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“AANPOCS= fom Ciencias Sask Presidente: Ruben George Oliven (UFRGS) Secretério Executivo: Marcelo Siqueira Ridenti (Unicamp) Secretério Adjunto: Gildo Margal Brandao (USP) Diretores Gliucia Villas Boas (UFRJ) Renato Athias (UFPE) Yan de Souza Carreirio (UFSC) Conselho Fiscal idia Monteiro Borges (UnB) Braz Peixoto da S de Pés-Graduagao e Pesquisa em Ciéncias Sociais Iberto, 315 — 1° andar RUBEN GEORGE OLIVEN MARCELO RIDENTI GILDO MARGAL BRANDAO ORGANIZADORES A CONSTITUIGAO DE 1988 NAVIDA BRASILEIRA FERNANDO LIMONGI BRUNO P.WANDERLEY REIS LUIZ WERNECK VIANNA MARIATEREZA SADER, JOSE RICARDO RAMALHO ROBERTO KANT DE LIMA LENIN PIRES LUCIA EILBAUM SERGIO ADORNO HENRI ACSELRAD JOAO PACHECO DE OLIVEIRA ILKA BOAVENTURA LEITE FULVIA ROSEMBERG ADRIANA VIANNA SERGIO CARRARA RENATO LESSA ADERALDO & ROTHSCHILD EDITORES ANPOCS Sao Paulo, 2008 90 ¢ BRUNO P. WANDERLEY REIS SANTOS, Fabiano (2006) Em defesa do presidencialismo de coali- 240. In: SOARES, Gliucio Ary Dillon & RENNO, Lucio R. (org.). Reforma politica: ligdes da histéria recente. Rio de Janeiro: Ed. FGV, pp. 281-95. ; SANTOS, Wanderley Guilherme dos (1994) Regresso:as méscaras institucionais do liberalismo oligérquico. Rio de Janeiro: Opera Nostra SARTORI, Giovanni (1993) Nem presidencit tarismo. Novos Esiudos, 35, pp. 3-14, margo: (1994) Comparative Constitutional Engincering. NovaYork: NYU Press, SOARES, Gléucio Ary Dillon & RENNO, Lucio R. (2006) Proje- tos de reforma politica na Camara dos Deputados. In: SOARES, léucio Ary Dillon & RENNO, Lucio R. (org.), Reforma poli. ona ca bes da histéria recente. Rio de Janeiro: Ed. FGV, pp. 9-20. SMITH, Rodney A. (2006) Money, Power & Elections: How Campaign Finance Reform Subveris American Democracy. Baton Rouge Louisiana State University Press, 'SEBELIS, George (2002) Véto Players: How Political Institutions Work. Princeton: Princeton University Press. CapiTuLo 3 OTERCEIRO PODER NA CARTA DE 1988 E ATRADIGAO REPUBLICANA: MUDANGA E CONSERVAGAO Luz WerNecx Vianna MA CARACTERISTICA FORTE da Constituigao de 1988 advém do fato de ela ter sua origem no proceso de transi so do regime militar para 0 da democracia politica, nio podendo, portanto, ser compreendida na chave clissica das consti- tuigdes que sucedem movimentos revolucionarios vitoriosos, Bem conhecido também 0 fato de que ela, tal como a de 1946, desconhe- ccu um anteprojeto que servisse de ponto de partida para o trabalho dos legisladores constituintes, pois o Presidente José Samney recusou. © que foi apresentado pela Comissiio Afonso Arinos. Em razo disso, © texto constitucional teve de ser extraido de comissdes tematicas, de composicaio multipartidaria, as quais se delegou a tarefa da ela- boracdo de suas partes, a serem, mais tarde, submetidas a0 crivo de uma comissio de sistematizagao. A marca original de proceder de uma conjuntura de transi¢io politica, vale dizer de uma circunstan- cia que admitia tanto 0 velho como o nove, junta-se, pois, a da nego ciasio, principal recurso para a arquitetura de um texto que deveria comegar do zero. ‘Contudo, apesar de a Assembléia Nacional Constituinte se ter instalado sob a perspectiva do compromisso com os termos da transi- licada desde a lei da anistia, que contemplou os membros do antigo regime e dos que resistiram a ele, mas expressa, sobretudo na eleigao de Tancredo Neves pelo Colégio Eleitoral —, ela consistiu no resultado de processos de mobilizaciio de massas sem paralelo na io — 92 @ LUIZ WERNECK VIANNA hist6ria do pais, que, iniciados nas greves operarias de fins dos anos 1970, encontraram seu auge nas lutas pelo movimento das “Diretas Ja”, Nao a toa, ao se iniciarem os trabalhos da Constituinte, essa mobilizagao ainda ccoa nos milhares de iniciativas de leis provindas de organizagdes da sociedade civil que lhe so cnviadas no propdsito de influirna legi que setiio consagradas no texto c As tiltimas ondas dessa mobilizagio, reativadas entio pelo apoio popular ao Plano Cruzado, também se fazem presentes nas eleicgdes. congressuais de 1986, quando os partidos politicos que representa ram a resisténcia ao autoritarismo elegem expressivas bancadas, boa parte delas comprometidas com uma agenda efetiva de mudanga social. Instalada a Constituinte, o cenério da transigdo se transfere ara o seu interior, sempre sob o registro da negociacao, importan- do limites, como exemplarmente na questo agraria, para inovagSes de alcance social. Nesse contexto, parece plausivel que os constituintes identificados com as aspiragdes por mudangas substantivas, a0 se defrontarem com a opiniao conservadora presente na composicaio da Assembléia, tenham buscado uma estratégia nova, ancorada com firmeza em uma ampla ¢ compreensiva declaragao dos direitos fun damentais (Werneck Vianna et al, 1999, p. 40). Essa estratégia dependia da criagdo de instrumentos institucionais que abrissem a oportunidade para que aqueles direitos encontrassem, confirmagao fatica, cvitando-se a reiteraco da experiéncia constitu- cional brasileira que os restringia ao plano de fangSes meramente simbélicas. A descoberta dese caminho, em meio aos trabalhos cons~ tituintes, decerto que obra de juristas especializados em direito consti- tucional, alguns deles exercendo papel de assessores de influentes Parlamentares, sera o embriéio de uma verdadeira mutago institucional na relacdo entre os trés Poderes ena da sociedade com o Poder Judicis- tio. A tal caminho niio se chega como um raio em dia de céu azul — alei que dispés sobre a acio civil piblica, de 1985, na aurora da de~ mocratizagao do pais, ja cescortinara amplas possibilidades para que © dircito, suas instituisdes e procedimentos viessem a se tornar ins- trumentos de animagio da vida republicana (Watanabe, 2 Edis Milaré, em coleténea jé clissica sobre a ago civil publ Pontua com forca o seu papel transformador, principalmente por ter alargado “as fronteiras dos direitos da sociedade civi ediant © TERCEIRO PODER NA CARTA DE 1988 ¢ 93 ciativas e procedimentos que, mais do que juridicos ¢ processuais, foram socialmente pedagégicos, porquanto despertaram mais ¢ mais a consciéncia da cidadania e desencadearam processos participativos osientados a defesa do patriménio coletivo e da sadia qualidade de vida dos cidadios” (Milaré, 2001, p. 9). # o mesmo autor que, a0 se referirdo contexto de nascimento da agao civil publica, anota a emer- géncia de novos papéis a serem desempenhados pelo direito, seus procedimentos ¢ instituigdes em uma sociedade “que nao havia ain- dase libertado do chamado ‘entulho autoritério’ [. . .] em que ndo apenas os interesses difusos, coletives ou transindividuais eram desconsiderados ou minimizados, mas, dolorosamente, nem os inte- resses individuais eram levados na devida conta” (Ibidem). ‘Contuds, para além de uma circunstancia datada, 0 novo orde- namento juridico visava mobilizar a cidadania para a participagao em defesa dos seus direitos ¢ implicava uma velada descren¢a quan- to &s instituigdes da democracia representativa no sentido de virem a animar a vida republicana. Entre 0s juristas, 0 diagnéstico de Milaré 0 de muitos: “é necessdrio reconhecer que tanto 0 ordenamento juridico nacional tem muito caminho por fazer, como também o sistema politico inspirado no ideal democratico ainda é frigil e tem, por seu turno, muitos percalgos a vencer™ (Ibidem) ‘A chamada revolucio processual do Direito, que comegas de fato, no contexto dos movimentos por direitos civis ¢ dos conti sociais nos BUA dos anos 1960, encontra um dos seus princip: momentos de fundagdo na reforma de 1966 das Federal Rules of Ci Procedure, texto legal de 1938, institucionalizando as class actions como instrumento de tutela dos direitos coletivos (Hensler et al, 2000). Recepcionada por um grupo de teéricos italianos, entre os quais Mauro Cappelletti, destinado ase tornar uma grande referén- cia na reflexao brasileira, ela logo se espraia pelo Ocidente, e, se~ gundo Antonio Gidi (Gidi, 2008), teria encontrado, entre os paises de civil laze, implantacao pioneira no Brasil, sob a designagio de agi civil piblica. As class actions, na medida em que abrem espago para que direitos coletivos ganhem legitimidade no Poder Judiciario afim de que cidadaos possam se defender de agGes do Estado ou de empresas, implicam a criagdo de uma nova arena de participacao, cujo territ6rio, conquanto seja externo & arena clissica da democra- cia representativa, nasce com a vocagio de intervir em matéria de 94 ¢ LUIZ WERNECK VIANNA politicas ptiblicas. Nesse sentido, reclamam, de um lado, a admissao de papéis politicos a serem desempenhados pelo sisterna da Justica, iso do accesso a ele pelos cidadios que podem ticipasiio na vida publica. da Constituinte, esse novo ié parte da experiéncia vitoriosa da institucionalizagao, il publica, e do que ela traz consigo de novas concepgdes, @ respeito das relagdes entre a pol Paulo Bonavides, ao sustentar que a democracia representativa na América Latina nfo seria capaz de manter os titulares no poder iden- tificades com os interesses da cidadania, expressa a posi¢fo comum dos constitucionalis 10s da fragao dos legisladores da As- de 1986 favoraveis & agenda da mudanga social. Em sua avaliago, “a velha democracia representativa j4 se nos afigura em grande parte como perempta”, destituida da capacidade de fazer da Constituisio 0 instrumento da vontade nacional e popular (Bonavides, 1993 — grifado no original). Nesse sentido, o movimento de idéias que encontrara a sua oportunidade na claboragao da ago civil pui- blica, amplifica, no terreno decisivo da Constituinte, a sua influén- cia. Animando e ancorando esse movimento, 0s fatos recentes da democratizagdo da Ibéria européia, com a promulgagao da Consti- tuicio portuguesa, em 1976, ¢ da espanhola, em 1978, sobretudo a primeira, que vai encontrar larga audiéncia nos circulos da intell- sentsia especializada na doutrina constitucional, Nascidas de sociedades que retomavam, depois de décadas de regimes autoritarios, o caminho democrético, essas duas Constitui- 98es confirmam e desenvolvem o constitucionalismo democratico ‘que se afirmou nos pafses europeus apés a vitéria sobre o nazi-fas- cismo, especialmente na Alemanha, Franga ¢ Itélia, sob influéncia da Declaracio dos Direitos do Homem, de 1948. Nessa construgio, limita-se a vontade do poder soberano e das maiorias que os instituem. pela vontade geral que se faria expressar nos principios e direitos fundamentais admitidos pelas Cartas constitucionais. Os atos legisla~ tivos do poder politico tornam-se, entio, passiveis de escrutinio, em. nome da defesa dos direitos fundamentais, por uma corte constitucio- nal dotada da capacidade de declaré-los, quando provocada por uma agio de um agente social, como contririos a esses direitos, impedindo a sua concretizagao. O judicial reviews, uma experiéncia © TERCEIRO PODER NA CARTA DE 1988 + 95 americana, se generaliza no Ocidente euro dimensdes, a do Judi ico, que uma longa tradigdio de hegemonia do positivismo juridico manteve duramente afastadas, como exemplar na obra de Max Weber. ‘De passagem, nao se pode deixar de anotar que essa mutagao no sistema da ordem republicana, ao sujeitara regra da maioria a6 crivo de uma razio de estatuto superior a sua, tem seu transito em mo- mento coincidente com a afirmag’o do Estado de Bem-Estar, de inspiracdo keynesiana, e que se propunha a instituir um capitalismo organizado, Para esse fim, a modelagem do Welfare State implicava, além de atuar sobre o comportamento das variéveis-chave da econo- mia, regular o social, como nas matérias previdencisrias, de satide, de assisténcia familiar, projetos habitacionais, etc. Tal regulag&o, como inevitavel, significou nao s6 a ultrapassagem do Poder Legislative pelo Executive, que detinha a pericia e a informago para intervie a tempo em matérias dessa complexidade, como também trouxe mundo do direito, suas instituigdes e procedimentos para o interior da administragao piblica. As décadas imediatamente subseqiientes 20 segundo pés-guerra assistem ao fastigio das concep¢des do constitucionalismo democra- tico edo Welfare State. A Franga — onde, por forga da tradigao que Ihe vinha de 1789, era maior a resistencia a que a vontade da maioria pudesse ser revista por um corpo externo representagio do sobera~ no — passa, a partir dos anos 1970, a legitimar a nova po! é consagrada na deciso do Conselho Gonstitucional de 23 de agos- to de 1985, ao declarar que “a lei votada somente exprime a vontade geral quando conforme & Constituigao” (Rousseau, 1997, p.39). Des- de ai, 0 proceso do judicial review nao somente se amplia como se generaliza nos paises de democracia avangada, atingindo, inclusive, a Inglaterra, pais que mais resistiu a ele no Ocidente europeu. De poder isolado em sua autonomia institucional, o Judiciétio passa a ncorporado como novo ator na expresso da vontade soberana. O Welfare State conhecew uma trajetoria mais acidentada, refuta~ do pelo neoliberalismo emergente nos anos 1970, emboraa sua crise, ainda em curso, tenha produzido efeitos de largo alcance nas rela~ Ges entre a politica eo sistema da justica. O desmonte da instituciona- lidade do seu regime de administragao do social, coincidente com a desregulamentaciio do mundo dos direitos, iré produzir uma massa 96 ¢ LUIZ WERNECK VIANNA de individuos expostos as variagdes da logica do mercado, desampa- rados de qualquer sistema de protegao. Cumulativamente a essa per- dia, instituigdes cruciais para a defesa ¢ a aquisi¢ao de direitos, como 08 partidos politicos e os sindicatos, a vida associativa em geral, perdem representaco e muito da sua forca tradicional. A propria Politica enquanto atividade organizadora do social se vé ultrapassa- da pelas concepgies do mundo com origem nas dimensdes do mer- cado e da economia, em um retomo sem precedentes ao fundamen- talismo utilitarista. Ficara, porém, de pé a imensa malha judiciaria que o regime do welfare instituira , com ela, uma nova cultura entre 08 juizes que tinham sido antes mobilizados pata a imersdo na vida social sob a égide do capitalismo organizado. O descrédito da representagao politica resultante da hegemonia neoliberal trard consigo a emergéncia da representago funcional. O lugar vazio do Estado do Bem-Estar sera ocupado pelas instituigdes da Justica, muro de lamentagdes da cena contemporanea, na metifo- ra de A. Garapon (1999). Os individuos desprotegidos na ordem neoliberal, sem conhecer canais visiveis no sistema politico a que Possam ter acesso para suas demandas, acorrem ao juiz. De modo dito, 0 tema do acesso a Justica se torna obrigatério na agenda politica, vendo-se o Judiciatio investido de uma capilaridade sem Paralelo na histéria do Ocidente, processo robustecido por uma le gislas8o que jurisdiciona quase todos os aspectos da vida social, da familia a escola, da cidade a0 meio ambiente, em um contexto de Partidos ¢ sindicatos debilitados e de um Estado que procura se desonerar de obrigages sociais. ‘Tais mutagdes societais de largo alcance, sempre sinalizando Para admissao do papel do dircito, suas instituigées e procedimen. tos na politica e nas relagdes sociais, nao serio indiferentes a teoria constitucional, tal como se evidenciou nas Cartas promulgadas na esteira da democratizagao da Ibéria curopéia, A inovacaio radical, de inspiragfo germanica, foi animada pela intengao de ultrapassar constitucionalismo liberal, marcado pela defesa do individualism racional, por um constitucionalismo societdrio ¢ comunititio, que, segundo P. Hiiberle, compreende a Constituigsio como a“sociedade mesma constituida” (Haberle, 1997, p. 38). Nessa concep¢ao, rom. Pe-se com a tradigGo liberal da Constituisdio enquanto sistema fe- Chaco, orientado a garantir a autonomia privada, entendendo-a como (© TERCEIRO PODER NA CARTA DE 1988 ¢ 97 obra aberta em que se devem realizar, em uma democracia de cida- dios, 08 valores da igualdade e da dignidade humanas.' Presentes ecos rousseunianos e da democracia radical do Marx de 1843 —“a Constituigao é 0 povo” —, tal modelagem supde um. individuo civicamente virtuoso em uma sociedade que realizou de forma feliz sua hist6ria institucional e se dotou da capacidade de se construir pela livre deliberasiio dos seus cidadaos. A recepeiio brasi- Ieira da Constituicdo como obra aberta, tal como sugerido por Pau- Jo Bonavides (1996), nao ignora os constrangimentos que lhe sio impostos pela natureza da sociedade: “para a eficaz aplicagio [da Constituisto aberta], a presenga de sdlido consenso democritico, base social estavel, pressupostos institucionais firmes, cultura politi- ca bastante ampliada e desenvolvida, fatores, sem dtivida, dificeis de achar nes sistemas politicos € sociais de nagdes subdesenvolvidas ou em desenvolvimento”. Como escrevi, em outra oportunidade, a recepeao da teoria de P. Hiberle pelo constitucionalismo brasileiro, supondo uma prévia de- mocracia de cidadlaos, nao poderia partir dos valores e principios de organizacio da suia sociedade, “historicamente carente de mentali- dade civica e de cultura politica democritica” (Werneck Vianna ct al., 1999, p. 40). Essa falta deveria ser suprida pelos valores e princi- pios da igualdade ¢ da dignidade humanas, que conformariam 0 patriménio cultural do Ocidente, a serem positivados no seu direito ‘constitucional na declaracao dos seus direitos fundamentais. Tal como na Constituigdo portuguesa, adota-se a formula comunitarista, na designacio de Gisele Cittadino, entendendo-se que os direitos fun- damentais, dizendo respeito aos individuos, os transcenderiam, tra~ duzindo a vontade geral da sociedade quanto aos fins que deveriam ser buscados € concretizados (Andrade, 1983, p. 144) A concretizacio dos direitos fundamentais — expresstio da von- tade geral — se apresentaria como obra aberta as futuras geragdes. Desconfiado, porém, do legislador ordindrio e do sistema da repre- sentacio politica, 0 constituinte teré dotado a sociedade de instru- mentos procedimentais que Ihe permitissem agir para garantir a efi- cacia daqueles direitos. Cittadino (1999, p. 9) vai ao ponto: “é, portanto, pela via da participagao politico-juridica [. . .] que se pro~ cessa a interligaciio entre os direitos fundamentais e a democracia participativa”, Na mesma linha de argumentagdo, Bonavides (1993, 98 @ Luiz WERNECK VIANNA Pp. 9-10) vai além, ao preconizar a “politizagéio da juridicidade cons ttucional dos trés Poderes”, transferindo-se “ao arbitrio do povo” lonamento dos mecanismos de governo. Assim, se o legislador est vinculado constitucionalmente aos direitos fundamentals, que so direitos de eficdcia imediata, cabe a sociedade, por meio dos mecanismos institucionais estabelecidos, ao lado dos atores da re Presentacio politica ou scm eles, Iutar por sua aplicabilidade. Ao aderir a esse movimento, a Carta de 1988 realiza uma sur- Preendente confirmagdo da tadico republicana brasileira, que, ain ‘da nos anos 1930, recobrira duas dimensées cruciais 4 modemidade — © mercadlo politico ¢ mercado de trabalho — com o direito, Suas instituigSes ¢ procedimentos, por meio da etiago da Justiga Eleitoral e da Justica doTrabaiho. Decerto que a leitura critica desta tradigao, situada em um tempo democratico, teré como alvo a erradi- caczo daquela cultura politica autoritaria, como exemplar na legislagdo sobre o mundo do trabalho que vinculava os sindicatos a0 Fstado. Nisso, ela sera claramente descontinua & tradig%o republican, mas, mi suas inovagdes institucionais, optard por uma inequivoca linha de continuidade com ela. Continua também em seu diagnéstico cético quanto as possibi- idades de as instituigdes da representagio politica, em pais so- Cialmente desigual, sem historia de auto-organizagio e carente de sedimentacao das virtudes civicas, serem capaves, por si sés, de con. duzirem a sociedade em direco aos ideais da justia social. Notem. Se: aqui, as areas de vizinhanga das interpretagdes do constituinte com as que nos vém da hora remota de consolidagiio do nosso Esta, do-nagao, como as de Visconde do Uruguai, que opunha o primado do piblico ¢ do Direito Administrativo aos ideais do self government ara os fins da formagao de uma cultura civica no Brasil sociedade naturalmente desarticulada, o Estado deveria inve do papel de agente pedagégico na socializagao das virmudes da cida. Jania, razGes a serem reiteradas, na terceira década do século XX, 20t Oliveira Viana ao justificar a legislacdo sindicale trabalhista que ¢nto tomava forma, Em 1988, 0 constituinte recusa 0 caminho de uma Carta limite- s. Ble parte de uma interpre- acdo do Brasil, em fungdo da qual determina um programa substan. (© TERGEIRO PODER NA CARTA DR L988 # 99 tivo a ser perseguido pela coletividade, tal como nos incisos do art. 3.°do titulo que trata dos principios fandamentais que devem nortear ‘08 objetivos da Reptiblica: construir uma sociedade justa e solidérias garantir 0 desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a margi- nalizacio ¢ reduzit as desigualdades sociais e regionais; promovero bem de todos, sem preconceitos de origem, raga, sexo, cor, idade e ‘quaisquer outras formas de discriminagio, ACon: (0 visa, pois, o futuro ¢ se empenha programatica- mente, a0 definir os direitos sociais, no terreno das politicas publicas, A jurisdicizacao desses direitos vincula o legislador ordinario aos seus comandos, cabendo a sociedade provocar o Judicidrio, mediante novos institutos criados pela Const para garantir sua aplica- bilidade, Nesse preciso sentido, a j izacio da politica se apresen- tw, entre nés, como uma derivagao da vontade do constituinte, a0 mobilizar 0 medium do direito como recurso da sua engenharia a fim de tornar vidvel a sua concep¢do de constituicao como obra aberta. Em tese, o Mandado de Injungio e a Agdo Direta de Inconsti- tucionalidade por Omissio consistiram nos instrumentos mais for- tes previstos para conferir aplicabilidade & norma constitucional por- tadiora de direitos ¢ iberdades ¢ das pretrogativas inerentes a cidadania, deixados inertes em virtude de auséncia de regulamentaciio. Por meio deles, estaria disponivel & sociedade quer pela iniciativa de qualquer cidadao —no caso do Mandado de Injungo—, quer pela iniciativa da comunidade de intérpretes da Constituiga0 — no caso da Agio Direta de Inconstitucionalidade por Omissdio— o recurso ao Judi- ciario, a fim de encontrar remédio para uma eventual omissiio do poder ptiblico quanto aos direitos que Ihe foram outorgados const tucionalmente, Com essa construgio, 0 constituinte, pela mediagio da sociedade, procurava impedir que as normas e garantias dispostas na Carta se revestissem de carter simbélico, uma vez que as decla- rara, no pardgrafo 1.° do artigo 5.°, no titulo que trata dos direitos fandamentais, como de aplicacdo imediata (Silva, 1997). Promulgada a Constituicio, as expectativas contidas nesses dois cruciais artigos esbarraram nos vértices institucionais do Poder Ju- diciério, cuja manifestacao foi de molde a desencorajar o caminho aberto por eles, sobretudo por avaliar que no Ihe cabia exercer papéis que o aproximariam da figura, que temia, do juiz legislador® Sem a adesio do Judiciério, se frustra uma das principais vias para a 100 Luiz WERNECK VIANNA soecretizacio da Constinuisao como obra aberta, Mas outras inovar Seegeam melhor sorte, especialmente as que redefiniram o papel Go Ministério Pablico na vida republicana e as que se dedicatan a democratizagio do acesso A Justiga com a criagdo de Defensoria Piiblica e dos Juizados de Pequenas Causas, denominados, posterior. mneate, de Juizados Especiais. Destino imprevisto, explicivel talver Pela conjuntura politica da época, tiveram as Agdes Diretas dc Inconstitucionalidade — instrumento de uso corrente, hoje, de parti. os politicos ¢ organizacdes saciais, canto as de wabalhaderes cane, ‘as cmpresariais. A nova formula constitucional do Ministério Pablico ser4, tal ieee sloqtiente da operacso intelectual do constituinte, indisponiveis, ao converté-lo em instituigdo acessivel as demanciay da sociedad. Com efsto, o papel estratégico reservado ao Miners Ho Publico na ordem democritica significa uma clara opgio pela nerspectiva que balizou a intengao do legislador, a de consincan. Serconthuwando, & medida que, com isso, pretendeu valorizar x eore, Henatte funcional. A representagao funcional, como indicade enfa, Hcamente pela bibliografia, foi forma dominante na modernivagao autoritiria do pais no periodo 1930-45 — no Estaco Novo, excleet Tye nde Passado a cocxisir, em papel xelevante, coma represen, cen, politica a partir do retomo & ordem democrética, em 1045, ea nano ilustra a histéria do PTB, um partide politico nascido de ox, ‘trutura corporativa sindical, Com esse nove Ministério Paiblico, ao qual a Carta “deferia magento C.« -] inédita na histéria do Brasil ede dificil paralele Ge gitette comparada” (Mendes, Coetho & Branco, 2008, » 990), rocieclade conguista um intérpreteprivilegiado, comofin ache aeeuctetizacio dos principios ¢ direitos fundamentais previstos na Soc cao; omn0 0 iré demonstrar a sua pratica no exercicie das Astes Civis Piblicas, reveladora das tens6es e também de eeaenn rch uag&ecs entre as duas formas de representagao, a politicn e uuncional (Casagrande, 2008), i i No controle da constitucionalidade das teis, outro mo, rusialnatomada de desis do legs de 198% sagen © TERCEIRO PODER NA CARTA DE 1988 ¢ 101 funcional & admitida como parte legitima, clevadas 4 comunidade de intérpretes, entre outros agentes politicos e sociais, as confederasées sindicais. Aos sindicatos atribui-se ainda legitimidade para serem autores das Agdes Civis Puiblicas e dos Mandados de Seguranca Coletivos a fim de interpelarem preceitos constitucionais, “o que implicou destinar parte da sua atividade institucional ao Poder Judici- rio, coptrariando a experiéncia que nos vinha dos anos 30, em que a participacao sindical searticulava exclusivamente com o Executivo ou com um ramo daquele Poder especializado na sua jurisdigiio, 0 Jadicidrio Trabalhista” (Werneck Vianna & Burgos, 2002,p. 385). De uma perspectiva mais ampla, 0 continuar-descontinuando da Carta de 1988 se expressa na operagio que faz do direito a sua principal referéncia ético-pedagégica. O componente autoritirio dessa tradigo, entre outros tracos caracteristicos, foi o de associar entes da representagao funcional, como os sindicatos ¢ o Ministério Pa- blico, a malha do Estado, concebendo os primeiros — lugar de vida associativa regulada pelo Dircito do Trabalho e por um ramo pré- prio do Judicidrio — como correia de transmissdo a solidarizat 0 mundo do trabalho ao Estado, instancia definidora dos objetivos es- tratégicos nacionais, e 0 segundo, o Ministério Pablico, como ins trumento legal de imposicao da sua vontade. A Carta de 1988 inver- te esse circuito: a sociedade nao est vinculada ao Estado ¢ a sua interpretaco dos ideais civilizatorios, mas aos principios c direitos fandamentais declarados pelo constituinte como a expresso da von tade geral, passiveis de concretizacio por parte da cidadania pela via do direito, suas instituigdes ¢ procedimentos. A representasiio funcio- nal muda seu centro de gravidade, do Estado para a sociedade, que, pela sua atividade e a partir de suas organizagées, passa a ter 0 poder de mobilizar, para se defender ou adquirir novos direitos, o inventi- tio de valores positivado na Constituigao. Sob essa formatacio democratica, a tepresentagio funcional — nela compreendido, por definicAo, o Poder Judiciério—, problematiza a questiio clissica da sobcrania, Esse certius, embora limitado a uma fungdo técnica ¢ apesar de no ancorado no voto nem submetido 20 controle dos elcitores, é chamado a exercer, pelo sistema da Constitui- 40 brasileira, a representapo dos principios ¢ dos direitos fandamen- tais do corpo politico, vale dizer, da filosofia neles positivada.® Assim, nesse poder de natureza especial, o povo soberano pode invocar 0 102 ¢ Luiz WERNECK VIANNA 0s Poderes delegados a0 Executivo ¢ ao Legislative “estranh metapoder (que x colina mestrado execeidasoharane a clegante andlise de M. Gauchet (1995, p.276). Parag a ” © Judiciério deveria tomar-se uma arena de fato da dem Sage Patticipativa, capilarmente aberta a sociedade, garantidora e via de concretizaséo dos amplos dircitos nela previstos A modelagem constitucional como obra aberta, requeria, entre Guisos fatores relevantes, um Poder Judiciério de culture juridica moderna, dgil e preparado para a massificacao da litigasao, que ela Pressupunha, 20 lado de uma sociedade minimamente mmrarvecns brasileira, ficou a ampliagio, tendéncia que aparenta nao conhe Recut e Politica e ngs. relagdes sociais. Tal tendéncia natureza, deveria ser. ‘estranha a ela, como corre com a prolifera “eveste da forma dos tribunais, e tem encontrado a sua iad inch in sonfirmagio nas a¢Ges civis publicas que visam intervir no 4 ito das acces. /governamentais, serena us Tria politica. No cou caso, civersamente, intentarseae aan uma democracia de cidadaos. Nos dois momentos, a mesma dae Pnieleapdhaalie a pre Pdsito dos estadistas do Estado a “3 tornar uma. republi “a democratica ¢ social, na inten- © do constituinte de 88. Os efeitos inesperados da sua agao, que mee ° condio ‘de estimular 9 ‘Processo de. judicializacao da socie~ dentais, nao se podendo tesponsabilizar para a emergéncia de tal © TERCEIRO PODER NA CARTA DE 1988 ¢ 103 fendmeno um suposto ativismo do Poder Judiciario. Longe de ter suas raizes na a¢ao do juiz, ele deriva da obra do legislador, primei- ro, do constituinte, depois, do legisiador ordinstio. Promulgada a Carta, democratizado o pais, a representacdo po- litica vai defrontar-se com uma sociedade, finalmente livre em seus movimentos, que passara pela experiéncia de duas décadas de inten- sa modernizacdo econdmica ¢ social em situagao de imobilidade politica e de depauperamento da sua vida associativa. A sociabilida- ‘de que entéio emerge nao mantém vinculos com as instituigdes republi- canas, em especial com os partidos politicos, ¢ vai se achar limitada ‘em seus movimentos pelo esvaziamento da vida sindical. Dissociada, sem conhecer formas de socializagio orientadas para ages na esfera publica, a multidio de homens comuns, portadora de novos interes- ses ¢ expectativas de dircitos, nao tem como reconhecer na vida republicana, lugar novo que agora Ihe é facultado, as instituigdes que possam atender a urgéncia da sua larga agenda de pretensdes. Em particular, porque, logo que a nova Carta entra em vigor, tem inicio a campanha neoliberal, vitoriosa na sucessdo presidencial de 1989, que contestava o seu programa social. Nao por acaso, desde ai, a “oferta” dos novos institutos nela disciplinados vai encontrar uma vigorosa demanda, tanto nas Agdes Diretas de Inconstitucio- nalidade de lei, um dos recursos com que a sociedade organizada pretendeu enfrentar as reformas neoliberais entao em pleno curso, como nas ages civis piiblicas enas ages populares. Para esse resulta do, concorreram, significativamente, 0 Ministério Publico, expedito no exercicio dos seus novos papéis constitucionais, dando vida as AsGes Civis Pablicas, a forte afluéncia da populagio aos Juizados Especiais em defesa dos seus interesses contra empresas e o Estado, levando a que se concedesse ao tema do acesso & Justiga um lugar relevante na formulacio de politicas ptiblicas (Werneck Vianna & Burgos, 2002, 2005). Sob essas circunsténcias, o sistema da Justica, seus juizes e de- mais agentes, entre os quais os defensores publicos, passam a cum- prir funcées de engenheiro social ou de terapeuta, quando nao o de prestadores de servicos de cidadania, como nos casos dos Juizes das Varas de Infancia e Juventude ¢ das caravanas volantes dos Juizados Especiais no hinterland do pais. Escora de protesao para uma socie- dade que destituiu, contra a sua propria Constituigio, 0 piblico e 104 @ Lurz WERNECK VIANNA dleprimiu os ideais e as priticas republicanas em favor do mereado, © Judiciario brasileiro, malgrado sua histéria c vocacdo de insulamento institucional, se vé identificado como um substituto funcional do Bstado do Bem-Estar, identificagiio que chega a se manifestar até nos pleitos judiciais por remédios para certas doengas crdnicas nos conflitos detivados dos planos de saiide. Por sua parte, a reagéo do Legislativo as reformas neoliberais assumiu o mesmo sentido da obra constitucional, ampliando ¢ aprofundando 0 proceso de juridificaco que nela se fazia presente. Se a sociedade nao contaria com o sistema de protegiio do Welfare ‘State, ¢ nfo encontrava, por forga da sua fragmentagao, instramentos proprios de defesa na vida partidaria ¢ sindical, o legistador estende a cla, t6pica ¢ tematicamente, uma rede de protegio. O garante, em ‘iltima insténcia, dessa rede sera, por inicigtiva da representagao po ica, a institucionalidade da representagio funcional. B 0 proprio legislador, portanto, quem confirma o Judiciirio no seu papel de equivalente funcional do “welfare” Assim, em 1989, cria-se a lei que trata da protegdo aos portado- 2s de deficigncia fisica ¢ a que pde sob tutela jurisdicional os inte~ resses dos investidores do mercado de valores mobiliarios; em 1990, © crucial Cédigo de Defesa do Consumidor, que nao s6 levou 2 ampliagdo do uso das AgSes Civis Puiblicas como potencializou a forsa do Ministério Publico, ao dispor, em seu artigo 113, paragrafo 6.°, que esse agente institucional poder “tomar dos interessados compromisso de ajustamento de sua conduta as exigéncias legais, mediante cominagies, que teré eficacia de titulo extrajudicial”, con. vertendo-o, portanto, em uma arena complementar ao Judicirio; ainda em 1990, o Estanuto da Crianga ¢ do Adolescente e a Lei (Organica da Sade; em 1993, a Lei de Protecao ao Idoso e a Prote- so das Minorias Btnicas. Seguem-se a essas a Lei das Aguas, em 1997, a que regulou os Planos Privados de Satide, em 1998, 0 Esta- tuto da Cidade, em 2001 ¢ 0 do Tdoso, em 2003. O Estatuto da Cidade teve seu alcance alargado com a regulasio do usucapiao urbano pelo novo Cédigo Civil, de 2002, com o que difundiu o mundo do direito na vida popular das favelas. A projecao do papel do Judicisrio na vida social ainda se torna mais compreensiva com as leis que vaio tratar dos temas da improbi- dade ad:ninistrativa, em 1992, ¢ da responsabilidade fiscal, em 2000, © TERCFIRO PODER Na GaRTA DE 1988 # 105 incorporando o controle da Administrag’o Publica ao sistema de protegio dos interesses difusos e coletivos. Com isso, faculta-se & sociedade 0 exercicio do controle sobre atos da Administrasa0, quer pelas vias da Agio Civil Publica, quer pelas das Ages Populares. sca poderosa malha que recobre a sociedade quase inteira, ¢s- timulando a ampliag’o dos mecanismos da representagdo funcional ¢ facilitando a cidadania 0 acesso a ela — exemplares disso a afirma- 80 institucional da Defensoria Pablica e a proliferacdo dos Juizados Especiais —, além de resultar na legitimaga da judicializagao da politica, tem ensejado a apari¢ao de um personagem novo na cena republicana: as associagées de magistrados. Essas associagdes, em particular a Associagiio dos Magistrados Brasileiros (AME), antes meras instancias de demandas corporativas, crescentemente se com- portam como mais um ator da esfera politica, visando atuar direta~ mente no debate sobre a formagko da opinigo publica, no que jé rivalizam com a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), por déca- das o canal mais expressivo da opiniio das profissdes juridicas. Exem- plo disso, dentre outros, é a atual campanha promovida pela AMB em favor do principio da moralidade como critério obrigatério a fim de conceder registro aos candidatos a representagao politica. Essa inédita emergéncia do Poder Judiciario nao se tem feito sem problemas. Em primeiro lugar, na forma do que se tem sus- tentado, porque essa emergéncia nao resulta da sua obra, mas do Jegislador. Foi ele quem, ao sentir a erosao do espago republicano, confiou a defesa dos interesses e direitos aos diretamente envolvidos, pondo-Ihes & disposi¢o instrumentos juridicos, a fim de que pu- dessem exercité-la. Em segundo lugar, porque foi exposto a pratica do novo texto constitucional em questdes altamente sensiveis, como as que envolveram o chamado processo de privatizagaio de empresas, estatais. Nem o magistrado, nem a sociedade estavam preparados para mudanga de tal envergadura. Contudo, apés vinte anos de ex- periéncia, quer com origem no vértice do sistema, quer no magistra- do singular, se foram sedimentando decisées ¢ interpretagSes que vieram a conformar o Judiciério como um novo ator da politica brasileira. ‘Areagio a essa presenga do Judicisrio, incémoda, sobrerudo em matérias econémico-financeiras, achou seu mote na dentincia de sua pesada e antiquada estrutura burocritica e da inaceitavel morosida 106 @ LUIZ WERNECK VIANNA de do seu processo decisério, agravada pela revelagio de casos de conrupcdo entre magistrados, culminando, apés intensa campanha, na aprovacdo da Emenda Constitucional de n.° 45, que disciplinou o controle externo da magistratura, Entre os efeitos jé conhecidos da nova lei, desde os positives, como maior racionalizacdo da adminis~ trasdo do sistema judiciério, o mais inquietante tem sido o da impo- si¢ao do primado do seu vértice, em particular o Supremo Tribunal Federal, cujo presidente também preside o Conselho Nacional de Justisa, © o Superior Tribunal de Justica, sobre a base da magistratu- rasingular, com ébvias repercussées sobre a ctiatividade interpretativa do sistema como um todo.* ‘Se uma das expectativas da emenda constitucional era ade que os tribunais superiores manifestassem maior moderagao em face do poder politico, ao menos até aqui ela se frustrou. O STF chegou a conhecer agSes, cujo objeto dizia respeito a questes regimentais do Poder Legislativo, ¢ recentes decisées do Tribunal Superior Eleitoral ‘mal disfaream a presenga de um juiz legislador. Aiém da sua desenvol- tura na assungao de papéis politicos, ocupando lugares vazios deixa~ dos pelo Legislativo, 0 STF se tem comportado como uma agéncia de legitimacao da judicializagio da politica, tal como se atesta nos seus julgamentos de AgGes Diretas de Inconstitucionalidade.* ‘De outra parte, a atual magistratura se vem tornando mais responsiva diante de questdes sociais com as quais se vé confronts da — os casos de Agées Civis Publicas stio exemplares disso. E no or acaso se volta a falar que a nova cultura juridico-politica de que € portadora, filla direta da filosofia da Carta de 88, sustentada, no que The é essencial, por suas associagécs, estaria atentando con. ‘tra o principio da certeza juridica em nome de uma justica de cédi A renovacao da bibliografia, o intercambio crescente com a ma- gistratura de outros paises, a valorizagio da pés-graduagdo entre seus quadros, so outros indicadores de mudangas no perfil da corporagao. A Defensoria Publica, que somente agora tem conhecido plena institucionalizagdo, tende a estimutar, em razio das relagaes capila- Tes que mantém com os setores subalternos, a legitimagao entre eles da cultura politica expressa na Constituigio, como evidente em suas agdes nos movimentos quilombolas, nas hitas pelo solo urbano das PopulacGes faveladas ¢ no tema dos direitos humanos. Uma vez que © TERCEIRO PODER Na CaRTA DE 1988 ¢ 107 sua agenda institucional, em muitos casos, se confunde a do Ministério Publico, agéncia historicamente mais enraizada, é dese esperar que cle, a fim de imprimir um carter distinto & coxporasio, desenvolva uma linha afirmativa em suas relages com a sociedade. A modelagem do constituinte se consolida: a carta de direitos que estipulou se encontra com os atores ¢ 0s institutos criados para Ihe m eficacia. oe died presenga do Judicidrio, entretanto, nao tem motivado reagies da representagao politica, boa parte dela, & direita ¢ a es~ querda, com tradigio de recorrer a cle nas suas controvérsias — as Adins, 0 caso ilustre —, e mesmo em muitas das suas iniciativas politicas, como freqitente no tema ambiental, quando atua em sintonia com 0 Ministério Paiblico em Ages Civis Pablicas. Até aqui nao se conhece a dentincia de “governo de juizes”, comum em outros con- textos nacionais, ¢ a representagio politica tem dado claros sinais de ave, pragmaticamente, admite a emergéncia da representagao funcio- nal, Mas a questao da relago entre essas duas representagies € com plexa e sensivel demais, ¢, embora as ciéncias sociais brasileiras j& tenham acordado para a necessidade de uma forte reflexo sobre ela, estamos ainda muito longe de descortinar um caminho confidvel para o seu enfrentamento, Notas i ani lente Plu + Sobre o constitucionalismo comunitirio, ver 0 excel ralismo, Direito e Justiza Substantiva, de Gisele Cittadino, 1999, pp. less. i 2 Entre outros estudos da época, ver Vieira, 1994, especialmente ocapitulo 5. 7 Desenvolv este tema mais amplamente em “A Revolusio Pro- cessual do Direito ea Democracia progressiva”. In:Werneck Vianna & Burgos, A Democracia ¢ os Trés Poderes no Brasil, 2002. As razbes da reagio da magistratura ao tema do controle exter- no esta discutida no excelente Fustiga em Mutagiio, de Luiz Fernando Carvalho, 2008, . * Para um cstudo monogtifico sobre as Adins, ver “Dezessete Anos de Judicializacao da Politica”, deWerneck Vianna, Burgos & Salles, 2007. 108 @ LUIZ WERNECK VIANNA Referéncias ANDRADE, José Carlos Vieira de (1983) Os direitos fundamentais na Constituigao portuguesa de 1976. Coimbra: Almedina. BONAVIDES, Paulo (1993) A constivuigéo aberta. Belo Horizonte: Del Rey ~ (1996) Curso de Direito Constitucional. Sio Paulo: Malheiros. CASAGRANDE, Cassio (2008) O Ministério Piiblico e a judicializa- sao da politica. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, CARVALHO, Luiz Fernando (2008) Justia em mutagdo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, CITTADINO, Gisele (1999) Phwratismo, direito e justica substantiva. Rio de Janeiro: Lumen Juris, CUNHA, Euclides da (1999) 4 margem da histéria. Sio Paulo: ‘Martins Fontes, GARAPON, Antoine (1999) O juiz e a democracia. 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