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Prefacio do autor A S conferéncias que se seguem foram pronunciadas no Insti- tuto Lowell, em Boston, em novembro e dezembro de 1906, e em janeiro de 1907, na Universidade de Coltimbia, em Nova lor- que. Foram impressas conforme o original, sem desenvolvimentos ou notas. O movimento pragmdtico, chamado assim — ndo gosto do nome, mas, aparentemente, é tarde demais para mudd-lo — parece ter-se precipitado algo subitamente das alturas. Certo ni- mero de tendéncias que sempre existiram na filosofia, tornaram-se todas de uma s6 vez cénscias de si mesmas coletivamente, e de sua missao em conjunto; e isso ocorreu, em tantos paises e de tantos Pontos de vista diferentes, que dai resultou muito pronunciamento desajustado. Procurei unificar 0 quadro conforme se me apresenta aos meus préprios olhos, tratando-o em largas pinceladas, e evitan- do as controvérsias mitidas. Muita controvérsia fitil poderia ter sido evitada, acredito, se nossos criticos estivessem dispostos a aguardar até que tivéssemos dado conta de nossa mensagem. Se minhas conferéncias interessam a algum leitor de assunto geral, sem dtivida que desejaré ler mais a respeito. Envio-o, por- tanto, a algumas fontes. Na América, Studies in Logical Theory, de John Dewey, sao Sfundamentais. Ler, também, por Dewy, os artigos em Philosophical Review, vol. XV, pdginas 113 e 465, em Mind, vol. XV, pagina 293, e em Journal of Philosophy, vol. IV, pagina 197. Provavelmente, os melhores pronunciamentos para se come- ¢ar, entretanto, sdo os de F.C.S. Schiller, em seus Studies in Humanism, especialmente os ensaios de nimeros I, V, VI, VII, XVII e XIX. Seus ensaios anteriores e, em geral, a literatura polémica Sobre o assunto, recebem citagdo por extenso em suas notas de rodapé. Mais ainda, ver J. Milhaud: Le Rationnel, 1898, e os finos artigos de Le Roy em Revue de Métaphysique, vols. 7, 8 e 9. Ver, também, os artigos de Blondel e De Sailly em Annales de Philo- sophie Chrétienne, 4éme Série, vols. 2 e 3. Papini anuncia um livro a respeito de Pragmatismo, em lingua francesa, para ser publicado em breve. A fim de evitar pelo menos um mal-entendido, digo que ndo ha conexdo légica entre 0 pragmatismo, como eu o compreendo, e uma doutrina que dei a lume recentemente como “empirismo ra- dical”. Essa ultima se sustenta por si prépria. Pode-se rejeitd-la Por inteiro e ainda assim continuar sendo um pragmatista. Universidade de Harvard, abril de 1907. 4 PRIMEIRA CONFERENCIA O atual dilema da filosofia N © Prefacio 4 sua admir4vel colegio de ensaios, intitulada Heretics, Chesterton escreve essas palavras: “Ha algumas pessoas — e eu sou uma delas — que pensam que a coisa mais pratica e importante relativamente a um homem é ainda sua viséo do universo. Achamos que para uma senhoria que considera 0 seu inquilino, o importante é conhecer os seus rendimentos, porém ainda mais importante é conhecer sua filosofia. Achamos que para um general prestes a combater um inimigo, o importante é saber 0 nimero de inimigos, porém mais importante ainda é saber a filosofia do inimigo. Achamos que a questao nao é se a teoria do cosmos afeta os negécios, e sim, porém, se a longo prazo sao afetados por alguma coisa”. Afino com Chesterton nesse particular. Sei que vocés, senhores e senhoras, tém uma filosofia, cada qual e todos vocés, e que a coisa mais interessante e importante é a maneira pela qual determina a perspectiva em seus diversos mundos. Vocés sabem o mesmo de mim. E, nao obstante, confesso um certo tremor pela auddcia da tarefa que estou prestes a encetar. Para a filosofia, 0 que é tao importante em cada um de nds nao é um preparo técnico; € 0 nosso mais ou menos senso comum do que a vida honesta e profundamente significa. E somente em parte obtido nos livros; é a nossa maneira individual de ver e sentir exatamente a carga total e presséo do cosmos. Nao tenho direito de presumir que muitos de vocés sejam estudantes do cosmos, no sentido escolar, porém aqui estou eu desejoso de interess4-los por uma -filosofia que, em nao menor extensdo, tem de ser tratada tecnicamente. Desejo fazer com que simpatizem com uma tendéncia contemporanea, na qual acredito profundamente, e, entretanto, tenho de falar como um professor a quem nao é estudante. Qualquer que seja o universo em que o professor acredite, deve ser, de qualquer modo, um universo que se preste a um discurso prolongado. Um universo definivel em duas palavras € alguma coisa para a qual o intelecto professoral nao tem uso. Nenhuma fé em qualquer coisa de espécie tao barata! Temos visto amigos e colegas tentarem popularizar a filosofia nesse mesmo recinto, mas logo se tornam 4ridos e, entao, técnicos, e os resultados somente em parte foram encorajadores. Desse modo, minha tarefa € ousada. O préprio fundador do pragmatismo deu recentemente um curso de conferéncias no Instituto Lowell, referente ao titulo em epigrafe — coriscos de luz brilhante dardejados contra a nossa ignorancia crassa! Nenhum de nds, suponho, compreendeu tudo quanto ele disse — e, contudo, aqui estou eu, arriscando-me a uma aventura semelhante. Corro 0 risco porque essas mesmas conferéncias de que falo arrastaram — atrairam bom auditério. H4, deve-se confessar, uma curiosidade faScinante em escutar coisas elevadas expostas em palestras, mesmo que nem nds, nem os expositores, as compreendam. Somos levados pela emogio da problematica, sentimos a preseriga da vastidao. Deixem uma controvérsia tomar pé em um recanto qualquer, seja sobre livre arbitrio ou a onisciéncia de Deus, seja sobre o bem e€ © mal, e vejam quantos em roda comegam a prestar atengao. Os resultados da filosofia dizem respeito a todos nés de maneira fundamental, e os mais intrigantes argumentos filoséficos titilam agradavelmente 0 nosso senso de sutileza e de inventiva. Acreditando eu mesmo devotamente na filosofia, e acreditando também em que uma nova espécie de aurora desponta para nés, fildsofos, sinto-me impelido, por fas ou por nefas, a tentar comuni- car-lhes algumas novas da situagao. A filosofia €, a0 mesmo tempo, a mais sublime e a mais trivial das empreitadas humanas. Opera nas brechas mais estreitas e se abre para os mais vastos horizontes. Nao “enche barriga”, como ja foi dito, mas pode inspirar nossas almas com coragem; e repelente como suas maneiras, suas dtividas e desafios, seus sofismas e dialéticas freqiientemente 0 sao para a gente comum, nenhum de nds pode prosseguir sem a luz longinqua que espraia pelas pers- pectivas do mundo. Esses clardes, pelo menos, e os efeitos contras- tantes de mistério e escuridéo que os acompanham, emprestam ao que diz um interesse que € muito mais que profissional. A hist6ria da filosofia é, em grande parte, a de uma certa colisao de temperamentos humanos. Indigno que possa parecer a alguns de meus colegas um tal tratamento, terei de levar em conta esses choques e explicar por seu intermédio grande parte das divergéncias filos6ficas. Qualquer que seja o temperamento de um fildésofo profissional, trata, quando filosofando, de encobrir o fato de seu temperamento. O temperamento no é razo convencionalmente admitida, com o que langa mao das razdes impessoais somente para as conclusGes. Seu temperamento, contudo, confere-lhe uma distor- ¢4o mais forte do que qualquer de suas premissas mais estritamente objetivas. Sobrecarrega-lhe a evidéncia desse modo ou de outro, estabelecendo uma visdo mais sentimental ou mais realistica do universo, justo como esse fato ou aquele principio o fariam. Confia em seu temperamento. Necessitando de um universo que se lhe adapte, acredita em qualquer representag4o de universo que se lhe adapta. Sente que os homens de temperamento oposto estao fora de sintonia com o carater do mundo, e em seu intimo considera-os incompetentes e “por fora” do negécio filoséfico, embora mesmo possam excedé-lo a perder de vista em matéria de habilidade dia- lética. No tribunal, todavia, nao pode reivindicar, na simples base de seu temperamento, por autoridade ou discernimento superiores. Decorre dai, pois, uma certa insinceridade em nossas discusses filos6ficas: a mais poderosa de nossas premissas jamais € mencio- nada. Estou certo de que contribuiria para a clareza se, nessas conferéncias, rompéssemos essa regra e a menciondssemos, e eu, de minha parte, sinto-me livre para poder agir dessa maneira. Naturalmente que falo aqui de homens positivamente bem marca- dos, homens de idiossincrasia radical, que impuseram sua chancela e feitio 4 filosofia, e figuram em sua hist6ria. Platao, Lock, Hegel, Spencer, séo esses pensadores sentimentais. Muitos de nds, natu- ralmente, nao tém um temperamento intelectual definido, somos uma mistura de ingredientes contrarios, cada qual presente em proporgdes bem moderadas. Conhecemos imperfeitamente nossas proprias preferéncias em matéria de assuntos abstratos; alguns de nés somos facilmente desalojados da conversa, e terminamos por seguir a moda ou nos harmonizamos com as crengas do fildsofo mais impressionante da vizinhanga, seja qual for. Uma coisa, porém, que tem pesado até agora na filosofia é que um homem deve ver as coisas, vé-las diretamente em sua propria maneira peculiar de ver, € nao se satisfazer com qualquer modo contrario de vé-las. Nao ha razao em supor que essa forte viséo temporamental v4 de agora por diante deixar de contar na histéria das crengas humanas. Agora, a diferenga particular de temperamento que tenho em mente ao estabelecer essas observagGes é a que tem sido levada em conta em literatura, arte, governo e costumes, tanto quanto em filosofia. Em maneiras, encontramos pessoas formalistas e desen- voltas. Em governo, autoritarios e anarquistas. Em literatura, puristas ou académicos, e realistas. Em arte, cl4ssicos e romanticos. Reco- nhecem-se esses contrastes como familiares; bem, em filosofia temos um contraste bem semelhante expresso pelo par de termos “racionalista” e “empirico”, este ultimo significando o adepto dos fatos em toda a sua crua variedade, e “racionalista” traduzindo o devoto aos principios eternos e abstratos. Ninguém consegue viver uma hora sem fatos e principios, com o que é antes uma diferenga de énfase; gera, contudo, antipatias do mais pungente carter entre os que poem a nota enfatica diferentemente; e acharemos extraordi- nariamente conveniente expressar um certo contraste nos modos dos homens tomarem seu universo, falando do temperamento “em- Pirico” e do “racionalista”. Esses termos tornam 0 contraste simples e solido. Mais simples e sdlido do que isso, s4o, usualmente, os homens de quem os referidos termos sao predicados. Pois cada tipo de permutacao e de combinagao é possivel na natureza humana; e se agora procedo a definir mais completamente o que tenho em mente quando falo de racionalistas e empiricos, acrescentado a cada um desses titulos algumas caracteristicas qualificativas secundarias, solicito considerarem minha conduta como arbitraria, até um certo ponto. Seleciono tipos de combinagao que a natureza oferece muito freqiientemente, mas de maneira alguma uniformemente, e os seleciono somente por sua conveniéncia em auxiliar-me em meu propésito posterior de caracterizar o pragmatismo. Historicamente, encontramos os termos “intelectualismo” e “sensacionalismo” usa- dos como sinénimos de “racionalismo”. Bem, a natureza parece combinar mais freqiientemente com 0 intelectualismo uma tendéncia idealistica e otimista. Os empiricos, por outro lado, sao comumente materialistas, e 0 seu otimismo é apto a ser decididamente condicio- nal e trémulo. O racionalismo é sempre monistico. Parte dos con- juntos e dos universais, e faz muito com a unidade das coisas. O empirismo parte das partes, e faz do todo uma colegao — nao é, pois, absurdo chamé-lo de pluralistico. O racionalismo usualmente considera-se mais religioso do que o empirismo, mas hd muito que dizer a respeito dessa pretensaéo, pelo que meramente fago-lhe mengio. E pretensio verdadeira quando o racionalista individual é © que é chamado um homem de sentimentos, e quando o empirico individual jacta-se de ser um racionalista. Nesse caso, 0 raciona- lista usualmente também estar4 a favor do que é chamado livre arbitrio, e o empirico sera um fatalista — fago uso dos termos mais popularmente correntes. O racionalista, finalmente, seré de tempe- ramento dogmiatico em suas afirmag6es, ao passo que o empirico pode ser mais cético e aberto as discussdes. Escreverei esses tragos abaixo em duas colunas. Penso que se reconhecera praticamente os dois tipos de construgao mental que tenho em mente se encimo as colunas pelos titulos “espirito terno” e “espirito duro”, respectivamente. Espirito terno Espirito duro Racionalista (que Empirico (que segue “principios”) segue “fatos”) Intelectualista Sensacionalista Idealista Materialista Otimista Pessimista Religioso Irreligioso Livre arbitrista Fatalista Monista Pluralista Dogmatico Cético Peco retardar por um momento a questo que implica se as duas misturas contrastantes que alinhei sao cada qual interiormente coe- rentes e auto-adaptadas ou nao — logo estarei em condigGes de ter muito o que dizer a respeito. Basta para nosso propésito imediato que o espirito terno € 0 espirito duro como pessoas, caracterizadas conforme estabeleci, existem ambos. Cada um dos senhores pro- vavelmente conhece alguns exemplos bem marcantes de cada tipo, e os senhores sabem o que cada exemplo pensa do exemplo do outro lado da coluna. Tém uma opiniao baixa um do outro. Seu antagonismo, sempre quando como individuos seus temperamentos foram fortes, tem formado em todas as idades uma parcela da atmosfera filoséfica da época. Forma parte da atmosfera filoséfica de hoje. O duro considera 0 terno como sentimentalista e idealista. O terno acha que o duro nao é refinado, e sim bruto ou grosso. Sua reagao miitua € bem parecida com a que sucede quando turistas sofisticados topam com a populagao de um lugarejo em caixa- pregos. Cada tipo acredita que o outro seja inferior; mas o desdém em um caso vem misturado com distrag4o, no outro tem uma ponta de medo. Agora, como ja insisti anteriormente, poucos de nés somos puros e simples turistas sofisticados, e poucos sao tipicos capiaus do interior, em filosofia. Muitos de nds tém um anelo pelas boas coisas em ambos 0s lados da linha. Os fatos sao bons, naturalmente — queremos fatos aos montes. Os principios sao bons — queremos principios a mancheias. O mundo é€ indubitavelmente um se vocé 0 olha de certo modo, mas sem diivida é muito se vocé o olha de outra maneira. E tanto um quanto muito — adotemos uma espécie de monismo pluralistico. Tudo, naturalmente, é necessariamente determinado e, nao obstante, naturalmente nossas vontades sio livres: uma espécie de determinismo livre-arbitrio é a verdadeira filosofia. O mal das artes é inegdvel, mas 0 todo nao pode ser mau: assim, 0 pessimismo prdtico pode ser combinado ao otimismo metafisico. E assim por diante — o leigo comum de tendéncias filoséficas nao sendo jamais um radical, jamais extravasando de seu sistema, mas vivendo vagamente em um compartimento plau- sivel de um ou de outro, para se acomodar as tentagdes das horas sucessivas. Alguns de nés, porém, somos mais que meros leigos em filo- sofia. Somos dignos do nome de atletas amadores, e nos sentimos vexados com tanta incongruéncia e vacilagao em nosso credo. Nao podemos preservar uma consciéncia intelectual condigna enquanto nos mantivermos misturando os incompatfveis dos lados opostos da linha. E chego agora ao primeiro ponto positivamente importante que desejo fazer. Nunca houve tantos homens de uma tendéncia decididamente empirica em existéncia como os ha hoje em dia. Nossas criangas, pode-se dizer, nascem quase cientificas. Nossa estima pelos fatos, porém, nao nos neutralizou de todo a religiosi- dade. E ela propria quase religiosa. Nosso temperamento cientifico € devoto. Tome-se agora um homem desse tipo e deixe-se que seja também um amador filosdfico, sem disposigao para misturar um sistema de mixérdia conforme o modelo de um leigo comum, e que situagao acha que € a sua, nesse ano sagrado de nosso Senhor, 1906? Quer fatos; quer ciéncia; quer, também, porém, uma religiao. E sendo um amador e nao um criador independente em filosofia, naturalmente que procura por um guia entre os técnicos e profis- sionais que depara ja no terreno. Grande nimero dos senhores aqui presentes, possivelmente a maioria, sao amadores justamente desse tipo. Agora, que espécie de filosofia encontra vocé atualmente ofere- cidas, capazes de atender as suas necessidades? Encontra-se uma filosofia empirica que nao é bastante religiosa, e uma filosofia religiosa que nao é bastante empirica para os seus propésitos. Se olhar para 0 sitio onde os fatos s4o mais considerados, encontra o programa todo dos espiritos duros em operagio, e 0 “conflito entre a ciéncia e a religiao” em plena efervescéncia. Ou é aquele bruto roceiro de um Haeckel com o seu monismo materialista, seu deus etéreo e sua gozacao ao seu Deus como um “vertebrado gasoso”; ou é Spencer tratando a histéria do mundo como uma redistribui¢ao somente de matéria e de movimento, e despendido a religiao poli- damente para fora da porta da frente — pode, na verdade, continuar a existir, mas nunca mais deve mostrar sua face dentro do templo. Por cento e cingiienta anos passados, o progresso da ciéncia pareceu significar o alargamento do universo material e a diminui- gao da importancia do homem. O resultado € 0 que se pode chamar 0 crescimento do sentimento naturalistico ou positivista. O homem nao é legislador para a natureza, é um absorvente. A natureza € que permanece firme; o homem é que se deve acomodar. Que registre a verdade, embora seja desumana, e se submeta! A espontaneidade e a coragem romanticas foram-se, a visao € materialista e deprimente. Os ideais aparecem como subprodutos inertes da fisiologia; 0 que é mais alto € explicado pelo que € mais baixo, e tratado para sempre como um caso de “nada, a nao ser” — nada, a nao ser qualquer coisa outra de uma espécie completamente inferior. Tem-se, em suma, um universo materialista, no qual somente o espirito duro se encontra agradavelmente em casa. Se agora, por outro lado, voltarmo-nos para o terreno religioso da consolag4o, e procurarmos conselho nas filosofias de espirito terno, que encontramos? A filosofia religiosa, em nossos dias e geragao, é, entre 0 povo de lingua inglesa, de dois tipos principais. Um desses tipos é mais radical e agressivo, 0 outro tem mais o ar de estar combatendo em retirada lenta. Por ala mais radical de filosofia religiosa quero dizer © que se chama idealismo transcendental da escola anglo-hegeliana, a filosofia de homens como Green, os Cairds, Bosanquet e Roy. Essa filosofia tem influenciado grandemente os membros mais estudiosos de nossa igreja protestante. E pantefsta e, indubitavel- mente, j4 embotou 4 grande o gume do teismo tradicional no pro- testantismo. Esse tefsmo, entretanto, permanece. E 0 descendente linear, através de um estdgio de concessao apés 0 outro, do teismo esco- ldstico dogmatico ainda ensinado rigorosamente nos semindrios da igreja catdlica. Por longo tempo costumou ser chamada entre nés a filosofia da escola escocesa. E 0 que eu quero dizer por filosofia que tem o ar de combater em retirada lenta. Entre os abusos dos hegelianos e outros filésofos do “‘absoluto”, por um lado, e os dos evolucionistas cientificos e agnésticos, por outro, os homens que nos dao essa espécie de filosofia, James Martineau, professor Bowne, professor Ladd e outros, devem sentir-se algo firmemente constran- gidos. Imparcial e honesta que seja, essa filosofia nao é de tempera- mento radical. E eclética, um sistema de compromissos, que procura um modus vivendi acima de todas as coisas. Aceita os fatos do darwinismo, os fatos da fisiologia cerebral, mas nao faz nada ativo ou entusidstico com eles. Carece da t6nica agressiva ou vitoriosa. Carece de prestigio, em conseqiiéncia; enquanto 0 absolutismo tem um certo prestigio, devido ao seu estilo mais radical. Esses dois sistemas s4o 0 que se tem a escolha, se nos voltamos para a escola de espirito terno. E se vocé é 0 apaixonado pelos fatos que suponho ser, d4 com a trilha da serpente do racionalismo, do intelectualismo, por sobre tudo que jaz naquele lado da linha. Vocé escapa, na verdade, do materialismo que acompanha 0 empirismo reinante; mas paga por sua escapada perdendo contato com as partes concretas da vida. Os fildsofos mais absolutistas pairam em um nivel t&o alto de abstragao, que nem mesmo tentam alguma vez descer aqui em baixo. O absoluto espiritual que nos oferecem, o espirito que plasma nosso universo por pensd-lo, podia, pois alguma coisa nos mostram ao contrario, ter feito qualquer de um milhao de outros universos, tanto quanto este. Nao se pode deduzir dessa nogdo nenhum particular simples e real. E compativel com qualquer estado de coisas, 0 que quer que seja sendo verdadeiro aqui embaixo. E o Deus teistico € quase um principio estéril. Tem-se de ir ao mundo que criou a fim de ter-se qualquer vislumbre de seu ver- dadeiro cardter: é a espécie de deus que, de uma vez por todas, fez aquela espécie de mundo. O Deus dos escritores tefsticos vive em alturas tao puramente abstratas quanto 0 Absoluto. O absolutismo tem um cardter mais de varredura e de arremetida a esse respeito, ao passo que 0 teismo mais usual é mais insipido, porém ambos séo igualmente remotos e vazios. O que se precisa € uma filosofia que nao somente exercite os poderes de abstragao intelectual, mas que estabelega alguma conex4o positiva com o mundo real de vidas humanas finitas. Precisa-se de um sistema que combine ambas as coisas, a lealdade cientifica aos fatos e disposigao em leva-los em conta, 0 espirito de adaptagao e de acomodagiao, em suma, mas também a velha confianga nos valores humanos e na espontaneidade resultante, seja do tipo religioso ou roméntico. E esse é, entaéo, o dilema: encontramos as duas partes do quesito desesperadamente separadas. Vé-se empirismo com desumanismo e irreligido; ou entao encontra- mos uma filosofia racionalista que, na verdade, pode chamar-se religiosa, mas que se mantém fora de toda e qualquer relagao com os fatos concretos e alegrias e tristezas. Nao estou muito certo de quantos dos senhores vivem o bastante em intimidade com a filosofia para compreender integralmente o que tenho em mente com essa ultima reprovagao, com o que ficarei um pouco mais de tempo a repisar sobre essa irrealidade em todos Os sistemas nacionalistas pelos quais o crente sério em fatos se encontra apto a sentir-se repelido. Quisera ter poupado as primeiras paginas de uma tese que um estudante me passou as mos um ano ou dois atrds. Ilustravam meu Ponto tao claramente que tenho pena de nao poder lé-las agora. Esse jovem, formado por alguma faculdade do oeste, comegava dizendo que tinha tido sempre como certo 0 fato de que, quando se entra em uma classe de filosofia, tem-se de estreitar relagses com um universo inteiramente distinto daquele que se deixou 14 atrds na Tua. Supunha-se que os dois, disse, tinham tao poucas relagdes um Com 0 outro, que nao se podia possivelmente ocupar 0 espirito com eles ao mesmo tempo. O mundo de experiéncias pessoais concretas a0 qual a rua pertence € heterogéneo, além da imaginagao, enredado, obscuro, doloroso e enigmatico. O mundo ao qual o professor de filosofia o introduz é simples, claro e nobre. As contradigdes da vida real acham-se ausentes dele. Sua arquitetura é classica. Os principios da razao tragam os seus delineamentos, as necessidades l6gicas cimentam suas partes. A pureza e a dignidade sao 0 que mais expressa. E uma espécie de templo marméreo brilhando no alto de uma colina. Evidentemente, € bem menos um relato desse mundo real do que um acréscimo patente erguido sobre ele, um santudrio classico no qual a imaginacio racionalista pode ter reftigio do carater into- leravelmente gético e confuso que os meros fatos apresentam. Nao € uma explanagdo de nosso universo concreto, € outra coisa completamente, um substituto, um remédio, uma saida de escape. O seu temperamento, se posso usar a palavra temperamento aqui, € completamente diferente do temperamento de existéncia no concreto. Refinamento € o que caracteriza nossas filosofias inte- lectualistas. Satisfazem esplendidamente a Ansia por um objeto refinado de contemplacao, que é um apetite tao poderoso do espirito. Pego, porém, com toda a seriedade, que olhem em torno desse universo colossal de fatos concretos, em sua medonha confusao, suas surpresas e crueldades, na selvageria que mostram, e ent&éo que me contem se “refinado” € 0 tnico e inevitdvel adjetivo que vem aos labios. Orefinamento tem o seu lugar, €é bem verdade. Mas uma filosofia que nada transpira, a nao ser refinamento, jamais satisfara 0 tem- peramento empirico. Parece antes um monumento de artificialidade. Assim, encontramos homens de ciéncia que preferem voltar as costas 4 metaffsica como a alguma coisa enclausurada e espectral, e homens praticos espanando o pé da filosofia de suas botas e atendendo ao apelo da natureza. Verdadeiramente, ha algo fantasmagorico na satisfagéo com que um sistema puro, mas irreal, enche um espirito racionalista. Leibnitz foi um espirito racionalista, infinitamente mais interessado em fatos do que muitos espiritos racionalistas podem mostrar. Nao obstante, se quisermos um exemplo de superficialidade encarnada, ha de ler apenas aquele livro encantadoramente escrito, Teodicéia, no qual procura justificar os caminhos de Deus ao homem, e provar que o mundo em que vivemos € o melhor dos mundos possiveis. Citemos um exemplo. Dentre outros obstdculos a essa filosofia otimista, Leibnitz deixa de considerar o nimero dos eternamente em danagio. Esses sio em ndmero infinitamente maior, no’nosso caso humano, do que os salvos, 0 que aceita como premissa dos tedlogos, e entéo prossegue argumentando nesse sentido. Diz ele: “O mal aparecerd como quase nada em comparagao com o bem, se considerarmos a real magnitude da Cidade de Deus. Celius Secundus Curio escreveu um livro pequeno, De Amplitudine Regni Celestis, que foi reimpresso nao faz muito tempo. Ele falhou, porém, em alcangar a extensdo do reino dos céus. Os antigos faziam pouca idéia das obras de Deus... Parecia-Ihes que somente a nossa terra tinha habitantes, e até mesmo a nocao de antipodas fazia-os vacilar. O resto do mundo para eles consistia de alguns globos brilhantes e de algumas esferas cristalinas. Hoje, porém, quaisquer que sejam os limites que possamos conceder ou recusar ao universo, devemos reconhecer nele um ntimero incontavel de globos, tao grandes quanto o nosso ou maiores, que tém tanto direito quanto 0 nosso de suportarem habitantes racionais, embora dai nao se infira que esses todos tenham de ser homens. Nossa terra € somente um dentre os seis principais satélites de nosso sol. Como todas as estrelas fixas sao sdis, vé-se quao pequeno é o lugar que nossa terra ocupa entre as coisas visiveis, visto que é somente um satélite de uma estrela entre tantas. Ora, todos esses s6is podem ser habitados, e somente por criaturas felizes; e nada nos obriga a acreditar que o nimero de pessoas em danag4o seja muito grande; pois uns poucos exemplos e amostras bastam para a utilidade que o bem saca do mal. Ainda mais, visto que nao ha raz4o para supor que hd estrelas por toda parte, nao pode haver um grande espago além da regiao das estrelas? E esse imenso espago, circundante dessa regido toda... pode estar repleto com felicidade e gloria... Que se pode considerar agora de nossa Terra e de seus habitantes? Nao diminui para alguma coisa incomparavelmente menor do que um ponto fisico, visto que nossa Terra nao € senao um ponto comparado com a distancia das estrelas fixas. Assim, a parte do universo que conhecemos, estando quase perdida em nada, com- Parado com o que é desconhecido para nds, mas que somos, entre- tanto, obrigados a admitir; e todos os males que sabemos existirem nesse quase nada; segue-se que os males podem ser quase nada em comparacao com os bens que 0 universo contém”. Leibnitz continua em outra parte: “Ha uma espécie de justiga que visa nao A emenda do cri- minoso, nao 4 concessao de um exemplo aos outros, nao a repara- ¢4o de uma injuria. Essa justiga fundamenta-se em pura propriedade, que encontra uma certa satisfagao na expiagao de uma aco daninha. Os seguidores de Sozzini e Hobbes objetaram contra essa justi¢a punitiva, que é propriamente justiga vindicativa, e que Deus reser- vou para si em muitas ocasides... Fundamenta-se sempre na propriedade das coisas, e satisfaz nao somente a parte ofendida, mas todos os espectadores esclarecidos, do mesmo modo que uma bela musica ou uma fina obra de arquitetura satisfaz um espirito bem constitufdo. E assim que os tormentos do danado continuam, mesmo que nao mais sirvam para desviar alguém do pecado, e que as recompensas do abengoado continuam, mesmo que nao confir- mem ninguém no bom caminho. Aqueles em danag&o atraem para si sempre novas penas por seus continuos pecados, e os abengoados atraem sempre novas alegrias por seu incessante progresso no bem. Ambos os fatos fundamentam-se no principio da retidao... pois Deus fez todas as coisas harmoniosas em perfeig&o, como j disse”. A débil pegada da realidade por Leibnitz é evidente demais para exigir comentdrios de minha parte. E evidente que nenhuma imagem realistica da experiéncia de uma alma danada jamais se aproximara dos portais de seu espirito. Nem lhe havia ocorrido que quanto menor é 0 ntimero de “exemplos” do género “alma-perdida”, a quem Deus langa como um pedago de pao embebido na eterna retidao, maior é a gléria do bem-aventurado injustamente preso ao chao. O que nos da é um frio exercicio literario, cuja alegre subs- tancia até mesmo o fogo do inferno nao esquenta. E nao venham dizer-me que para mostrar a vacuidade do filosofar racionalista tive de remontar a uma época ultrapassada. O otimismo do racionalismo dos dias presentes soa falso ao espirito dedicado aos fatos. O universo real € um todo escancarado, mas 0 racionalis- mo faz sistemas, e os sistemas devem ser fechados. Para os homens na vida prdtica, a perfeigao é alguma coisa distante e ainda em processo de consecugio. Isso para 0 racionalismo é apenas a ilusao do finito e do relativo: o terreno absoluto das coisas é uma perfeigao eternamente completa. Encontro um fino exemplo de revolta contra o futil e vazio otimismo da filosofia religiosa corrente em uma publicagao de um valente escritor anarquista, Morrison I. Swift. O anarquismo de Swift vai um pouco além do que o meu, mas confesso que simpatizo, e muito, e alguns dos senhores, eu sei, simpatizarao ardentemente com © seu desgosto pelos otimismos idealisticos atualmente em yoga. Comega seu panfleto sobre a Submissdo Humana com uma série de itens de reportagens urbanas de jornais (suicidios, mortes por fome e que tais) como espécimes de nosso regime civilizado. Por exemplo: “Ap6s caminhar com muito custo através da neve, de uma ponta a outra da cidade, na va esperanga de arranjar emprego, e com sua esposa e seis filhos sem alimentagao e com ordens de abandonar sua casa em uma cabeca-de-porco da zona mais miserdvel da cidade, por causa de atraso no pagamento de aluguel, John Corcoran, funcionério, acabou hoje com a vida bebendo Acido carbdlico. Corcoran perdera sua posigao trés semanas antes por motivos de doenga, e durante o periodo de disponibilidade, suas magras eco- nomias desapareceram. Ontem obtivera trabalho com uma turma de limpadores de neve da cidade, mas estava muito fraco em virtude da doenga, e foi forgado a largar o trabalho apés o esforgo de uma hora com a pé. Com o que recomegou de novo a fatigante tarefa de procurar emprego. Completamente desencorajado, Corco- Tran retornou ao lar a noite passada para encontrar esposa e filhos sem alimentos e o alvard de despejo pregado a porta. Na manha seguinte, bebeu o veneno”. “Os registros de muitos mais casos encontram-se diante de mim (prossegue Swift); uma enciclopédia poderia facilmente ser preenchida com casos dessa espécie. Esses poucos eu cito como uma interpretagao do universo. ‘Estamos certos da presenca de Deus nesse mundo’, diz um escritor em uma revista inglesa re- cente. ‘A presenga mesmo do mal na ordem temporal é a condi¢ao da perfeic¢o da ordem eterna’, escreve o professor Royce (The World and the Individual, II, 385). ‘O absoluto é mais rico para cada discérdia e para toda a diversidade que abarca’, diz F. H. Bradley (Appearance and Reality, 204). Quer dizer que esses homens assassinados tommam 0 universo mais rico, e que isso € filosofia. Mas enquanto os professores Royce e Bradley e uma turma toda de consumados pensadores inocentes estao descobrindo a Realidade e 0 Absoluto e explicando o mal e a dor, essa é a condigao dos tinicos Seres que conhecemos em qualquer parte do universo, com uma consciéncia desenvolvida do que € 0 universo. O que essas pessoas experimentam é a realidade. D4-nos uma fase absoluta do universo. E a experiéncia pessoal daqueles mais bem qualificados em nosso Circulo de conhecimento a ter experiéncia, a contar-nos 0 que é. Agora, que adianta pensar a respeito da experiéncia que essas pessoas vieram a ter, comparado ao sentir direta e pessoalmente o que sentiram? Os fil6sofos brincam com sombras, enquanto os que vivem e sentem conhecem a verdade. E 0 espirito da humanidade — nio, porém, 0 espirito dos filésofos e da classe proprietéria — mas o da grande massa de homens que pensam e sentem em siléncio, est4 chegando a essa concepgio. Estao julgando o universo da mesma maneira que até agora permitiram que os hierofantes da religiao e do conhecimento os julgassem...” “Esse trabalhador de Cleveland, matando seus filhos e a si mesmo (outro dos casos citados), € um dos fatos elementares es- tupendos do mundo moderno e do universo. Nao pode ser mi- nimizado ou justificado por todos os tratados a respeito de Deus, do amor e do ser, irremediavelmente existentes em sua monumental vacuidade. Isso é um dos elementos simples irredutiveis da vida do mundo, apds milhGes de anos de oportunidade e de vinte séculos de Cristo. E no mundo mental 0 que os dtomos ou sub-4tomos s’o no fisico, primérios, indestrutiveis. E 0 que alardeia ao homem é a impostura de toda filosofia, que nado vé nesses acontecimentos 0 fator consumado de toda experiéncia consciente. Esses fatos provam irretorquivelmente que a religido € uma nulidade. O homem nao concederé a religiao dois mil séculos ou vinte séculos mais para se pér a prova e desperdicar o tempo humano. Esse tempo esgotou-se; sua provagdo terminou; 0 seu préprio registro liquida-a. A humani- dade nao tem anos e eternidades para desperdigar, ensaiando sistemas desacreditados”.' Essa € a reagdo de um espirito empirico ante o cardépio de um racionalista. E um absoluto “nao, muito obrigado”. “A religiao”, diz Swift, “€ como um sonambulo, para quem as coisas reais sao vazias”. E esse, embora menos tensamente carregado com sentimento, é 0 veredicto de cada amador que pesquise seriamente em filosofia hoje em dia, e que se volte para o professor de filosofia para satisfazer plenamente as necessidades de sua natureza. Os escritores empiricos oferecem-lhe materialismo, os racionalistas dao-lhe alguma coisa religiosa, mas para essa religiao “‘as coisas reais sao vazias”. Torna-se, pois, 0 juiz dos fildsofos. Terno ou duro, descobre ' Morrison I. Swift, Human Submission, segunda parte, Filadélfia, Liberty Press, 1905, pdginas. 4-10 que também estamos necessitados. Nenhum de nés pode tratar seu veredicto com desdém, pois, apesar de tudo, ele € 0 espirito tipica- mente perfeito, 0 espirito cuja soma de necessidade € a maior, 0 espirito cujos criticismo e desgostos sao fatais a longo prazo. E nesse ponto que a minha prépria solugéo comega a aparecer. Oferego a coisa singularmente chamada de pragmatismo como uma filosofia que pode satisfazer a ambas as espécies de procuras. Pode permanecer religiosa como os racionalismos, mas, ao mesmo tempo, como os empirismos, pode preservar a intimidade mais rica com fatos. Espero que possa estar em condigdes de deixar em muitos dos senhores uma opiniao tao favoravel a seu respeito quanto aque eu mesmo tenho dela. Como, porém, estou préximo do término de meu tempo, nao farei uma apresentaco integral do pragma- tismo por hora. Comegarei com o assunto em uma préxima vez. Prefiro, no presente momento, retornar um pouco ao que ja disse anteriormente. Se qualquer dos senhores aqui presente é um fildsofo profis- sional, e alguns dos senhores sei que 0 sao, sem duvida que tera sentido que o meu discurso até agora tem sido cru até um ponto imperdodvel, ou, melhor ainda, até um grau quase incrivel. Espirito terno e espirito duro, que desassociagao barbara! E, em geral, quando a filosofia vem toda recheada de delicadezas intelectuais e sutilezas e escrupulosidades, e quando se obtém cada tipo possivel de combinagio e transigao dentro de seus limites, que caricatura brutal e redugao das coisas mais altas a mais baixa expressio possivel € representar 0 seu campo de conflito como uma espécie de luta livre entre dois temperamentos hostis! E, de novo, quao estipido € tratar a abstragao dos sistemas racionalistas como um crime, e censurd-lo porque se oferecem como santu4rios e guaridas, de preferéncia a prolongamentos do mundo dos fatos. E nao séo todas as nossas teorias justamente remédios e abrigos? E, se a filosofia deve ser religiosa, como pode ser outra coisa senao um reduto final na fuga a crassidao da superficie da realidade? Que melhor pode fazer sendo elevar-nos acima dos nossos sentidos animais e mostrar-nos um outro lar mais nobre para nossos espiritos na grande estrutura de principios ideais subjacentes a toda realidade, que © nosso intelecto adivinha? Como podem principios e vistas gerais serem alguma coisa outra e em algum tempo outro senao esbogos abstratos? A catedral de Colénia foi construfda sem um plano ou desenho arquitet6nico? E o refinamento em si abominavel? E a rudeza concreta a unica coisa que é verdadeira? Acreditem-me, sinto a forga total da acusagao. O quadro que pintei é, na verdade, monstruosamente super simplificado e rude. Gosto, porém, de todas as abstragdes, provam que tém o seu uso. Se os fil6sofos podem tratar a vida do universo abstratamente, nao devem queixar-se de um tratamento abstrato da prépria vida da filosofia. De fato, o quadro que dei é, embora bem grosseiro e simples, verdadeiro, literalmente. Os temperamentos, com seus anelos e recusas, determinam o homem em suas filosofias, e sempre o farao. Os detalhes dos sistemas podem ser racionados até as suas ultimas conseqiiéncias, e quando o estudante lida com um sistema, pode, com freqiiéncia, esquecer a floresta pela 4rvore. Quando, porém, o trabalho esta encerrado, o espirito sempre realiza o seu grande ato de sintese, e o sistema em seguida se projeta contra alguém como uma coisa viva, com a simples nota estranha da individualidade que ronda nossa meméria, como o espectro do homem, quando um nosso amigo ou inimigo est4 morto. Nao somente Walt Whitman podia escrever “quem toca este livro, toca em um homem”. Os livros de todos os grandes filésofos sao como muitos homens. O nosso sentido de um aroma pessoal essencial em cada um deles, tipico, mas indescritivel, € o fruto mais apurado de nossa prépria educagao filoséfica realizada. O que o sistema pretende ser é um quadro do grande universo de Deus. O que €é — e, oh, tao perfumadamente! — é a revelacao de quao intensamente singular € 0 cheiro pessoal de alguma criatura humana. Uma vez reduzido a esses termos (e todas as nossas filosofias se reduzem a eles em espiritos tornados criticos pelo conhecimento), nosso trato com os sistemas reverte ao informal, 4 reagaéo humana instintiva de satisfagao ou de desagrado. Manifestamo-nos tao peremptérios em nossa rejeigao ou aceitagéo como quando uma pessoa se apresenta candidata ao nosso favor; nossos veredictos vém recolhidos como simples adjetivos de louvor ou de reprimenda. Medimos o carater total do universo como 0 sentimos, contra 0 sabor da filosofia nos oferecida, e uma palavra € o bastante. “Statt de lebendigen Natur’, dizemos, “da Gott die Mensccem schuf hinein” — aquela nebulosa coccao, aquela coisa grosseira € constrangida, aquela artificialidade impertinente, aquele bolorento produto da sala de aula, aquele sonho de doente! Fora com isso. Fora com tudo! Impossivel! Impossivel! Nosso trabalho a respeito dos detalhes de seu sistema é, na verdade, 0 que nos proporciona nossa impress4o resultante do filé- sofo, mas é 4 propria impressao resultante que reagimos. A destreza em filosofia € medida pela precisao de nossas reagées finais, pelo adjetivo de percepgao imediata com que 0 técnico fere o alvo de assuntos tao complexos. Grande pericia, entretanto, ndo é necessdrio para vir o adjetivo. Poucas pessoas tém articulado definitivamente filosofias delas préprias. Quase todos, porém, tém o seu préprio senso peculiar de um certo carter total no universo, e da insuficién- cia completa para cas4-lo aos sistemas peculiares que conhecem. Simplesmente nao abarcam o mundo. Um sera por demais gentil; outro, muito pedante; um terceiro, com muito de um cabide de empregos de opinides; um quarto, muito mérbido; e um quinto, muito artificial, e o que mais. De qualquer modo, ele e nds sabemos de antemio que tais filosofias acham-se fora de prumo e fora de nivel e fora de “tacada”, e que nao é de nossa conta pronunciarmo- nos em nome do universo. Platao, Locke, Spinoza, Mill, Caird, Hegel — evito prudentemente nomes mais chegados a nés — estou certo que para muitos dos senhores, meus ouvintes, esses nomes sao pouco mais do que lembrangas de muitos modos pessoais curiosos de ser mal sucedido. Seria um absurdo 6bvio se tais maneiras de captar o universo fossem realmente verdadeiras. Nos, fildsofos, temos de contar com esses sentimentos por parte dos senhores. Como Ultimo recurso, repito, ser por intermédio deles que todas as nossas filosofias serao julgadas em Ultima anilise. A maneira finalmente vitoriosa de olhar as coisas ser4 a maneira mais completamente impressiva para o pendor normal dos espiritos. Uma palavra mais — especialmente sobre filosofias, que sao necessariamente contornos abstratos. Ha projegdes e projegdes, projegdes de ediffcios que sao gordos, concebidos em um volume ctibico por seu planejador, e projegdes de edificios em planta baixa no papel, com ajuda de régua e compasso. Esses permanecem ma- gros e macilentos mesmo quando erigidos com pedra e argamassa, € 0 esboco ja sugere o resultado. Um esbogo em si é seco, na verdade, mas nao sugere necessariamente uma coisa magra. E a magreza essencial do que é sugerido pelas filosofias racionalistas usuais que impele os empiricos ao seu gesto de rejeigao. O caso do sistema de Herbert Spencer exemplifica bem a questo. Os racionalistas sentem a sua medonha ordem de insuficiéncias. O seu temperamento seco de mestre-escola, a sua monotonia de realejo, sua preferéncia por expedientes baratos na argumentagao, sua falta de educagao mesmo em principios mecanicos, e em geral a vagueza de todas as suas idéias fundamentais, 0 arcabouco geral de seu sistema, como se fora armado a marretadas com tabuas rachadas — e, todavia, metade da Inglaterra quer enterra-lo na abadia de Westminster. Por qué? Por que Spencer invoca tanta rever€ncia, a despeito de sua fraqueza aos olhos racionalistas? Por que tantos homens edu- cados que sentem tal fraqueza, vocé e eu, talvez, nao obstante desejam vé-lo na abadia? Simplesmente porque sentimos que seu cora¢o esta no lugar certo filosoficamente. Seus principios podem ser todos pele e osso, mas, de qualquer modo, seus livros tentam amoldar-se a configuragdo particular da carcaga desse mundo parti- cular. O bulicio dos fatos ressoa através de todos os seus capitulos, as citagdes de fatos nunca cessam, da énfase aos fatos, volta-se para onde esto; e isso é 0 que basta. Significa a espécie certa de coisa Para 0 espirito empirico. A filosofia pragmatica, da qual espero comegar a falar em minha préxima conferéncia, preserva como cordial uma relagao com os fatos, e, diferente da filosofia de Spencer, nem comega e nem termina pondo as construgées religiosas positivas para fora da porta — trata-as cordialmente, do mesmo modo. Espero poder levd-los a achar que essa filosofia € o caminho de pensamento que procuravam. uM SEGUNDA CONFERENCIA O que significa o Pragmatismo lguns anos atras, participando de uma festa campestre nas montanhas, retornava de uma perambulagao solitaria quando encontrei a todos ocupados em uma feroz disputa metafisica. O corpus da disputa era um esquilo — um esquilo vivo que se supunha estar agarrado a um lado de uma 4rvore; enquanto do outro lado oposto da 4rvore, imaginava-se estar um ser humano. Essa teste- munha humana tenta ver 0 esquilo movendo-se rapidamente em torno da arvore, mas nao importa quao rapida se mova, 0 esquilo se movimenta também rapidamente na diregdo oposta, e sempre mantém a arvore entre si e o homem, de maneira que jamais o tem em vista. O problema metafisico resultante agora € esse: O homem anda em torno do esquilo ou ndo? Ele anda em tomo da 4rvore, certo, e o esquilo est4 na arvore; ele anda, porém, em torno do esquilo? Na ilimitada ociosidade da vastidao, a discussdo havia chegado a nenhuma conclusao. Todos tinham tomado partido, e obstinadamente; e o nimero de contendores em cada lado se igua- lava. Cada lado, quando apareci, portanto, apelou para mim para fazer a maioria. Atento ao adagio escoldstico de que sempre quando se encontra uma contradi¢gdo deve-se fazer uma distingdo, imedia- tamente procurei e encontrei uma, como se segue: “‘o lado que esta certo”, disse, “vai depender do que se entende praticamente por ‘ir €m torno’ do esquilo. Se se entende passar do norte dele para o leste, entdo para o sul, entao para 0 oeste, e entao para o norte dele de novo, é ébvio que o homem vai em torno dele, pois ocupa essas PosigGes sucessivas. Se, porém, ao contrdrio, entende-se que primeiro esta em frente a ele, ent&o, 4 sua direita, entdo, atrds, entao, a esquerda, e, finalmente, de novo em frente dele, € comple- tamente dbvio que o homem deixa de ir em torno do esquilo, pois pelos movimentos compensadores que 0 esquilo faz, mantém o seu ventre voltado para o homem todo o tempo, é as suas costas voltadas para o lado oposto. Faga-se a distingdo, e nao haver4 ocasiao para qualquer disputa posterior. Os dois lados estéo ao mesmo tempo certos e errados, de acordo com o que se conceba em relagao a locug&o ‘ir em torno’, em um sentido pratico ou em outro”. Embora um ou dois dos disputantes mais inflamados dissessem que minha resposta fora uma evasiva, argumentando que queriam nao subterfiigios ou disputas escoldsticas, mas uma definigao honesta da expresso “em torno”, a maioria parecia pensar que a distingao havia decidido o debate. Narro este episddio banal porque é um exemplo peculiarmente simples do que desejo agora falar como sendo 0 método pragmatico. O método pragmatico é, primariamente, um método de assentar disputas metafisicas que, de outro modo, se estenderiam intermina- velmente. Eo mundo um ou muito? — predestinado ou livre? — material ou espiritual? — eis aqui nogGes, quaisquer das quais podem ou nao valer verdadeiras para 0 mundo; e as disputas em relagao a tais nogdes sao intermindveis.{O método pragmatico nesses casos € tentar interpretar cada nocad tracando as suas con- seqiiéncias prdticas respectivas./Que diferenga praticamente ha- veria para alguém se essa nogao, de preferéncia aquela outra, fosse verdadeira? Se nao pode ser tragada nenhuma diferenga pratica qualquer, entao as alternativas significam praticamente a mesma coisa, e toda disputa é va. Sempre que uma disputa é séria, devemos estar em condigGes de mostrar alguma diferenga pratica que decorra necessariamente de um lado, ou o outro est correto. Uma olhada 4 histéria da idéia mostrard ainda melhor o que significa o pragmatismo. O termo deriva da mesma palavra grega, TMPGtTXA, que significa acgéo, do qual vém as nossas palavras “pratica” e “pratico”. Foi introduzida pela primeira vez em filoso- fia por Charles Peirce, em 1878. Em um artigo intitulado “Como tornar claro nossas idéias”, em Popular Science Monthly de janeiro daquele ano', Peirce, apds salientar que nossas crengas sao, ' Transcrito em Revue Philosophique de janeiro de 1879 (vol. VII). realmente, regras de agao, dizia que, para desenvolver o significado de um pensamento, necessitamos apenas de determinar que conduta est4 apto a produzir: aquilo é para nds o seu tnico significado. Eo fato tangivel na raiz de todas as nossas distingSes de pensamento, embora sutil, € que nao ha nenhuma que seja tao fina ao ponto de nao resultar em alguma coisa que nao seja senao uma diferenga possivel de prdtica. Para atingir uma clareza perfeita em nossos pensamentos em relagio a um objeto, pois, precisamos apenas considerar quais os efeitos concebiveis de natureza pratica que 0 objeto pode envolver — que sensacdes devemos esperar dai, e que reacdes devemos preparar. Nossa concep¢o desses efeitos, se imediata ou remota, é, entao, para nds, o todo de nossa concep¢ao do objeto, na medida em que essa concep¢io tenha, afinal, uma significacao positiva. Esse é 0 principio de Peirce, o principio do pragmatismo. Per- maneceu inteiramente despercebido por vinte anos, até que eu, em uma alocugao perante a reuniao filoséfica do professor Howison na Universidade da Califé6rnia, trouxe-o 4 baila novamente e dei-lhe uma aplicagao especial na religiao. Por essa época (1898), o tempo parecia propicio a sua acolhida. A palavra “pragmatismo” espalhou- se, e, atualmente, transparece em grau razodvel nas paginas das publicagées filoséficas. Em todas as bandas damo-nos conta do “movimento pragmatico”, falando as vezes com respeito, as vezes com contumélia; raramente com perfeito conhecimento de causa. E evidente que o termo se aplica convenientemente a um ntimero de tendéncias que até aqui tm carecido de um nome geral, e que “‘veio para ficar”. Para se ter idéia da importancia do principio de Peirce, deve-se ir acostumando a aplicd-lo aos casos concretos. Descobri a alguns anos atrds que Ostwald, 0 ilustre quimico de Leipzig, esteve fazendo uso perfeitamente distinto do principio do pragmatismo em suas conferéncias acerca da filosofia da ciéncia, embora nao o tenha chamado por seu nome. “Todas as realidades influenciam nossa pratica”, escreveu-me, “e essa influéncia é o seu significado para nés. Estou acostumado a expor problemas as minhas classes nesses termos: sob que aspectos © mundo seria diferente se essa alternativa ou aquela fosse verda- deira? Se nao posso achar nada que o tornasse diferente, entao a alternativa nao tem sentido”. : Isto é, a visdo rival significa praticamente a mesma coisa, e nao ha para nés nenhum sentido que nao o pratico. Ostwald, em uma conferéncia publicada, dé exemplo do que quer dizer. Os quimicos desde h4 muito que tém debatido a respeito da constitui¢ao interna de certos corpos chamados “‘tautémeros”. Suas propriedades pare- ciam igualmente compativeis com a nogao de que um dtomo instdvel de hidrogénio oscila dentro deles, ou que sdo misturas instaveis de dois corpos. A controvérsia lavrou, porém nunca chegou a termos. “E nunca teria comegado”, diz Ostwald, “‘se os contendores tivessem perguntado a si préprios que fato experimental particular podia ter sido tornado diferente por esse ou aquele ponto de vista ser 0 correto. Pois, ent&o, teria aparecido que nenhuma diferenga de fato podia provavelmente dajf decorrer; e a disputa foi tao irreal como se, teori- zando nos tempos primitivos a respeito do crescimento da massa pelo fermento, um grupo invocasse um ‘duende’, enquanto outro insistisse em um ‘alfo’ como a causa verdadeira do fendmeno”.? E espantoso de ver-se quantas e quantas disputas filos6ficas dio em nada no momento em que a submetemos ao simples teste de tragar uma conseqiiéncia concreta. Nao pode haver nenhuma dife- renga em alguma parte que nao faga uma diferencga em outra parte — nenhuma diferenga em matéria de verdade abstrata que nao se expresse em uma diferenga em fato concreto e em conduta consegqiiente derivada desse fato e imposta sobre alguém, alguma coisa, em alguma parte e em algum tempo. Toda a fungao da filosofia deve ser a de achar que diferenga definitiva far para mim e vocé, em instantes definidos de nossa vida, se essa formula do mundo ou aquela outra seja a verdadeira. Nao ha nada de novo absolutamente no método pragmitico. Sécrates foi adepto dele. Aristételes empregou-o metodicamente. Locke, Berkeley e Hume fizeram contribuigdes momentaneas 4 verdade por seu intermédio. Shadworth Hodgson insiste em que as realidades sao somente 0 que sabemos delas. Esses precursores do pragmatismo, porém, usaram-no de maneira fragmentéria: apenas ? “Theorie und Praxis”, Zeitsch. des Oesterreichischen Ingenieur u. Architecten-Vereines, 1905, Nr. 4 u. 6. Encontro um pragmatismo ainda mais radical do que o de Ostwald em uma palestra pelo professor W. S. Franklin: “Penso que a nogao doentia da ffsica, mesmo se um estudante a entende, € a de que é ‘a ciéncia das massas, moléculas e do éter’. E eu penso que 3 no¢ao mais saudavel, mesmo se um estudante nao a compreende inteiramente € que a fisica € a ciéncia dos meios de tomar posse dos corpos e de impulsiond-los”! (Science, 2 de janeiro de 1903). o preludiaram. Nao foi senao em nossa época que se generalizou, tornou-se consciente de uma miss4o universal, aspirou a um destino conquistador. Acredito nesse destino, e espero poder terminar transmitindo-Ihes toda a minha fé. O pragmatismo representa uma atitude perfeitamente familiar em filosofia, a atitude empirica, mas a representa, parece-me, tanto em uma forma mais radical quanto em uma forma menos contradi- téria, em relagdo a que jé tenha assumido alguma vez. O pragma- tistaivolta as costas resolutamente e de uma vez por todas a uma série de habitos inveterados, caros aos filésofos profissionais. Afasta- se da abstracao e da insuficiéncia, das solugdes verbais, das mas taz6es a priori, dos principios firmados, dos sistemas fechados, com pretens6es ao absoluto e as origens’ Volta-se para o concreto e 0 adequado, para os fatos, a aco e 0 poder. O que significa o reinado do temperamento empirico e o descrédito sem rebugos do tempera- mento racionalista. O que significa ar livre e possibilidades da natureza, em contraposi¢ao ao dogma, 4 artificialidade e a pre- tensdo de finalidade na verdade\ Ao mesmo tempo nao pretende quaisquer resultados especiais. E somente um método. O triunfo geral desse método, porém, signi- ficaria uma alteragiéo enorme no que chamei, em minha Ultima conferéncia, de “temperamento” da filosofia. Os professores do tipo ultra-racionalista tém calafrios s6 de ouvir isso, igual ao tipo cortes&o, que fica gelado ao ouvir falar em reptblica, e ao prelado do tipo ultramontano, que se arrepia em terras protestantes. A ciéncia e a metafisica poder-se-iam aproximar mais ainda, poderiam mesmo, de fato, trabalhar de maos dadas. A metafisica tem, comumente, seguido uma trilha muito primi- tiva de interrogatério. Sabe-se quanto os homens tém suspirado por poderes magicos ilicitos, e se sabe também a grande parte que as palavras sempre desempenharam na magia. Se temos 0 nome ou a férmula de encantamento que lhe diz respeito, pode-se controlar 0 espirito, génio, entidade ou qualquer que seja o poder. Salomao sabia os nomes de todos os espiritos, e, tendo os seus nomes, mantinha-os sujeitos 4 sua vontade] Assim, 0 universo tem sempre aparecido ao espirito natural como uma espécie de enigma, do qual a chave deve ser procurada na configuragao de algum nome ou palavra mdgica ou iluminada. Essa palavra designa 0 principio do universo, e possui-la é, de certo modo, possuir o proprio universo, “Deus”, “Matéria”, “Razio”, “Absoluto”, “Energia” sao muitos desses nomes encantados. Podemos repousar quando os temos. Chegamos ao fim de nossa pesquisa metafisica. Se, porém, seguimos o método pragmatico, nao nos podemos limitar a nenhuma dessas palavras como definitivas. Tem-se de extrair de cada palavra o seu valor de compra pratico, p6-lo a trabalhar dentro da corrente de nossa experiéncia. Desdobra-se, entao, menos como uma solug4o do que como um programa para mais trabalho, e mais particularmente como uma indicagéo dos caminhos pelos quais as realidades existentes podem ser modificadas. teorias, assim, tornam-se instrumentos, e ndo respostas aos enigmas, sobre as quais podemos descansar| Nao ficamos de costas para elas, movemo-nos adiante, e, na ocasiao, fazemos a natureza retornar com a sua ajuda. O pragmatismo relaxa todas as nossas teorias, flexiona-as e p6e-nas a trabalhar. Nao sendo nada essencial- mente novo, se harmoniza com muitas tendéncias filoséficas antigas. Concorda com 0 nominalismo, por exemplo, sempre apelando para os particulares; com 0 utilitarismo, dando énfase aos aspectos praticos; com o positivismo, em seu desdém pelas solugGes verbais, pelas questdes intteis e pelas abstragdes metafisicas. Todas essas, vé-se, séo tendéncias antiintelectuais. Contra 0 racionalismo como uma pretensdo e um método, 0 pragmatismo acha-se completamente armado e militante. Mas, em principio, pelo menos, nao visa resultados particulares. Nao tem dogmas e doutrinas, salvo o seu método. Como o jovem pragmatista italiano Papini disse muito bem, situa-se no meio de nossas teorias, como um corredor em um hotel. Intimeros quartos dao para ele. Em um, pode-se encontrar um homem escrevendo um volume atefstico; no préximo, alguém de joelhos rezando por fé e forga; em um terceiro, um quimico investigando as propriedades de um corpo. Em um quarto, um sistema de metafisica idealistica esté sendo excogitado; em um quinto, a impossibilidade da metafisica est4 sendo demons- trada. Todos, porém, abrem para o corredor, e todos devem passar pelo mesmo se quiserem ter um meio pratico de entrar e sair de seus respectivos aposentos. Até entéo nao h4 nenhum resultado particular, mas somente uma atitude de orientagdo, que € o que o método pragmatico signi- fica. A atitude de olhar além das primeiras coisas, dos principios, das “categorias”, das supostas necessidades; e de procurar pelas ultimas coisas, frutos, conseqiiéncias, fatos. Tanta coisa para o método pragmiatico! Pode-se dizer que 0 estive louvando, de preferéncia a explic4-lo, mas, por agora, darei muitas explicagGes a seu respeito, mostrando como opera em relagao aalguns problemas familiares. Nesse meio tempo, a palavra pragma- tismo tem sido usada em um sentido ainda mais amplo, como significando também uma certa teoria da verdade. Pretendo fazer uma conferéncia sobre essa teoria, apés primeiro preparar 0 terreno, com 0 que posso ser breve por ora. A brevidade, porém, é dura de seguir, com 0 que peo a atengao dos senhores por algum tempo. Se permanecer obscuro, espero poder expor 0 assunto com mais clareza em palestras posteriores. Um dos mais cultivados ramos da filosofia em nosso tempo, e com éxito, € o que se chama de ldgica indutiva, o estudo das con- digdes sob as quais as ciéncias evolveram. Os pesquisadores desse assunto comegaram por mostrar singular unanimidade em relagao ao que significam as leis da natureza e os elementos de fato, quando formulados por matemiticos, fisicos e quimicos. Quando as primei- ras uniformidades matematicas, légicas e naturais, as primeiras leis, foram descobertas, os homens ficaram tao arrebatados pela clareza, beleza e simplicidade daf resultantes, que acreditaram ter decifrado autenticamente os pensamentos eternos do Todo Poderoso. Seu espfrito também faiscou e reverberou em silogismos. Pensou também em secées canicas, em quadrados e raizes e proporcées e geometrizou como Euclides. Fez as leis de Kepler para os planetas seguirem; fez a velocidade aumentar proporcionalmente ao tempo na queda dos corpos; fez a lei dos senos para a luz obedecer quando refratada; estabeleceu as classes, as ordens, as familias e os géneros das plantas e dos animais, e fixou as distancias entre eles. Formulou Os arquétipos de todas as coisas e ideou suas variagdes; e quando tedescobrimos qualquer dessas suas maravilhosas instituigdes, abran- gemos 0 seu espirito em sua exata intengao literal. A medida, porém, que as ciéncias se desenvolveram, ganhou Corpo a nogao de que muitas, talvez todas, de nossas leis sao somente aproximagoes. As pr6prias leis, mais ainda, tornaram-se tao nume- Tosas, que nao hé como conté-las; e tantas formulagées rivais foram Propostas em todos os ramos da ciéncia, que os investigadores acostumaram-se 4 nogao de que nenhuma teoria é absolutamente uma transcrigao da realidade, mas que qualquer delas pode, de certo Ponto de vista, ser titil. Seu grande uso é sumariar os velhos fatos e apontar novos. Sao apenas uma linguagem humana, uma taquigrafia conceptual, como se costuma chama-las, nas quais escrevemos nossos informes sobre a natureza; e as linguas, como € bem conhe- cido, toleram muita escolha de expressao e muitos dialetos. Assim, a arbitrariedade humana tem tirado a necessidade divina da légica cientifica. Se menciono os nomes de Sigwart, Mach, Ostwald, Pearson, Milhaud, Duhem, Ruyssen, quem dentre os senhores for estudante, identificard facilmente a tendéncia a respeito da qual falo, e pensara em nomes adicionais. Montados agora na crista dessa onda de légica cientifica, Schiller e Dewey aparecem com 0 seu relato pragmatista em relagao ao que a verdade significa em qualquer lugar. Em qualquer lugar, dizem esses professores, a “verdade” em nossas idéias e crengas significa a mesma coisa que em ciéncia. Significa, dizem, nada mais que as idéias (que, elas préprias, ndo sao sendo partes de nossa experién- cia) tornam-se verdadeiras na medida em que nos ajudam a manter relagées satisfatérias com outras partes de nossa experiéncia, para sumarid-las e destacd-las por meio de instantaneos conceptuais, ao invés de seguir a sucessdo intermindvel de um fenémeno particular. Qualquer idéia sobre a qual podemos montar, por assim falar; qualquer idéia que nos transporte prosperamente de qualquer parte de nossa experiéncia para qualquer outra parte, ligando as coisas satisfatoriamente, trabalhando seguramente, simplificando, economi- zando trabalho; é verdadeira por tudo isso, verdadeira em toda a extensao, verdadeira instrumentalmente. Essa €é a visao “instru- mental” da verdade, ensinada com tanto éxito em Chicago, a visio de que a verdade em nossas idéias significa seu poder de “‘trabalhar”, promulgada tao brilhantemente em Oxford. Dewey, Schiller e seus aliados, alcangando essa concepgao geral de toda a verdade, seguiram apenas o exemplo dos gedélogos, bidlogos e filélogos. Na formacio dessas outras ciéncias, o golpe de éxito foi sempre o de tomar algum processo simples realmente observavel em operagao — como as alteragées introduzidas pelo fator atmosférico, digamos, ou as variagdes a partir de um tipo genético, ou as modificagées dialetais por incorporagao de novas palavras e quebras de pronunciacéo — e ent&o generalizd-lo, fa- zendo-o aplicavel em todos os tempos, capaz de produzir grandes resultados pelo somatério de seus efeitos através de varias épocas. O processo observavel que Schiller e Dewey isolaram parti- cularmente para generalizagado, € o bem familiar, pelo qual qual- quer individuo estabelece novas opinides. O processo é sempre o mesmo. O individuo j4 tem um estoque de velhas opinides, mas depara uma nova experiéncia que as pde em processo de triagem. Alguém as contradiz; ou entao, em um momento de reflexao, des- cobre que elas é que se contradizem umas com as outras; ou toma conhecimento de fatos com as quais séo incompativeis; ou surgem desejos que elas deixam de satisfazer. O resultado € uma perturba¢io intima, 4 qual até entao o seu espirito tinha sido estranho, e da qual procura escapar modificando a sua massa prévia de opinides. Salva o m4ximo que pode, pois nesse assunto de crenga somos ao extremo conservadores. Assim, tenta primeiro trocar essa opiniao, e depois aquela (pois resistem 4 mudanga com muita variedade), até que, por ultimo, algumas idéias novas surgem, as quais pode enxertar no estoque velho com o minimo de disturbio para esse Ultimo, algumas idéias que mediam entre 0 estoque e a nova experiéncia e que as conduzem umas 4s outras, com facilidade e expeditamente. Essa idéia nova é, ent&o, adotada como sendo a verdadeira. Pre- serva 0 estoque mais antigo de verdades com um minimo de modi- ficagao, estendendo-as o bastante para fazé-las admitir a novidade, mas concebendo tudo em caminhos tao familiares quanto 0 caso permite ser possivel. Uma explanacio outrée, violando todas as nossas pré-concepgoes, jamais passaria como relato verdadeiro de uma novidade. Devemos perquirir em torno diligentemente até encontrar- mos algo menos exdtico. As revolugdes mais violentas nas crengas de um individuo deixam intacta a maior parte de sua antiga ordem. Tempo e espago, causa e efeito, natureza e histéria, e a propria biografia de alguém, permanecem inalterveis. A nova verdade é sempre um intermedidrio, um amaciador de transigdes. Casa a velha opiniao ao novo fato, quase sempre para apresentar um minimo de choque, um maximo de continuidade. Temos uma teoria como ver- dadeira exatamente em proporgao 4 capacidade em solver esse “problema de m4xima e minima”. Mas o éxito em resolver esse problema é eminentemente um caso de aproximagao. Dizemos que essa teoria dd solugao no todo mais satisfatoriamente do que aquela outra teoria; essa, porém, tem um significado mais satisfatério para ndés mesmos, e os individuos darao énfase a seus pontos de satisfagao diferentemente. Em um certo grau, portanto, tudo aqui é plastico. to Ponto que agora fago questao que observem particularmente € 0 que diz respeito a parte desempenhada pelas verdades mais antigas.O fracasso em levar em conta essa situagio é que € a fonte de muitas das criticas injustas assestadas contra o pragmatismo. Sua influéncia é absolutamente controlavel. A lealdade que se lhes deve € 0 primeiro principio — em muito casos € 0 Unico principio; pois desde h4 muito que a maneira mais usual de tratar os novos fenémenos que implicariam em sério reajustamento de nossas pré- concepgGes € ignord-los completamente, ou desrespeitar os que Ihes dao testemunho, Sem dtivida que os senhores desejam exemplos do processo do crescimento da verdade, e o unico problema € a abundancia de exemplos. O caso mais simples de verdade nova é, naturalmente, a mera adigdo numérica de novas espécies de fatos, ou de fatos novos isolados de velhas espécies, 4 nossa experiéncia — uma adigao que nao envolve nenhuma alteragdo em nossas velhas crengas. Dia apés dia, e os seus contetidos sao simplesmente acrescentados. Os novos contetidos em si nao sao verdadeiros, simplesmente aparecem e sdo. A verdade € 0 que dizemos a respeito deles, e, quando dizemos que aparecem, a verdade é satisfeita pela simples férmula aditiva. Freqiientemente, porém, os contetidos do dia obrigam a um reagrupamento. Se eu agora comegasse a dar gritos agudos e a agir como um maluco nesta plataforma, o caso levaria muitos dos senhores a rever suas idéias quanto ao valor provavel de minha filosofia. O “radio” apareceu outro dia como parte do contetido do dia, e pareceu por um momento contradizer nossas idéias quanto a ordem total da natureza, ordem essa que veio a ser identificada com o que é chamado conservagio da energia. A propria vista do radio dissipando energia indefinidamente, e por meio de suas préprias fontes internas, parecia violar o principio de conservag4o. Que pen- sar? Se as radiagdes nado eram nada, a nao ser uma fuga de energia “potencial” insuspeita, preexistente dentro dos 4tomos, o principio de conservagio estaria salvo. A descoberta do hélio como resultado da radiago, descortinou novo caminho a essa crenga. Assim, a observagao de Ramsay € tida geralmente como verdadeira, porque causa um minimo de alteragdes na natureza de nossas velhas idéias sobre energia, embora as estenda. Nao necessito multiplicar exemplos. Uma opiniao nova conta como “verdadeira” na proporcao que satisfaz o desejo do individuo no sentido de assimilar a novidade em sua experiéncia as suas crengas em estoque. Deve tanto cingir-se 4 verdade velha quanto abragar o fato novo; e seu éxito (como disse a poucos instantes) em cumprir o programado é matéria para apreciagao individual. Quando a verdade velha cresce, entao, por adigdo de verdade nova, é por raz6es subjetivas. Estamos no processo e obedecemos as razGes. A idéia nova que é mais verdadeira é a que perfaz de modo mais feliz sua fungdo de satisfazer nossa dupla urgéncia. Faz-se verdadeira, classifica-se como verdadeira pela maneira como opera; enxerta-se, ento, no velho corpo da verdade, que se desenvolve, assim, de modo semelhante 4 4rvore que cresce pela atividade de uma nova camada de cambio. Agora, Dewey e Schiller agem no sentido de generalizar essa observagao e de aplicd-la as partes mais antigas da verdade. Elas também em certo tempo foram plasticas. Foram também chamadas verdadeiras por razdes humanas. Mediaram também entre verdades ainda mais antigas e 0 que naqueles dias eram observagGes novas. Verdade puramente objetiva, verdade em cujo estabelecimento a fungao de dar satisfagao humana ao casamento de partes prévias da experiéncia com partes mais novas nao desempenhou papel algum, esta para ser encontrada em parte alguma. As razGes por que chama- mos as coisas de verdadeiras é a razdo por que sao verdadeiras, pois “ser verdadeiro” significa somente realizar essa fungao de uniao. A trilha de serpente humana, pois, esta sobre tudo. Verdade independente; verdade que encontramos meramente; verdade nao mais maledvel de acordo com as necessidades humanas; verdade incorrigivel, em uma palavra; essa verdade existe de fato super- abundantemente — ou se supée existir, por pensadores de espirito racionalista; mas, entao, significa somente 0 coragao morto da arvore viva, e o estar af significa apenas que a verdade também tem a sua paleontologia e a sua “‘prescri¢io”, e pode crescer rigida, com anos de servigo veterano e petrificada aos olhares humanos por pura antigiiidade. Quao pldsticas, porém, até mesmo as verdades mais velhas realmente 0 sao, sem embargo, tem sido mostrado vividamente em nossos dias pela transformagao das idéias légicas e matematicas, transformagao que parece mesmo estar invadindo a fisica. As f6rmulas antigas sdo reinterpretadas como express6es especiais de principios muito mais amplos, principios que nossos antepassados nem de longe imaginavam poder chegar a formulagao presente. Schiller dé ainda a toda essa concepgao da verdade 0 nome de “humanismo”, mas, para essa doutrina, também, o nome de pragma- tismo parece razoavelmente estar em ascensdo, com 0 que eu a tratarei sob o nome de pragmatismo nessas conferéncias. Esse, ent&o, seria 0 escopo do pragmatismo — primeiramente um método; em segundo lugar, uma teoria genética do que se enten- de por verdade. E essas duas coisas devem ser nossos tdpicos futuros. O que disse da teoria da verdade, estou certo, tera aparecido obscuro e pouco satisfatério 4 maioria dos senhores, em razao de sua brevidade. Cuidarei para que isso nao mais acontega. Em uma conferéncia sobre “senso comum” tentarei mostrar 0 que entendo por verdades que crescem petrificadas pela antigiiidade. Em outra conferéncia, exporei a idéia de que nossos pensamentos tornam-se verdadeiros 4 proporgao que exergam com éxito a sua fungao de intermedidrio. Em uma terceira, mostrarei quao dificil é discriminar entre os fatores objetivos e subjetivos no processo de desenvolvi- mento da verdade. Os senhores nao podem seguir-me por completo nessas palestras; e se assim o fizerem, nao concordarao comigo totalmente. Sei, porém, que, pelo menos, terao consideragao comigo, e que olharao para meu esforgo com respeito. Os senhores provavelmente ficarao surpresos em saber, entao, que as teorias de Schiller e Dewey sofreram uma tempestade de criticas e ataques. O racionalismo todo levantou-se em peso contra eles. Nos circulos influentes, Schiller, em particular, tem sido tratado como um garoto de escola atrevido que merece uma boa tunda. Nao devia mencionar isso, a nao ser pelo fato que langa muita luz sobre o temperamento racionalista, ao qual tenho oposto o temperamento do pragmatismo. O pragmatismo se sente mal longe dos fatos. 0 racionalismo fica 4 vontade somente em presenga de abstracdes. O pragmatista fala a respeito de verdades no plural, sobre sua utilidade e carater de satisfagio, a respeito do éxito com que “trabalham” etc., © que sugere ao tipico intelectualista uma espécie de artigo de verdade de segunda mao. Essas verdades nao sdo a verdade real. Esses testes sio meramente subjetivos. Contra isso, a verdade objetiva deve ser algo nao utilitario, elevado, refinado, remoto, augusto, exaltado. Deve ser uma correspondéncia absoluta de nossos pensamentos com uma realidade igualmente absoluta. Deve ser 0 que devamos pensar incondicionalmente. Os meios condicionados pelos quais pensamos sao de pouca relevancia e interesse para a psicologia. Abaixo com a psicologia, para cima com a ldgica, em toda essa questao! Vejam o contraste notavel entre esses tipos de espirito! O prag- matista agarra-se aos fatos e coisas concretas, observa como a verdade opera em casos particulares, e generaliza. A verdade, para ele, torna-se uma classificag&o para todos os tipos de valores defi- nitivos de trabalho em experiéncia. Para o racionalista, nao passa de uma pura abstracdo, de cujo simples nome devemos diferir. Quando o pragmatista empreende a tarefa de mostrar em detalhes por que exatamente devemos discordar, 0 racionalista mostra-se incapaz de reconhecer os dados concretos dos quais a sua prépria abstragao deriva. Acusa-nos de negar a verdade; ao passo que temos somente procurado tragar exatamente por que as pessoas a seguem e sempre devem segui-la. O ultra-abstracionista tipico dé de ombros ao concreto: dentre outras coisas iguais prefere positivamente o pdlido e o espectral. Se dois universos lhe fossem oferecidos, decerto optaria sempre pela configuragao transparente, de preferéncia a rica substancia da realidade. E muito mais puro, mais claro, mais nobre. Espero que, 4 medida que essas conferéncias prosseguirem, 0 concretismo e a aproximagao aos fatos do pragmatismo, que advo- gam, possa ser 0 que se aprova por si mesmo aos senhores, como sua peculiaridade mais satisfatéria. Segue aqui apenas o exemplo das ciéncias irmas, interpretando 0 nao observado pelo observado. Aproxima harmoniosamente 0 velho do novo. Converte a no¢cao absolutamente vazia de uma relagao estatica de “correspondéncia” (0 que isso significa, indagaremos mais tarde) entre nossos espiritos ea realidade, na de um comércio rico e ativo (0 que se pode seguir em detalhe e compreender) entre os nossos pensamentos peculiares, e o grande universo das demais experiéncias, nas quais desempe- nham seus papéis e tém sua utilidade. HA bastante disso, porém, presentemente? A justificagao do que disse pode ser adiada. Quero agora acrescentar uma palavra em expla- naco posterior da tese que firmei em nosso Ultimo encontro, de que 0 pragmatismo pode ser um harmonizador feliz dos processos empiricos de pensamento com os reclamos mais religiosos dos seres humanos. Os homens que séo de temperamento fortemente predisposto aos fatos, podem os senhores lembrar-se de que ja disse, estao em condigdes de serem mantidos a distancia pela pouca simpatia pelos fatos que a filosofia do modelo de idealismo dos dias presentes lhes oferece. E por demais intelectualista. O tefsmo da velha guarda foi bastante ruim, com sua nogao de Deus como um monarca exaltado, constitufdo de uma porgao de “atributos” ininteligiveis ou prepés- teros; mas, enquanto manteve fortemente o argumento de designio, ficou em algum contato com as realidades concretas. Desde que, entretanto, o darwinismo deslocou de uma vez por todas o designio dos espiritos dos “cientfficos”, 0 teismo perdeu terreno; e alguma espécie de uma deidade imanente ou panteista operando nas coisas, de preferéncia a operar por sobre elas, é, de qualquer modo, a espécie recomendada para a nossa imaginagao contemporanea. Os aspirantes a uma religiao filos6fica voltam-se, via de regra, mais esperangosos hoje em dia para o pantefsmo idealistico do que para 0 teismo dualistico mais antigo, a despeito do fato de ainda contar esse ultimo com habeis defensores. Como, porém, disse em minha primeira conferéncia, a marca do panteismo oferecido é-lhes de dificil assimilagao se nao apaixona- dos pelos fatos, ou de mentalidade empirica. E a marca absolutista, agitando a poeira e desenvolvida com légica pura. Nao mantém nenhuma conex4o com o concreto. Afirmando o Espirito Absoluto, que é o seu substituto para Deus, como sendo a pressuposi¢ao racional de todas as particularidades de fato, quaisquer que possam ser, permanece supremamente indiferente ao que os fatos particulares realmente sao em nosso mundo. Sejam o que forem, o Absoluto zelar4 por eles como pai. Como o leao machucado na fabula de Esopo, todas as pegadas conduzem 4 sua toca, mas mulla vestigia retrorsum. Nao se pode tornar a descer ao mundo dos particulares com a ajuda do Absoluto, ou deduzir quaisquer conseqiiéncias necessdrias de detalhe importante para nossa vida a partir da idéia que temos de sua natureza. Da-nos, na verdade, a certeza de que tudo esta bem com Ele, e com a sua maneira eterna de pensar; mas logo em seguida deixa-nos para sermos salvos finitamente por meio de nossos préprios dispositivos temporais. Longe de mim negar a majestade dessa concepgio, ou a sua capacidade em conceder conforto religioso a uma classe de espiritos bastante Tespeitavel. Do ponto de vista humano, porém, ninguém pode negar que nao sofra dos males de afastamento e de abstracao. E, eminen- temente, um produto do que me aventurei a chamar de temperamento racionalista. Desdenha as necessidades empiricas. Substitui uma configuragao pdlida pela riqueza do mundo real. E gentil, é nobre no mau sentido da palavra, no sentido de que ser nobre é ser inapto para servigos humildes. Nesse mundo real de suor e sujeira, parece-me que quando uma visio das coisas € “nobre”, isso deve contar como suspeita contra a sua verdade, e como uma desqualificacao filoséfica. O principe das trevas pode ser um cavalheiro, como nos dizem que é, mas, 0 que quer que o Deus da terra e do céu seja, seguramente que nao pode ser um cavalheiro. Seus servigos domésticos sao necessitados na poeira de nossas trilhas humanas, muito mais até mesmo do que sua dignidade é necessitada no empireo. Agora, 0 pragmatismo, devotado que seja aos fatos, nao tem essa propensao materialista sob a qual o empirismo ordinario opera. Mais ainda, nao faz qualquer obje¢ao ao sistema de abstragGes, na medida em que se possa percorrer os particulares com sua ajuda, o que, realmente, pode ser feito. Interessado nao em conclusées, mas naquilo que nossos espiritos e nossas experiéncias elaboraram juntos, nao tem preconceitos a priori contra a teologia. Se as idéias teoldgi- cas provam que tém valor para a vida concreta, sao verdadeiras, pois o pragmatismo as aceita, no sentido de serem boas para tanto. O quanto serdo verdadeiras, dependeré inteiramente de suas relagées com as demais verdades, que tém, também, de ser reconhecidas. O que acabei de dizer a respeito do Absoluto, do idealismo transcendente, € um caso a estudar. Primeiramente, chamei-o de majestoso e disse que concedia conforto a uma classe de espiritos, e€ entao acusei-o de remoto e estéril. Na medida, porém, em que proporciona esse conforto, seguramente que nao € estéril; tem o seu valor; realiza uma fungao concreta. Como bom pragmatista, devo chamar o Absoluto verdadeiro, entao, “‘com a devida reserva”; 0 que, sem hesitagio, faco agora. Que, porém, significa, nesse caso, verdadeiro com a devida reserva? Para responder, precisamos apenas aplicar 0 método prag- miatico. Que querem dizer os crentes no Absoluto quando propalam que sua crenga proporciona-lhes conforto? Querem dizer que, visto o mal ja estar “dominado” no finito Absoluto, podemos, portanto, sempre quando desejarmos, tratar o temporal como se fora potencial- mente o eterno, ficarmos seguros de que podemos confiar em seu resultado, e, sem pecado, alijar nosso medo e livrar-nos do abor- recimento de nossa responsabilidade finita. Em suma, querem dizer que temos 0 direito, uma vez ou outra, de tomar férias morais, de deixar que o mundo v4 4 sua prépria sorte, na certeza de que seus problemas acham-se em melhores maos do que as nossas, e que nao constituem assunto de nossa algada. O universo é um sistema do qual os membros individuais podem relaxar suas ansiedades ocasionalmente, no qual 0 4nimo descuidado é também direito para os homens, e a moral descansa em ordem — universo esse que, se nao estou enganado, é parte, pelo menos, do que é “‘conhecido como” Absoluto; universo esse que é a grande diferenga em nossas experiéncias particulares com 0 que, em se fazendo verdadeiro, faz para nds; universo esse que € valor em caixa quando interpretado pragmaticamente. Mais longe do que isso, o leitor ordinario de filosofia, que pensa favoravelmente quanto ao idealismo absoluto, nao se aventura tendo em vista agucar suas concepgées. Pode usar o Absoluto para tanto, e esse tanto é muito precioso. Sofre ao ouvir falar incredulamente do Absoluto, portanto, € menospreza as criticas porque abordam aspectos da concep¢4o que nao consegue compreender. Se o Absoluto significa isso, e nao mais do que isso, quem pode possivelmente negar a sua verdade? Negé-la seria insistir que os homens jamais devem relaxar, e que as férias nunca estao em ordem. Estou bem certo de quao singular deve parecer a alguns dos presentes escutar-me dizer que uma idéia € verdadeira na medida em que acreditar nela € proveitoso para nossas vidas. Isso € bom, pois tanto quanto se aproveita, admite-se de bom grado. Se o que fazemos com seu auxilio é bom, deixaremos que a idéia em si seja boa com o que vem, pois estaremos melhor possuindo-a. Nao é, porém, um estranho abuso da palavra “verdade”, dir-se-4, chamar as idéias também de “verdadeiras” por essa raza? Responder a essa dificuldade complemente é impossivel a essa altura de minha narrativa. Toca-se aqui no ponto central da doutrina da verdade de Schiller, Dewey e de mim mesmo, que nao posso discutir em detalhes até chegar a minha sexta conferéncia. Deixem- me dizer, por ora, somente isso, que a verdade é uma espécie de bem, e nao, como usualmente se supde, uma categoria de bem, e coordenada com este. Verdadeiro é 0 nome de que quer que prove ser bom no sentido da cren¢a, e bom, também, por razGes funda- mentadas e definitivas. Certamente deve-se admitir que, se ndo hou- vesse bem para a vida em idéias verdadeiras, ou se o conhecimento delas fosse positivamente desvantajoso e as idéias falsas as unicas Uteis, entao a nogao corrente de que a verdade é divina e preciosa, e a sua procura um dever, jamais poderia ter crescido ou se tomado um dogma. Em um mundo como esse, nosso dever seria o de evitar a verdade, de preferéncia. Mas nesse mundo, exatamente como certos alimentos nao sao somente agradaveis ao paladar, porém bons para os dentes, estémago e tecidos, assim certas idéias nao séo somente agradaveis ao pensamento, ou agradaveis como suporte de outras idéias que nos s4o caras, mas sao também tteis as lutas praticas da vida. Se hd qualquer vida que seja realmente melhor do que a que devemos levar, e se hd qualquer idéia que, em sendo acreditada, ajudar-nos-ia a levar tal vida, ent&o seria realmente melhor para nds acreditar nessa idéia, a ndo ser que, na verdade, a crenga que se lhe depositasse colidisse incidentalmente com outros beneficios vitais de maior vulto. “Como seria melhor para nés acreditar!”. O que soa bem como uma definigao de verdade. E quase como se disséssemos: “devemos acreditar” — e nessa defini¢gao ninguém acharia nada de anormal. Nao devemos alguma vez acreditar no que € melhor para nés acreditar? E podemos, entéo, manter a nogao do que é melhor para nds, e a do que é verdade para nés, permanentemente apartadas? O pragmatismo diz nao, e concordo inteiramente com ele. Pro- vavelmente os senhores também concordar4o, tanto quanto possa estender-se 0 pronunciamento abstrato, com a suspeita, porém, de que se nds acreditassemos praticamente em tudo que traz bem a nossas préprias vidas pessoais, acabariamos por desculpar todas as espécies de fantasias acerca dos negécios desse mundo, e todas as espécies de superstigdes sentimentais a respeito de um mundo vindouro. A suspeita, nesse caso, indubitavelmente é bem fundada, e € evidente que alguma coisa acontece quando se passa do abstrato para 0 concreto, que complica a situagao. Acabei de dizer que o que é melhor para nds acreditarmos é ver- dadeiro, a ndo ser que a crenga colida incidentalmente com algum outro beneficio vital. Ora, na vida real, que beneficios vitais estao mais propensos a entrar em choque com qualquer crenga nossa particular? Quais, na verdade, exceto os beneficios vitais concedi- dos por outras crengas, quando essas patenteiam-se incompativeis com as primeiras? Em outras palavras, o maior inimigo de qualquer de nossas verdades pode ser 0 resto de nossas verdades. As verdades tém, de uma vez por todas, o instinto desesperado da autopreservagao e do desejo de extinguir 0 que quer que as contradiz. Minha crenga no Absoluto, baseada no bem que me proporciona, deve aceitar 0 desafio de todas as demais crengas minhas. Garanto que pode ser verdadeira, dando-me um descanso moral. Nao obstante, como a concebo — e deixem-me dizer agora confidencialmente, como se fora, e meramente em minha propria pessoa privada — colide com outras verdades minhas, cujos beneficios odeio ter de ceder por sua causa. Acontece estar associada a uma espécie de légica da qual sou inimigo, e percebo que me enreda em paradoxos metafisicos, que sdo inaceitdveis etc., etc. Como, porém, j4 tenho muitos problemas na vida, sem precisar acrescentar a perturbacao de levar comigo essas divergéncias intelectuais, pessoalmente largo mao do Absoluto. Tomo justamente minhas férias morais; ou por outra, como um filésofo pro- fissional, tento justificd-las por intermédio de algum outro principio. Se eu pudesse restringir minha nogao do Absoluto ao seu puro valor de concessor de descanso, nao colidiria com quaisquer outras verdades. Nao podemos, porém, assim tao facilmente, restringir nossas hipdteses. Carregam consigo caracteristicas avantajadas, e so essas que entram em choque. Minha descrencga no Absoluto significa, pois, descrenga naquelas outras caracteristicas avantajadas, pois acredito completamente na legitimidade de tomar férias morais. Vé-se, por ai, o que tenho em mente quando chamei o pragma- tismo de mediador e reconciliador e disse, tomando de empréstimo a palavra de Papini, que “desentesa” nossas teorias. O pragmatismo, de fato, nao tem quaisquer preconceitos, quaisquer dogmas obstru- tivos, quaisquer canones rigidos do que contaré como prova. E completamente maledvel. Acolher4 qualquer hipdtese, considerar qualquer evidéncia. Segue-se dai que no campo religioso mantém- se em grande vantagem, tanto sobre o empirismo positivista, com 0 seu pendor antiteolégico, quanto sobre o racionalismo religioso, com 0 seu interesse exclusivo pelo remoto, pelo nobre, pelo simples e pelo abstrato no sentido da concepgao. Em suma, 0 pragmatismo alarga o campo de procura de Deus. O racionalismo apega-se 4 légica e ao empireo. O empirismo agarra-se aos sentidos externos. O pragmatismo esta disposto a tomar tudo, a seguir ou a légica ou os sentidos e a contar com as experiéncias mais pessoais e mais humildes. Levard em conta as experiéncias misticas se tiverem conseqiiéncias praticas. Acolher a um Deus que viva no 4mago mesmo do fato privado — se esse lhe parecer um lugar provavel para encontré-lo. O seu tinico teste de verdade provavel é 0 que trabalha melhor no sentido de conduzir-nos, 0 que se adapta melhor a cada parte da vida e combina com a coletividade dos reclamos da experiéncia, nada sendo omitido. Se as idéias teolégicas podem fazer isso, se a nogao de Deus, em particular, prova que pode fazer isso, como pode o pragmatismo, em s& consciéncia, negar a existéncia de Deus? O pragmatismo nao pode ver sentido em tratar como “nao verda- deira” uma nogio que foi tio bem sucedida pragmaticamente. Que outra espécie de verdade poderia haver, para o pragmatismo, do que toda essa concordancia com a realidade concreta? Em minha Ultima conferéncia voltarei, de novo, as relagdes do pragmatismo com a religiao. Vé-se desde j4, porém, quao democrd- tico é. Suas maneiras sao tao varias e flexiveis, seus recursos tao ricos e intermindveis, e suas conclusdes tao amigdveis quanto as da natureza mae. . M4 TERCEIRA CONFERENCIA Alguns problemas metafisicos considerados pragmaticamente E stou agora em condigdes de tornar 0 método pragmatico mais familiar dando aos senhores algumas ilustragdes de sua aplicagao a problemas particulares. Comegarei com o mais 4rido, e a primeira coisa que tomarei comigo sera o problema da substdncia. Todos fazem a velha distingao entre substancia e atributo, encrustada que esta na prépria estrutura da linguagem humana, na diferenga entre sujeito e predicado gramaticais. Temos aqui, por exemplo, um pedago de giz de quadro-negro. Seus modos, atributos, proprie- dades, acidentes ou feicdes — qualquer que seja o termo que usemos — sao brancura, fragilidade, formato cilfndrico, insolubili- dade em 4gua etc., etc. Mas o dono desses atributos é apenas 0 giz, que tem o nome da substancia com aqueles atributos. Assim, os atributos dessa mesa inerem na substancia “madeira”, os do meu casaco, na substancia “1a”, e assim por diante. O giz, a madeira e a 14, mostram de novo, a despeito de suas diferengas, propriedades comuns, e, por extensdo, eles mesmos so contados como modos de uma substancia ainda mais primitiva, a matéria, cujos atributos so extensibilidade e impenetrabilidade. De modo semelhante, nos- sos pensamentos e sentimentos sao feigdes ou propriedades de nossas diversas almas, que sao substncias, mas de novo nao comple- tamente a seu préprio modo, pois sao modos da substancia ainda mais profunda “espirito”. Agora, logo se viu que 0 que todos nds conhecemos do giz éa brancura, fragilidade etc., que o que todos nds conhecemos da madeira é a combustibilidade e a estrutura fibrosa. Um grupo de atributos € o que cada substancia aqui tem para ser reconhecida, e formam o seu tnico valor em caixa para a nossa experiéncia real. A substancia, em cada caso, é revelada através dos atributos; se f6s- semos separados deles, jamais suspeitarfamos de sua existéncia; e se Deus se mantivesse mandando-os a nés em ordem inalteravel, aniquilando milagrosamente em um determinado momento a subs- tancia que os suportava, jamais poderiamos perceber 0 momento, pois as nossas préprias experiéncias manter-se-iam inalteradas. Os nominalistas, conseqiientemente, adotam a opiniao de que a substan- cia é uma idéia espuria, devido ao nosso inveterado vezo humano de transformar os nomes em coisas. Os fendmenos vém em grupos — 0 grupo-giz, 0 grupo-madeira, etc. — e cada grupo adquire 0 seu nome. O nome nés entao tratamos como suportando, em certo sentido, o grupo de fendmenos. O termémetro comum de nossos dias, por exemplo, € suposto originar-se de alguma coisa chamado “clima”. O clima € realmente apenas 0 nome para um certo grupo de dias, mas é tratado como se permanecesse por detrds do dia, e em geral colocamos 0 nome, como se fora um ser, atraés dos fatos que designa.\Mas as propriedades fenomenais das coisas, dizem os nominalistas, certamente que nao se tornam inerentes de fato aos nomes, e se, ent&o, nao se tornam inerentes aos nomes, nao se tornam inerentes a coisa alguma. Aderem, ou se unem, antes, entre si, € a nocao de uma substancia inacessivel a nds, que pensamos que explica essa coesao suportando-a, como o cimento pode suportar pecas de mosaico, deve ser abandonada. O fato da pura coesao em si € tudo que a nocio de substancia significa. Atrds do fato nada existe. A escolastica tomou a nogao de substancia do senso comum, tornando-a técnica e articulada. Poucas coisas pareceriam ter conse- qiiéncias pragmaticas menores para nds do que as substancias, apartados como estamos de cada contato com elas. Contudo, em um caso, a escolastica provou a importancia da idéia substancia tratando-a pragmaticamente. Refiro-me a certas disputas acerca do mistério da Eucaristia. A substancia aqui parecia ter um valor pragmatico momentaneo. Visto que os acidentes da héstia nao se alteram na ceia do Senhor, e que, todavia, ela se torna o préprio corpo do Cristo, deve ser que a mudanga se verifica somente na substancia. A substancia pao deve ter sido retirada, e a substAncia divina substituida milagrosamente, sem alterar as propriedades sensiveis imediatas. Mas embora essas nao se tenham alterado, processou-se uma diferenga tremenda, nada menos do que isso, que nés, que tomamos o sacramento, alimentamo-nos agora com a pré- pria substancia da divindade. A nogao substancia transforma-se em vida, entao, com tremendo efeito, se, por uma vez, permitimos que as substancias possam separar-se de seus acidentes, e trocd-los mais tarde. Essa é a nica aplicagdo pragmatica da idéia de substancia de que tenho noticia; e € 6bvio que ela somente sera tratada seriamente por aqueles que jd acreditam na “presenga real” em bases indepen- dentes. _/A substancia material foi criticada por Berkeley com tal efeito que seu nome tem brilhado ao longo de toda a filosofia subse- qiiente. O tratamento que Berkeley dispensa 4 nogao de matéria € tao bem conhecido que exige pouco mais do que uma simples mengao. Longe de negar o mundo externo que conhecemos, Berkeley endossa-o. Foi a nogao escoldstica de uma substancia material inacessivel a nés, por detrds do mundo externo, mais profunda e mais real do que ele, e necessdria para apoid-lo, que Berkeley sustentava ser 0 mais efetivo de todos os redutores do mundo externo a irrealidade. Neguemos essa substancia, disse ele, acredite- mos que Deus, a quem podemos compreender e de quem podemos aproximar-nos, envia-nos 0 mundo sensivel diretamente, e confirma- Temos esse tiltimo e 0 apoiaremos por sua divina autoridade. A critica de Berkeley a “matéria” foi, por conseguinte, absolutamente pragmatica. A matéria é conhecida como nossas sensagées de cor, forma, dureza e que mais. Constituem o valor em caixa do termo. A diferenga que a matéria tem para ndés, em sendo verdadeira, é que nés, entao, temos tais sensagGes; em nao sendo, é que nao as temos. Essas sensagées, ent&o, constituem o seu tinico sentido. Berkeley nao nega a matéria, pois simplesmente diz-nos de que consiste. E um nome verdadeiro para tanto no sentido das sensagoes. _ Locke, e mais tarde Hume, aplicaram uma critica pragmatica semelhante 4 nogao de substancia espiritual. Mencionarei somente 0 tratamento que Locke dispensou a nossa “identidade pessoal”. Ele reduz imediatamente essa nocao ao seu valor pragmatico em termos de experiéncia. Significa, diz ele, a “consciéncia”, isto é, 0 fato de que, em um determinado momento da vida, lembramo-nos de outros momentos, e sentimo-os todos como partes de uma e uma s6 mesma historia pessoal. O racionalismo havia explicado essa continuidade pratica em nossa vida pela unidade de nossa substancia alma. Locke diz, entretanto: suponhamos que Deus houvesse-nos arrebatado a consciéncia; ficarfamos bem, de qualquer modo, por termos ainda o principio da alma? Suponhamos que anexamos a mesma consciéncia a diferentes almas; ficarfamos pior, quando nos compreendemos, por esse fato? Nos dias de Locke, a alma era principalmente uma coisa para ser recompensada ou punida. Veja- mos como Locke, discutindo-a desse ponto de vista, mantém a questao pragmatica: “Suponhamos”, diz ele, “que alguém pense ser a mesma alma que outrora foi Nestor ou Térsitas. Pode ele julgar como suas as agdes deles, de qualquer modo mais do que as agdes de qualquer outro homem que tenha alguma vez existido? Deixemo-lo, porém, encontrar-se uma vez cdnscio de qualquer das agdes de Nestor, e ele entéo descobre que € a mesma pessoa com Nestor... Nessa identidade pessoal fundamenta-se todo 0 direito e justig¢a de recom- pensa e punicao. Pode ser razodvel pensar que ninguém serd levado a responder pelo que ignora, mas que receberd seu castigo, sua consciéncia acusando ou desculpando. Supondo-se um homem punido agora pelo que fizera em outra vida, com o que nao teria consciéncia de nada, que diferenga faz entre essa punigao e ser criado miseravel?” Nossa identidade pessoal, ent4o, consiste, para Locke, somente em particulares definiveis pragmaticamente. Se, a parte desses fatos verificaveis, ela se insere também em um principio espiritual, eis ai uma especulago meramente curiosa. Locke, transigente como foi, tolerou passivamente a crenga em uma alma substancial por detras de nossa consciéncia. Seu sucessor, porém, Hume, e muitos psicé- logos empiricos depois dele, negaram a alma, salvo como nome para as coesées verificdveis em nossa vida interior. Essas descem pela corrente de experiéncia com a alma, e descontam-na por um valor elevado em troco mitido no sentido de “idéias” e de suas conexdes peculiares entre si. Como disse da matéria de Berkeley, a alma € boa u “verdadeira” exatamente nessa medida, nao mais do que isso. {A mencio de substancia material sugere naturalmente a dou- trina do “materialismo”, mas o materialismo filoséfico nao est& necessariamente ligado 4 crenga na “matéria”, como um principio metafisico. Pode-se negar a matéria naquele sentido, tao veemente- mente como Berkeley o fez, pode-se ser um fenomenalista como Huxley, e, todavia, pode-se ainda ser um materialista no amplo sentido da palavra, de explicar os fendmenos mais elevados pelos mais baixos, e deixar os destinos do mundo a mercé de suas partes mais cegas e de suas forcas mais obscuras. E nesse sentido mais amplo da palavra que o materialismo se opée ao espiritualismo ou ao teismo. As leis da natureza fisica sao as que regem as coisas, diz o materialismo. As produgdes mais elevadas do génio humano podem ser calculadas por quem tenha completo conhecimento dos fatos, fora de suas condigées filosdgicas, nao se cuidando se a natureza existe somente por nossos espiritos, como os idealistas propugnam, ou nao. Nossos espiritos, de qualquer modo, tém de registrar 0 tipo que a natureza é, e explicd-la como operando através de leis cegas da fisica. Esse é 0 carater do materialismo de hoje em dia, que pode ser chamado com mais propriedade de naturalismo. Opondo-se-lhe, ergue-se o “teismo”, ou 0 que, em amplo sentido, pode ser chamado de “espiritualismo”. O espiritualis- mo diz que o espirito nao somente testemunha e registra as coisas, como também as opera e comanda: sendo o mundo assim guiado nao pelo seu mais baixo, mas por seu mais alto elemento. Tratada como freqiientemente o €, essa questo torna-se pouco mais do que um conflito entre preferéncias estéticas. A matéria é grossa, dspera, crassa, turva; 0 espirito é puro, elevado, nobre; e visto que est4 mais em consonancia com a dignidade do universo dar primazia ao que aparece como superior, 0 espirito deve ser confirmado como o principio guia. Tratar os principios abstratos como finalidades, diante das quais nossos intelectos podem vir repousar em um estado de contemplacao admirada, é a grande falha do racionalismo. O espiritualismo, como freqiientemente se apresen- ta, pode ser apenas um estado de admiragao por uma espécie, ou de desgosto por outra espécie, de abstragéo. Lembra-me um professor espiritualista muito digno, que sempre se referia ao materialismo como “filosofia suja”, e com isso tinha-o j4 como refutado. 7 Aumespiritualismo como esse ha uma resposta facil, e Spencer da-la efetivamente. Em algumas pdginas bem escritas, ao fim do primeiro volume de sua Psicologia, mostra-nos que uma “matéria” tao infinitamente sutil, e que realiza movimentos tao inconcebivel- Mente lestos e finos como os que a ciéncia moderna postula em Suas explanagées, nao tem nenhum trago de grossura em si. Mostra que a concepgao do espirito, como nés, mortais, temos até aqui arquitetado, € em si demasiado grosseira para abarcar a delicada tenuidade dos fatos da natureza. Ambos os termos, diz ele, nada Mais sao do que simbolos, dando énfase aquela imperceptivel Tealidade na qual cessam as oposiges. 7° Para uma objegao abstrata basta uma réplica abstrata; e na medi- da em que a oposi¢4o ao materialismo deriva do desdém pela matéria como alguma coisa “crassa”, Spencer solapa as bases de uma tese tao infundada. A matéria, na verdade, é infinita e incrivelmente refinada. A quem quer que tenha alguma vez olhado a face de um filho morto, ou a de um ente querido sem vida, o mero fato de ter podido a matéria tomar por algum tempo aquela forma preciosa, basta para tornd-la sagrada desde entao. Nao faz diferenga qual possa ser 0 principio de vida, material ou imaterial, pois a matéria de qualquer modo coopera, prestando-se a todos os propésitos da vida. Aquela amada incarnagao fez parte das possibilidades da matéria. Agora, porém, ao invés de demorar em principios, de maneira intelectualmente estagnante, vamos aplicar 0 método pragmatico aos problemas seguintes. Que entendemos por matéria? Que dife- renga pratica faz agora que 0 mundo seja comandado pela matéria ou pelo espirito? Penso que nos damos conta de que, com isso, 0 problema toma outra fei¢ao, algo diferente. Antes de mais nada, chamo a atengao para um fato curioso. Nao faz a menor diferenga, na medida em que o passado do mundo tenha passado, se o julgamos como tendo sido 0 trabalho da matéria Ou se pensamos que um espirito divino foi o seu autor. Imagine-se, de fato, que todos os componentes do mundo foram de uma vez por todas irrevogavelmente providos. Imagine-se que acaba nesse exato momento, e que nao tenha mais futuro; deixemos, entdo, que um tefsta e um materialista apliquem suas explicagdes rivais 4 histéria do mundo. O tefsta mostra como um Deus 0 fez; 0 materialista mostra, e suporemos com igual éxito, como resultou de forgas fisicas cegas. Que 0 pragmatista, entao, seja solicitado a escolher entre suas teorias. Como pode aplicar seu teste se o mundo jéesta completadoYOs conceitos, para ele, sao coisas que retornam com a experiéncia, coisas que nos fazem distinguir as diferengas. Por hipétese, porém, nao pode haver mais experiéncia, e nao podem mais, por agora, serem distinguidas possiveis diferengas. Ambas as teorias mostraram todas as suas conseqiiéncias, e, pela hip6tese que adotamos, essas so idénticas O pragmatista deve, conseqiientemen- te, dizer que as duas teorias, a despeito de seus nomes com diferen- tes conotagGes, significam exatamente a mesma coisa, e que a disputa € puramente verbal. (Estou supondo, naturalmente, que as teorias foram igualmente bem sucedidas nas suas explicagdes do que é). Considere-se 0 caso sinceramente, e diga-se qual seria o valor de um Deus se estivesse ali, com sua obra realizada e seu mundo destruido. Nao valeria mais nem menos do que aquele mundo valia. Aquela quantidade de resultados, com seus méritos e defeitos mesclados, o seu poder criador poderia atingir, mas nao ultrapassar. E visto nao haver futuro; visto o valor e significado totais do mundo jd terem sido pagos e atualizados nos sentimentos que 0 acompa- nharam no transcurso das coisas, € que agora 0 acompanham no fim das coisas; visto nao implicar nenhuma significagao suplemen- tar (tal como nosso mundo real implica) derivada de sua fungao de preparar alguma coisa ainda para vir; eis por que, entao, por ele tomamos a medida de Deus, como fora. Temos o Ser que pode, de vez por todas, fazer aquilo; e por tudo isso somos-lhe gratos, mas nao por nada mais. Agora, porém, na hipotese contrdria, a saber, que os fragmentos de matéria que seguem suas leis poderiam fazer © mundo, e menos nao fizeram, nao devemos ser, do mesmo modo, gratos a eles? Em que sofreriamos perda, entao, se abandondssemos Deus como uma hipétese e torndssemos sé a matéria respons4vel? De onde adviria qualquer maleficio especial, ou prejuizo? E como, sendo a experiéncia o que € de uma vez por todas, poderia a presenga de Deus no mundo tornd-lo ainda mais vivo ou mais rico? Sinceramente, é impossivel dar qualquer resposta a essa per- gunta. O mundo realmente experimentado € suposto ser 0 mesmo em seus detalhes em qualquer hipétese, “o mesmo, para nosso louvor ou culpa”, como Browning disse. Mantém-se indestru- tivelmente: uma prenda que nao pode ser tomada de volta. De- nominar de matéria a sua causa nao retira nenhum s6 dos itens que 0 edificaram, e nem dar o nome de Deus 4 causa fa-los aumentar. Sao o Deus ou os Atomos, respectivamente, desse mundo mesmo, e nao de nenhum outro. Deus, se existe, tem feito justamente 0 que os 4tomos podiam fazer — aparecer na figura de 4tomos, para falar assim — e ser credor da gratidao que é devida aos atomos, e nada Mais. Se sua presenga nao empresta cor ou carater diferentes 4 funcao, seguramente que nao pode emprestar aumento de dignidade. Nem a indignidade se manifestaria, estivesse Deus ausente, e per- mManecessem apenas os 4tomos como atores no palco. Quando uma pega acaba e a cortina desce, nao a tornamos melhor reclamando um génio ilustre para 0 seu autor, do mesmo modo que nao a tornamos pior por cham4-lo de escrevinhador vulgar. Assim, se nenhum detalhe futuro de experiéncia ou de conduta Pode ser deduzido de nossa hip6tese, o debate entre materialismo e teismo torna-se completamente frivolo e insignificante. A matéria e Deus nesse caso significam exatamente a mesma coisa — 0 poder, a saber, nem mais nem menos, que podia fazer justamente completo esse mundo — e sdbio € quem, em situagées dessas, volta as costas a discussdo supérflua. Do mesmo modo, muitos homens instintivamente, e positivistas e cientistas deliberadamente, voltam as costas as disputas filoséficas das quais nada pode ser visto seguir-se na linha de conseqiiéncias futuras definitivas. O carter verbal e vazio da filosofia é certamente uma reprovagao com a qual nao estamos sendo bastante familiarizados: Se o pragmatismo é verdadeiro, € uma censura perfeitamente segura, a nao ser que as teorias em jogo possam ser demonstradas como tendo resultados praticos alternados, embora delicados e distantes que possam ser. O homem comum e 0 cientista dizem que nao descobrem tais resultados, e se o metafisico pode discernir coisa alguma também, Os outros certamente esto no direito de ir a favor, como contra ele. Sua ciéncia nao é, entéo, sendo bagatela pomposa; e a dotagao destinada a um professorado dessa espécie seria patetice. Conseqiientemente, em cada genuino debate metafisico, algum problema pratico, conquanto conjectural e remoto, esta envolvido. Para compreender essa situagao, retornem comigo ao nosso esquema e se coloquem, dessa vez, no mundo em que vivemos, no mundo que tem um futuro, mas que, todavia, est incompleto enquanto falamos. Nesse mundo inacabado, a alternativa de “materialismo ou ateismo?” é intensamente pratica; e vale a pena para nés despender alguns minutos de uma hora, a observar que a situagao é essa mesma. Como, na verdade, pode o programa diferir para nés, conforme consideramos que os fatos da experiéncia até agora sao configura- ¢6es despropositadas de 4tomos cegos que se movem de acordo com leis eternas, ou que, por outro lado, devem-se a providéncia divina? Na medida em que os fatos passados passaram, na verdade, nao ha diferenga. Sao fatos enquadrados, arrumados, capturados; e o bem que encerram nao est4 perdido, sejam os dtomos ou seja Deus a causa do mesmo. HA, conseqiientemente, muitos materialistas por ai em torno de nds hoje em dia, que, ignorando completamente 0s aspectos praticos e futuros da questdo, procuram eliminar a carga de 6dio consubstanciada na palavra materialismo, e buscam até mesmo eliminar a prépria palavra, mostrando que, se a matéria péde dar origem a todos esses ganhos, pelo que, entao, a matéria, considerada funcionalmente, é justamente uma entidade tao divina quanto Deus, de fato se aglutina com Deus, € 0 que se entende por Deus. Deixe-se, advertem-nos essas pessoas, de usar qualquer desses termos, com seu antagonismo superado. Use-se um termo despojado de conotagées clericais, por um lado; das sugestdes de grossura, aspereza, ignobilidade, por outro. Fale-se do mistério primitivo, da energia desconhecida, do primeiro e unico poder, ao invés de dizer- se Deus ou matéria. Esse € 0 caminho ao qual Spencer nos impele; e se a filosofia fosse puramente retrospectiva, por todos os titulos ele se intitularia um excelente pragmatista. A filosofia, porém, é também prospectiva, e, apés achar 0 que o mundo tem sido e feito e cedido, ainda pergunta de quebra: “que promete o mundo?”. Déem-nos uma matéria que prometa éxito, que esteja destinada por suas leis a conduzir nosso mundo, cada vez mais perto, 4 perfei¢do, e qualquer homem racional adorard essa matéria tao prontamente quanto Spencer adorou 0 seu préprio poder desco- nhecido. Nao s6 tem favorecido a retidao até agora, como a favore- cera para sempre; e isso é tudo que precisamos. Fazendo praticamen- te tudo que um Deus pode fazer, é equivalente a Deus, sua fungao é ade um Deus, e em um mundo em que um Deus fosse supérfluo; de um mundo assim, um Deus jamais poderia ser legalmente omitido. “Emogao césmica” seria 0 nome certo para religiao. A matéria, porém, com a qual o processo de evolugao césmica de Spencer se desenvolve dentro do principio de perfei¢ao intermina- vel, é essa de que falamos? Na verdade nao é, pois o fim futuro de cada coisa ou sistema de coisas envolvidas cosmicamente est4 previsto pela ciéncia ser uma tragédia mortal; e Spencer, confinando- se ao estético e ignorando o lado pratico da controvérsia, nao contribuiu realmente com nada sério para amenizar a situagao. Aplique-se, porém, agora, nosso principio de resultados praticos, e veja-se que significagao vital a questao do materialismo ou ateismo adquire imediatamente. O teismo e o materialismo, tao indiferentes quando tomados retrospectivamente, assinalam, quando tomados prospectivamente, Perspectivas totalmente diferentes de experiéncia. Pois, de acordo com a teoria da evolucdo mecAnica, as leis de redistribuigao da Matéria e do movimento, embora certamente se lhes deva agradecer Por todas as boas horas que nossos organismos tenham alguma vez nos proporcionado e por todos os ideais que nossos espiritos agora Sustentam, contam-se, ndo obstante, como fatalmente certas no sentido de desfazer sua obra de novo, e de desagregar tudo o que alguma vez tenham concentrado. Todos conhecem o quadro do estgio final do universo, que a ciéncia evoluciondria prevé. Nao posso expor melhor o quadro que nao nas palavras de Balfour: “As energias de nosso sistema decairao, a gloria do sol murchara, e a terra, sem marés e inerte, nao mais tolerar4 a raga que por um momento perturbou sua solidao. O homem entrard pelo buraco, e todos os seus pensamentos perecerdo. A inquieta consciéncia que, nesse canto obscuro, por um breve espago quebrou 0 siléncio satis- feito do universo, ficara em repouso. A matéria nao mais se reco- nhecerd. ‘Monumentos impereciveis’ e ‘feitos imortais’, a propria morte, e 0 amor mais forte que a morte, ficarao como se nao tivessem existido. Nada existira, o melhor ou o pior de tudo qué o trabalho, 0 génio, a devogao e o sofrimento do homem penaram através de idades sem conta para efetuar.””' O triste da estéria € que nas vastas correntes do tempo césmico, embora aparegam muitas praias enfeitadas, e flutuem a solta muitos bancos de nuvens encantadas, em permanéncia por longo tempo antes de serem dissolvidos — mesmo como nosso mundo agora permanece, para nossa alegria — quando, porém, esses produtos transitérios se dissipam, nada, absolutamente nada resta, para re- presentar as qualidades particulares, os elementos de preciosidade que possam ter recolhido. Mortos e desaparecidos estao, desapareci- dos completamente da prdpria esfera e espago do ser. Sem um eco; sem uma lembranga; sem uma influéncia sobre nada que possa vir depois, para fazé-lo ter cuidados por ideais semelhantes. Esse de- sastre final, irremedidvel tragédia, é da esséncia do materialismo cientifico, conforme compreendido presentemente. As forgas mais baixas e nao mais altas é que sao as forgas eternas, ou as Ultimas forgas sobreviventes dentro do tinico ciclo de evolugao que podemos definitivamente ver. Spencer acredita nisso tanto quanto qualquer outro; assim, por que deve ele discutir conosco como se estivéssemos fazendo objegées estéticas imbecis a “grosseria” da “matéria e do movimento”, os principios de sua filosofia, quando o que realmente nos apavora é 0 desconsolo de seus resultados praticos posteriores? Nao, a verdadeira objecao ao materialismo nao é positiva, mas negativa. Seria grotesco, nesse momento, queixar-se dele naquilo que €, por “grosseria”. Grosseria € 0 que a grosseria faz — sabemos ' The Foundation of Belief, pagina 30. agora 0 qué. Queixamo-nos dele, ao contrario, pelo que ndo € — uma garantia permanente para os nossos interesses mais ideais, e nao um provedor de nossas mais remotas esperangas. A nogao de Deus, por outro lado, conquanto inferior possa ser em clareza 4s nogdes matematicas correntes em filosofia, me- cAnica, tem, pelo menos, uma superioridade pratica sobre as mesmas, a de que garante uma ordem ideal que serd permanentemente preservada. Um mundo com um Deus nele para dar a palavra final, pode, na verdade, queimar ou gelar, mas ent&o consideramo-lo como ainda atento aos velhos ideais e certo de trazé-los em outra parte 4 fruigéo; de modo que, onde estiver, a tragédia € somente provis6ria e parcial, e o afundamento e a dissolugao nao sao abso- lutamente as coisas finais. Essa necessidade de uma ordem eterna moral é das mais profundas em nosso peito. E os poetas como Dante e Wordsworth, que vivem da convicgao de uma tal ordem, devem a esse fato a extraordindria t6nica e o poder consolador de seu verso. Nisso, pois, nesses diferentes apelos emocionais e praticos, nos ajus- tamentos de nossas atitudes concretas de esperanga e de expectativa, e em todas as conseqiiéncias delicadas que suas diferengas gravam, reside 0 significado positivo do materialismo e do espiritualismo — e nao em abstrag6es bizantinas a respeito da esséncia interna da matéria, ou a respeito dos atributos metafisicos de Deus. O materia- lismo significa simplesmente a negagao de que a ordem moral é eterna, e a eliminagao das ultimas esperangas; 0 espiritualismo signi- fica a afirmagao de uma ordem moral eterna e a permanéncia da esperanga. Certamente que se trata de um problema bastante espi- nhoso, para quem quer que 0 sinta; e, enquanto os homens forem homens, dard assunto para um debate filos6fico sério. Possivelmente, porém, alguns podem ainda reunir-se em sua defesa. Mesmo embora admitindo que o espiritualismo e 0 materia- lismo fazem diferentes profecias quanto ao futuro do mundo, pode- se desprezar a diferenca como alguma coisa tao infinitamente remota Para poder significar algo de concreto para um espirito normal. A €sséncia de um espirito normal, pode-se dizer, é olhar para mais Perto e nao dar nenhuma importancia para quimeras tais como 0 fim do mundo. Bem, s6 posso dizer que, se € isso que se diz, faz-se injustica & natureza humana. Nao se dispde da melancolia religiosa Por um simples florescer da insanidade mundial. As coisas absolutas, as Ultimas coisas, 4s coisas sobrepostas, s&o os interesses verdadei- Tamente filos6ficos; todos os espiritos superiores pensam seriamente a esse respeito, e 0 espirito de vistas mais curtas é simplesmente o espirito do homem mais superficial. As questées de fato em jogo no debate sao, naturalmente, con- cebidas bastante vagamente por nds nos dias presentes. Mas a fé espiritualista, em todas as suas formas, lida com um mundo de promessa, ao passo que 0 sol do materialismo pde-se em um mar de desapontamento. Lembrem-se do que eu disse do Absoluto: garante- nos férias morais. Qualquer visao religiosa faz isso. Nao somente incita Os nossos momentos mais tenazes, como também proporciona Os nossos momentos alegres, descuidados, confiantes, e os justifica. Configura as bases da justificagéo vagamente, para ser exato. As caracteristicas precisas dos fatos futuros poupados que nossa crenga em Deus assegura, terao de ser calculadas pelos interminaveis méto- dos da ciéncia: podemos estudar nosso Deus estudando somente sua Criagao. Podemos desfrutar de nosso Deus, porém, se tivermos um, adiantadamente a todo esse trabalho. Eu mesmo acredito que a evidéncia de Deus reside, antes de mais nada, em experiéncias pessoais internas. Uma vez que nos tenha sido dado o nosso Deus, seu nome significa, pelo menos, o beneficio do descanso. Lembrem- se do que eu disse da vez passada a respeito da maneira pela qual as verdades se chocam e tratam de “derrubar-se” umas as outras. A verdade de “Deus” tem de aceitar 0 desafio de todas as outras nossas verdades. Esta sendo julgada por todas e julga a todas. Nossa opiniao final a respeito de Deus s6 pode ser assentada depois que todas as verdades tiverem passado juntas por um processo de triagem. Esperemos que encontrem um modus vivendi. Deixem-me passar a um problema filosdfico bem relacionado com esse, a questdo do designio na natureza. A existéncia de Deus tem sido, desde tempos imemoriais, tida como podendo ser demons- trada por certos fatos naturais. Muitos fatos aparecem como se expressamente designados em vista um do outro. Assim, 0 bico do pica-pau, sua lingua, seus pés, sua cauda etc., adaptam-no maravilho- samente a um mundo arboreo, com larvas ocultas por detras das cascas das arvores, prontas para servirem de pasto 4 voracidade da ave. As partes de nosso olho acomodam-se 4s leis 6pticas com perfeigdo, levando os raios luminosos a reproduzirem com agudeza a imagem do objeto em nossa retina. Essa adaptagéo mitua de coisas diversas quanto a origem, dava a entender um designio. conforme foi sustentado; e o planejador foi sempre tratado como uma deidade amiga dos homens. O primeiro passo nesses argumentos foi o de provar que o de- signio existia. A natureza foi esquadrinhada em busca de resultados obtidos através de coisas separadas que se co-adaptavam. Nossos olhos, por exemplo, tém origem na escuridao intra-uterina, e a luz tem origem no sol, e contudo veja-se como se adaptam um ao outro. Evidentemente sao feitos um para 0 outro. A visao é 0 fim colimado, ea luz e os olhos os meios distintos delineados para a sua con- secug¢ao. E estranho, considerando quao unanimemente nossos antepas- sados sentiram a forga desse argumento, é estranho ver quao pouco conta desde o triunfo da teoria darwiniana. Darwin abriu-nos os olhos ao poder que os acontecimentos aleatdérios tém no sentido de concluir resultados “apropriados” se somente houver tempo para que possam combinar-se entre si. Mostrou o desperdicio enorme da natureza no sentido de apresentar resultados que davam em nada, em conseqiiéncia de sua impropriedade. Salientou, também, o nimero de adaptagdes que, se designadas, argumentariam mais a favor de um mau designador do que um bom. Aqui, tudo depende do ponto de vista. Para o verme debaixo da casca de 4rvore, o carter maravilhosamente apropriado do organismo do pica-pau, no sentido de arrancd-lo de 14, seria certamente um argumento favordvel a um diab6lico designador. Os tedlogos, por esse tempo, j4 prepararam seus espiritos de modo a abragar os fatos darwinianos, e, contudo, a interpretd-los como mostrando ainda um propésito divino. Costumava ser uma questo de propédsito contra o mecanismo, de um ou do outro. Era como se alguém dissesse: “Meus sapatos foram evidentemente fabricados para se adaptarem aos meus pés, por conseguinte € impossivel que tenham sido produzidos por maquinas”. Sabemos que nao € bem assim: foram feitos por m4quinas cujo propésito € servir aos pés com sapatos. A teologia necessita apenas de estender semelhante- mente os designios de Deus. Do mesmo modo que o fim de uma equipe de futebol.nao é meramente o de colocar a bola em um determinado Ponto do campo para lavrar um tento (se assim o fora, teriam sim- Plesmente de ir 14 em uma noite escura e depositar a bola na boca da meta), mas 0 de chegar a cidadela do adversério por intermédio de uma maquinaria de condigées estabelecidas — as regras do jogo € Os jogadores contrarios, assim 0 objetivo de Deus nao é meramente, digamos, o de fazer homens e salva-los, mas antes 0 de ter isso feito Por intermédio de um Unico agente, a vasta m4quina da natureza. Sem as estupendas leis e forgas opostas da natureza, a criagao e perfeicao do homem, podemos supor, seriam feitos demasiadamente insipidos para que Deus a isso se tivesse proposto. O que salva a forma do argumento designio a custa do seu velho e facil contetido humano. O designador, hd muito que deixou de ser a deidade do tipo velhinho. Seus designios estenderam-se tanto ao ponto de se tornarem incompreensiveis aos humanos. O sentido dos mesmos angustia-nos tanto, que fixar a mera configuragao do designador torna-se tarefa de muito menor conseqiiéncia em com- paracgao. S6 com dificuldade podemos compreender 0 cardter de um espirito cé6smico cujos propésitos sao revelados por inteiro pela estranha mistura de bens e males que encontramos no mundo. Ou melhor, nao podemos de jeito algum compreender. A simples palavra “designio” em si nao tem conseqiiéncias e nao explica nada. E o mais estéril dos principios. A velha questao de saber-se se h4 um designio é ociosa. A questo real é 0 que que é o mundo, se tem ou nao um designador — e isso sé pode ser revelado pelo estudo de todos os particulares da natureza. Lembrem-se de que ndo importa o que a natureza possa ter produzido ou possa estar produzindo, os meios devem necessaria- mente ter sido adequados, devem ter sido adaptados aquela pro- dugdo. O argumento de propriedade do designio, conseqiiente- mente, sempre se aplicaria, qualquer que fosse o cardter do pro- duto. A recente erupgao do Monte Pelado, por exemplo, exigiu toda a hist6ria passada para produzir aquela exata combinagao de casas arruinadas, caddveres de seres humanos e de animais, navios afundados, cinzas vulc4nicas etc., justamente naquela hedionda configuragao de posigdes. A Franga tinha de ser uma nacao e colonizar a Martinica. Nosso pais tinha de existir e enviar para 14 nossos navios. Se Deus visava de fato aquele resultado, os meios pelos quais os séculos curvaram suas influéncias nesse sentido revelaram uma inteligéncia primorosa. E 0 mesmo em qualquer estado de coisas, tanto na natureza quanto na histéria, que possamos encontrar ja realizadas. Pois as partes das coisas devem sempre ter alguma resultante definida, seja cadtica ou harmoniosa. Quando olhamos ao que realmente tem sucedido, as condigdes devem sempre aparecer perfeitamente designadas, para assegurar 0 que se passou. Podemos dizer, portanto, em qualquer mundo concebivel, de qualquer cardter concebivel, que toda a mdquina césmica pode ter sido de- signada para apresentar tal e tal resultado. Pragmaticamente, entao, a palavra abstrata “designio” € um cartucho sem bala. Nao produz conseqiiéncias, nao acarreta exe- cugao. Que designio? E que designador? Sao as tinicas questdes sérias, e o estudo dos fatos € 0 tinico meio de termos respostas aproximadas. Nesse meio tempo, na dependéncia da lenta resposta dos fatos, quem quer que insista na idéia de que ha um designador e quem esteja certo de que este é divino, partilha de um certo beneficio pragmatico provido pelo termo — o mesmo, de fato, que vemos provido pelos termos Deus, Espirito ou Absoluto. “Designio”, em- bora desprovido de valor que €, como um mero principio raciona- lista posto acima ou detrds das coisas para nossa admirag4o, torna- se, se nossa fé objetiva-o, em alguma coisa teistica, um termo de promessa. Retornando com ele a experiéncia, ganhamos uma pers- pectiva mais confiante no futuro. Se nao é uma forga cega, mas uma forga vidente a que comanda as coisas, podemos, com certa Tazao, esperar melhores resultados. Essa confianga vaga no futuro é 0 unico significado pragmatico discernivel presentemente dos termos designio e designador. Se, porém, a confianga césmica esta certa e nao errada, se é melhor e nao pior, isso tem um significado mais importante. Que muito, pelo menos, de possivel “verdade” os termos, entao, conterao. Tomemos agora outra controvérsia bem surrada, 0 problema do livre-arbitrio. Muitas pessoas que acreditam no que é chamado seu livre-arbitrio, assim procedem conforme o modelo racionalista. E um principio, uma faculdade positiva ou virtude acrescentada ao homem, pela qual sua dignidade é enigmaticamente sobrelevada. Deve acreditar por essa razao. Os deterministas, que negam 0 livre- arbitrio, que dizem que o homem individual nao origina coisa algu- ma, mas meramente transmite ao futuro o empuxo total dos aconteci- Mentos césmicos passados, dos quais € uma expresséo sumamente diminuta, reduzem o homem. E menos admirdvel, despido desse Principio criador. Imagino que mais da metade dos senhores com- Partilham dessa crenga instintiva no livre-arbitrio, e que a admiragao que se Ihe dedica como um principio de dignidade tem muito a que ver com a fidelidade dos senhores. O livre-arbitrio, porém, tem também sido discutido pragmatica- Mente, e, por estranho que parega, a mesma interpretagao pragmatica tem-lhe sido conferida pelas duas classes de disputantes. Sabe-se 0 8rande papel que as questdes de responsabilidade tem desempenhado na controvérsia ética. Considerando-se algumas opiniGes, supGe-se que tudo o pretendido pela ética é um cédigo de méritos e deméritos. Assim faz 0 velho fermento legal e teolégico; os Gnus do crime e do pecado e da punigao cabem a nds. “Quem deve ser acusado? A quem puniremos? A quem Deus punir4?” — essas preocupagées perdu- ram como um pesadelo ao longo da histéria religiosa do homem. Desse modo, 0 livre-arbitrio e o determinismo tém-se invec- tivado mutuamente, tachando-se um ao outro de absurdo, porquan- to cada qual, aos olhos de seus inimigos, tem parecido eliminar a “mputabilidade” de boas ou mas agGes aos seus autores. Que singular antinomia! O livre-arbitrio significa novidade, o enxerto no passado de alguma coisa nao envolvida nisso. Se nossos atos estavam predeterminados, se meramente transmitimos o impulso de todo um passado, dizem os partidarios do livre-arbitrio, como podemos ser louvados ou censurados por alguma coisa? Somos “agentes” apenas, nado “principais”, e onde, entao, estaria a nossa preciosa imputabilidade e responsabilidade? Onde estaria, porém, se tivéssemos livre-arbitrio? Replicam os deterministas. Se um ato “livre” pode ser pura novidade, nao decorre de mim, o eu prévio, mas ex nihilo, e que simplesmente adere a mim, como posso eu, 0 eu prévio, ser responsdvel? Como posso ter eu qualquer cardter permanente, que permanecerd o bastante para o louvor ou a censura, para ser recompensado? O rosario de meus dias tombam em um punhado de contas soltas tao logo o fio da necessidade interna seja arrancado pela prepéstera doutrina indeter- minista. Fullerton e McTaggart recentemente surgiram desafiantes com esse argumento. Pode ser bom ad hominem, mas de outro modo é lamentavel. Pois pergunto, completamente a parte de quaisquer outras razGes, se qualquer homem, mulher ou crianga, com 0 senso da realidade, nao deve ficar envergonhado de litigar por tais princfpios como dignidade ou imputabilidade. O instinto e a utilidade entre eles podem, com seguranga, serem tidos em boa conta no sentido de levar a cabo as fungdes sociais de punigao e de louvor. Se um homem pratica boas agées, nds 0 louvaremos; se pratica mas agGes, nds o puniremos — de qualquer maneira e completamente 4 parte de teorias, como se os atos resultam do que Ihe era prévio ou sao novidades, no sentido estrito da palavra. Fazer a ética humana revolver em torno da questao de “mérito” é lamentdvel irrealidade — sé Deus pode saber de nossos méritos, se temos algum. A base real para supor livre o arbitrio é, na verdade, pragmatica, mas nao tem nada a ver com o desprezivel direito de punir, que j4 fez muito barulho em discussGes passadas em torno do assunto. Pragmaticamente, livre-arbitrio significa novidades no mundo, o direito de esperar que em seus elementos mais profundos, como em seus fendmenos superficiais, o futuro nao possa repetir-se iden- ticamente e imitar o passado. Ha imitagéo en masse, quem pode negar? A “uniformidade da natureza” geral é um pressuposto de todas as leis, por menores que sejam. A natureza, porém, pode ser apenas aproximadamente uniforme; e as pessoas nas quais 0 conhecimento do passado do mundo tenha gerado pessimismo (ou dividas quanto ao bom carater do mundo, que se tornam certezas se esse cardter € suposto eternamente fixo) podem naturalmente saudar © livre-arbitrio como uma doutrina melioristic. Assegura como sendo possivel, pelo menos, o aperfeigoamento; ao passo que 0 determinismo assegura-nos que toda a nossa nogio de possibilidade nasce da ignorancia humana, e que a necessidade e a impossibilidade regem os destinos do mundo. O livre-arbitrio 6, pois, uma teoria geral cosmoldgica de pro- messa, do mesmo modo que o Absoluto, Deus, Espirito ou Designio. Tomados abstratamente, nenhum desses termos tem qualquer contetido interior, nenhum deles da-nos qualquer quadro, e nenhum deles reteria o menor valor pragmtico em um mundo cujo cardter fosse obviamente perfeito desde o inicio. Exaltagao ante a mera existéncia, pura emogio e delicia césmicas, abafariam todo interesse por essas especulagées, parece-me, se o mundo nao fora senao j4 uma terra bruta de felicidade. Nosso interesse por metafisicas reli- giosas decorre do fato de nosso futuro empirico mostrar-se inseguro para nos, necessitando de alguma garantia mais elevada. Se o passado e o presente fossem puramente bons, quem desejaria que 0 futuro nao se lhes assemelhassem? Quem desejaria 0 livre-arbitrio? Quem nfo diria, com Huxley, “deixem-me dar corda a cada dia como a um relégio, para andar direito, e nao pe¢o melhor liberdade”. “Liberdade” em um mundo ja perfeito poderia apenas significar liberdade para ser pior, e quem poderia ser téo louco a ponto de desejar isso? Para ser necessariamente o que é, ser impossivelmente alguma coisa outra, daria 0 toque final de perfeicgao ao universo do Otimismo. Certamente, a tinica possibilidade que se pode reivindicar Tacionalmente é a possibilidade de que as coisas possam ser melho- res. Essa possibilidade, nem preciso dizer, é a que, no jeito em que © mundo vai, temos ampla base para desejar. O livre-arbitrio, pois, nao faz sentido, a nao ser como uma doutrina de alivio. Como tal, ocupa o seu lugar ao lado de outras doutrinas religiosas. Entre essas, constroem-se com os velhos despojos e repa- ram-se as primitivas desolagdes. Nosso espirito, fechado dentro desse patio de sentido-experiéncia, esta sempre dizendo ao inte- lecto 14 na torre: “Esculca, diga-nos de dentro da noite, se alguma coisa promissora af vem”, e © intelecto da-nos, ent&o, palavra de consolo. Outro que nao esse significado pratico, as palavras Deus, livre- arbitrio, designio etc., nao tm mais. Conquanto sejam obscuras em si mesmas, ou intelectualmente tomadas, quando as levamos para dentro da vida conosco, a escuridao transforma-se em luz. Se para- mos, lidando com essas palavras, com sua definigao, pensando estar nisso uma finalidade intelectual, onde estamos? Olhando estu- pidamente a uma impostura pretensiosa! “Deus est Ens, a se, extra et supra omne genus, necessarium, unum, infinite perfectum, sim- plex, immutabile, immensum, aeternum, inteligens” etc. — em que € essa definigao realmente instrutiva? Significa pouco menos do que nada, em sua pomposa roupagem de adjetivos. S6 o pragmatis- mo pode ler af um significado positivo, e, para isso, vira as costas completamente ao ponto de vista intelectualista. “Deus est4 no céu; tudo esta certo com o mundo!”. Esse € que € 0 nicleo central de nossa teologia, e para isso nao precisamos de definigdes racionalistas. Por que nao deviamos todos nés, racionalistas como pragmatis- tas, confessar tal coisa? O pragmatismo, longe de conservar os olhos baixados para o terreno imediato da pratica, como 0 acusam de fazer, langa-se tanto quanto possivel as mais remotas perspectivas do mundo. Veja-se, entéo, como todas essas questies finais giram, como se fora 0 caso, sobre seus gonzos; e longe de olhar para tras, por sobre principios, sobre um erkenntnisstheoretische Ich, um Deus, Kausalitdtsprinzip, um designio, um livre-arbitrio, tomados em si mesmos, como alguma coisa augusta e exaltada acima dos fatos — veja-se, digo, como o pragmatismo transfere a énfase e olha para diante, para os préprios fatos. A quest&o realmente vital para todos nds €: Que vai ser desse mundo? Que vai a vida, afinal, fazer de si mesma? O centro de gravidade da filosofia deve, portanto, alterar 0 seu lugar. A terra das coisas, hd muito langada nas sombras pelas glérias dos mundos celestiais, deve reassumir direitos. Deslocar a ténica dessa maneira significa que as questdes filos6ficas falharao no sentido de serem tratadas por espiritos de um tipo menos abs- tracionista do que até aqui, espiritos mais cientificos e individualis- tas em seu comportamento, e sem embargo n4o irreligioso também. Ser uma alteragao “no assento da autoridade”, que nos faz quase lembrar da reforma protestante. E como, para os espiritos papais, 0 protestantismo tem freqiientemente parecido uma mera massa de anarquia e confusio, tal, sem duvida, freqiientemente apareceré o pragmatismo aos espiritos ultra-racionalistas em filosofia. Parecer4 nao menos que lixo puro, filosoficamente. A vida, porém, nao para, do mesmo modo, e abarca seus fins, em terras protestantes. Aven- turo-me a pensar que o protestantismo filoséfico abarcaré uma prosperidade nao diferente. 4 QuarRTA CONFERENCIA Singular e plural V imos na Ultima conferéncia que o método pragmatico, em suas relagdes com determinados conceitos, ao invés de terminar com a contemplacgio admirativa, mergulha no rio da experiéncia junto com os mesmos e prolonga a perspectiva por seu intermédio. Designio, livre-arbitrio, espirito absoluto, espirito ao invés de matéria, tudo tem como significado tinico uma promessa melhor quanto ao futuro do mundo. Sejam falsos ou verdadeiros, 0 seu sentido € meliorismo. Tenho, as vezes, pensado sobre o fené- meno chamado “teflexdo total”, em 6ptica, como um bom simbolo da relagao entre idéias abstratas e realidades concretas, como 0 pragmatismo o concebe. Pegue-se uma taga com 4gua um pouco acima dos olhos e olhe-se através da 4gua na linha de sua superficie — ou melhor, ainda, olhe-se de modo parecido através das paredes de um aquario. Ver-se-4, entéao, uma imagem refletida extraordi- nariamente brilhante, digamos, da chama de uma vela, ou de qual- quer outro objeto claro, situado no lado oposto do vaso. Nenhum Taio, nessas circunstancias, vai além da superficie da 4gua: cada raio é totalmente refletido de novo de volta as profundezas. Supo- nhamos que a gua represente o mundo dos fatos sensfveis, e que 0 ar represente 0 mundo das idéias abstratas. Ambos os mundos séo reais, naturalmente, e interagem; interagem, porém, somente nos seus limites, e o locus de tudo que vive e que nos acontece, na medida em que tem prosseguimento a experiéncia plena, € a 4gua. Somos como peixes nadando no mar dos sentidos, limitados acima pelo elemento superior, mas incapazes de respird-lo ou de penetra- lo. Obtemos nosso oxigénio dele, todavia, tocamo-lo incessante- mente, ora aqui, ora ali, e a cada vez que o tocamos, tornamos de volta, 4 4gua com o nosso curso reformulado e recomposto. As idéias abstratas, das quais consiste o ar, sao indispensdveis 4 vida, mas irrespiraveis por si, como se assim o foram, e unicamente ativas em sua fungao de recomposi¢ao. Todos os similes claudicam, mas esse fala algo 4 minha imaginagao. Mostra como alguma coisa, nao suficiente para a vida em si, pode, nao obstante, ser um deter- minante efetivo da vida algures. Por ora, desejo ilustrar 0 método pragmatico com mais uma aplicagao. Desejo langar luzes sobre o antigo problema de “singu- lar e plural”. Acredito que esse problema tenha ocasionado noites insones a pouco dos senhores, e nao ficaria nada espantado se alguns dos senhores me dissessem que, na verdade, nunca tiveram qualquer aborrecimento que fosse com o mesmo. Eu mesmo ja che- guei, apds longo meditar a respeito, a considerd-lo 0 mais central de todos os problemas filoséficos, central porque prenhe de con- seqiiéncias. Quero dizer com isso que, se sabemos que um homem é€ um monista decidido ou um pluralista firmado, sabemos mais a respeito do resto de suas opinides do que se lhe pespegarmos qual- quer outra classificagdo terminada em ista. Acreditar em um ou em muitos, essa € a classificagao com o ntimero maximo de conse- qiiéncias. Portanto, suportem-me por uma hora enquanto tento inspi- r4-los com o meu pr6prio interesse pelo problema. A filosofia tem sido freqiientemente definida como a averiguagao ou a visdo da unidade do mundo. Poucas pessoas jamais se insurgi- ram contra essa defini¢ao, que € verdadeira na medida do seu alcan- ce, pois a filosofia tem, na verdade, manifestado acima de todas as coisas 0 seu interesse pela unidade. Que dizer, porém, da variedade de coisas? E esse um assunto irrelevante? Se, ao invés de usar 0 termo filosofia, falarmos em geral de nosso intelecto, e de suas necessidades, rapidamente vemos que unidade é somente uma delas. Familiaridade com os detalhes do fato € sempre contado, juntamente com sua reducio a sistema, como marca indispensavel de grandeza mental. O espirito universitdrio, do tipo filolégico, enciclopédico, o homem essencialmente estudioso, nunca regateou aplausos ao fildsofo. O que o nosso intelecto realmente visa nao é variedade nem unidade tomada singularmente,.mas a totalidade.' Nisso, ' Comparar A. Bellanger: Les concepts de Cause, et l’activité tionelle de l’Esprit. Paris, Alcan, 1905 pagina 79 e seguintes. familiaridade com as diversidades da realidade é tao importante quanto o conhecimento de suas conexées. A curiosidade vai pari passu com a paix4o sistematizadora. A despeito desse fato 6bvio, a unidade de coisas tem sido sempre considerada mais ilustre, como se fora, do que a variedade. Quando um jovem concebe pela primeira vez a nogao de que o mundo todo forma um grande fato, com todas as suas partes mo- vendo-se lado a lado, como se fora, e interligadas, sente-se como estivesse desfrutando de uma grande visao, e olha arrogantemente para tudo que ainda nao se enquadra nessa sublime concepgao. Tomada assim abstratamente, como se apresenta pela primeira vez, a concep¢ao monista € tao vaga como dificilmente parece valer a pena ser defendida intelectualmente. Provavelmente, porém, cada qual dentre os senhores de certo modo preza essa concepgao. Um certo monismo abstrato, uma certa reagao emocional ao carater de singularidade, como se fora uma caracteristica do mundo nao coor- denada com sua pluralidade, porém em grau muito mais vasto, excelente e eminente, prevalece tanto nos circulos educados que podiamos quase chamé-la de uma parte do senso comum filos6fico. Naturalmente o mundo é um, dizemos. De que outro modo poderia ser um mundo, afinal? Os empiricos, via de regra, sao tao valentes monistas dessa espécie abstrata quanto os racionalistas 0 sao. A diferenca € que os empiricos séo menos sujeitos 4 ofuscagao. A unidade nao os cega para tudo o mais, nao sacia sua curiosidade por fatos especiais, ao passo que hd uma espécie de racionalista seguro de interpretar a unidade abstrata misticamente e de esquecer tudo o mais, de traté-la como a um principio; de admird-la e de adord-la; e, por conseguinte, de chegar a um ponto final intelectual. “O mundo é um” — a férmula pode tornar-se uma espécie de numero magico. “Trés” e “sete”, € verdade, tém sido contados como numeros sagrados; porém, tomado abstratamente, por que serd o “um” mais importante que “‘quarenta e trés” ou “dois milhdes e dez”? Na primeira convicgao nebulosa da unidade do mundo, ha t&o pouco para ter como firme, que dificilmente sabemos o que entendemos por aquilo. A nica maneira de ir adiante com a nossa nogao € tratd-la pragmaticamente. Tendo-se como certo existir a singularidade, que fatos sero diferentes em conseqiiéncia? Como sera conhecida a unidade? O mundo é um — sim, mas como um? Qual é 0 valor pratico da singularidade para nds? Fazendo essas perguntas, passamos do vago para o definido, do abstrato para o concreto. Muitos caminhos distintos, pelos quais um predicado de singularidade do universo poderia fazer diferenga, vieram 4 tona. Assinalarei, sucessivamente, os mais evidentes desses caminhos. 1. Primeiro, o mundo €, pelo menos, um sujeito de discurso. Se sua pluralidade fosse tao irremedidvel ao ponto de nao permitir nenhuma uniao qualquer de suas partes, nem mesmo nossos espiritos poderiam “entender” o seu contetido de uma vez: seriam como olhos tentando olhar em diregao oposta. Mas, na realidade, temos em vista cobri-lo todo por meio de nossa palavra abstrata, “mundo” ou “uni- verso”, que pretende expressamente nao deixar de fora nenhuma parte. Essa unidade de discurso nao implica evidentemente em ne- nhuma especificagao monista posterior. O “caos”, outrora assim chamado, tem tanta unidade de discurso quanto 0 cosmo. E fato singular que muitos monistas consideram uma grande vitéria contada para o seu lado quando os pluralistas dizem que “o universo é milti- plo”. “O universo!” mofam — sua fala traiu-o. “E réu confesso de monismo por sua prépria boca”. Bem, deixemos que as coisas sejam uma daqui por diante! Pode-se, entéo, langar uma palavra como universo 4 colecao toda deles, mas que importa? Ainda esté para ser averiguado se sao um em qualquer sentido mais valioso ou posterior. 2. So, por exemplo, continuos? Pode-se passar de um para 0 outro, conservando-se sempre em um universo, sem o perigo de cair fora? Em outras palavras, as partes de nosso universo pendem juntas, ao invés de serem como graos de areia soltos? Até mesmo os graos de areia pendem juntos através do espacgo em que estao depositados, e se for possivel, de qualquer modo, mover-se através desse espago, pode-se passar continuamente do ndmero um deles para o numero dois. O espago e o tempo, pois, sao veiculos de continuidade, pelos quais as partes do mundo pendem juntas. A diferenga pratica para nds, resultante dessas formas de unido, € imensa. Nossa vida motora, por inteiro, baseia-se neles. 3. Ha inémeras outras vias de continuidade prdtica entre as coisas. As linhas de influéncia podem ser tragadas de modo a pen- derem juntas. Seguindo-se qualquer dessas linhas, passa-se de uma coisa para outra, até que se possa ter coberto uma boa parte da extensdo do universo. A gravidade e a condugao de calor sao essas influéncias gerais de uniao, na medida do alcance do mundo fisico. As influéncias quimicas, luminosas e elétricas seguem linhas de influéncia semelhantes. Os corpos inertes e opacos, porém, inter- rompem aqui a continuidade, de modo que se tem de contorna-los, ou alterar a maneira de progredir se for o caso de querer-se ir mais adiante naquele dia. Praticamente, tem-se perdida a unidade do universo, entéo na medida em que foi constituido por aquelas primeiras linhas de influéncia. Ha inumerdveis espécies de conex4o que as coisas especiais tém com outras coisas especiais; e 0 conjunto de qualquer dessas conexGes forma um tipo de sistema pelo qual as coisas sao agregadas. Assim, os homens séo combinados em uma vasta rede de conhecimento. Fulano conhece sicrano, sicrano conhece beltrano etc.; e escolhendo- se os intermedidrios mais distantes corretamente, pode-se levar uma mensagem de fulano a China, ou ao chefe dos pigmeus africanos, ou a outrem qualquer no mundo habitado. Cedo, porém, é-se inter- rompido, como se por um nao condutor, quando se escolhe o homem errado nesse experimento. O que pode ser chamado de sistemas de amor $40 enxertados no sistema de conhecimento. A ama (ou odeia) B; B ama (ou odeia) C etc. Esses sistemas, porém, sao menores do que o grande sistema de conhecimento que pressupée. Os esforgos humanos esto diariamente unificando mais e mais o mundo em caminhos sistematicos definidos. Encontramos sistemas comerciais, consulares, postais, coloniais, cujas partes por inteiro obedecem a influéncias definidas que se propagam dentro do sistema, mas nio a fatos externos. O resultado sao inimeros cachos pequenos das partes do mundo dentro dos cachos maiores, pequenos mundos, nao somente de discurso, mas de operacao, dentro do universo maior. Cada sistema exemplifica um tipo ou grau de uniao, estando suas partes ligadas aquele tipo peculiar de relacao, e a mesma parte pode figurar em muitos sistemas diferentes, como um homem pode ter varias profissGes e pertencer a diversos clubes. Desse ponto de vista “sistematico”, portanto, o valor pragmatico da unidade do mundo € que todas essas redes definidas existem real e praticamente. Algumas so mais envolventes e extensivas; outras, menos, super- poem-se umas as outras; e entre elas todas, nao permitem que nenhuma parte elementar individual do universo escape. Enorme como € a quantidade de desconex4o entre as coisas (pois essas influéncias sistemdticas e conjungdes seguem rigidamente vias exclusivas), tudo que existe é influenciado, de certa maneira, por alguma outra coisa, se podemos seguir a trilha corretamente. Falando despreocupadamente e em termos gerais, pode ser dito que todas as coisas coerem e aderem entre si de algum modo, e que 0 universo existe praticamente em formas reticuladas ou concatenadas, que fazem dele uma fung4o continua ou “integrada”. Qualquer tipo de influéncia ajuda a tornar singular o mundo, tanto quanto pode-se segui-lo de passo a passo. Pode-se, entao, dizer que o mundo é um, considerado sob esses aspectos, nomea- damente, e tanto quanto possa ser obtido. Justamente, porém, como definitivamente ndo é um, outro tanto quanto nao pode ser obtido; e nao ha espécies de conex4o com as quais nao falhe, se, ao invés de escolher-se condutores, escolhem-se nfo condutores. E-se, entéo, interrompido bem no primeiro passo e tem-se de registrar o mundo como uma pura pluralidade, desse ponto de vista particular. Se nosso intelecto tivesse sido levado a interessar-se por relagdes disjuntivas tanto quanto o foi por relagdes conjuntivas, a filosofia teria igualmente celebrado com sucesso a desunido do mundo. O ponto principal € notar-se que a singularidade e a pluridade acham-se absolutamente coordenadas aqui. Uma nao é mais essencial ou primordial ou excelente que a outra. Do mesmo modo que em relagdo ao espaco, cuja separacdo das coisas parece exata- mente coincidir com a unificagdo destas, sendo que algumas vezes uma fungao e, as vezes, a outra, € que mais se nos aproxima, assim, em nossas relagdes gerais com o mundo das influéncias, ora neces- sitamos de condutores, ora de nao condutores, e a sabedoria esta em saber-se qual é qual no momento apropriado. 4. Todos esses sistemas de influéncia ou nao influéncia podem ser Classificados sob o titulo geral de problema da unidade causal do mundo. Se as influéncias causais menores entre as coisas devem convergir para uma origem causal comum no passado, que é uma grande primeira causa para tudo, pode-se, entao, falar da absoluta unidade causal do mundo. O fiat de Deus no dia da criagao tem figurado na filosofia tradicional na qualidade de causa e origem absolutas. O idealismo transcendental, convertendo “‘criagéo” em “pensamento” (ou “vontade de pensar”) classifica o ato divino de “eterno”, de preferéncia a “primeiro”, mas a unido do miltiplo aqui € absoluta, exatamente a mesma — o miiltiplo nao seria, salvo para o Um. Contra essa nogao da unidade de origem de todas as coisas, tem-se sempre levantado a nogao pluralistica de uma multiplicidade eterna auto-existente sob a forma de dtomos ou mesmo de unidades espiri- tuais da mesma espécie. A alternativa tem, sem duvida, um signifi- cado pragmatico, mas talvez, tanto quanto se estendam essas confe- réncias, farfamos melhor deixar a quest4o da unidade por liquidar. 5. A mais importante forma de uniao que se obtém entre as coisas, falando pragmaticamente, é a unidade genérica. As coisas existem em espécies, e ha muitas espécies em cada tipo, e 0 que o “tipo” implica para uma espécie, implica também para uma espécie, implica também para cada outra espécie daquele tipo. Podemos facilmente conceber que cada fato no mundo podia ser singular, isto é, diferente de qualquer outro fato e 0 tnico de seu tipo. Nesse mundo de singu- lares, nossa ldgica seria imprestavel, pois a ldgica trabalha afirmando de primeira instancia 0 que é verdadeiro de todos de seu tipo. Sem duas coisas que sejam iguais no mundo, somos incapazes de racio- cinar de nossas experiéncias passadas para as futuras. A existéncia de tanta unidade genérica nas coisas é, assim, talvez, a especificagao pragmatica mais momentosa do que pode querer dizer “o mundo é Um”. A unidade genérica absoluta poderia ser obtida se houvesse um summum genus sob o qual todas as coisas, sem exce¢ao, pudes- sem ser, por fim, submetidas. “Seres”, “pensamentos”, “experién- cias”, seriam candidatos a essa posi¢4o. Se as alternativas expressas por essas palavras tém qualquer significagao pragmatica ou nao, é uma outra questao, que prefiro deixar pendente por agora. 6. Outra especificagao a respeito de que a frase “o mundo é Um” possa significar € unidade de propdsito. Uma enorme quan- tidade de coisas no mundo servem a um propdésito comum. Todos Os sistemas humanos, administrativos, industriais, militares ou o que mais, existem cada qual para o seu propésito controlador. Cada ser vivo persegue os seus préprios propositos peculiares. Cooperam, de acordo com o grau de seu desenvolvimento, em propésitos tribais ou coletivos, os fins mais amplos envolvendo os menores, até que um propésito final e critico, absolutamente simples, visado por todas as coisas sem excecao, pudesse concebivelmente ser alcangado. E desnecessdrio dizer que as aparéncias entram em conflito com essa concepgao. Qualquer resultante, como disse em minha terceira conferéncia, pode ter projetado de antemao, mas nenhum dos resultados que realmente conhecemos nesse mundo tem, de fato, sido projetado de antem&o em todos os seus detalhes. Os homens e os paises comecam com uma vaga nogao de serem ricos, ou poderosos ou bons. Cada passo que dao acarreta oportu- nidades imprevistas 4 frente, e desfaz velhas perspectivas, e as especificagdes de propésito geral tém de ser revisadas diariamen- te. O que é alcancado ao fim pode ser melhor ou pior em relagao ao que se propés, see € sempre mais complexo e diferente. Nossos diferentes propésitos acham-se também em guerra um com 0 outro. Onde um nao pode esmagar o outro, firma-se um compromisso; e 0 resultado é de novo diferente em relagao a qual- quer outro projetado distinta e previamente. Vaga e generalizada- mente, muito do que foi projetado pode ser obtido; tudo, porém, concorre impetuosamente para a concep¢ao de que o nosso mundo é incompletamente unificado, do ponto de vista teleol6gico, e que est4 ainda ensaiando conseguir sua unificagéo de maneira mais bem organizada. Quem quer que reclame uma unidade teleolégica absoluta, di- zendo que ha um propésito observado por todos e cada um dos detalhes do universo, dogmatiza por sua prépria conta e risco. Os tedlogos que assim dogmatizam, descobrem que se torna cada vez mais impossivel, 4 medida que o nosso conhecimento dos interesses conflitantes das diversas partes do mundo tornam-se mais concretos, imaginar com 0 que possivelmente se parega um propésito critico. Vemos, na verdade, que certos males propiciam bens ulteriores, que o “bitter” torna 0 coquetel mais saboroso, e que uma ponta de perigo ou de dificuldade torna mais excitante nossos trunfos. Podemos vagamente generalizar esse conceito na doutrina de que todo o mal no universo nao € senao instrumento para sua maior perfeicao. Mas a escala de mal realmente em vista desafia toda e qualquer tolerancia humana; e o idealismo transcendental, nas pa- ginas de um Bradley ou de um Royce, leva-nos a nao mais adiante do que o livro de Job fez — os caminhos de Deus n&o s&o os nossos; tapemos, pois, a boca com as maos. Um Deus que se compraz com essas superfluidades de horror nao é um Deus para quem os seres humanos possam apelar. Suas disposig6es animais sao demasiado altas. Em outras palavras, o “Absoluto” com esse propésito nao é 0 Deus humano da gente comum. 7. A unido estética entre as coisas também voga, e € bem andloga 4 uniao teleolégica. As coisas contam uma estéria. Suas partes pendem juntas de modo a elaborar um climax. Operam umas nas outras expressivamente. Retrospectivamente, podemos ver que, em- bora nenhum propésito definido tenha presidido uma cadeia de eventos, contudo os eventos desenvolvem-se segundo uma linha dramatica, com inicio, meio e fim. De fato, todas as estorias acabam; e de novo aqui, o ponto de vista da pluralidade é 0 mais natural para se adotar. O mundo esté cheio de estérias parciais que correm empa- relhadas, comegando e terminando em horas desencontradas. En- trelagam-se e interferem mutuamente em varios pontos, mas nao as podemos unificar completamente em nossos espiritos. Acompa- nhando a histéria de sua vida, devo temporariamente desviar a atencado da minha propria histéria. Até mesmo um bidgrafo de gé- meos teria de imp6-los alternadamente a ateng4o de seus leitores. Segue-se que quem quer que diga que 0 mundo todo conta uma est6ria, expde outro desses dogmas monisticos, que se acredita por conta propria e risco. E facil ver a histéria do mundo pluralistica- mente, como uma corda da qual cada fibra conta uma estéria se- parada; conceber, porém, cada segao da corda como um fato abso- lutamente singular, e somar todas as séries longitudinais em um ser que viva uma vida indivisivel, é mais dificil. Temos, na verdade, a analogia da embriologia para ajudar-nos. O microscopista faz uma centena de cortes transversais de um dado embriao, e mentalmente os une em um todo sdlido. Mas os ingredientes importantes do mundo, na medida em que sao seres, parecem, como as fibras da corda, ser descontinuos, obliquos, e aderirem somente na diregao longitudinal. Seguindo-se nessa diregao, ha uma pluralidade. Até mesmo 0 embriologista, quando segue 0 desenvolvimento de seu objeto, tem de tratar da histéria de cada érgao de per si. A uniao est€ética absoluta é, pois, outro ideal simplesmente abstrato. O mundo aparece como algo mais épico que draméatico. Até agora, pois, vemos como o mundo é unificado por seus miltiplos sistemas, tipos, propdsitos e dramas. Que h4 mais uniao em todos esses caminhos do que aparece ostensivamente é decerto verdadeiro. Que possa haver uma estoria, um tipo, um sistema, um propésito soberano, é uma hipotese legitima. Tudo que posso dizer aqui € que € temerdrio afirmar tal coisa dogmaticamente, sem melhor evidéncia da que possuimos presentemente. 8. O grande denkmittel monistico tem sido por uma centena de anos passados a nogao de o conhecedor. A pluralidade existe somente como objetos para 0 seu pensamento — existe em seu sonho, como se assim o fora; e como nds os conhecemos, tém um propésito, formam um sistema, contam-lhe uma estéria. Essa nogao de uma unidade intelectual que a tudo envolve em coisas € a realizagao mais sublime da filosofia intelectualista. Os que acreditam no Absoluto, como o que tudo sabe é chamado, usualmente dizem que agem assim por raz6es coercivas, das quais os livre-pensadores nao podem fugir. O Absoluto tem conseqiiéncias praticas de longo alcance, para algumas das quais chamei a aten¢éo em minha segunda conferéncia. Muitos tipos de diferenga, importantes para nés, adviriam certamente se isso tudo fosse verdadeiro. Nao posso entrar aqui em todas as provas ldgicas de existéncia de um Ser assim, a nao ser para dizer que nenhuma delas me parece consistente. Devo, portanto, tratar a nogao de um Sabedor de Tudo simplesmente como uma hip6tese, exatamente em nivel l6gico com a nogao pluralista de que nao ha ponto de vista, nenhum foco de informagao existente, de onde o contetido integral do universo seja visivel ao mesmo tempo. “A consciéncia de Deus”, diz o professor Royce’, “forma em sua inteireza um momento consciente luminosamente transparente” — esse € 0 tipo de unidade intelectual sobre 0 qual o racionalismo insiste. O empirismo, por outro lado, satisfaz-se com 0 tipo de unidade intelectual que é humanamente familiar. Tudo se torna conhecido por algum sabedor junto com alguma coisa outra; mas os sabedores podem, no fim, ser uma pluralidade irredutivel, e o maior sabedor de todos pode, todavia, nao saber tudo de tudo, ou mesmo saber 0 que sabe de uma s6 assentada — pode estar sujeito a esquecer. Qualquer que seja 0 tipo obtido, o mundo seria ainda um universo intelectual. Suas partes seriam combinadas pelo conhe- cimento, mas em um caso 0 conhecimento seria absolutamente unificado, no outro seria estirado e sobreposto. A nogao de um Sabedor eterno ou instantaneo — qualquer adje- tivo nesse caso significa a mesma coisa — é, como disse, a grande realizagao intelectual de nosso tempo. Afastou praticamente a con- cepgao de “Substancia” que os primeiros filésofos haviam formu- lado, e por meio da qual muito trabalho de unificagao péde ser feito — substancia universal que sozinha tem estado em si e sido de si mesma, e da qual todas as particularidades de experiéncia nao sao senao formas as quais da apoio. A substancia sucumbiu 4 critica pragmatica da escola inglesa. Aparece agora somente como outro nome para o fato de que os fenémenos, como se apresentam, estéo atualmente agrupados e dados em formas coerentes, as formas exatas pelas quais nés, sabedores finitos, experimentamo-los ou pensamo- los juntos. Essas formas de conjungao so tanto partes do tecido de experiéncia como sao os termos que ligam; e € uma grande realizacao pragmatica para o idealismo recente ter feito o mundo pender junto ? The Conception of God, Nova Iorque, 1897, pagina 292.

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