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mes. Arte & Bnsaios Rio Ge Sanco: ano e"Acplosiodo a(t) screacies urbanas porines no Limiar do ab De Arce & Bneaios sonia de Belas Artes/ O Acéfalo, a cabeca de Juno, a cabeca da Medusa: os debates € as figuras do comum LProposicdes Proposiglo 1: 0 dom, o abandono ‘Nesses dias, depos da tribulatoo sol va ficarexcur, ahaa ndo Dita mais, as estrelas comepardoa cir do a 05 pores 2 espa flcardoabalados. eto eles verdo 0 Fh do Hersam ‘Yindo sobreas mavens com grande poder svi. Ble envardos ns ds quatro cantos da tera, reuniné as pessoas que Deus ‘scot do extremo da terra ao extremo do ed, (Mateos 13, 24.27) Momento de dtivida e intenso. abandono: 0 Porvir. Terd lugar? Dard lugar? Ente os lugares da cidade — que a ldgica do monumento teria or fun- S#o hierarquizar —, a imagem do Cristo Redentor oe Estamos ao desabrigo da Presenca: do ‘®rego parousta, presenca, signi cava a volta do Cristo glorioso no fim dos tempos, quando entéo termin: Mas 0 amarelo, o dourado, é também a cor da China, do imperador e do iyo (na mitologia chinesa, um dos quatro animais sagrados convoca- por Pan Ku, 0 deus criador, para participar da criagdo do mundo). £ nnorggin do fogo, que tanto destrdi quanto permite a transformacéo ¢ 0 inscimento, Como o amarelo é a cor do imperador, quase todos os telha- «la Cidade Proibida Parpura (construfda entre 1406 e 1420) ostentam hws amarelas, enquanto o palécio imperial é localizado no centro de vim, lugar sagrado acessivel apenas 20s imperadores, suas familias e is worvigais? Hvando signos ¢ culturas, tempos € lugares, a floragéo amarela dos transgreditia as muralhas e os lugares proibidos (como os condomi- ile luxo ou as favelas, versio de um sagrado negativo, onde apenas os fiton, os iniciados, podem adentrar), deslocaria centralidade e hierar- | Reverteria (reverterd?) a melancolia associada as sombras, para ex- suas resisténcias “iluminadas” ou “douradas” (transformadora, 1) Fogo do dragio). \0 proposicio, talvez inexequivel, bastante improvivel, poderd ou eontecer, Ocorrerdé? Nao hé como nfo enfrentar o susto de uma res- ue nos falha, Nao hé como nfo se instalar nessa suspensio sem de- i), em lugar da perplexidade de um talvez, para acolher o imprevi- 0 inesperado, Para abrir, enfim, os bragos Aquilo ou aquele que vem. realizar como anunciado pelo projeto ocidental da historia — essa deve~ dora da temporalidade crist, com seu desenrolar linear, com sua teleo- “Emancipagio da logia, com sua “redengéo” no horizonte do mundo. humanidade’ diria 0 projeto das Luzes; Parousfa, diriam os cristaos. Pressupondo um tempo de execuciio e recepgaio além de nossa frigil e breve existéncia, transcendendo 0 aqui e 0 agora (e interrompendo acontecendo no aqui e no agora), Cristo Redentor/série Transcendéncias (1998/2008),* de Chang Chi Chai, é uma proposigao de arte: plantar mu~ das de ipé amarelo nas ruas, pragas, becos e vielas da cidade do Rio de Ja- neiro, formando o contorno ampliado da sombra do monumento do Cristo Redentor projetada a partir de suas costas. Uma proposta que se origina de uma dupla prece: de um antigo provérbio chinés — “os ancestrais plan. tam para que os descendentes desfrutem sua sombra” — e do momento de intensa diivida do deus cristo — “Pai, por que me abandonaste?” (Marcos 35, 34). Entre a circularidade do tempo oriental e a linearidade do Ociden: te, como pensar o porvir sem o designio comum anunciado pela historia ‘Um porvir que hé de vir sem feigGes, sem contornos. Questies cruciais: 0 tempo, o dom eo abandono, 0 cuidado com o outro. Excedendo os contornos da proje¢io natural formada pelo sol, a som bra desenhada pelos ipés amarelos transgride as ilusdrias e arbitréria fronteiras politicas ou socioculturais, atravessa varios bairros, suas pr ‘gas, seus guetos e favelas, aleanga e abraca as cidades da vizinhanga, artista sonha que seu projeto se torne comum, 0 projeto de muitos, qui cele seja capaz de mobilizar os habitantes e héspedes da cidade para sul realizagéo. Chinesa naturalizada brasileira, sua compreensio do tem| encontraria, nas encruzilhadas das culturas, a desmedida dos desenh e designios. Uma desmedida que nfo encontrard os extremos da terra 0 do céu do iiltimo juizo, pois estes transbordam sem diregiio, Nem chines nem brasileira, estrangeira e estranha como cada um ¢ todos. Kstrangel ‘como 0 deus cristo, uma distincia que se fez proximidade, um infin que experimentow a finitude da vida humana, Considerada uma das frvores nacionais, 0 “ipé’, palavra que vem do tu significa: drvore eascuda, resistente, Plorescendo apenas uma Vex Ao Bl ho amarelo da sombra do Cristo #6 flearia (fear?) visivel nox dos invernos, antineiando ax primaverss & sous elelos renovados, jigito 2: parouséa malandra 110 de sangue, instalado no Espago Cultural Corcovado, coleta o dow turistas que o visitam, assim como dos participantes volun- da agilo artistica. L4 em cima, no interior do corpo de concreto do Hedentor, siio transmitidas e projetadas, em tempo real, as ima- la voleta, O sangue colhido, fruto do sacrificio dos turistas, abaste- haneo de sangue da cidade e se miscigenard ao sangue do carioca. Hinge bom nomeia a agio (concebida em 1998 ¢ realizada em ‘He Hdlwiges Dash, we bom?!" & una expressito tfpicn dos “flanelinhas” (uardado- is clo carro nas runs), dos malancdros @ Kobreviventes cariocas: a a 00 reialidade aparente na proposta de cuidar (do carro, do outro) guard pniprio Deus), se prometia e fundava a comunhio e a comu- luntin ameaga velada (a destruico do carro, do outro) se o pacto néo for s Heth imolaremos nessa celebrago? Que lagos estabeleceremos Jad. & a cordialidade como dom interessado, como moeda de troca, co! dle turistas que nos visita? ttugo cultural marcante da sociedade brasileira observado por Sérgid ln mio & o estrangeiro. O estrangeiro, figura da mobilidade Nuinrque de Holanda e que segue sendo tdo alardeado e examinado. Us Fit com a cidade moderna, como o distinguiu Georg Simmel,S Aistincias © proximidades. O estrangeiro é o estranho: espelho jetamos a alteridade. Sua proximidade aparente — pois elide vom perturbar nossa casa: os tempos € os espacos domes- agos afetivos e familiares marcando nossa vida social e nossas atividades Horas rimadas pelos costumes, a reciprocidade tranguila entre ‘Mas se engana quem pensa que hé na proposta da artista uma expe ). Sun diferenga nos intriga e nos é indiferente. E 0 exilado, 0 éneia do sagrado ou um entusiasmo fusional, porque, afinal, essa é u © eatudlante, o artista. Nao é 0 turista. O turista consome os es- Parousfa carioca, uma encarnagio malandra, que faz da cordialidade u jempos. Voracidade das superficies, seu contato é fotogréfico dom radicalmente interessado pelo outro em todos os seus atributos fiv0, « prova testemunhal de que por ali passou. O turismo é a ma dA mercantilizagéo das viagens, o desaparecimento da aco- ita, A hospedagem a prego alto desapossando a hospitalidade; humanidades, nada de moedas tilintando pela chegada do turist 0 cultural dissipando 0 convivio; o sight seeing substituindo 0 case dé no nivel corpéreo. Mesmo porque, nestes tempos (nem tio) #4 troen dos olhares. culares, Cristo j4 nfo retornaré: “presenca (Parousia) nfo confirma W ¢ hoje o culto eo altar central da religifo capitalista, como talvez diga o cartio-postal. Giorgio Agamben? Para o filésofo, o capitalismo generaliza e A Presenga era esse instante privilegiado de sentido, que recuava o 1 {ve10 O» processos separativos que definem a religido (entre o vertia 0 dado inelutavel do que acontecia no agora, assimilando todos 4 # profino), subtraindo a possibilidade do uso na esfera do con- presentes ¢ 0s relacionando a um passado e a um futuro ou ao plano il ‘exponiglio da sociedade do espetéculo, em que cada coisa, cada eternidade. A Presenca era o horizonte onde todos os presentes iam {f Ji humana (Como o corpo, a linguagem, a sexualidade) é exibida lugar, mas de onde, também, todos os presentes eseapavam. sie si propria, Se outrora, figis e peregrinos participavam de um E sea Presenga é o horizonte do tempo, a Paisagem ¢ o horizonte dl dil Aeparava a vitima na esfera sagrada e restabelecia, assim, as lugar. Horizonte de todas as suspens6es, a paisagem é o infinito da vin Hite 0 divino eo humano, agora os “turistas celebram, sobre sua lidade e das distancias impalpaveis que apenas a visto toca. Pouso exd ificial que consiste na experiéncia angustiante sivo da retina que nao abrigaré o corpo? A paisagem ¢ 0 lugar do quasi ff corpéreo, o lugar sem destino, o horizonte para onde os lugares se dtl ede onde também eles extravasam. sis diforenga e est |. Comungé-lo, antropofagicamente, Mas e agora, quando o futuro nfo pertence nem a Deus, nem i Misti 4i8 cristo ou indio tupinamba: é 0 turista in-corpore? nem ao “grau zero” do plano pictérico? Por isso resta pensar a presen de quem habita outros lugares, que se enearna na paisagem da ‘tempo, o lugar, a paisagem ao desabrigo das transcendéncins; restn cog ‘sorpo da cidade, entio abrigando 0 corpo e os Iuggares de outras -los como uma encarnagéo eternamente atualizada ¢ comungada a ta ue Ae eneAFnA now corpos de quem a habita; a paisagem do as exterioridades? E se o sacrificio institula 6 lago comunitirio (pal Tiabitw ow eorpos de quem aen ‘Transbordamento de todos os horizontes em todos os corpos. Porque nfo hd, em “Cristo sangue bom’, apenas um tinico corpo substancial, co- munitério, ja, pela comunhio na presenga, ou por lagos consangui- neos, Ou antes, 0s lagos de sangue ali sfo compreendidos literalmente para afirmar as diferengas ¢ a perpétua insuficiéncia de cada um, Do mesmo modo, o dispositivo fusional ¢ utilizado para reverter sua economia, no Para apoderar-se do corpo e do espitito do outro, mas multiplicar as sin- gularidades, encarnar suas fugas, dispersé-las pelo mundo. Transformar 0 Corpo tinico no jibilo das infinitas encarnagées espargidas. Todas as pai- sagens na paisagem carfoca dos corpos mulatos, dos corpos mesticos: 0 tu- rista imolado, a Parousia malandra, Paisagens encarnadas e deambulantes, aisagens mundanas perambulando por ai, paisagens no trottoir. Paisa. ‘gem presenteada a todos por um Redentor fléneur, um Verbo sangue born: ritual malandro que festeja a alegre paixio dos cristos-carioces. (Queroa micerebrdia, nao sacrifice. (Mateus 913) Proposigio 3: 4 nossa imagem Apesar de a Igreja Catélica e a Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro no autorizarem o trabalho concebido para 0 Prémio Interferéncias Ur banas de Santa Teresa’ em 2000, Ducha assalta 0 Cristo Redentor duran- tea madrugada do Rio de Janeiro, colorindo-o de vermelho por meio de uma folha de gelatina colocada nos holofotes de iluminagéo. A gelatina ali ermanece até que a seguranga do monumento perceba sua presenga e a retire. A midia é avisada e Cristo: -vermelho ganha destaque nos principais sda io de 440 anos da cidade, *s Winter, lumina o Cristo de azul. “Parece que estamos Juntos com o Cristo em uma imensa nuven eelebrou, no jornal, o cardeal, Nonhuma roferéneia a Duchay¢ tampatieo a ¥ves-Klein, eujo gosto (tami bém Interdito na época de sua eaneepgio, O ano dle 1988) de iluminar o “ ‘helisco de azul da Place de la Concorde em Paris é a referéncia mais que Vilente, Entre o inferno e o céu, tal contenda (ou querela para fiearmos ‘WW tradigGes da arte) faz-nos lembrar a eangéo: “Rio 40 graus, cidade ma- ‘ivilha, purgatério da beteza e do caos” Desde entdo o monumento ji re- vebeu varias cores, inclusive o vermelho, Cristo vermelho parece transitar entre as virias concepgées ¢ aborda- fons relacionadas a tradieio escultérica e sua migragio ao campo am. pllado: intervém fisicamente em um monumento e seu lugar infiltra-se gica e criticamente na rede de circuitos discursivos e em diversos “unpos de poder, como nas instituigées (rligiosas, estatais, artisticas) e 'wmidia. Se “piblico” tornou-se o campo midiético no qual a natureza de lin Fito é determinada ¢ legitimada, Ducha realiza a ago buscando ga- ‘epresentagao justamente ai. Se a midia tem poder de conceder valor le verdade, akin de seu protegido circuito? He forma um poueo distinta de Antonio Manuel e Cildo Meireles, que {ntervieram em jormaisnos anos 1970 para confrontar seus “circuitos ideo- \iieos” (expresso emprestada de Cildo Meireles), a intengao de denan. ‘int a centralizagao da opinigo pelo jornal é, no Cristo vermelho, secun- ‘livia. Talvez uma pequena anedota nos fornega algumas indicagdes: um twapo de artistas realizava uma “interferéncia artistica” na rua, quando \im policial, que poderia impedir a “obra’, aproxima-se. Ducha entfo ins- \vul cinicamente o amigo: “qualquer coisa diz que é arte!” Além da clara ‘lus ao lugar-comum de que arte & qualquer coisa que se queira que seja ‘rte Conipoténeia que seria testada longe do universo da arte), a frase dei- uma interrogaglo, A arte preserva ainda o status de ser o espago de uma Nberdlade que ndo aponta para a autoridade absoluta do artista, mas para tine adesio inocente a uma comunidade (estética, artistica), para uma es- P-S}CCSPaM 8 RUtorle, a propriedade das imagens, o dltima fata é também a tina imagomt dice, A iiltima antes da substicuigho pela imagem numérica da tecnoloj digital. © proceso mais desaparece — supde uma conti corpo fotografado, como também encerra sua morte no movimento d luz: se para retratar algo & necessirio que esse algo irradie para in primir na pelicula fotossensivel suas emanagées luminosas, para faze aparecer a imagem é preciso que a luz, por um momento, se apagu: para revelar na cimera escura, Eis 0 paradoxo da alquimia fotogrética ‘como concluiria Philippe Dubois: “o corpo fotograficonasce e morre pela luz” A “fotografia” (analégica), essa “grafia da luz" como diz a palavra deixa um rastro, um vestigio, um corpo tanto matérico como espectral (@exemplo do negativo). A iiltima foto 6 a vida e a morte do corpo fotografico pela luz (que na simbologia cristl é também Deus ¢ sua onividéncia), a morte de uma tec: alégico da fotografia ~ tecnologia que cada v idade fisiea ¢ existencial com nologia, 2 morte do corpo revelado, a morte do indice, a morte da imagem, a morte da foto, a morte da luz. E ainda, se a encarnacio crista é a matriz das visibilidades partilhadas, o que supe realizar a diltima foto, a iltima imagem a partir do Cristo Redentor? Mas o que é a imagem? O que é visi- bilidade? © que é a imagem da arte? Como ela se rende ou resiste aquilo que Marie-José Mondzain chamaria de “mercado das visibilidades”? E a quem pertence a imagem? Aqueles que a fotografaram? A Igreja Catdlica, que cobra pela reprodugio da imagem do Redentor, traindo o principio defendido por ela em séculos de iconofilia, do Verbo encarnado, do ico- ne imagem do Pai como dadiva incondicional 4 humanidade? Dadiva que converteria a Paixio de Cristo na paixéo da imagem oferecida em espe- téculo como uma redengio a imitar, reunindo em si todos os destinos ¢ paixdes em uma iinica fabula—a redeng&o da propria humanidade. “Nossa relagao com a imagem e com as imagens est indiscutivelmente ligada, no pensamento ocidental eristio, ao que funda a nossa liberdade e, simultaneamente, a tudo 0 que pbe em perigo essa liberdade a ponto de destrui-la’ Pensar a imagem é interrogar “o paradoxo de sua insignifi- cAncia e de seus poderes’," afirma Marie-José Mondzain, SOMETEG UOF OMATSE, 6 PCORONNE PrOPris & AiAger, Nalin sere ‘om o meroado atval das visibilidades, sentencia Mondaain, Nao liferagtio das imagens, pelos téenieas modernas de produgito e 10 do imagens, que constitul uma situagho nova, "A presenga da estendem por milénios” 1. o reconhecimento de seus podere ‘eatamos sob a inflagio das imagens em um mundo submerso de coi- ; #jamais a imagem esteve tio ameagada e arrisca-se a desapare- sob o império das vis iagens”? \iauclo 0 comércio dos olhares se transforma na gestio comercial do ave bilidades. H4 cada vez menos i ivel, o mercado dos espetéculos constréi “o império das barbaries fio da imagem condena o olhar e sua liberdade a servidao de snocracias” (neologismo criado por Mondzain), das igrejas & publici- jai, dos Estados autoritérios ao mercado extremamente lucrativo da exten visual, Programar 0 consumo univoco e o consenso de um sen- {ilo 6 destruir a imagem e produzir a idolatria por um poder totalizante. travia-se a possibilidade de uma escolha: no hi palavra, pensamen- 40 ou juizo sobre nossos gostos e afetos. Nao ha a partilha de uma vida em comum. Proposigio 6: 0 invisivel estigma Alice Miceli trabalha com imagens de situagdes trigicas, no limite. Ima- ons de fatos histéricos, como fotografias da Segunda Guerra Mundial, tefletindo, sobretudo, sobre amemeéria ¢ 0 arquivo, a historia e a exclusio, ui finalidade ¢ a catéstrofe. Em Projeto Chernobyl (2007-2009), a artista traduz, em imagens, 2 radiago produzida na zona de exclusao da cidade deserta de Pripyat na Ucrinia, local do acidente radioativo na usina nu- clear, ocorrido em 1986, Para isso desenvolveu, com a ajuda de cientistas do Instituto de Radioprotegao ¢ Dosimetria do Rio de Janeiro e o apoio do Instituto de Radiago Otto Hug de Munique, tecnologias capazes de gravar em pelicula filmica os raios gama. A artista concebeu uma céimera pinhole de chumbo e realizou “autorradiografias’, ao colocar o filme sen- sivel em contato direto com os objetos atingidos pela radiagio, Entrando na drea contaminada para executar o trabalho, “o resultado é uma espé- jomo se existisse a humanidade cie de Santo Sudério’, compara Alice. “Nao € possivel identificar se as imagens vém de um prédio ou de uma drvore, Mas elas tém a forma da respectiva contaminacao” 0 Santo Sudério figura como metifora e origem das imagens aquiro- poéticas™ (nfo feitas pela mio do homem), A mais ¢élebre, 0 Sudério de Turim, fotografado em 1898 por Secondo Pia, surpreenderia a todos quando a face de Cristo apareceu no negativo de vidro. Essa impressio da Face Sagrada no negativo, realizada por um aparelho téenico, seria saudada pelo Vaticano como aparigo milagrosa — a maquina de repro- dugiio mecénica convertia-se assim em instrumento divino, Veiculo e testemunho de uma “revelago” (terminologia comum tanto & retérica religiosa quanto a da fotografia), a imagem técnica assumiria um caréter de autenticidade, prova material e ligacdo mégica com o divino e o invi sivel. A primeira fotografia de um crime, como diria Dubois. Ocorreria ali uma inversGo entre apresentacio e representaco, entre luz e sombra, negativo e positivo, morte e vida. Se 0 Sudério é um negativo do real (0 corpo morto de Cristo), 0 negativo fotogritfico exibe um positive do real negativo (a face de Cristo), a sombra no Sudério transforma-se em luz no negativo, o corpo morto em sinal de vida e ressurreigfo. No projeto de Alice Miceli, nfo somos mais semelhantes a um deus que nos oferecia a face, mas é a matéria radioativa, como um deus invisivel, todavia onipresente e avassalador, que habita aquela paisagem de fim de mundo ¢ imprime as imagens. Essas imagens aquiropoéticas sfio como stigmas invisiveis no corpo da terra que testemunham dissolugdes. NBo ‘mais a natureza ou os deuses, mas homem e sua tecnologia é 0 local de poténcias incontroliveis, de uma capacidade ambigua para transformar indefinidamente a face do mundo, tanto salvé-lo, quanto destrui-lo. Néo mais 0 deus morto e assassinado, mas a consciéncia da finitude do mundo. © comum deixa de ser a obra da histéria para tornar-se a catistrofe plane- téria vivida por todos: da responsabilidade partilhada ao medo coletivo de que as predigdes dos mitos escatolégicos enfim se realizem, -Exatarmenteisso que Poul Klee queria dizer: “Vocts saber, flea _2p0v0" 0 pove falta e ao mesmo tempo nde falta, pore fata, 0 que quer dizer (ndo 6 claro endo o serd nunca) que este afnida- de fundamental entree obra de arte um pove que, todavia, nao ‘existe, ndo de no ser jamais clara. Nao hi obra de arte que do faga um chamado a um povo gue, todavia, nde este Gilles Deleuze, 0 que é ato deeriggt?) iniroduzo este texto com proposigSes artisticas no maior monumento fidade do Rio de Janeiro, o Cristo Redentor, é para explicitar a comple- ile, o deslocamento e a dilatagio de nogdes intrinsecamente interli- romo escultura e campo, lugar e hierarquia, imagem e semelhanga, \inidlade e corpo, dédiva e abandono, alteridade e violéncia, partilha e lusiio, mercado e espeticulo. iv 6 enderegamento, pedido de partitha a/com outro, Ela o chama, lA que 0 ignore, ainda que ele néo responda, ainda que esse outro, esse tulvez nfio exista, Ela solicita o julgamento, o olhar e a palavra, a re- jponna ce seu dom, Como, porém, esperar consenso quando aquilo que ‘he © nome “arte” parece desamparar o pensamento e a sensibilidade? Wy chumar de “arte” essa imprecisdo de uma nomeagio? Ou serd nessa winilo, nesse desamparo, que a arte vem acontecer? Como transitar IW aquilo que tocou minha sensibilidade? Nao sfo a doacéo desse ie ~ em seu desamparo, em seu desconcerto ~ e sua acolhida por um 10 ws condigées de existéncia da arte? A arte é indissociével de uma ‘allo comum, que envolve desde nossas projegées da alteridade is ras vonhadas de (otalidade, Um “nds” que implica e interroga desde a Ao 4 dois até am lade, A propria nogao de humani- em questiio nessa pa sen /mace nve A muitos ow a todos. O imaginario oci- al alimentaria a promesisa de um lago total, uma comunidade univer- ‘perdica na origem ou prometida no futuro, Nio nos faltam paradigmas comunidacle (i farntlia, « patie Atoniense, « Repiblica Romana, a vasta comu ha, © que p ” “

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