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Crónica de final de ano e tempo de Natal

Santana Castilho *

Independentemente da alternância partidária dos protagonistas dos últimos


35 anos, é fácil identificar as características persistentes da política seguida
na gestão do sistema de ensino: foi sempre centralizadora e burocrática;
assentou, invariavelmente, no doentio objectivo de uniformizar pela política
o que é diverso por natureza; e impôs por decreto as visões de ministros
que se julgaram iluminados, sem debate social sério.

Por detrás deste fio condutor, que surpreendentemente tem aproximado


nas tácticas políticas partidos diferentes, estão duas eminências pardas:
internacionalmente, os organismos de pendor económico (entre os quais se
destaca, pela omnipresença e pela omnipotência, a OCDE) que tutelam e
impõem aos estados, ditos independentes, os paradigmas de
desenvolvimento e progresso educacional; nacionalmente, um grupo de
atrevidos meio incógnitos, que atravessaram a vida longe das salas de aula
e, em nome das chamadas ciências da educação, persistem, com sucesso
incólume, a ditar o quotidiano penoso das escolas. O resultado desta canga
é conhecido: um clima de reforma permanente, servido por uma
esquizofrénica produção legislativa, onde a desorientação de pais,
professores e alunos se tornou norma.

Em tempo de balanço de ano que finda e legislatura que já findou,


destaquemos da partitura de fundo as variações em euro menor. Assim foi
com o estatuto da carreira docente, quer na versão de morte anunciada,
quer na ressuscitada pelas negociações correntes, que mais não fazem que
servir pior com designação diferente, ou seja, a condenação da maioria dos
professores a terminarem a actividade profissional, na melhor das
hipóteses, numa posição equivalente ao antigo 7º escalão, com uma
substancial redução salarial e uma concomitante sobrecarga de trabalho
(horas consideradas lectivas deixaram de o ser e as reduções da
componente lectiva dos horários foram fortemente afectadas). Assim foi, a
coberto de falsa democratização, com a reforma do ensino artístico. Assim
foi com a bárbara integração, sem apoio, no regime normal de milhares de
alunos com necessidades educativas especiais. Assim foi com as criminosas
e graduais dificuldades administrativas às reprovações. Assim será com o
polémico professor generalista para o 2º ciclo do ensino básico e provável
extensão ao 3º. Assim foi com as reformas antecipadas de milhares de
professores enxovalhados e escorraçados (os mais “caros” de uma redução
total cifrada recentemente em 20 mil). Assim foi, fechando escolas aos
milhares e reduzindo as correspondentes despesas de manutenção. Assim
foi, afinal, com toda a função pública, sobre a qual importa que façamos
uma meteórica recordatória: congelaram-se salários e pensões acima dos
mil euros; congelaram-se as progressões nas carreiras e as admissões;
agravaram-se drasticamente as condições de reforma; reduziram-se
regalias sociais ao mesmo tempo que se aumentaram os descontos para a
ADSE e aposentação. Tudo porque foi dito, em tempo de alarme, que sem
isso, não reduziríamos o défice. Mas com isso, os funcionários públicos terão
perdido nos últimos anos 8 por cento do seu anterior poder de compra e o
défice subiu para números nunca dantes vistos. Será pois altura de baterem
à porta do dinheiro, da corrupção, da especulação e das obras faraónicas
sem retorno. Será altura de nos preocuparmos seriamente com o terço da
população portuguesa que vive abaixo do limiar da pobreza e de
reconhecermos que os cânones da globalização feroz e do capitalismo sem
ética estão na origem de uma legião de desempregados que nunca
tínhamos visto. Será altura de nos opormos à arrogância cultural e política
que vem impedindo os nossos jovens de compreenderem a realidade que os
escraviza e a hipocrisia do discurso da modernidade que os deixa sem
futuro.

Se o balanço de fim de ciclo é doloroso, que o Natal traga esperança! Sonho


com o dia, que virá, em que os responsáveis acreditem e confiem nos
professores. Sonho com o dia em que o Ministério da Educação desista de
tudo definir antes de algo acontecer. Sonho com o dia em que percebamos
todos, políticos, pais e professores, que a Escola se quer cooperativa,
exigente, disciplinadora e ao serviço do homem integral, que não apenas do
homem económico. Sonho com o dia em que se devolva à Escola e aos seus
professores a liberdade e a credibilidade perdidas e às crianças tempo para
brincarem. Sonho com o dia em que «de mãos dadas talvez o fogo nasça»,
expressão calorosa de um belo texto do saudoso David Mourão - Ferreira,
que aqui transcrevo para os meus leitores generosos, com votos de bom
Natal:

«Entremos, apressados, friorentos, numa gruta, no bojo de um navio, num


presépio, num prédio, num presídio, no prédio que amanhã for demolido.
Entremos, inseguros, mas entremos. Entremos e depressa, em qualquer
sítio, porque esta noite chama-se Dezembro, porque sofremos, porque
temos frio. Entremos dois a dois. Somos duzentos, duzentos mil, doze
milhões de nada. Procuremos o rastro de uma casa, a cave, a gruta, o sulco
de uma nave. Entremos, despojados, mas entremos. De mãos dadas talvez
o fogo nasça, talvez seja Natal e não Dezembro, talvez universal a
consoada.»

* Professor do ensino superior

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