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REVISITANDO © CONCEITO DE SITUAGAO CONSOLIDADA: anotagdes & nogiio de dea urbana consolidada (Lei n.° 11.977, de 7 de jutho de 2009). Luciano de Faria Brasil 1° Promotor de Justiga Promotoria de Justiga de Habitagio ¢ Defesa da Ordem Urbanistica 1. A atribui¢ao de sentido aos conceitos juridicos nem sempre é tarefa facil. Nao raras vezes, a0 intérprete do diteito so ofertadas formulagdes legais e administrativas que apresentam razodvel grau de indeterminagao seméntica em seus termos constitutivos. Para fixar uum conteiido aceitivel de tais conceitos, & necessario localiza-los corretamente no Ambito do ordenamento juridico, perquirindo-Ihes a fungio (principio, regra, postulado normativo aplicativo), assim como o grau de dependéncia da realidade fitica subjacente 2. Um exemplo caracteristico da relativa indeterminagao seméntica dos conceitos juridicos tem sido 0 de siruagdo consolidada, que vem sendo utilizado no campo especifico do direito urbanistico. Sua introdugo na esfera do direito posto ocorreu por meio do projeto More Legal, desenvolvido pela Corregedoria-Geral da Justiga do Tribunal de Justiga do Estado do Rio Grande do Sul com 0 propésito de incentivar e facilitar os procedimentos de regularizagio fundidria, notadamente no aspecto registral. Note-se que o projeto, em suas trés edigdes, foi instituido por ato administrative emanado da diregao do Poder Judiciério, 3. Na iltima edigao do referido projeto, denominada “More Legal Ill” ¢ implementada por meio do Provimento CGI/RS n° 28/2004, determinou-se ser possivel a regularizagao e registro de loteamentos ¢ desmembramentos de iméveis urbanos ou urbanizados, ainda que situados em zona rural, nos casos especificados e nas situaydes consolidadas. Segundo dispés o art. 2%, § 1°, do Provimento em questio, “considera-se situacdo consolidada aquela em que 0 prazo de cocupagdo da drea, a natureza das edificagdes existentes, a localizagito das vias de eirculagdo ou comunicagao, os equipamentos piblicos disponiveis, urbanos ou comunitirios, dentre outras situagdes peculiares, indique a irreversibilidade da posse titulada que induza ao dominio” (grifou-se). Na seqiiéncia, consoante diegdo do § 2° do referido artigo, constou que “na aferigao da situagdo juridica consolidada valorizar-se-o quaisquer documentos provenientes do Poder Pablico, em especial do Municipio”. 4. Na ocasiéo dos debates que sucederam a implantagao do projeto, tivemos a oportunidade de discutir o conteiido do conceito de situago consolidada, dando especial énfase ‘a9 requisitos do tempo e da irreversibilidade da ocupacao. ' Conforme ressaltado no inicio da explanagio, a tarefa de fixagdo do alcance do instituto em tela prendia-se & evidente indeterminagao de seus termos. 5. _ Na seqiiéneia dessa previsio no ambito administrative do Poder Judicidrio, a nogao de situagdo consolidada encontrou guarida em outro instrumento normativo, embora ainda no plano infralegal. Trata-se da Resolugo n.° 369 do CONAMA (Conselho Nacional do Meio Ambiente), editada em 28 de margo de 2006. A resolugdo cuidou, entre outros temas, da regularizagiio fundidria sustentdvel em Grea urbana e da intervengdo ou supressdo de vegetagdo em Area de Preservagdo Permanente. Nesse contexto & que, esclarecendo os requisitos para a possibilidade de aplicacao desses institutos, o art. 9° enuneia, em seu inciso V, as “ocupacdes consolidadas, até 10 de jutho de 2001, conforme definido na Lei n? 10.257, de "BRASIL, Luciano de Fatia. Acerca do conceito de "situago consolidada" (Provimento n° 28/2004 - CGJ- More Legal Il). bip://wuow.mp xs. gov-br/urbanistico(doutrina/id473.him. Acesso em 5.4.2010. 10 de julho de 2001 ¢ Medida Proviséria n® 2.220, de 4 de setembro de 2001" (grifou-se). No mesmo preceito, logo adiante, no inciso VI, ao falar do Plano de Regularizagdo Fundidria ‘Sustentdvel, determina-se, na alinea “b”, que esse deve contemplar a “caracterizacao fisico- ambiental, social, cultural, econémica e avaliagdo dos recursos € riscos ambientais, bem como dda ocupagdo consolidada existente na drea” (grifou-se). 6 Ao remeter o aplicador do direito expressamente ao texto do Estatuto da Cidade (a teferida Lei n® 10.257, de 10 de julho de 2001) ¢ também, de forma bastante sintomitica, #0 teor da Medida Provisoria n2 2.220, de 4 de setembro de 2001, a Resolugao n.° 369/2006 do CONAMA associa a idéia de ocupagao consolidada & aplicaglo dos institutos de regularizaya0 fundiatia inscritos naqueles diplomas legislativos. De maneira mais especifica, a mengio cexpressa & Medida Proviséria n° 2.220 acena para a regularizagao das ocupagdes consolidadas em dreas piiblicas, que constituirio supedineo fitico para o instituto da concessdo de uso especial para fins de moradia. 7. Nese contexto de estabelecimento paulatino da nogao de situagio consolidada no tecido da legislagao urbanistica nacional, foi editada a Medida Proviséria n° 459/2009, posteriormente convertida na Lei n° 11.977, de 7 de julho de 2009, criando o Programa “Minha Casa, Minha Vida". A locugao situagdo consolidada ¢ utilizada em varios t6picos, como, por cexemplo, na definigto dos beneficiérios prioritirios do Programa (art. 3°, § 1°, 1) ena disciplina dda requalificagao de iméveis (art. 4°, § 1°, Ill art, 30, II). O dispositive mais importante, porém, & aquele em que € formulada a definigito de drea urbana consolidada, ao lado de outros conceitos, Trata-se do art. 47, Il, da referida Lei n.° 11.977, de 7 de julho de 2009 (grifou-se) ‘Art. 47. Para efeitos da regularizago fundidria de assentamentos urbanos, consideram-se: 1 — area urbana: parcela do territ6rio, continua ou no, incluida no perimetro urbano pelo Plano Diretor ou por lei municipal especifica: II — drea urbana consolidada: parcela da area urbana com densidade demografica superior a 50 (cinquenta) habitantes por hectare ¢ malha vidria implantada e que tenha, no mfnimo, 2 (dois) dos seguintes equipamentos de infraestrutura urbana implantados a) drenagem de aguas pluviais urbanas; b) esgotamento sanitario; ©) abastecimento de agua potivel; 4) distribuigao de energia elétrica; ou ¢) limpeza urbana, coleta ¢ manejo de residuos sélidos; Il — demarcagao urbanistiea: procedimento administrativo pelo qual o poder piblico, no Ambito da regularizagdo fundidria de interesse social, demarca imével de dominio pablico ov privado, definindo seus limites, area, localizagao ¢ confrontantes, com a finalidade de idemtificar seus ocupantes e qualificar a natureza e o tempo das respectivas posses: IV ~ legitimagaio de posse: ato do poder piblico destinado a conferir titulo de reconhecimento de posse de imével objeto de demarcaao urbanistica, com a identificagao do ocupante e do tempo ¢ natureza da posse: V — Zona Especial de Interesse Social - ZEIS: parcela de area urbana instituida pelo Plano Diretor ou definida por outra lei municipal, destinada predominantemente & moradia de populagio de baixa renda e sujeita a regras especificas de parcelamento, uso e ocupagio do solo; Vi — assentamentos irregulares: ocupagSes inseridas em parcelamentos informais ow irregulares, localizadas em areas urbanas pliblicas ou privadas, utilizadas predominantemente para fins de moradia; ‘VIL — regularizagio fundidria de interesse social: regularizagéo fundiaria de assentamentos irregulares ocupados, predominantemente, por populacdio de baixa renda, nos casos: a) em que tenham sido preenchidos os requisitos para usucapi uso especial para fins de moradia; b) de iméveis situados em ZEIS; ou ¢) de Areas da Unio, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municipios declaradas de interesse para implantago de projetos de regularizagao fundisria de interesse social; VIII — regularizagio fundiéria de interesse especifico: regularizagio fundiria quando ndo caracterizado o interesse social nos termos do inciso VIL ou concessio de 8 A definigdo trazida pela lei acima transcrita, indicando um novo conceito de situagio consolidada (renomeada como drea urbana consolidada), alterou 0 quadro juridico-urbanistico de forma radical, superando as formulagées trazidas pelo regramento anterior (Provimento CGYRS n- 28/2004 e Resolugo CONAMA n.° 369/2006). Isso porque as normas juridicas possuem um dominio de vigéncia integrado por, no minimo, trés dimensdes relativas & sua aplicabilidade: a espacial, a temporal e a material ou substancial.’ No caso em comento, & possivel afirmar que a Lei n.° 11.977/2009 introduziu novidades em todas as dimensdes da normatizagao juridica pertinente & hipdtese em estudo. 9. A dimensio temporal é talvez a mais importante, porque denota a sucesso normativa no tempo em relaglio ds normas anteriores, resultando no principio segundo o qual a lei posterior revoga a lei anterior. Destarte, 0 acertamento legislative que prevalece no bojo do ‘ordenamento juridico € sempre aquele que se deu por dltimo, aquele que veio a lume em data ais recente: no caso das nogées juridicas correlatas de situacdo consolidada ¢ de drea urbana consolidada, ¢ 0 tratamento legislative conferido pela Lei n.° 11,977/2009. 10. Também a dimensio espacial tem inyportincia, pois se um dos instrumentos antes indicados (a Resolugio n.° 369/2006 do CONAMA) tinha incidéncia em ambito patrio, 0 outro (0 Provimento CGJ/RS n.° 28/2004, denominado “More Legal III”) produzia seus efeitos apenas em Ambito estadual. A maior abrangéncia da eficécia juridica da Lei n° 11.977/2009 decorre justamente do seu cardter de lei editada em Ambito federal, alcangando todas as situag6es juridicas pertinentes ocorridas dentro do territério nacional. 11. E justamente essa eficdcia de lei (force de Ia loi, Gesetzeskrafi) que acena para a dimensdo ‘material do conjunto de normas juridicas em tela. Ha eoincidéncia no Ambit substancial da matéria regrada, a saber, a nogdo de rea urbana consolidada. A. par disso, atua na espécie o principio da primazia ou prevaléncia da lei, pelo qual a espécie normativa em questio — lei — desfruta de superioridade hierérquica sobre todas as outras normas da ordem juridica (salvo, por evidente, as de indole constitucional).’ Desse modo, parece claro haver ocorrido uma substituigao normativa no respectivo dominio de vigéncia, com a ab-rogagiio completa das definigdes normativas anteriores. 12, Alm dessas consideragdes que dizem com o plano da teoria geral do direito, impende também anotar que a definigtio de drea urbana consolidada por meio de critérios objetivamente mensurdveis (densidade demografica, malha vidria e equipamentos urbanos) constitui um ‘avango no que toca a aplicagio prética da matéria. Nessa linha, so abandonados 0s requisitos conceituais de enunciagio indeterminada (como, e.g., 0 “prazo de ocupagao da érea” no Provimento CGI/RS n° 28/2004), louvaveis em seus propésitos originais, mas sempre passiveis ? PACE, Gaetano. II diritta mansitorio con particolare riguardo al dirt privato. Milano: Casa Ed. Ambrosiana, 1944, p. 6-7. ® CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional. 6 edigSo revista. Coimbra: Almedina, 1993, p. 788, 3 de interpretagao restritiva pelos operadores do direito.* 13. Por fim, embora refija 20 objetivo deste estudo, & interessante destacar que toda a ‘matéria relativa & regularizacdo fundiciria antes tratada pela Resolugao CONAMA n.° 369/2006 ¢€ pelo Provimento CGH/RS n.° 28/2004 também sofreu substituigo normativa em virtude da edigdo da Lei n° 11.977/2009, pelos motivos ja apontados (Lex superior, Lex posterior, etc). Além dessa ab-rogagao, houve o alargamento do tratamento substancial e adjetivo da matéria, com a introducao de novos institutos (demarcacdo urbanistica, legitimagio de posse, ete.) ¢ de um conjunto de regras para os diversos modos de regularizagao fundiéria (Capitulo II1). A guisa de exemplo, sub censura dos mais doutos: 0 “Plano de Regularizacéo Fundiéria Sustentavel” inserito no art. °, inciso VI, da Resolugtio CONAMA n° 369/2006 parece ter sido subst por um simples estudo técnica, conforme dicgao do art. 54, § 1°, da Lei n° 11.977/2009. * Tércio Sampaio Ferraz Jr. fala na necesséria substituigGo dos procedimentas interpretativos de blogueio, prbprios do estado minim, por procedimentos imerpretaivos de leguimagt de aspiragBes sociais, mais consentineos com a realidade hodiema. (FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Aplicabilidade ¢ interpretagdo das normas consttucionais. Apud [nterpretagdo ¢ estudos da constituigdo de 1988. Sio Paulo: Atlas, 1990, p, 12)

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