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Simmel, G., A Metrépole e a Vida Mental, in Velho, Otdvio Guilherme (org), © Fenémeno Urbano, 4" Edigéio da Zahar Editores, Biblioteca de Ciéncias Sociais, Rio de Janeiro, Brasil, 1979) A METROPOLE E A VIDA MENTAL * GzorG SIMMEL Tradugio de Sércio MaRQues pos REIS Os problemas mais graves da vida moderna derivam da reivindicagao que faz o individuo de preservar a autonomia © individualidade de sua existéncia em face das esmagadoras forgas sociais, da heranca histérica, da cultura externa e da técnica de vida. A luta que o homem primitivo tem de travar com a natureza pela sua existéncia fisica alcanca sob esta forma moderna sua transformagdo mais recente. O século XVIII conclamou o homem a que se libertasse de todas as dependéncias hist6ricas quanto ao Estado e a religido, 4 moral © & economia. A natureza do homem, originalmente boa ¢ comum a todos, devia desenvolver-se sem peias. Juntamente com maior liberdade, o século XVIII exigiu a especializagio funcional do homem e seu trabalho; essa especializagio torna um individuo incompardvel a outro e cada um deles indis- pensdvel na medida mais alta possivel. Entretanto, esta mesma especializacio torna cada homem proporcionalmente mais de- pendente de forma direta das atividades suplementares de todos 0s outros. Nietzsche vé o pleno desenvolvimento do individuo condicionado pela mais impiedosa luta de individuos; 0 socia- lismo acredita na supressio de toda competigio pela mesma tazSo. Seja como for, em todas estad.posicdes, a mesma moti- vacao basica est4 agindo: a pessoa resiste a ser nivelada e uniformizada por um mecanismo sociotecnolégico. Uma inves- tigagfio' que penetre no significado intimo da vida especifica- * Traduzido de “The Metropolis and Mental Life”, The Sociology of Georg Simmel, traduzido ¢ editado por Kurt H. Wolff — The Free Press, Glencoe, Illinois, 1950. Copyright © by The University of Chicago Press. Publicado pela primeira vez em 1902. Simmel, G., A Metrépole e a Vida Mental, in Velho, Otdvio Guilherme (org), © Fenémeno Urbano, 4" Edigéio da Zahar Editores, Biblioteca de Ciéncias Sociais, Rio de Janeiro, Brasil, 1979) 12 O FENOMENO URBANO mente moderna ¢ seus produtos, que penetre na alma do corpo cultural, por assim dizer, deve buscar resolver a equagio que estruturas como a metrépole dispdem entre os contetidos indi- vidual e superindividual da vida. Tal investigacao deve res- ponder & pergunta de como a personalidade se acomoda nos ajustamentos as forcas externas. Esta sera minha tarefa de hoje. A base psicolégica do tipo metropolitano de individuali- dade consiste na intensificacdo dos estimulos nervosos, que resulta da alteraco brusca e ininterrupta entre estimulos exte- riores e interiores. O homem € uma criatura que procede a difecenciagdes. Sua mente € estimulada pela diferenga entre a impressiio de um dado momento e a que a precedeu. Impres- sdes duradouras, impressdes que diferem apenas ligeiramente uma da outra, impressdes que assumem um curso regular € habitual e exibem contrastes regulares e habituais — todas essas formas de impressio gastam, por assim dizer, menos consciéncia do que a répida convergéncia de imagens em mu- danca, a descontinuidade aguda contida na apreensfio com uma inica vista de olhos e o inesperado de impressées stibitas. Tais sio as condigdes psicokbgicas que a metrépole cria. Com cada atravessar de rua, como o ritmo ¢ a multiplicidade da vida econémica, ocupacional e social, a cidade faz um con- traste profundo com a vida de cidade pequena e a vida rural no que se refere aos fundamentos sensoriais da vida psiquica. A metr6pole extrai do homem, enquanto criatura que procede a discriminacdes, uma quantidade de consciéncia diferente da que a vida rural extrai. Nesta, o ritmo da vida e do conjunto sensorial de imagens mentais flui mais lentamente, de modo mais habitual e mais uniforme. E precisamente nesta conexio que o cardter sofisticado da vida psiquica metropolitana se torna compreensivel — enquanto orosicio a vida de pequena cidade, que descansa mais sobre relacionamentos profunda- mente sentidos e emocionais. Estes tltimos sé enraizam nas camadas mais inconscientes do psiquismo e crescem sem grande dificuldade ao ritmo: constante da aquisico ininterrupta de habitos. O intelecto, entretanto, se situa nas camadas trans- parentes, conscientes, mais altas do psiquismo; € a mais adap- tdvel de nossas forgas interiores, Para acomodar-se A mudanca e ao contraste de fenémenos, © intelecto no exige qualquer choque ou transtorno interior; ao passo que é somente através de tais transtornos que a mente mais conservadora se poderia acomodar ao ritmo metropolitano de acontecimentos. Assim, 0 tipo metropolitano de homem — que, naturalmente, existe em mil variantes individuais — desenvolve um 6rgio que o pro- Simmel, G., A Metrépole e a Vida Mental, in Velho, Otdvio Guilherme (org), © Fenémeno Urbano, 4" Edigéio da Zahar Editores, Biblioteca de Ciéncias Sociais, Rio de Janeiro, Brasil, 1979) A METROPOLE E A Vipa MENTAL 13 tege das correntes e discrepancias ameacadoras de sua ambi- entagio externa, as quais, do contrério, 0 descnraizariam. Ele reage. com a cabeca, ao invés de com o coracdo. Nisto; uma conscientizacao crescente vai assumindo a prerrogativa do psi- quico. A vida metropolitana, assim, implica uma consciéncia clevada e uma predominancia: da inteligéncia no homem metro- politano. A reacdo aos fendmenos. metropolitanos € transferida Aquele Srgio que é menos sensivel ¢ bastante afastado da zona mais profunda da personalidade. A intelectualidade, assim, se destina a preservar a vida subjetiva contra o poder avassalador da vida metropolitana. E a intelectualidade se ramifica em muitas direcées e se integra com numerosos fenémenos discretos. A metrépole sempre foi a sede da economia monetérii Nela, a multiplicidade € concentraco da troca econémica dio uma importancia aos meios de troca que a fragilidade do co- mércio rural nao teria permitido. A economia monetéria e 0 dominio do intelecto cst4o intrinsecamente vinculados. Eles partilham. uma atitude que vé como prosaico o lidar com homens ¢ coisas; ¢, nesta atitude, uma justica formal freqiien- temente se combina com uma dureza desprovida de conside- ragdo. A pessoa intelectualmente sofisticada é indiferente a toda a -individualidade genuina, porque dela resultam relacio- namentos e reagdes que ndo podem ser exauridos com ope- ragGes I6gicas. Da mesma mancira, a individualidade dos fend- menos nfo € comensurdvel como principio pecuniirio. O dinheiro sc refere unicamente ao que é comum a tudo: ele pergunta pelo valor de troca, reduz toda qualidade e indivi dualidade & questéo: quanto? Todas as relagdes emocionais intimas entre pessoas so fundadas em sua individualidade, ao Passo que, nas relacdes racionais, trabalha-se com o homem como’ com um néimero, como um elemento que é em si mesmo indiferente. Apenas a realizacio objetiva, mensurdvel, € de interesse. Assim, 0 homem metropolitano negocia com seus fornecedores e clientes, seus empregados domésticos e fre- qlientemente até com pessoas com quem € obrigado a ter inter- cambio social. Estes aspectos da intelectualidade contrastam com a natureza do pequeno circulo, em que o inevitével conhe- cimento da individualidade produz; da mesma forma inevi- tavelmente, um tom mais célido de comportamento, um com- portamento que vai além de um mero balanceamento objetivo de servigos ¢ retribuicao. Na esfera da psicologia econémica do pequeno grupo, é importante que, sob condic&es primitivas, a produgio sirva ao cliente que solicita a mercadoria, de modo que o produtor e o consumidor se conhecam. A metrépole Simmel, G., A Metrépole e a Vida Mental, in Velho, Otdvio Guilherme (org), © Fenémeno Urbano, 4" Edigéio da Zahar Editores, Biblioteca de Ciéncias Sociais, Rio de Janeiro, Brasil, 1979) 14 O FeN6MENO URBANO moderna, entretanto, € provida quase que inteiramente pela produgdo para o mercado, isto é, para compradores inteira- mente desconhecidos, que nunca -entram pessoalmente no campo de visio propriamente dito do produtor. Através dessa anonimidade, os interesses de cada parte adquirem um cardter impiedosamente prosaico; ¢ os egoismos econémicos intelec- tualmente calculistas de ambas as partes nao precisam temet qualquer falha devida aos imponderaveis das relagdes pessoais. A economia do dinheiro domina a metrépole; ela desalojou as tltimas sobrevivéncias da produgio doméstica ¢ a troca direta de mercadorias; cla reduz diariamente a quantidade de trabalho solicitado pelos clientes. A atitude que poderfamos chamar prosaicista esti obviamente tio intimamente jnter-re- Jacionada com a economia do dinheiro, que é dominante na metropole, que ninguém pode dizer se foi a mentalidade inte- lectualistica que primeiro promoveu a economia do dinheiro ‘ou se esta ultima determinou a primeira. A maneira metropo- litana de vida é certamente o solo mais fértil para esta reci- procidade, ponto que documentarei pela mera citagdo do que foi dito por um dos mais eminentes historiadores constitucionais ingleses: ao longo de todo o curso da histéria inglesa, Londres nunca funcionou como o coragao da Inglaterra, mas freqiien- temente como seu intelecto e sempre como sua bolsa de di- nheiro! Em certos tracos aparentemente insignificantes, que se si- tuam sobre a superficie da vida, as mesmas correntes psiquicas se unificam caracteristicamente. A mente moderna se tornow mais e mais calculista. A exatiddo calculista da vida prética, que a economia do dinheiro criou, corresponde ao ideal da ci@ncia natural: transformar o mundo num problema aritmé- tico, dispor todas as partes do mundo por meio de {6rmulas mateméticas. Somente a economia do dinheiro chegou a encher os dias de tantas pessoas com pesar, calcular, com determi- nag6es numéricas, com uma reducao de valores qualitativos a quautitativos. Através da natureza calculativa do dinheiro, uma nova preciso, uma certeza na definigéo de identidades © di ferengas, uma auséncia da ambigilidade nos acordos ¢ com- | binacSes surgiram nas relacées de elementos vitais — tal como externamente esta preciso foi efetuada pela difusio universal dos relégios de bolso. Entretanto, as condigdes da vida metro- politana sfo simultaneamente causa e efeito dessa caracteris~ tica, Os relacionamentos e afazeres do metropolitano tipico so habitualmenfe to variados ¢ complexos que, sem a mais estrita \pontualidade nos cor nissos ¢ servigos, toda a estrutura . se omy cairia num caos inextrincével. Acima de tudo, Simmel, G., A Metrépole e a Vida Mental, in Velho, Otdvio Guilherme (org), © Fenémeno Urbano, 4" Edigéio da Zahar Editores, Biblioteca de Ciéncias Sociais, Rio de Janeiro, Brasil, 1979) A METROPOLE E A ViDA MENTAL 15 esta necessidade ¢ criada pela agregacdo de tantas pessoas com interesses tio diferenciados, que devem integrar suas relagées _atividades em um organismo altamente complexo. Se todos os relat6rios de Berlim se pusessem a funcionar em sentidos diferentes, ainda que apenas por uma hora, toda a vida eco- némica ¢ as comunicacées da cidade ficariam transtornadas Por longo tempo. Acresce a isto um fator que aparentemente nao € mais do que externo: as longas distancias fariam com que toda a espera e os compromissos rompidos resultassem numa perda de tempo de conseqiiéncias altamente nocivas. Assim, a técnica da vida metropolitana é inimagindvel sem a mais pontual integracio de todas as atividades ¢ relacdes mituas em um calendario estavel e impessoal. Aqui, nova- mente, as conclusdes gerais de toda a presente tarefa de re- flexdo se tornam ébvias, a saber, que, de cada ponto da super- ficie da existéncia — por mais intimamente vinculados que estejam a superficie — pode-se deixar cair um fio de prumo para o interior das profundezas do psiquismo, de tal modo que todas as exterioridades mais banais da vida esto, em wltima andlise, ligadas as decisées concernentes ao significado e estilo de vida. Pontualidade, calculabilidade, exatidao, sio introdu- zidas & forca na vida pela complexidade e extensio da exis+ téncia metropolitana © nfo esto apenas muito intimamente ligadas a sua economia do dinheiro e cardter intelectualistico. Tais tragos também devem colorir o contetido da vida e favo recer a exclusio daqueles tragos e impulsos irracionais, instin- tivos, soberanos que visam determinar 0 modo de vida de dentro, ao invés de receber a forma de vida geral e precisa- mente esquematizada de fora. Muito embora tipos soberanos de personalidade, caracterizados pelos impulsos irracionais, no scjam absolutamente impossiveis na grande cidade, eles sao, nao obstante, opostos a vida tipica da grande cidade. O édio apaixonado de homens como Ruskin © Nietzsche pela metré- pole € compreensivel nestes termos, Suas naturezas descobriram © valor da vida a s6s na existéncia fora de esquemas, que nfo pode ser definida com preciso para todos igualmente. Da mesma fonte desse Gdio & metr6pole brotou o édio que tinham & economia do dinheiro © ao intelectualismo da existéncia moderna. Os mesmos fatores que assim redundaram na exatidéo ¢ precisio minuciosa da forma de vida redundaram também em uma estrutura da mais alta impessoalidade; por outro lado, promoveram uma_subjetividade altamente. pessoal. Nao hé tal- vez fenémeno psiquico que tenha sido to incondicionalmente teservado 4 metrépole quanto a atitude blasé. A atitude blasé Simmel, G., A Metrépole e a Vida Mental, in Velho, Otdvio Guilherme (org), © Fenémeno Urbano, 4" Edigéio da Zahar Editores, Biblioteca de Ciéncias Sociais, Rio de Janeiro, Brasil, 1979) 16 O FENOMENO URBANO resulta em primeiro jugar dos estimulos contrastantes que, em répidas mudangas e compressio concentrada, s4o impostos niervos. Disto ém parece originalmente jorrar a intensi ‘cago da intelectualidade metropolitana. Portanto, as pessoas estipidas, que nfo tém existéncia intelectual, nfo so exata- mente blasé. Uma vida em perseguigaéo desregrada ao prazer torna uma pessoa blasé porque agita os nervos até seu ponto de mais forte reatividade por um tempo tao longo que eles finalmente cessam completamente de reagic. Da mesma forma, através da rapidez e contraditoriedade de suas mudangas, im- pressées menos ofensivas forgam reag6es tao violentas, esti- rando os nervos tao brutalmente em uma e outra diregdo, que suas iiltimas reservas so gastas; e, se a pessoa permancce po mesmo meio, eles nao dispoem de tempo para recuperar a forca. Surge assim a incapacidade de reagir a novas sensa~ ‘com a°energia apropriada. Isto constitui aquela atitude que, na verdade, toda crianga metropolitana demonstra ‘quando comparada com criancas de meios mais trangiiilos € menos sujeitos a mudangas. Essa fonte fisiolégica da atitude blasé metropolitana é acrescida de outra fonte que flui da economia do dinheiro. A esséncia da atitude blasé consiste no embotamento do poder de discriminar. Isto nao significa que os objetos nao sejam percebidos, como é 0 caso dos débeis mentais, mas antes que © significado e valores diferenciais das coisas, e daf as préprias coisas, siio experimentados como destituidos de substancia. Elas aparecem a pessoa blasé num tom uniformemente plano ¢ fosco; objeto algum merece preferéncia sobre outro, Esse es- tado de dnimo é 0 fiel reflexo subjetivo da economia do dinheiro completamente interiorizada. Sendo o equivalente a todas as miiltiplas coisas de uma e mesma forma, 0 dinheiro torna-se 0 mais _assustador dos niveladores. Pois expressa todas as dife- Tengas qualitativas das coisas em termos de “quanto?”. O di- nheiro, com toda sua auséncia de cor e indiferenca, torna-se ‘© denominador comum de todos os valores; arranca irrepara- velmente a esséncia das coisas, sua individualidade, seu valor especifico e sua incomparabilidade. Todas as coisas flutuam com igual gravidade especifica na corrente constantemente em movimento do dinheiro. Todas as coisas jazem no mesmo nivel e diferem umas das outras apenas quanto ao tamanho da rea que cobrem. No caso individual, esta coloragio, ou antes des- coloracdo, das coisas através de sua equivaléncia em dinheiro pode ser diminuta ao ponto da imperceptibilidade. Entretanto, através das relagdes das riquezas com os objetos a serem obti- dos em troca de dinheiro, talvez mesmo através do caréter Simmel, G., A Metrépole e a Vida Mental, in Velho, Otdvio Guilherme (org), © Fendmeno Urbano, 4" Edigao da Zahar Edtores, Biblioteca de Ciéncias Sociais, Rio de Janeiro, Brasil, 1979 A METROPOLE E A VIDA MENTAL 17 total que a mentalidade do ptblico contemporfneo em toda parte imprime a tais objetos, a avaliacao exclusivamente pe- Cuniaria de objetos se tornou bastante considerdvel. As grandes cidades, principais sedes do intercambio monetério, acentuam a capacidade que as coisas tém de poderem ser adquiridas muito mais notavelmente do que as localidades menores. E por isso que as grandes cidades também constituem a locali- zacio (genuina) da atitude blasé. Com a atitude blasé a con- centracio de homens e coisas estimula o sistema nervoso do individuo até seu mais alto ponto de realizacao, de modo que ele atinge seu dpice. Através da mera intensificagao quantita~ tiva dos mesmos fatores condicionantes, essa realizagdo € trans- formada em seu contrdrio e aparece sob a adaptacio peculiar da atitude blasé. Nesse fendmeno, os nervos encontram na recusa a reagir a seus estimulos a ultima possibilidade de aco- _Modaf-se ao contetido e a forma da vida metropolitana. A autopreservagao de certas personalidades é comprada ao preco da desvalorizacio de todo o mundo objetivo, uma desvalori- zaco que, no final, arrasta inevitavelmente a personalidade da prépria pessoa para uma sensaco de igual inutilidade. Na medida em que o individuo submetido a esta forma de existéncia tem de chegar a termos com ela inteiramente por si mesmo, sua autopreservaiio em face da cidade grande exige dele um comportamento de natureza social ndo menos negativo. Essa atitude mental dos metropolitanos um para com © outro, podemos chamar, a partir de um ponto de vista for- mal, de reserva. Se houvesse, em resposta aos continuos con- tatos ‘externos com indmeras pessoas, tantas reagdes interiores quanto as da cidade pequena, onde se conhece quase todo mundo que se encontra e onde se tem uma relacdo positiva com quase todos, a pessoa ficaria completamente atomizada internamente e chegaria a um estado psiquico inimagindvel. Em parte esse fato psicolégico, em parte o dircito a desconfiar gue os homens tém em face dos clementos superficiais da vida metropolitana, tornam necessdria nossa reserva. Como resultado dessa reserva, freqiientemente nem sequer conhece- ios de vista aqueles que foram nossos vizinhos durante anos. E € esta reserva que, aos olhos da gente da cidade pequena, nds faz parecer frios e desalmados. Na verdade, se é que no estou enganado, o aspecto interior dessa reserva exterior € ndo apenas a indiferenca, mas, mais freqiientemente do que nos damos conta, é uma leve aversio, uma estranheza e repulsio miituas, que redundardo em édio e luta no momento de um contato mais préximo, ainda que este tenha sido provocado. Toda a organizagao interior de uma vida comunicativa tio Simmel, G., A Metrépole ¢ a Vida Mental, in Velho, Otavio Guilherme ( 6 Simmel, Gu fental, in Velho, OtAvio Guilherme (org), O Fendémeno Urbano, 4" Edigao da Zahar Edtores, Biblioteca de Ciéncias Sociais, Rio de Janeiro, Brasil, 1979 18 © FeNOMENO Urbano extensiva repousa sobre uma hicrarquia extremamente variada de simpatias, indiferencas e avers6es de natureza tanto a mais breve quanto a ma’s permanente, A esfera de indiferenca nesta hierarquia nfo € to grande quanto podecia parecer superfi- cialmente. Nossa atividade psiquica ainda reage a quase toda impressio de outra pessoa com uma sensagéo de alguma forma distinta. O cardter inconsciente, fluido e mutével dessa impressio parece resultar em um estado de indiferenca. Na verdade, tal indiferenca seria exatamente to antinatural quanto a difusio de uma sugestéo mitua indiscriminada seria insu- portdvel. A antipatia nos protege de ambos esses perigos tip'cos da metcépole, a indiferenga ¢ a sugestibi indiscriminada. ‘Uma antipatia latente e 0 estgio preparatorio do antagon'smo pritico efetuam as distincias e aversoes sem as quais esse modo de vida no poderia absolutamente ser mantido. A ex- tensio e composicao desse estilo de vida, o ritmo de sua aparigio ¢ desaparicéo, as formas em que é satisfeito tudo isso, com 08 motivos unificadores no sentido mais estreito, formam o todo insepardvel do estilo metropolitano de vida. © que aparece no estilo metropolitano de vida diretamente como d'ssociaco na realidade € apenas uma de suas formas clementares de socializacio. Essa reserva, com seu tom exagerado de aversio oculta, aparece, pot seu turno, sob a forma ou a capa de um fend- meno mais geral da metrépole: confere_ao_individuo uma qualidade e quantidade de liberdade pessoal que no tem qual quer analog’a-sob outras condigies. A metrOpole volta a uma das maiores tendéncias de desenvolvimento da vida social como tal, a uma das poucas tendénc'as para as quais pode ser des- coberta uma férmula aproximadamente universal. A primeira fase das formagdes sociais encontradas nas estruturas sociais hist6ricas bem como contempordneas € a seguinte: um circulo relativamente pequeno firmemente fechado contra circulos vi, zinhos, estranhos ou sob qualquer forma antagonisticos. Entre.” tanto, esse circulo é cerrad: ‘e 86 perimite a sus membros ampo © desenvol- vimento de qualidades préprias em stitos livres, respon- sdveis, Grupos politicos e de parentesco, associagoes partidé- Fias € religiosas comecam dessa forma. A autopreservacao de associagées muito jovens requet o estabelecimento de limites estritos ¢ uma unidade centrfpeta. Portanto, nao podem per- mitir a Hberdade individual ¢ desenvolvimento intetior ¢ exte~ tior proprios. Desse estdgio, o desenvolvimento social procede simultaneamente em duas direcdes diferentes, ainda que cor respondentes. A medida que o grupo cresce — numericamente, Simmel, G., A Metrépole e a Vida Mental, in Velho, Otdvio Guilherme (org), © Fendmeno Urbano, 4" Edigao da Zahar Edtores, Biblioteca de Ciéncias Sociais, Rio de Janeiro, Brasil, 1979 A MEtROPOLE E A ViDA MENTAL 19 espacialmente, em sign’ficado ¢ contetido de vida — na mesma medida, a unidade direta, interna, do grupo se afrouxa ¢ a rigidez da demarcagdo original contra os outros é amacia através das relagdes © conexées muituas. Ao bi a dies fatans € © cxltianismo, corporaiter © partdor ral aESDs ficos e intimeros outros grupos se desenvolveram de acordo com essa {6rmula, por mais que, naturalmente, as condigées forgas especiais dos respectivos grupos tenham modificado o esquema geral. Tal esquema me parece distintamente reco- mhecivel também na evolugdo da individualidade no intecior da vida urbana. A vida de cidade pequena na Antiguidade ¢ na dade Média crigiu barreiras contra o movimento e as relacdes do individuo no sentido do exterior e contra a independéncia individual © a diferenciagao no interior do ser individual, Essas barreiras eram tais que, diante delas, 0 homem moderno néo poderia respirar. Mesmo hoje em dia, um homem metropoli- tano que é colocado em uma cidade pequena sente uma res- tricao semelhante, ao menos, em qualidade. Quanto menor é _ © circulo que forma nosso meio ¢ quanto mais Testritas aquelas” ‘Telagdes com os outros que dissolvem os limites do individual, [tao ma's"metosementes citculo guarda as _realizagoes, a conduta de vida e a perspectiva do individuo e tanto mais ‘prontamente uma especializacto quantitaliva e qualitativa rom= perta_a estrutura de todo_o pequeno circulo, A antiga polis, neste respeito, parece ter tido 0 proprio caréter de uma cidade pequena. A constante ameaca A sua exis- téncia em maos de inimigos de perto © longe teve como re sultado uma estrita coeréncia quanto aos aspectos politicos ¢ militares, uma supervisio do cidadao pelo cidadio, um chime do todo contra 0 individual, cuja vida particular era supri- mida a um tal grau que ele s6 podia compensar jsto_agindo emo "am depots emt sed peoneie domi eae oe, mend agitagdo ¢-excitamento, 0 colordo nico ta vida alc- niense, podem ser talvez compreendidos em termos do fato de que um povo de personalidades incomparavelmente indivi- dualizadas lutava contra a pressio constante, interna ¢ exter- na, de uma cidade pequena desindividualizante. Isto produziu uma atmosfera tensa, em que os individuos mais fracos eram suprimidos ¢ aqueles de naturezas mais fortes cram incitados a pér-se & prova da maneira mais apaixonada. £ precisamente por isso que floresceu em Atenas o que deve ser chamado, Simmel, G., A Metrépole e a Vida Mental, in Velho, Otdvio Guilherme (org), © Fenémeno Urbano, 4" Edigéio da Zahar Editores, Biblioteca de Ciéncias Sociais, Rio de Janeiro, Brasil, 1979) 20 O Fenémeno Urpano sem ser exatamente definido, de “o cardter humano geral” no desenvolvimento inteiectual de nossa .espécie. Pois sustenta- mos a validade tanto fatual quanto historica da seguinte co- nexdo: os contetidos ¢ formas de vida mais extensivos ¢ mais gerais estéo intimamente ligados aos mais individuais. Eles tém um estégio preparaténio em comum, isto é, encontram seu in'migo nas formagdes e agrupamentos estreitos, a_ma- nutencdio dos quais coloca a ambos em um estado de defensi- Va contra a expansao © a generalidade que jazem fora ¢ a in- dividualidade de livre movimento que ha dentro. Tal qual na era feudal, @ homem “livre” era o que permanccia sob a lei da terra, isto 6, sob a lei da Srbita social maior, e 0 homem nio-livre era aquele cujo direito derivava meramente do cir- Culo estreito de uma associagéo feudal ¢ era excluido da or- bita social maior — assim, hoje o homem metropolitano é “li- ‘vre” em um sentido espirituatizado e refinado, em contraste com a pequenez e preconceitos que atrofiam o homem de ci- dade pequena. Pois a reserva e indiferenca reciprocas ¢ as condigdes de vida intelectual de grandes circulos nunca so | sentidas mais fortemente pelo individuo, no impacto que cau- sam em sua independéncia, do que na multidao mais concen~ trada na grande cidade. Isso porque a proximidade fisica e a estreiteza de espago tornam a distancia mental mais visivel. Trata-se, obviamente, apenas do reverso dessa liberdade, se, sob certas circunstancias, a pessoa em nenhum lugar se sente to solitdria e perdida quanto na multidio metropolitana. Pois aqui como em outra parte, ndo_éabsolutamente _necessirio que a liberdade do homem se reflita em sua vida cmocional como conforto.~ r Nao so apenas o tamanho imediato da 4rca ¢ o ntime- ro de pessoas que, em fungao da correlagdo historia univer- sal entre o aumento do curriculo ¢ a liberdade pessoal interior ¢ exterior, fizeram da metrdpole 0 local da liberdade. E antes transcendendo essa expansio visivel que qualquer cidade dada se torna a sede do cosmopolitismo. O horizonte da cidade se expande de uma maneira compardvel ao modo pelo qual a ri- queza se desenvolve; um certo volume de propriedade cresce de modo semi-automatico em progressao sempre mais rapida. Téo logo um certo limite tenha sido ultrapassado, as relacdes econémicas, pessoais ¢ intelectuais da populacdo, a esfera da predominancia intelectual da cidade sobre sua zona nGo-ur- bana crescem como em progressdo geométrica. Cada avango em extensiio dinimica torna-se um passo correspondente a uma extensio nao igual, mas nova e maior. De cada fio que st estende para fora da cidade, sempre novos fios crescem como Simmel, G., A Metrépole e a Vida Mental, in Velho, Otdvio Guilherme (org), © Fenémeno Urbano, 4" Edigéio da Zahar Editores, Biblioteca de Ciéncias Sociais, Rio de Janeiro, Brasil, 1979) A METROPoLE E A VIDA MENTAL 2 que sozinhos, tal como dentro da cidade 0 aumento imerecido do amguel de um terreno, através do simples incremento das comunicagdes, traz ao proprietério proveitos automaticamen- te crescentes. A esta altura, o aspecto quantitative da vida 6 transformado diretamente em tragos qualitativos de carater. A esfera de vida da cidade pequena ¢, no principal, contida em si mesma e autérquica. Pois é da natureza caracteristica da metrépole que sua vida interior transborde em ondas para uma vasta area nacional ou internacional, Weimar nao é um exemplo do contrario, visto que sua significado foi atrelada a personalidades individuais ¢ morreu com elas; ao passo que a metropole é de fato caracterizada por sua independéncia es- sencial até das mais eminentes personalidades individuais. Isso 6 a contrapartida da independéncia e é 0 preco que o individuo paga pela independéncia que desfruta na metrépole. A carac- teristica mais significativa da metrdpole é essa extensio fun- cional para além de suas fronteiras fisicas, E essa eficicia reage por scu turno ¢ da peso, importancia ¢ responsabilidade A vida metropolitana. O homem ndo termina com os limites de seu corpo ou a area que compreende sua atividade ime- diata. O ambito da pessoa £ antes conalituido pela soma_de a de efeitos que emana dela temporal ¢ espacialmente. Da mesma fnaneira, uma cidade consiste em seus efeitos totais, que se estendem para além de seus limites imediatos. Apenas esse Ambito é a verdadeira extensio da cidade, em que sua existén- cia se expressa. Esse fato torna Sbvio que a liberdade indi- vidual, complemento Idgico ¢ histérico de tal extensio, nao deve ser entendida apenas no sentido negativo de mera liber dade de mobilidade c climinagao de preconccitos ¢ filistinismo mesquinho. O ponto essencial é que a particularidade e in- comparabilidade aue, em tiltima analise, todo ser humana pos- sui, sejam de alguma forma expressas na elaboracio de um modo de vida. © fato de estamos seguindo as leis de nossa propria natureza — e isto, afinal, é liberdade — s6 se torna Gbvio e convincen’e para nés mesmos e para os outros se as expresses dessa natureza diferirem das expressées de outras. Apenas nosso cariter inconfundivel pode provar que nosso modo de vida nao foi imposto por outros. As cidades so, em primeiro lugar, sede da mais_alta-di- visio_econémica do trabalho. Produzem, portanto, fendmenos téo extremos quanto, em Paris, a ocupagio remunerada do quatorziéme. Si pessoas que se identificam por meio de avisos em suas residéncias e que esto prontas, 4 hora do jantar, corretamente trajadas, de modo que possam ser rapidamente convocadas, caso um jantar consista em tree pessoas. Na me Simmel, G., A Metrépole ¢ a Vida Mental, in Velho, Oté 6 Simmel, Gu ida Mental, in Velho, Otavio Guilherme (org.), O Fenémenk ¥ 4 Ede da Zaha Ede, sbotec de Scie Soa fo de aneer Brash, 97a 22 O FENOMENO URBANO dida de sua expansio, a cidade oferece mais ¢ ma‘s as condi- goes decisivas da divisio de trabalho. Oferece um cfrculo que, através de seu tamanho, pode absorver uma variedade alta- mente diversificada de servigos. Ao mesmo tempo, a concen- ago de individuos e sua luta por consumidores compelem o ind'viduo a especializar-se em uma fungio na qual nao possa ser prontamente substituido por outro. E um fato decisivo que a vida da cidade transformou a luta com a natureza pela vida em uma luta entre os homens pelo lucro, que aqui nao € con- ferido pela natureza, mas pelos outros homens. Pois a especia- lizacdo nao flui apenas da competicao pelo ganho, mas também do fato subjacente de que o vendedor precisa sempre buscar atender a novas ¢ diferenciadas_necessidades do consumidor atraido. Para encontrar uma fonte de renda que ainda nao es- teja exaurida e para encontrar uma funciio em que nfo possa ser prontamente substituido, ¢ necessério especializar-se em seus servigos, Esse proceso promove a diferenciacdo, o refinamen- to e 0 enriquecimento das necessidades do piblico, o que obvia- mente deve conduzir ao crescimento das diferengas pessoais no interior desse piblico. ‘Tudo isso forma a transico para a individualizagéo de tragos mentais e psfquicos que a cidade ocasiona em propor- cdo a seu tamanho, HA toda uma série de causas Gbvias Subjacentes a esse processo. Primeiro, a pessoa precisa en- frentar a dificuldade de afirmar sua propria personalidade no ‘campo abrangido pelas dimensdes da vida metropolitana. Onde ‘© aumento quantitativo em importincia e o dispendio de ener- ‘gia atingem seus limites, a pessoa se volta para diferencas qua- Iitativas, de modo a atrair, por alguma forma, a atencio do circulo social, explorando sua sensibilidade e diferengas. Final- mente, 0 homem € tentado a adotar as peculiaridades mais tendenciosas, isto é as extravagincias especificamente metro- pol'tanas do maneirismo, capricho e preciosismo. Agora, o sig- nificado dessas extravagancias nao jaz absolutamente no con- teido de tal comportamento, mas antes na sua forma de “ser diferente”, de sobzessair de forma notivel € asin atrair aten- Go. Para muitos tipos caracteristicos, em Altima andlise 0 finico meio de salvaguardar para si prépro um pouco de auto- estima e a consciéncia de preencher uma posicio € indireto, através do conhecimento dos outros. No mesmo sentido, est4 operando um favor aparentemente insignificante, os efeitos cumulativos do qual so, entretanto, ainda notiveis. Refiro-me 3 breyidade_e escassez dos contatos inter-humanos con‘er‘dos Ao homem metropol:tano, em comparagdo com o intercimbio social na pequena cidade. A tentacio a aparecer oportuna- Simmel, G., AMetr6pole ¢ a Vida Mental, in Velho, Otdvio Guilherme (org.), O Fenémeno Urbano, 4" Edigao da Zahar Edtores, Biblioteca de Ciéncias Sociais, Rio de Janeiro, Brasil, 1979 A METROPOLE B A ViDA MENTAL 23 mente, a surgir concentrado ¢ notavelmente caracteristico, fica muito mais proxima do individuo nos breves contatos metro- pol'tanos do que em uma atmosfera em que a associagao fre- Gliente ¢ prolongada assegura & personalidade uma imagem nao ambigua de'si mesma aos olhos dos outros. A razio mais profunda, entretanto, pela qual a metrépole conduz ao impulso da exisiéncia pessoal mais individual — sem embargo de quo justificada e bem sucedida — parece- me ser a seguinte: o desenvolvimento da cultusa moderna € caracterizado pela preponderancia do que se poderia chamar de o “espirito-objetivo” sob:e o “espirito subjetivo”. Isso equi- vale a dizer que, na linguagem como na lei, na técnica de pro- dugio como na arte, na ciéncia como nos objetos do amb-ente doméstico, est4 incorporada uma soma de espirito. O indivi duo, em seu desenvolvimento intelectual, segue o crescimen- to intelectual, segue o crescimento desse espirito muito imper- feitamente e a uma distancia sempre crescente. Se, por exem- plo, contemplarmos a imensa cultura que, durantes os séculos, se incorpou as coisas e a0 conhec’mento, as instituices ¢ as comod'dades, € se compararmos tudo isso com 0 progresso cul- tural do individuo dusante 0 mesmo periodo — ao menos em grupos de alto status — uma desproporcdo em crescimen- to assustadora entre os dois se torna evidente. De fato, em alguns pontos notamos um retrocesso na cultura do individuo com relagao a espiritualidade, delicadeza e idealismo. Essa dis- crepancia resulta essencialmente da crescente divisio de traba- Iho. Po's a divisdo de trabalho reclama do individuo um aper- feigoamento cada vez mais unilateral. E um avanco grande no sentido de uma busca unilateral com muita freqiiéncia sig- nifica a morte para a personalidade do individuo. Em qualquer caso, ele cada vez menos pode equiparar-se ao supercrescmen- to da cultura objetiva. O individu é reduzido a uma quanti- dade negligencidvel, talvez menos em sua consciéncia do que em sua pratica e na totalidade de seus obscuros estados emo- Jonais derivados de sua pritica. O individuo s¢ tornou um mero elo em uma enorme. organizacio de coisas e poderes que arrancam de suas m&os todo o progresso, espiritualidade e valores, para transformi-los de sua forma subjetiva na for- ma de uma vida puramente objetiva. Nao é preciso mais do que apontar que a metrépole € 0 genuino cendrio dessa cul- tura que extravasa de toda vida pessoal, Aqui, nos edificios € instituigdes educacionais, nas maravilhas ¢ confortos da tec nologia da cra da conguista do espago, nas formagoes da vida comunitéria e nas institu'cdes visiveis do Estado, oferece-se uma téo esmagadoca inteireza de espirito ‘cristalizado e desper- Simmel, G., A Metrépole e a Vida Mental, in Velho, Otdvio Guilherme (org), © Fenémeno Urbano, 4" Edigéio da Zahar Editores, Biblioteca de Ciéncias Sociais, Rio de Janeiro, Brasil, 1979) 24 O FeNOMENO Urbano sonalizado que a personalidade, por assim dizer, nfo se pode manter sob 0 seu impacto. Por um lado, a vida se torna in- finitamente facil para a personalidade na medida em que os estimulos, interesses, empregos de tempo e consciéncia Ihe sio oferecidos de todos os lados. Eles conduzem a pessoa como se em uma corrente e mal é preciso nadar por si mesma. Por outro lado, entretanto, a vida é composta mais e mais desses contetidos ¢ oferecimentos que tendem a desalojar as genuinas coloragdes € as caracteristicas de incomparabilidade pessoais. Isso resulta em que 0 individuo apele para o extremo no que se refere & exclusividade e particularizacéo, para preservar sua esséncia mais pessoal. Ele tem de exagerar esse elemento pes- soal para permanecer perceptivel até para si proprio. A atrofia da cultura individual através da hipertrofia da cultura objetiva 6 uma razo para o éd’o amargo que os pregadores do mais extremado individualismo, Nietzsche acima de todos, votam & mets6pole. Mas é, na verdade, também uma razd0 por que tais pregadores so tio apaixonadamente amados na metr6po- le e por que aparecem ao homem metropolitano como os pro- fetas conhecedores de seus mais insatisfeitos anseios. Se se perguntar pela posicao histérica dessas duas formas de individualismo que se nutrem da relacdo quantitativa da metrépole, a saber, a independéncia individual e a elaboracdo da préptia individualidade, entio a metrSpole assume uma si- tuacdo relativa inteiramente nova na hist6ria mundial do es- pirito. O século XVIII encontrou o individuo preso a vinculos de cardter politico, agrdrio, corpotativo ¢ religioso. Eram res- trigdes que impunham ao homem, por assim dizer, uma forma antinatural e desigualdades superadas, injustas, Nessa s:tuaco, ergueu-se 0 grito por liberdade ¢ igualdade, a crenga na plena libecdade de movimento do individuo em todos os relaciona- mentos sociais ¢ intelectuais, A liberdade permitiria de imedia- to que a substéncia nobre comum a todos viesse & tona, uma substincia que a natureza depositara em todo homem e que a sociedade e a histéria no haviam feito mais do aue deformar. Ao lado desse ideal de liberalismo do século XVIII, no século XIX, através de Goethe e do romantismo, por um lado, ¢ atra- vés da divisio econémica do trabalho, por outro, outro ideal se levantou: os individuos liberados de vinculos histéricos agora desejavam dist'nguir-se um do outro. A escala dos valores hu- manos j4 nfo € constituida pelo “ser humano geral” em cada individuo, mas antes pela unicidade ¢ insubstituibilidade quali- tativas do homem. A hist6ria externa e interna de nosso tempo segue seu curso no interior da luta ¢ nos entrelacamentos em mudanga dessas duas maneiras de definir 0 papel do individuo Simmel, G., A Metrépole e a Vida Mental, in Velho, Otdvio Guilherme (org), © Fenémeno Urbano, 4" Edigéio da Zahar Editores, Biblioteca de Ciéncias Sociais, Rio de Janeiro, Brasil, 1979) A METROPOLE E a Vipa MENTAL 25 no todo da sociedade. £ fungo da metrépole fornecer a arena para este combate e a reconciliacdo dos combatentes. Pois a metrépole apresenta as condigdes peculiares que nos so reve ladas como as oportunidades os estimulos para o desenvolvi mento de ambas essas maneiras de conferir papCis aos homens. Assim, tais condigdes adquirem uma posicio dnica, prenhes de significados inestimaveis para o desenvolvimento da existéncia psiquica. A metrépole se revela como uma daquelas grandes formagées histéricas em que correntes opostas que encerram a vida se desdobram, bem como se juntam as outras igual di- reito. Entretanto, neste processo, as correntes da vida, quer seus fenémenos individuais nos toquem de forma simpatica, quer de forma antipdtica, transcendem inteiramente a esfera para a qual & adequada a atitude de juiz. Uma vez que tais forgas da vida se estenderam para o interior das raizes e para ‘© cume do todo da vida histérica a que nés, em nossa eféme- ra existéncia, como uma célula, sé pertencemos como uma parte, no nos cabe acusar ou perdoar, sendo compreender. * * 0 contevido desta conferéncia, por sua propria natureza, nao deriva de literatura suscetivel de ser ‘citada. A discussio e elaboragéo de suas principais idéas cultural-historicas estao contidas_em_ minha Phitosophie des Geldes (A Filosofia do Dinheiro), Munique ¢ Leipzig, Duncker und Humblot, 1900. (N. do A.)

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