicologia, 2001. Disponível em:


<http://www.neaad.ufes.br/subsite/psicologia> Acesso em ago. 2008.

REVISTA GALILEU. Ed. 203. jun 2008, ed abril

SHANON, B. Os conteúdos das visões da Ayahuasca, 2003. Disponível em:


<http://www. scielo.com.br> Acesso em: set. 2008.

SILVA SÁ, D. B. G. Ayahuasca, a consciência da expansão, 1996. Crime, Di-


reito e Sociedade. Rio de Janeiro: Instituto Carioca de Criminologia. Ano 1, nº 2, 2º
sem. Disponível em: <http://www.neip.info> Acesso em: Jan. de 2008.

STORALOFF, Myron J. Psicodélicos são úteis na Prática do Budismo. Jour-


nal of Humanistic Psychology”, volume 39, nº 1, pág 60-80, 2003. Disponível em
<http://enteogenos.wordpress.com/> Acesso em: jan. 2009.

TAVARES, F. R. Religião e Modernidade Fronteiras Questionadas, 2002.


Disponível em: <http://www.metodista.br/ppc/estudos-de-religiao> Acesso em: jul.
2008.

TRIPICHIO, A. Psicologia Transpessoal, 2007. Disponível em:


<http://www.redepsi.com.br/portal/modules/smartsection/item.php?itemid=600> A-
cesso em: Abr. 2008.

REHEN, Lucas Kastrup Fonseca. "Receber não é compor": música e emoção


na religião do Santo Daime. Revista Religião & Sociedade, vol.27 no.2 Rio de Ja-
neiro, 2007. Disponível em http://www.scielo.br/ Acesso em: mai 2009.

ZACHARIAS, José Jorge M. Psicologia e Religião, Olhares Diferenciados do


Mesmo Fenômeno, 2009, UNICID – Tancredo Neves. Disponível em:
<http://www.symbolon.com.br/artigos/psicoerelig.htm> Acesso em: jan 2009.

86
WALKER. Uma visão detalhada sobre a bebida dos xamãs. Disponível em
<http://afamiliajuramidam.org/comunidade/textos/bebida_dos_xamans.html> Acesso
em: mar. de 2009

WEIL, P. A consciência Cósmica- Introdução a Psicologia Transpessoal.


Petrópolis: Vozes, 1991.

________. As Fronteiras da Evolução e da Morte. Petrópolis: Vozes, 1979.

87
ANEXOS

88

Você também pode gostar