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A SOCIALIZACAO EA FORMACAO ESCOLAR* FRANCOIS DUBET DANILO MARTUCCELLI A socializacao designa o duplo movimento pelo qual uma socie- dade se dota de atores capazes de assegurar sua integragdo e de individuos, de sujeitos suscetfveis de produzir uma ago auténoma. De imediato, a so- cializagdo € definida por uma tensio situada no centro de diversos debates sociolégicos, mobilizando, de uma s6 vez, representagdes do ator e repre- sentagGes do sistema social. Para além da ret6rica opondo “determinismo” e “liberdade”, os sociélogos propuseram diversas definigées do problema. Uma vez adquirida a gramética sociolégica comum segundo a qual a aco humana é socializada e 0 individualismo mais afirmado quanto mais pro- nunciada for a diferenciagAo social, dois grandes conjuntos tedricos podem ser distinguidos. O primeiro definiu a socializagio como internalizagdo! normativa e cultural, afirmando assim a “reversibilidade” da subjetividade dos atores ¢ da objetividade do sistema. O segundo grupo de teorias privi- legia o tema do distanciamento, da atividade dos individuos, da separagao entre 0 ator e o sistema. Mesmo se esse vocabuldrio nado é muito satis- fatorio, podemos admitir grosseiramente que o primeiro conjunto de teo- rias se inscreve na imagem cléssica da modernidade, enquanto que 0 se- gundo, mais sensfvel & heterogeneidade cultural e social, procede de uma concepedo “‘pés-moderna” do individuo? . Cada um desses grandes conjun- * "Theories de la socialisation et definitions sociologiques de lecole”. Publicado original- mente na Revue Francaise de Sociologie. Tradugao de Carlos Thadeu C. de Oliveira. UA tradugdo literal do termo original seria interiorizagiio. Optamos por internalizagdo devi- do a sua j4 consagrada utitizagio na Sociologia [N. do T.] 2 © qualificativo “pés-modemo” deve ser entendido aqui no sentido mais banal do termo, vi- sando simplesmente a sublinhar a distdncia entre as teorias clAssicas da modemidade e as. rias contemporiineas que nesse debate informam a critica. Além disso, essa nogo ndo poss para nés, consisténcia propria, 242 LUA NOVA N° 40/41 — 97 tos esté associado a duas grandes figuras da integragao social: aquela que privilegia a integragdo social e aquela que atribui primazia & integracao sistémica. Podemos entio discernir varias familias de teorias da sociali- zacdo. Apés examinarmos as teorias da socializagdo e demonstrarmos as l6gicas essenciais em torno de quatro tipos principais, tentaremos mostrar como elas engajam definigdes sociolégicas da escola e da educacao, pois, no plano analitico como no das priticas, a escola cruza uma concepcao do ator e uma representagao do sistema. A apresentagdo dessas definigdes da escola ser4 uma maneira de indicar nossas prdprias preferéncias. AS REPRESENTACOES DO INDIVIDUO Uma das médximas essenciais da sociologia e da antropologia consiste em, sob diversas formas, associar a modernidade & emergéncia do individuo. Qualquer que seja 0 vocabulério escolhido, a passagem da tra- digo & modernidade, do holismo ao individualismo, faz sempre da for- magao do individuo um dos critérios essenciais das sociedades modernas. ‘Ao longo desta transformagdo, a socializag&o aparece ao mesmo tempo mais essencial e mais incerta, 4 medida que o paradoxo da socializagao nao cessa de se reforgar, ja que passamos da idéia de inclusao total dos in- dividuos na sociedade — representagdo que pode liquidar a idéia mesma de individuo — aquela de uma distancia crescente entre os individuos e 0 siste- ma. Podemos distinguir trés concepgdes globais do ator social, concepgdes essas que ndo mais se inscrevem em uma “necessidade” evolucionista. Se a periodizacdo aqui proposta segue de perto a maxima sociolégica da mo- dernidade, € evidente que apresenta mais de uma similitude com outras classificagées como aquelas de Riesman (1964) e de Sennett (1979). Insis- timos, entretanto, que se trata de verdadeiras “matrizes” representativas, compreendendo no seu préprio seio diferengas de envergadura. A representagdo do homem comunitario De uma maneira ou de outra esta representag&o esté na base de todas as concepgdes sociolégicas, e € a alteridade tedrica radical contra a qual se construiu 0 pensamento socioldgico moderno. Desse ponto de vis- ta, ndo seria exagerado dizer que a figura do homem comunitério ndo pos- sui propriamente histéria te6rica, Basta ler a descriggo que dela fez Tonnies (1977) para se ter uma representacdo bastante atual. Esta perma- néncia tedrica sé é compreenstvel se levarmos em conta a fungao dessa figura, que estabelece um rompimento entre dois tipos de ator e, ademais, ‘A SOCIALIZACAO E A FORMACAO ESCOLAR 243 entre dois tipos de coletividade? . O ator da comunidade est4 sempre sub- metido a coletividade, moldado por ela, incapaz de se desprender, trans- passado pelo calor do grupo, pelo rigor dos cédigos, e desprovido de um espaco de iniciativa individual. O homem da comunidade est sob a dupla marca da unidade e da totalidade. Unidade da vontade e dos modelos cul- turais, unidade dos espiritos e das crengas comuns. Totalidade do homem que se dé por inteiro, corpo e espfrito, & vida coletiva. O ator comunitério pertence a um conjunto regido por lagos naturais ou espontdneos, subordi- nando-se a uma coletividade cujo sentido excede aquele de cada um de seus membros. E o sentimento de pertencer 4 comunidade que domina a aco dos individuos, A sociologia encadeou essa representagdo do in- dividuo a um “estdgio” de fraca diferenciagao social, o da sociedade dita tradiciona Sabemos que todos os grandes autores experimentaram senti- mentos ambivalentes em relacdo a modernidade. Quanto mais a consciéncia da irreversibilidade do processo de diferenciacao se impOe, mais transpare- cem os discursos criticos de veleidades passadistas e de nostalgias conser- vadoras, e mais, de fato, é posstvel perceber um esgargamento tedrico nas atitudes dos pensadores classicos. Desse ponto de vista, h4 um verdadeiro paradoxo no seio do pensamento social: os individuos modernos, ao menos no perfodo classico da sociologia cujo pice 6, deste ponto de vista, a obra de Parsons, so representados como se seguissem sem qualquer hesitago 0 movimento da modernidade, quando esses tedricos, no fundo, so atormen- tados por um sentimento irresistivel de nostalgia’. Nao seria dificil encon- trar ambivaléncias deste tipo no pensamento de Durkheim e de Simmel, as- sim como no de Weber e Marx’ . © ator comunitério emerge como um individuo antes do nascimento da sociedade moderna; apesar de variantes no negligencidveis, ele encarna a fusio do ator e da cultura, uma forma de seguranga e de plenitude quando 0 conjunto da existéncia ¢ habitado e en- cantado pela cultura e pelos deuses. Para dizer de maneira bastante simples ¢ répida, nessa representagdo que € mais um postulado te6rico que obser- vagdo antropoldgica, mal podemos falar de individualidade. 3 Bssa fungdo é notadamente manifesta na grande sfntese da sociologia clissica proposta por Parsons (1951), soba forma de oposigao entre quatro varidveis de configuragdo que retomam —e. clarificam analiticamente —o essencial da dicotomia de Tonnies entre comunidade e sociedade. + Dois livros, de sensibilidade muito diferenciada, se debrugaram sobre essa dimensio das teorias sociolégicas ou modernas (Berman, 1982; Stauth, Tamer, 1988). 5 'Em Marx, ¢ apesar do lugar relativamente secundario que essa preocupagaio ocupa em sta obra, 0 individuo comunitério pertence a uma formagao social pré-capitalista e esté caracteri- zado por uma espécie de ndo-dissociagio, até mesmo ura completude nio desprovida de ro- mantismo, ao ponto de emergir, por vezes, ¢ apesar do fascfnio de Marx pela modemidade, ‘como uma espécie de figura ideal da individualidade. 244 LUA NOVA N° 4041 — 97 A internalizagao, 0 individuo “moderno” A figura do individuo aparece como uma conseqiéncia mais ou menos direta de um nivel crescente de diferenciago social ¢ de racionali- zagio. A maior densidade subjetiva dos individuos da sociedade moderna procede de uma sociedade mais complexa, na qual o individuo cruza com um niimero cada vez mais elevado de atores e na qual est4 submetido a um maior estimulo por parte do ambiente. Pertence a diversos cfrculos sociais e deve cumprir um nimero erescente de tarefas e de papéis. De Simmel a Merton, de Durkheim a Parsons, essa ligagdo entre o individualismo e a complexidade moderna se impée a todos. O individuo moderno resulta da pluralidade de subsistemas de aco regidos por orientagdes e regras cada vez mais autonomas®. No seio desse processo, a nogiio de “papel” torna-se essencial. Em raziio da diversidade dos subsistemas sociais, os individuos devem ad- quirir competéncias mdltiplas para fazer frente & diversidade das ag6es que silo obrigados a desempenhar. A socializagdo conduz a uma individuali- zaco crescente & medida que cada individuo faz parte de cfrculos de ago diferentes: a individualizagdo é, entdo e sempre, um corolério direto da diferenciagdo (Simmel, 1986; 1989), As estruturas sociais se dividem & medida que se especializam e 0 ator € guiado por valores cada vez mais universais, suscetiveis de se aplicar a uma multidao de casos particulares. Os cédigos sio substituidos por orientagdes de agdo internalizadas, por sentimentos ¢ convicgées. Esta representacdo dominante originou duas grandes versdes opostas. A primeira é uma versio “encantada” da socializagao. A ligagdo entre a individuagao e a diferenciagio social assegura, em um tinico movi- mento intelectual e prético, de uma s6 vez, a autonomia pessoal e a inte- gragdo social do individuo. E a socializagdo que da conta da ligagao entre a aco individual e a ordem social & medida que o ator agencia, freqiientemente de maneira inconsciente, prineipios de ago que definem a coeréncia da sociedade. Mas se a vida social repousa sobre um conjunto de valores comuns e prinefpios de agio mais ou menos circunscritos, o in- dividuo permanece senhor da escolha definitiva. Do ponto de vista desta sociologia “encantada”, a liberdade emerge como o esquecimento da so- cializagdo que a tornou possivel. O ideal do individuo depende da estrutu- ra da sociedade mas, ao mesmo tempo, este ideal de homem visa a engen- drar individuos auténomos, libertos do peso da tradigio e capazes de independéncia de julgamento. © Para esta visio cléssica da modernidade, ver Durkheim, 1986; Weber, 1971. ASOCIALIZACAO E A FORMACAO ESCOLAR 245 A segunda versao, ao contrério, é “desencantada” e critica. A sociedade, percebida como um conjunto de estruturas de poder, se ins- creve nos individuos que so entéo operados pelo sistema social. A auto- nomia é geralmente apresentada como uma ilusdo subjetiva, tanto quanto as prdticas sociais séo concebidas, em versées extremas dessas teorias, como signos da ordem social. A socializagao aparece como uma forma de programacdo individual que assegura a reproducio da ordem social por meio de uma harmonizacdo das praticas e das posigdes. Essa verso desen- cantada da modernidade est4 notadamente presente na obra comum de Bourdieu e Passeron (1964; 1970). O debate entre essas duas versdes cruzadas da socializagao foi particularmente vivo no que diz respeito & escola. A primeira se esforga por pensar a socializacZo como a internalizagZo de uma disciplina ne- cessdria ao-exercicio da autonomia; a segunda, vé no processo um adestra- mento das almas, uma sujeigdo dos individuos, uma programagio da re- produgio social. Na versio encantada, a socializagdo é trégica: o individuo, cuja consciéncia é formada pela sociedade, é capaz de se revol- tar, gragas & sua liberdade de consciéncia, contra esta mesma sociedade. Na versao critica, a socializagdo é a incorporagdo de um espaco social es- truturado, gracas ao qual a hist6ria e a agdo de cada agente sao especifi- cagGes da historia e das estruturas coletivas. Mas uma profunda unidade liga essas duas versGes no que diz respeito ao préprio processo de sociali- zagao. Nos dois casos, 0 individuo, além de suas margens mais ou menos grandes de autonomia, é definido pela internalizagao de normas e de dis- posig6es comuns & sociedade ou a uma classe social. A forga dessa concepgao sociolégica do individuo esté em es- tabelecer “correspondéncias” com diversas teorias psicolégicas. Tenham ‘0s autores se apoiado mais sobre a obra de Freud, de Mead ou de Piaget para definir de maneira precisa os processos de formagiio da individuali- dade, todos concordam sobre a natureza do individuo socializado. Isso porque, ainda que a palavra ndo tenha sempre sido empregada, a idéia de papel’ — definido como o encontro do individuo com os cédigos sociais — est4 no centro do modelo (Merton, 1965). E o que exprimem os dois grandes dilemas do individuo moderno: de uma parte, 0 dilema socio- l6gico da “incongruéncia dos papéis”, isto &, a obrigagdo de agir em fungao de diferentes modelos em diversos dom{nios de agdo e, de outra parte, o dilema moral da culpabilidade individual, a presenga, na conscién- cia individual, da majestade da sociedade (Durkheim, 1985). 7 No original, rdle [N. do T.] 246 LUA NOVA N° 40/41 — 97 E claro, essa matriz geral nfo exclui diferengas considerdveis entre os autores. Para alguns, o individuo moderno nao é jamais inteira- mente socializado; contrariamente ao que deixam supor certas concepgdes criticas da socializagdo, persistem nele pulses nao socializaveis, como tentou mostrar Elias (1973; 1975), na esteira das interpretagdes weberiana e freudiana. Ao destaque dado a distancia entre o eu e 0 self, em Mead, se opée a insisténcia sobre sua imbricagdo na nogdo de habitus, de Bourdieu. Mas no fundo, trata-se apenas de variages no seio de uma mesma con- cepgdo segundo a qual os “papéis” permitem, na modernidade, gerir a tensao entre a objetividade e a subjetividade, estabelecendo um acordo en- tre as motivagées individuais e as posigdes sociais, gracas A constituigao de um conjunto de atitudes ligadas 4s diversas posigées sociais (Bourdieu, 1980; Parsons, 1951). A internalizacdo desses esquemas de atitudes consti- tui o individuo em ator socializado, adaptado, até mesmo conformista. Claro, os atores nao so jamais socializados ao ponto de impedir toda mu- danga e de se limitar a reproduzir o estado anterior da sociedade. A propésito dessas andlises, é totalmente legitimo falar de in- dividuo (em oposigao a0 homem comunitério), mas nao é poss{vel falar de sujeito. A distingao é sutil mas visa a sinalizar que se o individuo e sua indi- vidualidade sao efetivamente reconhecidos, 0 sao somente por meio de um processo de inclusao na sociedade. O ator é 0 sistema: nao que o individuo seja subordinado ao sistema como no modelo comunitdrio, mas no sentido em que o individuo é apenas o reverso do sistema social, seu lado subjetivo (Dubet, 1994). Desse ponto de vista, a querela do holismo e do individualis- mo aparece por vezes desprovida de sentido. Nada ilustra melhor essa repre- sentac&io que 0 significado do “individualismo”. A palavra designa menos um ator auténomo que a internalizagao de modelos coletivos na intimidade das condutas individuais®. O individuo é um “personagem social” cuja sub- jetividade ¢ a posig&o social aparecem como duas faces de um mesmo con- junto. O individuo é ao mesmo tempo uma “pessoa” (reciprocidade de pon- tos de vista entre os sentimentos e as identidades sociais) e um “papel” (forte imbricagéo entre uma tarefa e uma motivacao). A personalidade, o sistema social e a cultura estéo intimamente imbricadas, permitindo estabelecer ligagSes estreitas entre os percursos individuais e os processos coletivos. O distanciamento, o individuo “pés-moderno” A sociologia classica pensou 0 individuo por meio da corres- pondéncia entre as dimensées subjetivas de sua ago e as dimenses obje- 8 Nesse sentido preciso é necessério distinguir a concepgio do individuo proposta pelo pen- ssamento liberal - que se liga, por razes no minimo cronolégicas a esta concepgio — da re- resentagdo socioldgica contempordnea do sujeito. ‘A SOCIALIZACAO E A FORMAGAO ESCOLAR 247 tivas de seu estatuto. Ora, este principio de continuidade sempre foi causa de problemas. Tomando-o por dado, a sociologia colocou em evidéncia os mecanismos de construgo de similitudes, insistindo na distancia entre es- sas duas dimensdes; é uma outra imagem da modernidade que se impde e 6 a especificidade da individuagdo que se torna o problema central?, Dora- vante, o individuo nao é mais definido por uma correspondéncia estreita entre a objetividade e a subjetividade, mas concebido pela sua maior distancia em relagéo ao mundo. O problema da socializagéo torna-se aquele da reflexividade, da critica, da justificagdo, do distanciamento, Para dar conta deste processo, é preciso uma vez mais fazer referéncia a uma diferenciagdo social crescente que aumenta 0 fosso entre as posigdes so- ciais e as motivagées individuais ao ponto em que sua jungao nao pode mais ser assegurada pelo viés dos esquemas organizados de agao, isto 6, pelos papéis. Existem, claro, tarefas objetivas delimitadas, mas as mot vagdes € as orientagdes subjetivas consensuais nao sao mais tidas como adquiridas, cabendo ao préprio ator a decisio!, Essa concepcao testemu- nha um crescimento da incerteza de um ponto de vista individual. O afas- tamento estrutural crescente entre a objetividade e a subjetividade alimen- ta uma dupla tentago: seja a inclinagdo em diregdo a verses extremas de uma sociologia dos sistemas sem atores (a sociedade € uma estrutura de poder ou um mercado), seja a construgdo de uma visio intimista e desso- cializada dos atores (a sociedade 6 uma soma aleatéria de interagées). Expliquemos de outra maneira esta mudanga de perspectiva. A representacéo moderna do individuo insistiu na distancia do papel. Nin- guém sublinhou melhor este mecanismo que Mead (1963): a individuagao € sindnimo de distancia do papel, o didlogo entre o “eu” eo “self”, 0 proces- so pelo qual o ator aprende a se olhar com os olhos dos outros. Bem outra € a “distancia” a partir da qual certos autores definem atualmente a indivi- dualidade. Agora, este afastamento é uma conseqiiéncia mais ou menos di reta de um estado das relag6es sociais, 4 medida que a distancia crescente entre a objetividade ¢ a subjetividade é uma das maiores caracteristicas da sociedade moderna. E neste sentido que € preciso sublinhar a diferenga en- tre 0 modo de socializagao assegurado pela nogao de “papel” e aquele que evocam as idéias de “distanciamento” e de “reflexividade”. Os “papéis” su- 9 Para esta visio da modernidade, ver Simmel, 1988; Touraine, 1992. 10 Para Luhmann esta passagem é testemunha da transformagao da semintica do individuo, seguida da passagem da diferenciagdo estratificada & diferenciagao funcional. A concepeio, do individuo passa entdo da problemética da “incluso” individuo-sociedade & problemitica da “exclusio”. Devido 2 diferenciagdo social, 0 individuo nao pertence mais a nenhum dominio social especifico mas é definido, antes de mais nada, pela exclusto de cada um deles. O individuo tomna-se um sujeito auto-referencial (Luhmann, 1995). 248 LUA NOVA N° 40/41 — 97. pdem uma sociedade j4 suficientemente diferenciada para que os individuos possam se tornar os atores sociais sem especificidades, mas na qual so ain- da possiveis, ao menos teoricamente, arranjos consensuais mais ou menos precisos em torno de uma tarefa. A influéncia crescente do modelo do dis- tanciamento evoca 0 modo de socializagdo de uma sociedade moderna avangada, caracterizada por uma desarticulagao das ldgicas e marcada pela impossibilidade de definir precisamente os papéis. Certamente, hé tarefas objetivas, mas daqui em diante o espaco da iniciativa individual nao para de crescer no seio de cada situagao socialmente definida. Desde entao, a socia- lizago € o aprendizado da gestdo de uma distancia entre as dimensées sub- jetivas e as posigdes sociais. A complexidade dos sistemas e a diversidade das situagdes obrigam os atores a gerir, sempre de maneira circunscrita, sua distancia e sua implicag4o no mundo. Desse ponto de vista, a nogdo de so- cializago secundéria se esvazia de qualquer contetido: no limite, podemos dizer que o individuo deve, em cada interacdo e a cada “momento”, recons- truir uma socializacdo secundéria (Berger, Luckman, 1986). Além de suas diferencas, todas as “novas” sociologias comegam por contestar a harmonia preestabelecida pelo modelo classico. Dos ataques que Wrong (1961) enderega & concepgao “hipersocializada” de Parsons, até as concepgGes cada vez mais radicais da etnometodologia, passando pelos trabalhos que insistem nas capacidades “criativas” do su- jeito (Castoriadis, 1975; Touraine, 1973), é sempre a correspondéncia en- tre a subjetividade e a aco social que est no centro das criticas. O tema do distanciamento do ator desloca substitui a antiga preocupagdo da in- ternalizagdo!!. Nesta perspectiva, a oscilagdo detectdvel na obra de Elias se revela exemplar, desde a insisténcia sobre a internalizagao crescente dos constrangimentos externos até a preocupacgao com a natureza do enga- jamento e do distanciamento do individuo com relagdo ao mundo. Se todas essas teorias insistem sobre a distancia dos sujeitos ao mundo social, nenhuma dentre elas, além de algumas facilidades polémicas, estabelece verdadeiramente uma ruptura entre os individuos e a sociedade. 0 ator ndo se separou do sistema, nao seria mais que um mero “retorno” as con- cepgGes pré-sociolégicas do ator. Esta é a razo pela qual o renascimento dos debates entre a sociologia ¢ a filosofia deve ser interpretado com prudéncia. Com efeito, a tensdo da qual dao conta hoje os socidlogos é de natureza dife- rente daquela que sempre animou a filosofia moderna, a saber, a vontade de 11 © interesse crescente pela obra de Mead pode ser interpretado neste contexto. Com efeito, sua importincia maior para esta familia de sociélogos ndo provém do fato de esses terem se convertido a sua explicagio psicossocial da génese do individuo, mas de terem encontrado ‘em sua obra, nfo sem alguma obscuridade, uma linguagem altemativa que prefigura muitas das suas preocupagdes atuais. A SOCIALIZAGAO E A FORMAGAO ESCOLAR 249 fundar o mundo a partir do sujeito e a preocupagio em acentuar fortemente a dimensdo aut6noma do sujeito!2. O problema sociolégico nao é o da “liber- dade” edo “determinismo”!3, mas o damaneira pela qual se constr6i a indivi- duacdio em funcio das variagdes da diferenciacdo social!*, Para a sociologiaé evidente que os atores, sua “Razdo”, suas boas razées e suas motivagdes, so antes 0 resultado de um processo de aquisig¢ao social do que um componente ndo-social da subjetividade. Mas, mesmo aceitando a idéia de que o sujeito ndo é mais do que 0 produto da socializacdo, essas posigdes insistem sobre a distancia que se abre entre as posigdes sociais e o dominio pessoal. Para mui- tos, a identidade social nao mais est4 encarnada, tal qual uma “segunda natu- reza”, mas essa distancia nao € tampouco o fruto de uma “natureza” humana qualquer resistente & socializago. O conjunto dessas teorias insiste sobre a tensio crescente entre a socializacao e a subjetivagao, entre a negociagaio da identidade por meio de outrem e a identidade biografica por meio de si, 0 in- tervalo entre as duas tendéncias dando lugar a uma concepgdo dinamica e re- lacional da identidade que aponta, a sua maneira, a distancia social constituti- va da subjetividade (Dubar, 1991). Esse “distanciamento” é interpretado de duas grandes maneiras. Para um primeiro grupo de autores ele é a conseqiiéncia de uma sociedade na qual os atores so confrontados a um conjunto heterogéneo de légicas de ago. A autonomizagiio das Iégicas dos sistemas sociais, sem principio unitério central, se prolonga em tensées internas aos atores, comandados, a cada momento, por diferentes racionalidades sociais. O individuo é conce- bido como um sujeito incerto (Ehrenberg, 1995), multiforme, fragmentado e descentrado, um “né” em meio a redes de comunicagao. O sujeito est sob o dominio da “disseminagao” de si, € um efeito da superficie e da in- tersecdo das tramas de interagdes!5. Este sujeito é forgado a gerir contra- dig6es institucionais (Bell, 1978; Friedland, Alford, 1991), a articular as 12 Isso nio impede de encontrar esse tipo de tenstio no seio da obra de certos autores. Na Franga, € sobretudo 0 caso da obra de Foucault, na qual é possfvel constatar a passagem de ‘uma concepeio do individuo como resultado dos constrangimentos extemnos intemalizados, até mesmo como 0 produto de uma série de técnicas ortopédicas da alma (a sujeigdo) em diregdo a uma concepgio de um individuo mais aut6nomo, ou antes definido por uma estética da existéncia. Ora, & medida que essa evolugao se dé na contracorrente do estado da diferen- ciagdo social, essas representagdes tornam-se formas hist6ricas etemamente concorrentes. Para essa evolugao, ver Dreyfus e Rabinow (1984). 13 Como por exemplo est manifesto na evolugio da obra de Sartre. Cf. Sartre, 1943; 1960. 14 Entretanto, a interpretagao das fontes morais do sujeito em Taylor (1989), desde a interna- lizago agostiniana até a radicalizagdo subjetivista contempordnea, e que faz do sujeito mo- demo um verdadeiro palimpsesto [pergaminho manuscrito do qual a primeira escritura foi raspada com o fim de receber novo texto — N. do T.], pode efetivamente alimentar a reflexio mitua. Cf, Descombes, 1996, 15 Foi entre os autores pés-modemos que esta representacdo mais se desenvolveu (Martuccel- fi, 1992). 250 LUA NOVA N° 40/4} — 97 diferentes dimensdes da ago e a construir uma experiéncia (Dubet, 1994). afastamento das situacdes permite aos individuos orientar e justificar as ages com a ajuda dos diversos princfpios de justiga (Boltanski, Thévenot, 1991). Os atores'® se constituem em sujeito coletivo por meio de diversas configuragdes simbélicas deslocadas das realidades sociais pré-constituf- das (Laclau, Mouffe, 1985). Essas situages complexas poem em evidén- cia a extenso do grau de reflexividade pessoal dos atores. A partir de outros pressupostos, um esforgo intelectual deste tipo é também identi- ficavel entre os autores que defendem uma concepgao excéntrical? da per- sonalidade humana, notadamente na obra dos marxistas ““pés-modernos” anglo-saxdes ou em ensaios de sintese com outras tradig6es (Jameson, 1984; Harvey, 1989). Para um segundo grupo de te6ricos 0 distanciamento deve ser interpretado em termos cognitivos. A tendéncia da passagem de uma so- cializagao normativa em diego a uma socializagao cognitiva, pode ser as- sim interpretada entre certos autores. O ator € concebido ent4o como agin- do em meio 2 incerteza, visando a reduzir a complexidade com o auxilio de rotinas, fazendo escolhas em situagdes ambiguas por meio de preferén- cias inconsistentes'®. O problema da motivacao se transforma; o sujeito € um organizador de informagées. Este “distanciamento” cognitivo jé esté presente em muitas das teorias da organizago, como a de March e Simon (1979), até os neo-institucionalistas e passando por Crozier e Friedberg (1977) (Friedberg, 1993; Powell, Di Maggio, 1991). A “estratégia” dos atores ndo mais se confunde com a definigao da situagao imposta pelo quadro organizacional. As instituig6es no engendram lealdades morais, nfo séo mais que um ambiente dado em termos de oportunidades e cons- trangimentos. ator € sempre definido pela distancia de sua posigdo so- cial; auténomo, ele se orienta menos em funcdo das “normas” que em fungdo das oportunidades. Esta “ruptura” cognitiva est4 presente também em diversas variantes de sociologias compreensivas: ¢ preciso nfo mais pensar, mesmo implicitamente, a socializacZo como um processo “passi- vo" de transmissao de normas e de aquisicao de papéis. Em todos os casos, © ator ndo faz mais emergir uma ordem coletiva preestabelecida, e sobretu- do, € 0 proprio quadro situacional, ¢ ndo mais a internalizacao das normas, que define as atitudes. Para Goffman, que encarna de maneira mais forte 16 Para esta vistio da modemidade, ver Giddens, 1991. 17 No sentido de deslocada do centro [N. do T.} 18 atualmente a orientago encarnada na Franga por Boudon, que construiu o programa de uma sociologia cognitiva das “boas razées” do agir e do acreditar (Cf. Boudon, 1986; 1990; 1995). ASOCIALIZAGAO E A FORMACAO ESCOLAR 251 essa representacdo do individuo, o sujeito se define pela gesto incansdvel de suas imagens face aos outros. A subjetividade pode ser auténtica ou cfnica mas est sempre aquém ou além da “mascara” ou do “papel” (Goff- man, 1968; 1973). Para os fenomendlogos trata-se, no essencial, de estudar as bases da aco na consciéncia, muito mais que 0 peso das estruturas so- ciais sobre a aco; € necessério ir além de uma definigdo da socializacao como internalizagao das “tipificagdes” das pessoas (Schutz, 1974; Schutz, Luckmann, 1977)!9, No interacionismo simbélico o ator nao esté tanto sob o dom{nio da motivagao (interna ou externa); ele é uma unidade reflexiva e interativa capaz de pensar de maneira auténoma e de adaptar, pelo dis- tanciamento, os simbolos adquiridos as suas proprias necessidades. A so- cializagao se dissolve na interagao (Blumer, 1969). Enfim, para os etnome- todélogos, a ordem social ndo repousa sobre a comunhio das normas mas emerge como atividade prética no curso da interagao cotidiana (Cicourel, 1979; Garfinkel, 1967). O quadro simbélico nunca é perfeitamente mtituo; ambiguo por natureza, obriga os individuos a agir por intermédio de um conjunto de “razes préticas” mais ou menos conscientes. Mas, para além de todas essas diferengas — que no so meros de- talhes -, insistamos sobre dois pontos essenciais de acordo. Em primeiro lu- gar,e mesmo que o argumento nao seja sempre expresso nesses termos, ¢ pro- priamente o grau de diferenciagao crescente da sociedade que d4 conta, em iltima andlise, dos estados crescentes de diferenciagao individual. Em segun- do lugar, o conjunto dessas teorias insiste sobre.a distancia entre 0 individuo e asociedade, Deste ponto de vista, 0 estranhamento em relagdo ao mundo easi mesmo, torna-se o principal dilema dos sujeitos contemporaneos®. SOCIALIZAGAO E INTEGRACAO SOCIAL Como as teorias da socializagao se articulam com as teorias ge- rais da integragdo social? Duas grandes posigdes se destacam claramente ¢ no fazem outra coisa que retomar, de diferentes maneiras, 0 debate opon- 19 No conjunto desses trabalhos a énfase recai sobre a dimensio cognitiva (a ligagdo entre 0 sentido subjetivo e as condigdes objetivas), e mesmo a intemalizago das normas € concebida 3r uma perspectiva cognitiva. Este dilema esté presente de uma maneira critica sobretudo entre as feministas. Entretanto, ¢ mesmo se a carga critica €a mesma, podemos destacar as duas representagdes diferentes do ator social. De um lado, € possfvel observar uma concepgao “patriarcal” — que no fundo mobiliza ‘uma representago moderna do individuo jé que a mulher é definida pela internalizagao dos va- lores dominantes~c, de outro, uma concepgio que insiste sobre a forte distinciaestabelecidaen- tre aexperiéncia feminina e sua situagao social ~a mulher seria forgada ase ver com os olhos do ‘Outro, o homem, estabelecendo-se entdo um rompimento entre o {ntimo vivido eos tipos socizs. 252 LUA NOVA N° 40141 —97 do, j4 h4 um século, Durkheim a Spencer: da integragdo social & inte- gracao sistémica (Lockwood, 1975). As duas posig6es se ap6iam em con- cepgSes diferentes da vida social. Para a primeira, a integragdo social supde uma cultura comum aos atores e a possibilidade de coordenar as agdes por meio de normas estabelecendo a reciprocidade das condutas. Para a segunda posigao, a integracao da sociedade se opera por intermédio de mecanismos impessoais, notadamente o dinheiro e 0 poder, indepen- dentemente de um acordo preestabelecido entre os individuos. Evidente- mente, essas duas concepgdes ndo excluem algumas concessdes: Durk- heim jé sublinhava a importéncia dos mecanismos sistémicos na coorde- nagdo das agdes em uma sociedade de solidariedade organica, enquanto que Spencer supunha, implicitamente, a existéncia de individuos socializa- dos, pelo menos de um ponto de vista cognitivo. A integragao social © modelo da integragao social suspende o estabelecimento de uma ordem e de uma regularidade do sistema de acordos culturais e nor- mativos. A medida que a socializacdo harmoniza as condutas, as expectati- vas e as capacidades de adaptagao dos atores, ela € o fundamento da or- dem social. A ligagdo entre o ator eo sistema nao € dada mas reconstrufda nos e pelos individuos na sua socializagao. E nesse sentido que a sociali- zagdo torna-se uma espécie “de equivalente universal” da sociologia, que visa a estabelecer correspondéncias entre as posigSes sociais e préticas. A socializagdo € ao mesmo tempo o que explica as condutas e 0 que as con- dutas devem explicar. E pouco importa aqui a maneira pela qual esta ligagdo € precisamente estabelecida, seja pela internalizagao de um con- junto de normas, seja por meio de uma teoria da argumentagiio”!, seja ain- da por diferentes maneiras pelas quais os atores rearticulam seu universo pessoal as dimensdes sociais. Que esta ligagdo seja “firme” ou “difusa”, é sempre a partir dela que pode ser interpretada a integragdo da sociedade. Para autores como Parsons ou Habermas, e apesar da grande atengao dedi- cada aos processos de integragdo sistémica, esté claro que a socializagio detém o papel maior na manutengdo do equilibrio da sociedade. E a rever- sibilidade'do ator e do sistema que est4 no centro desta representagdo. A 21 # sobretudo esta a proposta de Habermas, para quem 0 descentramento das imagens do mundo € 0 desencantamento exigem, afim de coordenar as ages, a liberacdo dos principios endégenos de validade dos discursos e préticas. A argumentagio € seus prolongamentos institucionais tornarn-se 0 mecanismo maior de coordenagdo das ages, o que Habermas cha- ‘ma a “racionalizagio do mundo vivido". Todo desvio desta situagao normativa ideal é julga- do por Habermas como a patologia propria da modemnidade. A SOCIALIZACAO E A FORMAGAO ESCOLAR 253 “personalidade” € uma disposigdo forjada pela sociedade; daf o lugar ocu- pado em suas obras, como na de Durkheim, pela andilise das fraquezas das crises de motivagdo, e pela anomia, qualquer que seja seu nome”. A integracao sistémica ‘A segunda concepgdo da integracdo nfo reserva um papel central & socializago na explicagdo da integrac&io social. Certamente os autores estdo longe de negar a realidade a um processo de socializagao dos individuos mas, doravante, este processo nao mais permite estrutu- rar a sociedade. A sociedade é concebida seja como 0 resultado de uma agregacdo, mais ou menos aleatéria, de diferentes agdes individuais apoiadas por miltiplas motivagées, seja como um encavalamento, sem princfpio central, dos dominios de ago, cujo acordo nfo é mais estabe- lecido em todos os ambitos da sociedade, mas a partir de cada sistema parcial em acordo com as redes comunicacionais, sempre conjunturais. Nao € mais possfvel continuar a aceitar a idéia de uma suposta coerén- cia do sistema social, ¢ a sociedade € premida entre as exigéncias cultu- rais do modernismo, os princfpios da sociedade politica e os imperati- vos da produgéo (Bell, 1978). A sociedade moderna opera uma transferéncia do peso essencial da integragio social em direcio aos principios de integracdo sistémica por meios cada vez mais impessoais que coordenam as agdes dos individuos, externamente aos seus arranjos culturais (Luhmann, 1991; De Georgi, 1993). Privilegia-se, assim, o es- tudo das diferentes distancias entre as motivagdes dos individuos e os resultados de suas agdes. Na base dos “efeitos perversos” est sempre a separacdo da objetividade e da subjetividade, maneira de insistir no cardter aleatorio e conjuntural de toda regulagdo social (Boudon, 1977). A evolugo hist6rica das sociedades ocidentais, o ritmo e a extenséo da mudanga social, determinam a constituigdo de uma sociedade complexa. As situages objetivas e “sistémicas” se autonomizam em relagdo as di- mensées subjetivas da ago; a regulacdo das relagées sociais nao pode mais ser vista somente no dmbito local, ela exige a consideragéo de um conjunto mais vasto e mais impessoal, aquele dos mecanismos de inte- gracdo sistémica. Efeito emergente ou mecanismo sistémico auténomo, a integraco do sistema nao pode mais ser confundida com os acordos culturais € normativos. 22 Como tema de “desvio” em Parsons (1951), ou quando a crise de motivagao é percebida como uma das maiores crises do capitalismo, em Habermas (1978). 254 LUA NOVA N° 40/41 —97 O ESPACO DAS TEORIAS DA SOCIALIZACAO As teorias da socializago opdem os adeptos de uma teoria da internalizagao aqueles de uma teoria do distanciamento. Cada um desses dois grandes conjuntos pode ser associado as duas teorias fundamentais da integragao. EB o cruzamento desses dois eixos que permite estruturar o campo do debate sociolégico sobre a socializagao. Mecanismos de integragao Tipos de socializagao _Integragdo social _Integrago sistémica Internalizagao 1 2 Distanciamento 3 4 1. O ator e o sistema sao as duas faces de uma mesma realidade e € por meio da teoria da socializagdo que se forja a inte- gracdo da sociedade. A socializacdo torna-se um equivalente geral da prdpria sociologia; ela é 0 que explica as condutas 0 que os socidlogos devem explicar. A socializaco permite abordar 0 individuo por meio das ligagdes entre essas duas dimensdes. A socializagiio nfo descreve apenas um mecanis- mo, ela é também a resposta ao “problema de Hobbes”. O in- teresse dos funcionalistas pela escola e pela educagao € dire- tamente tributdrio dessa concepgdo de integraco social e de socializagdo. A escola, mas também a familia e a religido so concebidas como instituigdes, aparelhos capazes de transfor- mar valores em normas, normas em disposigées e dispo- sig6es em personalidades individuais. 2. Asegunda familia te6rica associa a concep¢do “moderna” da socializagao & idéia segundo a qual a integragao social se realiza por mecanismos impessoais. No mais das vezes, es- sas teorias s4o de inspirag4o marxista e estruturalista. No es- sencial, 0 tema da socializagao, se nao esteve verdadeira~ mente ausente da tradigZo marxista?’, esté longe de ocupar 23 A parte a produgio soviética do perfodo, o tema esta presente na obra de certos marxistas influenciados pela fenomenologia, na descendéncia dos trabalhos gramscianos sobre a hege- monia ou ainda nos estudos de inspiragio marxista que tratam da escola, Entre esses ‘iltimos, varios defenderam uma concepeZo, € implicitamente, um papel da socializagio que ‘0s aproxima muito da posigao precedente. Cf. Althusser, 1970; Baudelot, Establet, 1971; Bowles, Gintis, 1976. ASOCIALIZACAO E A FORMACAO ESCOLAR 255 uma posig&o central, Esta auséncia relativa se explica pela importancia dos elementos impessoais e estruturas que defi- nem os mecanismos da ordem social: estruturas relativa- mente independentes da vontade dos atores. Ademais, a propria nogdo de classe social, verdadeiro sujeito-objeto do marxismo, torna-se 0 equivalente coletivo do personagem social da tradig&o socioldgica. f claro, a problemitica da so- cializagdo mostra claramente a tensdo existente entre os “dois marxismos”, um mais objetivista, outro mais subjeti- vista; um abordando a integragdo social como resultado de um estado de desenvolvimento das forgas produtivas e das relagGes de produgdo, 0 outro integrando o peso da ideologia dominante na reprodugdo da sociedade. Mas nos dois casos, forgosamente concluimos que € menor 0 papel da sociali- zagao como principio explicativo da continuidade social, as- sim como 0 da existéncia de uma concepgao da socializagao como internalizagao de um conjunto cultural, como atestam as diversas versdes da “falsa consciéncia” e da consciéncia como “reflexo” do mundo social. 3. Essas teorias insistem sobre 0 peso da individuagao e se ape- gam a uma representagdo “pés-moderna” da socializagdo mantendo, a0 mesmo tempo, uma concepgao social da inte- gragdo. A nogdo de socializagdo conserva, 4s vezes, apenas de maneira normativa, um papel maior na integragdo da sociedade. Freqiientemenie, 0 problema da ordem social e da manutengio das estruturas sociais nao € abordado em si mes- mo, mas a vontade de interpretar a vida social a partir do tra- balho dos atores e da ligago que eles estabelecem entre as dimensées objetivas e subjetivas de sua ago reserva um lu- gar central aos prinefpios de integragdo social. Foi a adogo deste modelo que conduziu Habermas a uma visio critica da modernizagao. Em uma concep¢do deste tipo, as esferas diferen- ciadas da sociedade devem buscar suas fontes normativas no mundo vivido. Os meios impessoais da integragdo sistémica deveriam ser simplificagdes das conexées hipercomplexas do mundo moderno. Este acordo, pervertido no capitalismo contemporaneo, teria reificado as estruturas simbélicas do mundo vivido (Habermas, 1978), sua colonizaciio avangando juntamente 24 Nao nos esquegamos que na tradigio marxista a nogao de “socializagio” faz referéncia, antes de mais nada, a coletivizagdo dos meios de produc. 256 LUA NOVA N° 40/4) — 97 com a crise de motivagao e, logo, de socializagao dos individuos. E também este o propésito de Giddens sobre a “dualidade da estrutura”, a um s6 tem- po, condico e resultado das préticas constitutivas dos sistemas sociais. Trata-se de insistir ao mesmo tempo sobre o carater contingente das in- teragdes, das competéncias dos atores sociais e sobre a reprodugao dos sis- temas sociais ao longo do tempo e do espaco. A recorréncia da vida social faz com que as estruturas sejam, a0 mesmo tempo, regras e expedientes; alids, as regras conhecidas pelos atores sociais nem sempre so explicitas, freqiientemente se tratando apenas de uma consciéncia pratica. Ora, mesmo se a articulagdo da sociedade passa por mecanismos impessoais como 0 di- nheiro e os sistemas especializados, a socializagdo detém um papel chave na teoria da estruturacdo (Giddens, 1987). 4. A quarta familia de teorias insiste sobre a separacdo radical da subjetividade dos atores e dos grandes princfpios de inte- gragdo societal. E notadamente o caso da teoria geral dos sistemas de Lubmann, na qual a diferenciagao funcional or- ganiza os processos de comunicagao em torno das fungoes especiais, necessdrias e independentes. A ordem social nao é mais estabelecida a partir da sociedade e de maneira hierarquica, mas a partir de cada sistema parcial (politico, administrativo, religioso, econédmico...) de acordo com as redes comunicacionais, sempre conjunturais. Neste quadro, © sujeito perde toda consisténcia real e torna-se “produto” do princfpio funcional de redugdo da complexidade, verda- deiro guia dos sistemas sociais. Cada subsistema social, re- gido por um programa “identitério” fechado, se adapta as perturbagdes vindas do exterior que, no entanto, nao modifi- cam 0 programa inicial. A complexidade da sociedade mo- derna obriga, segundo Luhmann, a rentincia do estudo da vida social a partir de sujeitos individuais e leva a centrar a an4lise nos subsistemas, Gnicos “atores” verdadeiros. Em uma concepgao deste tipo, 0 sujeito é fragmentado e defini- do pela sua distdncia em relagiio aos sistemas sociais dos quais ele é apenas 0 contorno, e a socializagdo tem um papel menor enquanto princfpio de ordem social no seio de um Unico subsistema social. Uma problemética deste tipo também est no coragdo do de- bate “micro-macro” da sociologia anglo-sax. A articulagio entre as rea- lidades macrossociolégicas ¢ as realidades microssociol6gicas torna-se A SOCIALIZAGAO E.A FORMAGAO ESCOLAR 257 altamente problematica, pois nao h4 acordo perfeito entre as duas di- mens6es, As teorias afirmam o cardter interdependente de cada sistema e © desenvolvimento, em cada um deles, de propriedades emergentes proprias. Elas destacam também uma desarticulagao radical entre os dife- rentes nfveis?5. Mas, em todos os casos, a resposta ao problema da inte- gracio da sociedade nao é mais fornecida por intermédio da teoria da socializacdo. A idéia de uma separago dos dominios se impée; insiste- se sobre a distancia crescente entre 0 sujeito e o mundo social e sobre a incapacidade de uma teoria da socializagZo de dar conta da integracio da sociedade. ‘A mesma representago esté também presente em certas versdes do individualismo metodolégico. De um lado, qualquer que seja a verossimilhanga social e psicolégica da hipétese do ator racional utilita- rista, o individuo € sempre definido, ao menos in abstracto, pelas capaci- dades estratégicas e cognitivas que n@o se devem ao contexto € as nor- mas. Do outro lado, a ordem social se explica, no fundo, com a ajuda de um principio de regulaco social homélogo ao mercado, concebido a um s6 tempo enquanto princfpio nao transcendente da ordem, redutor da complexidade, e canal de circulagdo de informagées. O mercado permite, em um Unico movimento, dar conta da interrelagao de elementos diversos sem principio central e da explosdo das particularidades. O modelo do mercado nao exige sequer a comunicagaio das razGes da conformidade; 0 cAlculo individual, por meio de uma série de formas de agregacdo, pro- duz condutas adaptadas. Evidentemente, nao se trata aqui de reduzir as teorias socio- l6gicas, sobretudo as mais ricas, a um ou outro desses quatro tipos. Algu- mas oscilam de um p6lo a outro, outras exibem um nticleo duro e aspectos secundérios. Mas podemos admitir que esses tipos estruturam 0 campo da sociologia da socializag4o e que definem posigdes fundamentais entre as quais os pensamentos mais flexiveis podem circular. Este sobretudo 0 caso das teorias de inspiragdo fenomenol6gica e interacionista que nao se remetem necessariamente a uma concepgao global da integragdo social. Deste ponto de vista, a recusa de uma concepgo programada da sociali- zagio pode permanecer relativamente indeterminada e se acomodar a varias representagdes da sociedade. Essa distingéio dos dois tipos de pro- blemas € referida com humor pelo proprio Goffman quando ele escreve: “ndo me ocupo da estrutura da vida social, mas da estrutura da experiéncia individual da vida social. Dou pessoalmente prioridade & sociedade e con- 25 Para uma apresentagdio exaustiva da ligagdo “micro-macro”, ver Ritzer, 1993 (capitulo 10); Alexander, 1988. 258 LUA NOVA N° 40/41 — 97 sidero os engajamentos dos individuos como secundérios: este trabalho, portanto, trata apenas do que é secundério” (Goffman, 1991:22). Nao é portanto surpreendente que haja tantos “Goffman” quanto leitores: cinis- mo e vazio das classes médias para uns, sistema todo poderoso para ou- tros6. Quanto & etnometodologia, ela postula que a questo da natureza da integragao global do sistema nao esté fundada em um ponto de vista epis- temolégico. O carter relativamente indeterminado de todo 0 espaco do que chamamos por vezes as “novas sociologias” nao significa que elas nao tenham algum interesse ou que esta auséncia mesma nao coloque um pro- blema fundamental: a saber, se a idéia de sociedade € dtil para a sociolo- gia. Mas esta mesma indeterminaco pode explicar 0 sucesso dessas teo- rias; elas ndo postulam uma representagdo da vida social. A SOCTALIZAGAO ESCOLAR Porque constitui um domfnio acidentado, a sociologia da escola poe em evidéncia a diversidade e a especificidade dos conjuntos teéricos que tentamos trazer & luz, Ela permite também situar essas teorias, suas or- dens de sucesso, € mostrar como elas podem, as vezes, se combinar. Nas linhas que se seguem, evocaremos particularmente a sociologia francesa da escola. A partir do quadro tedrico proposto € possivel destacar quatro defi- niges sociolégicas da escola além das representagdes mais comuns. 1. A escola é uma instituigdo Esta definigdo da escola coresponde ao modelo 1 e pode ser plenamente ilustrada pela concepgao durkheimiana da educagio. Em larga medida a escola preenche as fungdes proprias da socializagao religiosa nas sociedades tradicionais. Ela socializa os atores com valores laicos e univer- sais das sociedades modernas. Sempre levando em conta a especificidade das posigdes sociais, ela forma individuos tanto mais auténomos quanto mais fundados na coletividade e na Razio moderna sio os valores que co- mandam a educagdo. Nao hé contradigao entre a autonomia do ator e a inte- graco social; mais ainda, quanto mais socializado € 0 individuo, mais ele € senhor de si mesmo. Esse modelo se apresenta como uma “paidéia funcio- nalista”, associando a adaptagao do individuo & plenitude de sua humani- dade. A cultura escolar nao é uma cultura de classe, é uma cultura nacional moderna, isto é, uma cultura ao mesmo tempo especffica e universal, o que 26 O mesmo juizo poderia ser feito das diversas leituras de Simmel. A SOCIALIZACKO E A FORMAGAO ESCOLAR 259 muitos hoje chamam uma cultura “tepublicana”, porque ela forma franceses e cidadiios capazes de exercer seus préprios julgamentos. O percurso mesmo da socializago escolar repousa sobre uma ho- mologia profunda entre a filogénese e a ontogénese (Durkheim, 1922; 1925; Dewey, 1990). No momento em que a crianga, como o “primitivo”, é plena- mente social, e esté como que “hipnotizada” pelo mestre, a escola a conduz, pouco a pouco para um mundo mais complexo e mais abstrato. A obediéncia “natural” e 0 realismo moral descritos por Piaget so substitufdos por uma imagem mais distributiva da justiga e da reciprocidade das relagdes huma- nas. O grupo dos pares sucede 0 lago de autoridade e © ator torna-se um in- dividuo & medida que se domina a si mesmo, muito mais do que obedece aos mestres e ao controle do grupo de seus pares??. Os exercicios escolares de- vem permitir a critica. Ao mesmo tempo que a escola cria individuos e ci- dadaos, ela assegura a integraco de uma sociedade nacional moderna em um momento no qual a religidio j4 ndo est4 mais em condigdes de cumprit este papel. Mas sabemos a que ponto Durkheim apontou para as afinidades entre as duas instituigGes, sobretudo destacando a dimensao “sagrada” da fungo do instrutor. O cardter “encantado” desta concep¢ao da educagao nao é,evidentemente, ingénuo, mas deposita uma grande confianga na educacao como modo de formagao dos individuos e como chave da integragdio social. Principalmente para Durkheim, implica também uma antropologia pessi- mista j4 que a anomia coletiva e 0 instinto de morte individual so apenas duas faces do mesmo vazio social. Assim, “quando nossa consciéncia fala, € a sociedade que falaem nds” ( Durkheim, 1925:76). Além da confianga na modernidade af implicada, essa con- cepgao da escola ndo supde apenas que a educagao seja adaptada aos “‘cos- tumes”; ela clama por uma harmonia entre a estrutura social e a formagaio escolar, uma forma de justiga que foi a do “elitismo republicano”. A cultu- ra escolar é “neutra” ¢ universal e, por este viés, opera uma selecio dos melhores, cada um encontrando, a seu tempo, o lugar que Ihe convém. Os talentos e as posigdes se harmonizam da mesma maneira que a subjetivi- dade dos individuos e a objetividade das fungdes sociais s4o percebidas como duas faces da mesma realidade. 2. A escola é um aparetho A sociologia da educagao que se desenvolve na Franga a partir de Os herdeiros ¢ de A reprodugdo, obras conjuntas de Bourdieu e Passeron, 27 Lembremos que Parsons (1959) retomou este tipo de raciocinio apresentando a classe ‘como um sistema social 260 LUA NOVA N° 40/41 —97 prolonga o modelo precedente, mas o desencanta, apresenta dele uma versao critica. Ela prolonga porque afirma a influéncia do social e, fre- qiientemente, a acentua. Mas a tonalidade critica conduz a atribuir um poder ao sistema que nao é mais definido em termos de integragdo social mas em termos de dominagio sistémica. Onde a idéia de instituigao destacava a con- tinuidade e a harmonia das personalidades e dos valores, a idéia de aparelho sugere que a influéncia das finalidades objetivas do sistema se impée para além da consciéncia dos atores. A ilusdo ea cegueira dos atores se inscrevem_ na distancia entre 0 individuo e o sistema. Como diz Bourdieu em O sentido prdtico, Durkheim deve ser “revisitado” por Marx (Bourdieu, 1980). A teoria da reprodugo comanda a da socializagao desde que 0 modelo de instituigao € submetido a uma critica cujos argumentos essenciais so conhecidos. O carter universal e neutro da cultura escolar é recusado. A grande cultura escolar, por sua abstragdio e sua formalizagao, aparece como um “ardil” da dominagio de classe. Se é necessdrio que os agentes acreditem ‘em sua neutralidade é para melhor mascarar 0 papel dos c6digos lingilfsticos e dos pressupostos implicitos pedagégicos que estabelecem familiaridades e convivéncias entre as classes dirigentes e os cédigos escolares (Bernstein, 1975). A educagao € o ardil de uma dominagao legitimada pela distancia mesma da socializagao e da objetividade do sistema de dominagao. Os mem- bros das classes populares aprendem a obedecer, os das classes dominantes aprendem a crer na legitimidade de seu poder; uns e outros so aprisionados em uma socializagao cujo sentido real Ihes escapa. Esta representagao da es- cola, nuangada em Bourdieu e Passeron, adquiriu aspecto mais radical ainda em Althusser (1970) e seu alunos (Baudelot, Establet, 1971). A escola nao forma nem individuos nem sujeitos, ela produz “sujeigao”. ‘A nogdo de aparelho emerge como o contra-modelo da nogao de instituigdo no momento em que a massificagdo escolar enfraquece as ilusdes da escola republicana. Quando a massificagao escolar e a insta- lag&io progressiva do colégio tnico deveriam engendrar uma igualdade crescente de oportunidades, observou-se rapidamente que as desigual- dades se mantinham ou que ndo se atenuavam de maneira sens{vel, e que as diversas relagdes com o estudo permaneciam fortemente marcadas pela origem social dos alunos. A critica da ideologia do dom desempe- nhava entdo um papel essencial: ela demonstrava a uma s6 vez a influén- cia total da socializagiio, 0 peso das fungées objetivas do aparelho escolar e aquele da ilusio, e até mesmo da alienagdo no proprio processo pe- dagégico. Mesmo se a nogdo de habitus afirma a unidade da objetividade e da subjetividade, permanecem visiveis, no aparelho escolar, as finali- dades dos atores e as fungdes do sistema, e face a isso, a sociologia deve assumir uma atitude de dentincia. A SOCIALIZACAO E A FORMACAO ESCOLAR 261 Pode-se discutir essa interpretago da concepgdo de Bourdieu. Mas, de fato, ao afirmar que a ordem social é “aquela que reina nos cére- bros”, ao insistir sobre a harmonia estabelecida entre a objetividade e a subjetividade, Bourdieu parece se colocar no quadro geral de uma inte- gracio social, e nao haveria nenhuma dificuldade em fundamentar esta lei- tura. Entretanto, ao mesmo tempo Bourdieu escolhe uma posigdo critica na qual a cegueira do ator ndo é mais uma limitagdo de seu entendimento mas uma necessidade da dominagdo. A liberdade do ator aparece como uma ilusdo em face das “leis” do sistema. Esta cegueira no é mais que a distancia do ator ao sistema. 3. Aescola miltipla A idéia da escola miiltipla se diferencia dos dois modelos prece- dentes, Mas ela permanece ligada ao tema da integragdo social, interpre- tando a socializagao em termos de atividades dos individuos (modelo 3). E © que tentamos delimitar com a nogdo de experiéncia escolar. Porém, im- porta primeiramente admitir a diversidade e a autonomia das fungdes da escola. A idéia de instituigdo deve ser decomposta em varias fungdes ana- liticamente independentes: uma fungdo de integragao que procede do mo- delo “classico” da socializagao pela internalizagéio; uma fungao de distri- buigdo que leva a considerar a escola como um “mercado”; uma fungdo de subjetivagao ligada & relago particular que os individuos constréem com a cultura escolar (Dubet, Martuccelli, 1996). E porque essas diversas fungdes se autonomizam progressivamente que a socializagio nao pode mais ser vista em termos de aprendizado de papéis, mas em termos de construgo de experiéncias. Dito de outra maneira, a unidade da sociali- zagGo nao esta mais dada aos atores, mas deve ser construida por eles, 0 que implica que a socializagdo deve estar centrada sobre o distanciamento. Mas essa concepgao “fragmentada” da socializagio nao deve nos conduzir ao tema de um corte radical entre 0 ator e o sistema. Com efeito, cada uma das légicas da experiéncia escolar remete a uma das fungdes objetivas da escola e depende de mecanismos de socializagao auténomos e de processos de determinagao especificos. Se os individuos constréem sua experiéncia ¢ sua socializagdo de uma maneira autOnoma e “livre”, eles o fazem a partir de um material cultural e social que nao Ihes pertence, Assim, a integragao social aparece como o produto do trabalho dos atores. Essa representagao da escola e da socializagao renuncia a todo prine{pio de unidade, quer se trate dos valores, da dominagao ou do merca- do. Como os modelos 2 ¢ 4, ela leva em conta as mutagées da escola repu- 262 LUA NOVA N° 40/41 — 97 blicana na qual a massificagdo e a democratizagdo introduziram os meca- nismos do “mercado”, e onde todos os alunos s4o confrontados as tensdes mais vivas entre a cultura escolar de um lado, e as culturas escolares e ju- venis, de outro. Estariam também neste modelo as andlises nitidamente centradas na diversidade dos prinefpios sociais em trabalhos relativos as “economies de la grandeur”, quando as normas de justiga aparecem como contraditérias e milltiplas, quando a integracdo social é mais o produto da atividade dos individuos do que dos valores “transcendentes” do sistema (Boltanski, Thévenot, 1991). 4, 0 mercado da educagéo ‘Trés anos apés A reprodugdo, Boudon (1973) fornece uma in- terpretagio alternativa da desigualdade de oportunidades. Ainda que esta obra ndo pretenda propor uma teoria da escola e da educagio, ela fornece uma visio construfda sobre a dualidade das intengdes dos atores e dos efeitos sistémicos. Os equilibrios do sistema nao repousam sobre qual- quer finalidade integrativa global mas so simplesmente o resultado dos efeitos agregados das escolhas dos atores; o sistema funciona como um mercado. Quanto & teoria da socializagdo implicita nesta andlise, ela se coloca © mais longe possivel do modelo cléssico da formagao dos in- dividuos e repousa inteiramente sobre 0 postulado da racionalidade dos individuos que decidem e escolhem em fungdo de sua percepgaio de seus interesses e dos recursos de sua situag2o. A psicologia abstrata do indivi- dualismo metodolégico jamais se define como uma internalizagao do so- cial, mas como uma capacidade prépria de julgamento. De imediato, 0 ator é considerado como um individuo auténomo, muito mais que um agente que internalizou uma cultura e valores. E por esta razio que essa concepgio latente da escola se situa no modelo 4 que nés propusemos, e se mantém distanciada dos modelos precedentes. No limite, essa repre- sentago da escola e mais genericamente, da sociedade, conduz menos a uma teoria da socializagZo que a uma sociologia cognitiva concebida como uma sociologia da construcao da racionalidade individual, dentro de um quadro social definido como uma situagdo, e nao como uma cultu- ra internalizada. Quanto ao sistema, € um equilfbrio mais ou menos estavel no qual a demanda supera a oferta; em todo caso, nao é um siste- ma de integracdo mais ou menos funcional. Ainda que se situem em uma orientagdo totalmente diferente, poderfamos encontrar a mesma dualidade em certos trabalhos de inspi- racdo interacionista e etnometodoldgica. Como mostrou claramente Four- quin, a propésito da “nova sociologia da educagdo” britanica, a andlise dos A SOCIALIZAGAO EA FORMAGAO ESCOLAR 263 micromecanismos de socializagéo centrados sobre as capacidades de criagdo e de adaptagdo dos atores, sobretudo na classe, permanece descola- da do funcionamento geral do sistema escolar (Fourquin, 1983). Dito de outro modo, 4 medida que destacam a autonomia e o distanciamento dos individuos, os processos de socializagdo podem permanecer simplesmente limitados a um nivel microssociolégico ou, ao contrério, participar de teo- rias mais gerais, notadamente aquelas da reproduciio. Mas, no limite, 0 corte analitico entre os nfveis micro e macro é, neste caso como no de Goffman, um dos tragos essenciais desta concepgao da socializagao como individuagéo. Desse ponto de vista as teorias interacionistas podem se acomodar a diversas teorias da integrago geral do sistema social. Nao sur- preende, portanto, que elas sejam mobilizadas nas quatro definigées da es- cola que propusemos, e que essas mesmas teorias interacionistas nao pro- ponham nenhuma definigao da escola. sek A medida que as teorias da socializagao so necessariamente teorias da conformidade e da “clonagem’” e teorias do individuo e de sua autonomia, elas oscilam, para além de suas caracteristicas préprias, entre varios pélos que tentamos construire distinguir. Para o primeiro conjunto, nao poderia haver uma verdadeira contradicao entre as duas dimensées: a internalizagao do social é também uma subjetivagio, o que supée, a rigor, uma grande confianga nos valores da modernidade. Sabemos que Durkheim, que melhor construiu esse modelo, nao escondia alguma angistia e pessimismo. No segundo conjunto, a socializagdo se reduz a in- ternalizac¢do do social, pois se as disposigbes adquiridas permitem adap- tages ¢ estratégias, a redugiio do sistema a mecanismos de dominagao concebe a individualizagao como ilustio ou como uma questio de estilo. O terceiro pélo tedrico & constitufdo de teorias que se esforgam em conciliar a individualizagao e o distanciamento com uma andlise de processos so- ciais de integragao; é recusada a separacao entre 0 ator ¢ o sistema. Enfim, © titimo pélo justapde uma teoria auténoma do individuo a uma con- cep¢do também auténoma do sistema. Este quadro nao pretende dar conta de todas as teorias da socia- lizagdo. Ele deixa sobretudo de lado as teorias de inspiragdo interacionista e fenomenolégica. Evidentemente nao se trata de um esquecimento e tam- pouco significa que essas teorias nfo tenham interesse. Mais simples- mente, essas teorias da socializacao nao se distinguem quanto ao lugar da 264 LUA NOVA N° 40/41 — 97 socializago nos mecanismos de integragdo geral do sistema. Eo que mos- tra a breve referéncia as teorias da escola que propusemos: a partir de seus postulados tedricos, elas descrevem a socializagdio mas nao dizem nada da natureza social da escola. FRANCOIS DUBET € professor de Sociologia da Universidade de Bordeaux Il e pesquisador do CADIS/CNRS, Paris. DANILO MARTUCCELLI € pesquisador do CADIS/CNRS, Paris. REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS Alexander, J. “The New Theoretical Mouvement”. In: Smelser, N. (org.) Handbook Of Soci- ology. London, Sage, 1988, Althusser, L. “Idéologies et Appareils Idéologiques D'état”. La Penseé, Juin 1970. Baudelot, C. Establet, R. L’école capitaliste en France. Paris, Maspero, 1971. Bell, D. Les Contradictions Culturelles du Capitatisme. Paris, Puf, 1978. Berger, P. Luckman, T. La construction sociale de la réalité. 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