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Dogmiatica juridica e a crise de legitimagao do Estado moderno Pauto pe Tarso Ramos Risemo Auailiar de Ensino do Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direlto de Fa- euldade de Direlto da Universidade de Séo Paulo SUMARIO 1S pboumitiea e epistemologia — Algumas constderagdes — Dogmética e ideologia — A legitima- Ba das estruturas jurtdicas. UY — Funda, social da ymatica — Os paradoros da legitimacdo instituctonat. I — Dogmdtica e epistemotogia — Algumas consideragdes metodot6gicas A abordagem do tema da fungio social da dogmiética juridica exige algumas consideragdes preliminares de natureza epistemoldgica cuja impor- tincia se faz tanto mais presente quanto se proponha a relacionar © tema da fungao social com o problema da legitimacdo institucional das estruturas juridicas. Vejamos assim o que podemos entender por dogmética juridica. Aproximando-nos de seu uso mais generalizado, ¢, na esteira de WARAT ("), dirfamos que a dogmitica juridica é a “atividade que tem a pretensio de estudar © direito positivo vigente sem construir sobre 0 mesmo jufzos de valor. E a tentativa de formular uma teoria sistemética do direito positive baseada em sua aceitago acritica, e que, mediante a elaboracio conceitual do direito estabelecido, explicitaria sua coeréncia, denotando a pseudolégica que © ordena.” Neste sentido a dogmatica se propée com fundamento em uma Iégica positivista, a descrever a ordem legal da maneira mais isenta de sorte a desvincular os conceitos juridicos da “‘irracionalidade” do subjetivismo axiolégico de cada um. Afirma-se, portanto, como eriadora de construgdes tedricas que se fundamentam na distingao entre 0 plano descritivo e o plano prescritivo; o plano das explicagées e o plano dos argumentos justifica- dores. Na expressio de BOBBIO (?), procede a uma confusio mais ou menos ()_ WARAT, Luis Alberto, Ensino © Saber Jurfdico. Rio de Janeiro, Eldorado — Tica, 1977. (2) Cf. BOBBIO, Norberto. Contritucién a ta Teoria del Derecho, ‘Trad. e orga- nizagio de textos a cargo de Alfonso Rulz Miguel. Valencia, Fernando Torres Editor, 1980, p. 105, Ro Inf, legisl. Brosilio o. 26m. 102 abe./jun, 1989 u7 generalizada entre “formalismo juridico e formalismo ético”. O direito assim € concebido como um fenémeno mais ou menos universal cujas estrutures normativas possuem uma articulagfio natural de base imanente a0 real, 0 que, em iltima andlise, impée sobre a dogmética, enquanto ciéncia juridica, a tarefa de, descrevendo estas relagdes, explicitar o direito como objeto dessa investigacdo. Dai o interesse dos juristas em geral pelo estudo da “natuteza juridica” dos “‘institutos” de direito, a preocupaggo em cons- tituir séries conceituais, como direito subjetivo, direito de propriedade, direito das coisas etc., a divisio do direito em dois grandes ramos, o piblico eo privado, enfim, uma sistematizagao te6rica cuja preocupagio maior parece ser a da produgio de um discurso juridico universal dotado de uma completude légica, manifesta na elaboragao de tratados, por exemplo. A dogmética constréi-se assim, através de enormes redes paralelas de segées cujas malhas abarcam e delimitam o universo ontoldgico dos “insti- tutos” juridicos, o que, de resto, nos conduz & constatagao de uma dualidade Tégica em todo 0 fenémeno juridico, pela qual se & ou nfo juridico con- forme se esteja ou no inserido nas redes de conceitos. Neste quadro muito amplo, cuja caracteristica bésica € a concepgdo do direito ora como norma, ora como realidade empirica, € que a dogmitica enfrenta o seu dilema metodolégico. Daf a proposta de autores como KELSEN em tratar 0 direito a partir de sua especificidade maior: 0 man- damento normativo contido nas normas juridicas. Trata-se, em um certo sentido, de uma tentativa de despir a investigagao juridica de toda carga ideolégica no sentido de predilecdes valorativas, sociolégicas, politicas etc. Por isso, h& que falar-se, com telagio a KELSEN, de uma Teoria Pura do Direito ¢ néo de uma Teoria do Direito Puro. Todavia, o pro- blema que se coloca é 0 de saber se de fato é possivel formular uma teoria ideologicamente neutra, sem se reproduzir, ainda que veladamente, uma série de argumentos persuasivos que, em dltima andlise, instauram uma espécie de “socializagao” do conjunto de valores aceitos pelo Estado. Esta & uma questio metodolégica que antecede a propria anélise dos padries de disseminagao do conhecimento cientifico postulados pela dogmética e que, € bom que se ressalte, produziram ao longo do tempo algo semelhante a uma perversio axiolégica da proposta kelseniana, como alids niio poderia deixar de acontecer. Explico-me: se, de um lado, a proposta de KELSEN assume a necessidade metodolégica de uma investigagao juridica pura, no sentido de uma validag&o auto-referente das normas pelo sistema juridico; de outro, a dogmética, em sua pretensio ontolégica universalizante, por assim dizer, retira a validade do plano normativo para situé-la no mundo do real. Isto é, a disting%o operada pelo neo-kantismo de KELSEN entre mundo natural e mundo normativo é misturada pela dogmética na aceitagio da validade dos conceitos normativos como um problema de natureza des- ctitiva e no de carter prescritivo. Outra nfo foi a azo pela qual BOBBIO se referiu & confusio operada pelos juristas, em geral, entre formatismo &tico © formalismo juridico. O primeiro, impondo sobre a dogmética a ne- 118 R. Inf. tegist. Brasilia a. 26 n, 102 abr./jun. 1989 cessidade de uma valoragdo na aplicacdo ¢ até mesmo nas premissas do pensamento jurfdico. E 0 segundo, entreabrindo para o direito a possibilidade de uma investigagao que, na perspectiva positivista de N. BOBBIO (*), se The apresenta como uma teoria cientifica, eis que estabelece uma ética e um certo método para conhecer 0 fenémeno juridico. O problema, no entanto, & saber se o método jé nfo traz consigo uma ética de justificagao de sua escolha ¢ as implicagdes que dai podem nos chegar. Deixemos, no entanto, a andlise da op¢iio metodolégica kelseniana ape- nas como fator que, por assim dizer, ilumina a nossa preocupagdo maior com 0s pardmetros de construgéo do pensamento dogmético. Ora, admitindo-se a distingo proposta por VIEHWEG (*) entre modos dogmético e zetéico de pensar, podemos extrair algumas conclusées que nos interessam de perto. De infcio constatamos que a noc&o de dogma est4 intima e etimologicamente ligada ao sentido do ato de doutrinar, isto €, sob um certo angulo o pen- samento dogmético esté fundamentalmente preccupado em orientar a ago humana. E é este compromisso com a ago que faz do pensamento dogmé- tico um pensamento onde nao pode haver duividas, sob pena da ago ficar paralisada, Vale dizer, a nocdio da ddvida e o compromisso com a ago, ou melhor, a eliminago da dtivida tendo em vista o compromisso com a ago & que orientam a movimentagéo do pensamento dogmético de forma bipo- Jarizada: 1 —~ estabelecidas as premissas, estas nao podem ser alteradas; 2 — comprometido com a ago social, o pensamento néo questiona o fun- damento racional-valorativo da sua proposte. Essa “standardizagéo” dos valores que otientam a agdo é que levaria um autor como LUHMANN(®) a falar em uma interrupcao na reflexividade ad infinitum dos valores quando da positivagao normativa do direito, o que, em outras palavras, equivaleria a assumir as notmas juridicas enquanto mandamento de natureza dogmé- tica, isto é, comandos que nao admitem ordens contratias. Sao, por essa razdo, premissas que determinam pontos de partida sobre os quais nio pode haver diividas, embora se tenha, a0 menos ao nivel da especulagaéo filoséfica, a certeza de que s6 hd dogma porque hé ddvida; houvesse a evidéucia da realidade a conhecer, nao haveria dogma, scnao axioma, A di- mens&o ideolégica do problema com que se defronta a dogmética juridica reside exatamente no fato de que, em fungdo de um estruturalismo posit vista de ambigées ontolégicas, que impregnou ao longo do tempo a anélise dos juristas dogméticos, propde-se o dogma como se fora axioma, o pres critivo como se fora descritivo, 0 argumento persuasive como se fora explicativo. Diziamos, no entanto, que, em face 20 pensamento dogmético, VIEHWEG (°), propde o modo zetético de pensar como aquele modo cujas (@) Cf, BOBBIO, Norberto. Op. cit, p. 106. @® Ct. VIEHWEG, Theodor. Tépica ¢ Jurisprudéncia, Brasilia, Imprensa Nacio~ nal, 1979. (8) LUHRMANN, Niklas. Positive law and Ideology. In The Di/ferenciation of the Society, New York, 1989. © VIEHWEG, Theodor. Op. cit. R Inf. ogi liao. 26m. 102 abr./jun, 1989 ng ‘premissas sfo ¢ sero sempre e continuamente questionadas, razio pela qual este ndo possui nenhum compromisso, seja para com a ago, seja para com suas prdprias premissas. Por conseguinte, a possivel construgio de um direito sem dogma se situa exatamente aqui no sentido de uma dialética no mais de natureza hegeliana, que apontaria para uma sintese final, mas de uma dialética que remonta a Aristételes e sobre a qual se poderia consta- tar como Gnica ortodoxia o préprio movimento heterodoxo da dialética. Ora, precisamente o que se pretende de um ponto de vista sociolégico nio é tanto assumir uma perspectiva zetética em sua plenitude, o que nos conduziria a um raciocfnio eternamente circular, mas o de admiti-la enquan- to fundamento de uma construgdo analitica e de um discurso cient{fico que, por isso mesmo, se pretende aberto, compreensivo e responsdvel. Neste sentido, analisar a dogmética juridica hoje exige, do observador mais atento, a consciéncia epistemolégica de que a teoria delimita 0 objeto que labora, imprime, na expressio de WARAT (), “sua particular marca teérica a0 objeto, seleciona, filtra, elege e delineia, em conformidade com o arsenal analftico que utiliza este mesmo objeto”. Dessa forma, qualquer conhecimento, por mais objetivo que parega, jamais € a reprodugo da ordem real. Quando muito, se poderia dele falar como uma “representacdo” ou “aproximacdo” do objeto real, que lhe serve de Perspectiva ¢ referéncia. Por isso, falamos em discurso aberto, res compreensivo, 0 que, em dltima instincia, nos lembraria POPPER (*) quando diz que a ciéncia € “um saber lacunoso”. Todavia, poder-se-ia argiiir, A luz do arsenal analitico de que se vale a dogmética juridica e “& Ja KELSEN”, de que o direito nao trabalha com fatos, mas com normas, ou ainda, segundo LUHMANN, de que o direito, exatamente em fungao de sua dimensio normativa, coloca-se como a garantia de expectativas contrafati- cas. Vale dizer, nao importa o que é, mas o que deve ser. E 0 que deve ser legitima-se por si s6, sem referéncia ao mundo da causalidade, Nao obstante, como adiante veremos, a legitimacéo do discurso juridico néo se tem limi- tado a referéncias normativas em cadeias hierdrquicas, mas antes a dogmé- tica tem feito seu objeto de legitimagao institucional uma série de outros ‘mecanismos em cima dos quais se tem obtido retérica e substantivamente 3 obediéncia politico-juridica. Il — Dogmdtica ¢ ideologia — A legitimagdo das estruturas juridicas Mas, afinel, em que consistem as relagées que poderiam ser estabele- cidas entre 0 discurso juridico proferido pela dopméties ea ideologia domi- nante? Como se justifica 0 discurso jurfdico perante seus destinatdrios? BOBBIO aponte-nos para uma miscelanea operada na praxis juridica entre as nogdes de formalismo ético e formalismo juridico, através da qual se identifica uma concepoao legalista da justiga, que nos conduz, afinal, & justificagéo do ordenamento jurfdico independentemente do fato de que o contetido das normas seja este ou aquele. A justiga de uma norma nao (D WARAT, Luis Alberto, Op. cit, cap. I Bpistemologia e Direlto. (8) POPPER, Karl. Logic of Scientific Discovery. London, 1959. 120 R. Inf, legisl. Brasilia @, 26 on, 102 abr./jum, 1989 estaria assim nesta ou naquela prescrigéo, mas simplesmente no fato de a norma ser ou no legal. Para LUHMANN, no entanto, a ideologia desem- penha, nesta perspectiva, um papel justificador de extraordinaria importin- cia através de um processo interno de perversao valorativa. Neste sentido, entendidos os valores enquanto pontos de vista que selecionam a opgao das agdes € a ideologia como elemento neutralizador dos valores divergentes, dirfamos que, através da avaliagio dos valores, a ideologia desempenha, com selago ao direito, uma dupla funcdo: de um lado, exerce uma fungio programética ou instrumental, pela qual direciona a escolha dos valores normativos, ¢ de outro, mediante uma fungdo simbélica, incorpora simbolos que acionam os destinatdrios da norma juridica, no sentido de uma aceita- G0 acritica das decisées proferidas pelo sistema juridico. Tal pervers yalorativa torna os valores variaveis a partir de um “standpoint” ¢ a avalia- fo ela mesma reflexiva. Os valores normativos passam assim a ser enten- didos e instrumentalizados a partit de um ponto de referéncia cujas premis- sas esto, por assim dizer, imunes 3s criticas. Ora, outro nao € o funda- mento de todo o modo de pensar dogmético. Consegiientemente, nfo € de estranhar que a dogmatica ¢ a ideologia andem, no final das contas, bem préximas uma da outra. Temos, pois, no modelo luhmanniano de legitima- gao do direito, de um lado, a ideologia enquanto elemento de consolidagao da perversio valorativa, e, de outro, as normas como programas de acao. A interagao complementar e integradora que se possa estabelecer entre ambas & responsvel pela estabilizacéo funcional das relagdes juridicas. O dircito se legitima, pois, institucionalmente, na medida em que é capaz de produzir uma atitude de prontidéo generalizada no sentido da aceitagéo mais ou menos acritica das decisdes do sistema jurdico (°). Em um certo sentido, substitui-se a tenséo de qual deciséo ocorrerd pela certeza de que uma decisdo seré proferida, o que, em outras palavras, significa admitir a legiti- magao pela racionalidade formal em detrimento da racionalidade material. Isto é, nao importa o que, mas como; a forma aqui nao é estéril, ela possui a condao de legitimar através de seus procedimentos formalizadores as estru- turas juridicas, Poderse-ia, no entanto, indagar até que ponto esta nogio de legitima- go nfo se constitui em uma espécie de saber tecnolégico, na medida em que assume os valores dominantes como premissas de um raciocinio preten- samente descritivo. Dito em outras palavras, 0 que nos parece hoje funds- mental indagar € até que ponto a assungéo de um modelo epistemolégico impermeével & critica, em que pese a sua aparente abertura para uma refle- xo problematizadora, nfo atua afinal como um modelo, cuja tarefe especi- fica no 6 apenas de encobrir relagSes sociais e de poder, de um ponto de vista estritamente politico, mas talvez, antes ¢ sobretudo, a de produzir a iluso funcional de que 0 saber dogmatico € aberto ¢ responsdvel, de onde a sua dimensio ideolégica. A “ciéncia juridica” aparece assim como um saber indiferente as relagdes de poder. A politica € vista como o campo “‘rracional” objeto da “sistematizagio” e “racionalizago” juridicas, .UHMANN, Niklas, Legitimagdo pelo Procedimento. Brasilia, Ed. UnB, 1990. @ R. Inf. legisl. Brasilia a. 26 9. 102 abr./jun, 1989 at cujo fruto maior, ao fim, é 0 surgimento de uma instincia ideoldgica, sobre- tudo na medida em que esta atribui significacdes discutiveis A realidade social, plasmando-a na expresso do Prof. WARAT (*°), com um discurso “reificante, a-histérico, ¢ com pretensdes de generalidade ¢ universalize- ¢Go”. A dogmética implica, assim, uma “saturagdo ideolégica” no conheci- mento juridico que, ndo obstante, proporciona com isso um efeito de iden- tidade entre o saber € a realidade concreta. Isto 6, a construcéo analitica é vivida como se fora a propria realidade social considerada. Tudo isso nos conduz no limite & seguinte constatacdo: se a legitimi- dade das estruturas juridicas se reduz & capacidade de que dispée o poder de ser efetivo, seja pela obtencao do consenso — 0 que nos parece imposs{- vel em sociedades fracamente integradas ¢ com baixo coeficiente de parti- cipagio politica —, seja pela adesdo mecinica & “evidéncia” institucional das relagdes de poder, toda estrutura politico-juridica é legitima conquanto se faga obedecer, o que, de resto, muito se aproxima do que anteriormente denominados, com base em HABERMAS ("'), de saber tecnocrético. Por outro Jado, apor um valor e-hist6rico, porém continuamente pre- sente na dialética do justo e do injusto como o referencial legitimador das estruturas normativas, em uma perspectiva fundamentalmente jusnaturalista, sé los apresenta como uma soluc&o utépica e idealizante na medida em que néo resolve, histoticamente, o problema da legitimaco das estruturas jurf- dicas. Daf o dilema em que se encontra a dogmética juridica ¢ que nos leva a falar em paradoxos da legitimacao institucional. A idéia de crise, pois, & tanto mais nitida conquanto se reconhesa que ela se reprodur, quer a0 nivel. epistemoldgico, na auséncia de parimetros definitivos para a anélise da idéia de legitimidade — 0 que, alids, nos coloca a indagacio se, de fato, a nogao de legitimidade nao é ela mesma uma falsa questo — quer a0 nfvel educacional, onde a dogmitica, em tiltima instincia, desenvolve e reproduz © seu saber. Passemos, pois, A andlise mais detida da questfo. TU — Funcan social da dogmdtica — Os paradoxos da legitimagao institucional Admitida, pois, a impossibilidade, quer de uma justificago dltima dos sistemas normativos com base em um valor transcendente, do tipo justi- ca, pot exemplo, quer de uma legitimagio institucional, com fundemento afinal na efetividade do poder, a questo da legitimagao das estruturas sociais normativas assume uma dimensio aporttica. Isto é, néo é possfvel sair do problema sem um momento prévio de opcéo e de arbftrio, no sentido de uma selegio entre alternativas que se no so incompativeis, sfo, pelo menos, divergentes. Dai a saida pata uma dimensao pragmética da nogéo de legitimidade, como um “jogo-sem-fim”, proposta pelo Prof. 0) WARAT, Luls Alberto, O sentido comum teérico dos juristas, In Condog- ‘métioa. Ftorianépolis, Almed, 1961. QD HABERMAS, Jirgen e LUHMANN, Niklas. Theorie der Gesellschaft oder Soztaltechnologie: Was Lelsiet dte Systemforschung? Frankfurt, 1971. 122 R. Inf, legis! Brosilia 0. 26 n, 102 abr-/jua. 1989 TERCIO SAMPAIO FERRAZ JR. (), como Gnica maneita de assumir 0 carater aporético do discurso dogmdtico. Ora, estas conclusdes parecem Jevar-nos a um certo relativismo quanto & questio da legitimidade, alis, bem proximo da perspectiva positivista. O direito torna-se, entéo, um ins- trumento de controle € de manipulagdo, o que entreabre para nés a dimen- sio “tecnolégica” do saber juridico a que nos referiamos anteriormente. Em outras palavras, a dogmética langa mao de um arsenal analitico, por meio do qual e através de sutis mecanismos de persuasdo, impoe signifi- cagdes como legitimas, dissimulando as relagGes de forga que estio no fundamento desta forca, ¢ que, em Ultima andlise, exercem sobre os desti- natérios do saber juridico aquilo que BORDIEU ¢ PASSERON(*) chama- ram de um “poder de violéncia simbélica”. Os problemas que dai decorrem para o estudo da fungao social da dogmética, com particular 6nfase no ensino juridico, podem ser assim genericamente situados em dois planos: no primeiro, coloca-se aquilo que © Prof. JOSE EDUARDO FARIA (') denominou de dilema hamletiano da dogmatica juridica: “a angustiante escolha entre adaptar-se as _condi- des sdcic-econémicas emergentes, assumindo tarefas com dimensées até entio ignoradas pelo legislador liberal, ¢ para as quais teria de substituir a inspiracdo individualistica dos cddigos tradicionais por solugSes meta- individuais, ou manter suas caracteristicas ortodoxas, correndo, assim, o risco de perder por completo sua fungdo social de fornecedor de certeza, seguranca, liberdade e igualdade formais”. E, num segundo plano, situa-se aquilo que nds poderfamos chamar de um impasse epistemolégico na repro- ducdo pedagégica da cultura juridica, na medida em que os estudantes, de uma maneira geral, so objeto de uma espécie de educacio “domestica dora”, através da qual se instila valores e construgdes analiticas da reali- dade, cujo cardter anacrénico fica tanto mais evidente quanto mais a socie- dade se moderniza, aprofundando com isso o dilema de Hamlet a que se vé submetida a ciéncia dogmitica, Fica clara, portanto, a impossibilidade da separaco entre educac&o € politica, de um lado, e a ingenuidade de se encarar a crise do ensino juridico como um problema de ordem mera- mente pedagégica, de outro. Vive-se, com efsito, o problema de saber quais os limites éticos im- postos & aceitacio passiva da crise de identidade da dogmética juridica. Vale dizer, & possivel a construgio de um modelo teérico de reprodugio das relagdes sociais juridicas onde nao haja violéncia simbélica e a pro- blematizagio dos simbolos e das regras seja uma constante? Ou talvez antes, existe sociedade onde a experiéncia histérica tenha comprovado a (G2) FERRAZ JR,, Tércio Sampaio. Teoria da Norma Juridica: Ensato de Prag- mética da Comunicagdo Normativa. RJ, Forense, 1978. (18) BOURDIEU, Pierre e PASSERON, Jean Claude. La Reproduction, Paris, 1970. (44) FARIA, José Eduardo, Direito, modernizacdo e autoritarismo: mudanga sécio-econémica 2 tiberatismo juridico-politice. S80 Paulo, ‘Tese de Doutoramento apresentada & Faculdade de Diretto da USP, 1981. R. inf, legis! Brositia a, 26 n. 102 abe./jun. 1989 123 possibilidade de uma “‘situacio comunicativa ideal”, como nos aponta JORGEN HABERMAS? (*) Para utilizar o proprio cédigo cientifico de HABERMAS, € possivel as sociedades prescindirem de seus “principios organizacionais” enquanto elementos que lhe conferem identidade, ou até TMesmo assumir, como o proprio cardter, a heterodoxia da problematizagao dos simbolos? Em sociedades em desenvolvimento ¢ altamente estratificadas € certa- mente muito dificil responder afirmativamente a estas questes. Tanto mais quando se tem em conta que a complexidade e a diferenciagio funcional das sociedades de massas impdem a necessidade de regras de organizago e de um mfnimo — e ev me arriscaria a dizer um méximo — de violéncia simbélica na regulagdo dos conflitos — que assim se véem institucionali- zados — e, por via de conseqiiéncia, na positivacao do direito, © que todas estas indagagées nos apontam, todavia, & talvez aquilo que poderfamos chamar de dimensdo ¢tica dos sistemas nonmativos que, assim, funciona como uma espécie de continuo contraponto 4 dinémica das relacdes juridico-sociais, ao mesmo tempo em que pée a descoberto os, assim chamados, paradoxos da legitimaco institucional. A idéia de crise, pois, que permeia toda a nocdo de paradoxos de legitimacdo, se manifesta nos distdrbios persistentes de integracdo do sistema social ¢ do subsistema juridico. Contudo, no nos referimos aqui aquela nogdo sisté- mica de crise cujos limites de exploséo esto, por assim dizer, controlados, no sentido de uma légica sincrénica com os objetivos dltimos dos sistemas sociais, Nao se trata, assim, apenas de um problema de contradigdes aci- dentais na dinamica das relagdes sociais intra-sistémicas, mas, sim, de con- tradicdes estruturalmente inerentes que, por isso mesmo, se colocam em diacronia com a existéncia continua dos parimetros de justificagéo institu- cional dos sistemas juridicos. ‘As respostas pata esse dilema certamente se situam ao nivel das proprias contradigdes paradigmaticas da ciéncia e filosofia juridicas. Neste sentido avangar na contradiggo € avancar na ciéncia. O que fica, no entanto, como residuo infinito de perplexidade para os juristas dogméticos € uma questio até certo ponto ambfgua, porquanto coloca, de um lado, a necessidade de uma justificacao ética dos dogmas em razdo mesmo de sua natureza dogmética e, de outro, apresenta as contradigdes estruturais dos sistemas normativos como um impasse & construgdo analitica da prépria no¢io de legitimac&o institucional. Como ficamos? A aporia é ainda maior se assumimos a reflexividade axiolégica ad infinitum da nogdo de legitimi- dade, como quis o jusnaturalismo. Talvez por essas e outras razdes 6 que a antinomia proposta por WEBER entre racionalidade formal ¢ racio- nalidade material seja posta como o fundamento de um dilema que 6 tanto maior conquanto se apresente nas malhas conceituais de uma “‘ciéncia” dita dogmatica. 8) HABERMAS, Jirgen. A Crise de Legitimagéo do Capitalismo Tardio, RJ, ‘Ed. Tempo Brasileiro, 1980. 14 R. Inf. legis, Brastio 0. 26 nm, 102 abe./jun. 1989

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