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O professor de danca Quem vive teatro, vive na emogao. Depois da luminosa Barcelo- na, Paris iluminada e Londres sdo-paulina, no comego de margo de 2002 fui trabalhar em um povoado de dez mil habitantes, Hebden Bridge, no meio da Inglaterra. Como vereador, eu ja tinha feito Teatro do Oprimido com cegos no Rio de Janeiro, com surdos-mudos na Franga, com portadores de variegadas deficiéncias em outras cidades do mundo, ao longo do meu tanto tempo, que j4 nao é curto... Em Hebden Bridge, trabalhei com surdos-mudos, cegos, enfermos de paralisia cerebral, Sindrome de Down, esclerose miiltipla e depressao profunda, todos juntos no mes- mo grupo: vinte doentes e varios carers, qué ndo so enfermeiros, mas fazem as vezes — e fazem mais. Por que vieram de longe trabalhar comigo? Conheci Susan Quick em uma oficina que dirigi em Derry, na Irlanda, doze anos atrds. Ela gostou tanto do meu jeito de fazer teatro que passou a difundi-lo em vérios paises da Africa em guerra, onde trabalhou por sete anos. Vol- tando a residir emsua terra, ela, que tantos perigos havia enfrentado — bombas e granadas —, rodopiou na montanha com seu pacifico auto- mével de passeio, a trinta metros de sua porta, e caiu na ribanceira, no inverno escuro, quando a neve e a noite viram gelo. Ficou paralitica. Nao desistiu do teatro e passou a dirigir oficinas para pessoas como ela, portadoras de alguma caréncia fisica ou mental. Nao preciso dizer que esse foi um dos trabalhos mais diffceis da minha vida; nunca este- ve minha atengao, nem meus cuidados, mais concentrados em todos e em cada um dos meus alunos. Deles, dois me chamavam a atengao com particular carinho: Sig, moca franzina com menos de quarenta anos e quarenta quilos, preci- sava que o seu atendente lhe amplificasse a voz, tao débil era seu cor- po, murchos seus pulmées; sentada em cadeira de rodas, duas vezes por sesso deitava-se em uma colchonete para descansar. Havia perdido os pais em Johannesburgo, quando explodiram sua casa, durante as guerras do apartheid. Sig vivia com parentes e um assistente, pago pelo Estado. Alan viajava duas horas de trem todos os dias, desde Liverpool até Hebden Bridge, ida e volta. Com paralisia cerebral, ele nao coordena- va bragos nem pernas, nao conseguia dizer palavra, nem silaba. Gragas ao milagre eletrénico, comunicava-se conosco por intermédio de um computador, Dynavox, cheio de desenhos genéricos que se abriam em outros mais especificos. Alan, com dificuldades, conseguia acertar as teclas, Formada a frase, apertava o enter e o computador pronunciava 0 escrito, com voz metélica. Quando a m4quina nao bastava, sua assis- tente interpretava suas express6es fisiondmicas, seus olhos e seu olhar. Sig e Alan participaram das curtas pegas que expunham suas opres- sdes e, destemidos, entravam em cena sempre que desejavam teatralizar suas opiniGes e desejos. Cada qual no seu ritmo — sempre respeitamos oritmo de cada um. No ultimo dia, nas despedidas, perguntei a Alan o que fazia em seus dias normais, sem tanto trem. Respondeu que gostava de miisica ¢ era professor. Alan sabia ler o meu rosto, e leu meu espanto: profes- sor de qué? ~ Sou professor de danga! Espanto maior! Sua assistente veio em meu socorro e traduziu seus pensamentos: antes da doenga, Alan era professor de danga e, como Susan, dedicou-se, depois de doente, aos que sofriam do mesmo mal. Explicava aos seus alunos a origem e as caracteristicas do tango, tumba, bolero e samba. Em seguida, ouviam CDs e, cada um em sua cadeira ~ movendo os bragos, 0 rosto ou apenas os olhos — dangava, reinventava a danga. O que é a danga senao o corpo apaixonado que se casa com 0 ritmo? Quem nasce Nureyev pode dar saltos acrobiticos; quem é me- nos elastico, dana em sua cadeira de rodas. Tudo é danga! Se estamos 10 vivos, somos todos bailarinos, mesmo a nossa vizinha gorda e o seu marido perneta! Ainda emocionado, despedi-me de Sig, que me disse ter aprendi- do muito com a oficina que, no meu entender, havia sido demasiado corporal para as suas circunstancias. Perguntei-lhe se havia aprovei- tado alguma coisa daqueles encontros. Feliz, por meio do assistente, ela me agradeceu: — Aproveitei muito, sim: todos os dias, pelo menos duas vezes por dia, eu sorti... Ela sorriu... e eu quase chorei. O sorriso, mais que o riso ou o pranto, € a mais suave forma de se dar razdo a vida. 11 Copyright © 2003, Augusto Boal Direitos cedidos para esta edigao 4 Editora Garamond Ltda. 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