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Homenagem a Webern* Pierre Boulez Quanto a Webem, a epifania se define; logo se ha de expurgar o rosto da ignorincia, privilégio de uma maldig&o discreta mas eficaz. Critério o mais agu- do da miisica contemporanea, eis como ele nos aparece, todavia, com uma obra que implica certos riscos perante os quais ¢ dificil - sendo impossivel - 0 ludi- brio. Esta obra encontrou dois obstaculos erigados sobre o caminho de sua co- municagdo; paradoxalmente, o primeiro: sua perfeicdo técnica; o segundo, mais banal: a novidade da mensagem transmissivel. Donde a acusagao, reflexo de defesa mais do que gratuito, de cerebralismo exacerbado: eterno processo sem- pre perdido por aqueles que o intentam, e nao obstante sempre intentado. ‘A novidade das perspectivas que a obra de Webern abriu no dominio da miisica contemporanea somente agora comega a ser compreendida, e com um certo pasmo, a vista do trabalho concluido. Esta obra tornou-se_O limiar, a des: peito de toda a confusao experimentada em face do que se chamou com demasi- ada afoiteza: Schoenberg ¢ seus discipulos. Qual a razio dessa posigdo privilegiada entre os és vienenses? Enquanto Schoenberg ¢ Berg se ligam a decadéncia da grande cortente romantica alema, ¢ a completam em obras como Pierrot Lunaire e Wozzeck, pelo estilo o mais lu- xuosamente rutilante, Webern - através de Debussy, poder-se-ia dizer - reage violentamente contra toda retorica hereditaria. De fato, é Debussy o tinico que se pode aproximar de Webern numa mes- ma tendéncia que visa a destruir a organizacao formal pré-existente a obra, atra- vés do mesmo recurso a beleza do som pelo som, através da mesma eliptica pulverizagao da linguagem. E se podemos asseverar num certo sentido - ah, Mallarmé - que Webem era um obcecado pela pureza formal até o silencio, a yerdade 6 que ele levou essa obsessiio a um grau de tensiio que a misica, até entao, ignorava. Poder-se-a ainda exprobar a Webern um excesso de escolistica: censura justificada, se precisamente essa escolastica nao tivesse sido 0 préprio meio de * Publicado no “ ‘uplemento Literirio”, Jornal do Brasil, 17.3.1957. 269 investigagaio de novos dominios entrevistos. Sera possivel notar nele uma falta de ambigao, no sentido em que se a quer entender usualmente, nada de obras vastas, nem formagdes importantes, nem grandes formas? Mas acontece que essa falta de ambigdo constitui sua mais ascética coragem. E mesmo que se acreditas- se encontrar aqui um cerebralismo a margem de toda sensibilidade, seria justo notar que essa sensibilidade ¢ tao abruptamente nova que scu contato tem todas as possibilidades de parecer cerebral. ‘Tendo mencionado o siléncio em Webern, acrescentemos que ai reside um dos escAndalos mais irritantes de sua obra. E uma verdade das mais dificeis de colocar em evidéncia de que a muisica nao é apenas “a arte dos sons”, mas que ela se define, antes, como um contraponto de som ¢ de siléncio. Unica, mas singularissima, inovagao de Webem no campo do ritmo, essa concepcao onde 0 som esta ligado ao siléncio numa precisa organizagao para uma eficacia exausti- va do poder auditivo. A tensdo sonora se enriqueccu com uma real respiragao, comparavel somente ao que realizou Mallarmé no poema. Em presenga de um campo magnético tao atrativo, diante de uma forga poética tao aguda, é dificil perceber conseqiiéncias além das imediatas. A confrontagao com Webern é um perigo exaltante, no sentido mesmo em que ela pode ser uma exaltagao perigosa. Terceira pessoa que é da trindade vienense, guardemo-nos de assimila-la as céle- bres linguas de fogo: o conhecimento nao ¢ tao subrepticiamente rapido. Webern €0 limiar, nds 0 dissemos: tenhamos a clarividéncia de 0 considerar como tal. Aceitemos essa antinomia de poderes destruidos e de impossibilidades demoli- das. Doravante, esquartejaremos seu rosto, pois nao ha por que abandonar-se a hipnose. Esse rosto, porém, a musica nao est prestes a imergi-lo no esqueci- | mento. Tradugéo de Augusto de Campos, 1954, 270

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